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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.46 Belo Horizonte Dec. 2016

 

 

Rompendo o casulo, tomando a palavra e constituindo-se: uma trajetória na clínica psicanalítica contemporânea

 

Breaking the cocoon, seizing the word and self-constituting: a path to the contemporary psychoanalytical clinic

 

 

Angela Maria Menezes de Almeida

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo, a partir do dimensionamento de um caso clínico, reflete sobre o campo do analisável na contemporaneidade, permitindo que o pensar psicanalítico se coloque em processo de expansão. Busca colocar um foco de luz sobre problemáticas psíquicas atuais que se configuram em patologias de pacientes aparentemente inacessíveis. Traz contribuições de autores que se dedicam ao estudo dos chamados casos difíceis, em especial, Frances Tustin, Donald Winnicott e Pontalis. Pensa num enquadre clínico, em que as sutilezas do processo de análise vão dando contorno às possibilidades psicanalíticas de ambos os envolvidos. Entende, assim, que a construção de caso clínico renova a clínica do analista; renova o seu modo de pensar psicanálise e abre espaço a novos caminhos subjetivantes para o analisando.

Palavras-chave: O campo do analisável, Autismo psicogênico, Angústia primitiva, Fragilidade egoica, Caso clínico.


ABSTRACT

We start from the beginning with a clinical case, so we reflect about the contemporary analysability field, such a way as the psychoanalytical thinking can be expanded. As to lighten some contemporary psychical problematics that are shown through seemingly inaccessible patologies. On our support we use experiences of authors who dedicate themselves to the study of the so called difficult cases, mainly Frances Tustin, Donald Winnicott and Pontalis. We think about an analytical frame were the subtleties shape the contours of both patient and analyst capabilities. The building of a clinical case renews the analyst’s clinic, his ways of psychoanalytical thinking and a subjectifying path for the analysand.

Keywords: Analysability field, Psychogenic autismo, Primitive anxiety, Egoic fragility, Clinical case.


 

Todos nós temos uma caverna sensorial,
uma área de sensações que nunca recebeu representação.

Júlia Kristeva

Creio que tenho que resistir: este tem sido o meu lema.
No entanto, quantas vezes me pergunto como encarnar esta palavra.

ERNESTO SÁBATO

A gente faz poesia porque a vida não basta.
FERREIRA GULLAR

 

O campo do analisável

Na contemporaneidade, ao nos debruçarmos sobre casos clínicos, temos nos defrontado com questões que nos remetem a algumas indagações:

• Existiriam limites para o analisável?

• Haveria uma delimitação da clínica e do campo psicanalíticos, de fato e de direito?

• Que casos estariam, ou não, sujeitos a um tratamento psicanalítico exitoso?

• O possivelmente analisável estaria ancorado nos limites de competência do analista? Ou deveria ser definido a partir de balizas metapsicológicas, que nos permitiriam delinear certas estruturas nosográficas?

Na imensa produção psicanalítica, encontramos uma gama variada de opiniões que nos remetem ao seguinte paradoxo, sintetizado por Pontalis:

Todas as organizações psicopatológicas podem ser abordadas pela psicanálise; nenhuma, nem as neuroses mais clássicas, é realmente acessível em suas raízes (PONTALIS, 2005, p. 211).

Que implicações podemos inferir desse aparente contrassenso? Que reflexões podemos extrair desses fatos?

Num primeiro momento, seria importante considerar que, em se tratando de psicanálise, nada deve ser objetivado. Não se trabalha com percursos definidos a priori; não se definem pontos estratégicos a alcançar; não se é dono do tempo necessário às possíveis elaborações; não se trabalha com certezas; a competência teórica não é o carro-chefe desse trabalho.

Trata-se de comunicação de inconsciente para inconsciente, que se dá numa dimensão relacional, em que o progresso da análise depende fundamentalmente do que possa surgir nesse espaço-tempo analítico, criado pelas duas partes implicadas na questão: analista e analisando.

Nesse âmbito, a psicanálise seria um movimento, uma potência, podendo, assim, realizar diferentes operações para recortar, fazer circular e remanejar tensões instituídas.

Freud (apud Pontalis, 2005, p. 216) afirma:

A organização natural da mente, o equipamento constituído do aparelho, os sedimentos adquiridos do saber, longe de favorecê-lo, entravam o funcionamento analítico.

Num segundo momento, ater o olhar na própria história da psicanálise e perceber que ela consistiu menos em definir os limites de sua ação e mais em delinear o seu pensamento, procedendo a incessantes momentos de retificações de fronteiras. Todo o seu material de estudo, estrutura nosográfica, teoria e técnica, foi se construindo numa linha de pensamento não redutor. A ciência psicanalítica sempre teve como princípio nunca recusar o irracional, o incoerente, o inquietante, mas pensar aquilo que não conseguimos pensar, aquilo que se apresenta para nós como se tivesse ultrapassado o limiar do tolerável.

É nesse limiar que a clínica psicanalítica contemporânea se encontra. Assim é que o campo do analisável se apresenta a nós. Nossa ação não se dá a partir de um centro garantidor de estratégias teórico-clínicas exitosas. E isso talvez seja a mola propulsora que nos faz estar em constante questionamento teórico-clínico, em busca de construir uma experiência de processo analítico singular para cada paciente que conosco venha viver essa realidade.

Lançar luz sobre certas patologias de pacientes aparentemente inacessíveis e tão presentes em nossa clínica psicanalítica atual é meu propósito. Para tal, após longo percurso de leitura/estudo de autores que abordam os chamados “casos difíceis”, “borderlines”, “casos limites” e outras terminologias similares, resolvi me apoiar na concepção de Frances Tustin (1990), referente a perturbações neuróticas severas, que ela denomina de “autismo psicogênico”.

Trago também contribuições de Winnicott e de Pontalis, referentes a estados psicológicos que se configuram numa posição de limite ou borda, ligados a uma angústia primordial.

Sobre “autismo psicogênico” Frances Tustin (1990) afirma que, nesse tipo de autismo, não existiria nenhum dano cerebral que pudesse ser detectado pelos métodos de investigação, atualmente disponíveis.

A autora afirma:

São pessoas que desenvolveram, quando bebês, uma formação maciça de reações de evitação a fim de lidar com uma consciência traumática de separação física da mãe. Isto invadiu suas consciências antes que seus aparatos psíquicos estivessem prontos para suportar a tensão (TUSTIN, 1990, p. 26).

Tustin pontua que está enfatizando o estado organizacional do bebê e não a idade em que o trauma ocorreu. Isso porque em algumas crianças o choque ocorreu após uma associação muito íntima com a mãe, que continuou por muito tempo, enquanto em outras ele ocorreu na primeira infância.

Quanto a aspectos autistas em pacientes neuróticos, Tustin aponta: o medo de se desintegrar; de perder a linha de continuidade que garante suas existências; o fraco senso de identidade pessoal; reações de encapsulação; ameaça de aniquilação; sensação de perda irreparável; sentimento de vazio, entre outros.

No entanto, ressalta que em certos pacientes neuróticos tanto crianças como adultos, tais aspectos podem se apresentar encobertos por um funcionamento similar à maioria das pessoas consideradas psiquicamente saudáveis.

A autora ainda nos fala do que ela considera a parte autista de certos pacientes neuróticos que – apesar de altamente inteligentes, esforçados, bem sucedidos profissional e socialmente, cordiais e simpáticos – conservam uma parte de sua personalidade protegida por uma blindagem que dificulta as possibilidades de contato com o analista, comprometendo o processo de mudança.

Escrever sobre este trabalho foi para mim tarefa extremamente difícil. Precisei ruminá-lo durante o período de um ano, após o desfecho do processo de análise de um caso clínico, que ora trago à reflexão.

Com essa experiência, vivenciei na íntegra, o tão propalado a posteriori de que nos falam grandes ícones da psicanálise.

Precisei garimpar por muitas leituras para finalmente poder me autorizar a pensar essa problemática psicanalítica no âmbito de uma situação psíquica de paciente neurótico, atravessado por barreiras aparentemente inatingíveis, ou seja, em estado de “encapsulação autista”, conforme a terminologia de Tustin (1990) ou de “agonia impensável”, na concepção de Winnicott (1979).

No trato com esse tipo de paciente, Frances Tustin (1990) afirma que a percepção tardia do analista é, de certo modo, inerente à experiência vivenciada nessa clínica. Há que se tornar livre de sua influência imobilizante para se poder refletir sobre ela.

Diante de pacientes encapsulados por marcas ocultas impenetráveis, ficamos como se estivéssemos anestesiados, correndo o risco de ter nossa autoridade analítica minada. Ou seja, a pretensa proteção com a qual eles se ludibriam através de suas estratégias isolantes, que os tornam encapsulados, tende a nos envolver e, nesse caso, uma análise poderia se estender infinitamente, sem esperança de um término satisfatório.

Esses pacientes experimentam um estado de desintegração em graus variados, traduzidos por momentos de retraimentos rígidos, em que ficam como guardados numa redoma. Trata-se de pessoas hipersensíveis que acreditam precisar das paredes dessa redoma como um invólucro de proteção.

Tustin entende que essa reação foi adequada e necessária quando o acidente psíquico de uma perda aparentemente irreparável ocorreu pela primeira vez. Mas com o passar do tempo, isso vai se tornando obstáculo ao funcionamento psíquico. Um caminho de possível modificação, no seu entender, pode se dar pela interação com a vida e pelo uso espontâneo das próprias capacidades do paciente.

Assim, ela diz:

A ênfase está em ajudá-los a passar pelos processos primitivos de luto, que cicatrizarão a ferida de suas tão precoces sensações de perda, e relaxarão as tensões associadas com o trauma, de modo que eles possam começar a usar as capacidades com as quais eles geralmente são dotados (TUSTIN, 1990, p. 30).

Bion é outro autor que ressalta a importante função do analista nesses casos:

Não tenho dúvidas de que o analista deveria sempre insistir, pela forma com que ele conduz o caso, que está se dirigindo a uma pessoa sã (BION apud TUSTIN, 1990, p. 230).

Trata-se de acreditar e agir de forma transparente, cuidadosa e firme, dirigindo-se à parte humana sã do paciente e comportando-se, ele mesmo, de forma sã e humana. Nesse âmbito, é possível oferecer ao paciente um entendimento firme mas compreensivo e humano de suas dificuldades. É empatizar com as angústias do paciente sem perder o equilíbrio de sua própria sanidade. É estar do lado da vida e da esperança, no ato de psicanalisar.

Tustin (1990) chega a falar que todos nós temos uma porção de autismo em nossa constituição, o que propicia que nos comuniquemos com esses pacientes de modo que eles se sintam entendidos.

O trabalho com pacientes que apresentam esse perfil nos desafia e nos instiga a ser científicos em nossas tentativas de entendimento da natureza da patologia em pauta e, ao mesmo tempo, ser sensíveis e criativos para nos colocarmos em ressonância com eles, a fim de podermos ajudá-los em seu processo de subjetivação.

Donald Winnicott (1979) nos traz uma significativa contribuição para a clínica psicanalítica com pacientes aparentemente inacessíveis, que ele identifica como portadores de uma angústia primordial. Segundo sua concepção, quando a organização do eu se encontra ameaçada, esse eu busca defesas contra um eminente colapso.

Assim, estados psicológicos que estão numa posição de limite ou borda e que se configuram como patologias severas são, na verdade, uma organização defensiva ligada a uma angústia primitiva. Essa angústia que não pode ser nomeada, essa “agonia impensável”, surge como sensação de não identidade, perda do senso do real, sensação de se perder, se desmanchar, se diluir. Sensação de estranheza, como se uma catástrofe pudesse acontecer a qualquer momento, logo num tempo que ainda viria.

Na verdade, essa sensação de perigo temido, que poderia acontecer num futuro próximo, estaria se configurando como o que já aconteceu no passado. Aconteceu sem poder ser representado, sem encontrar seu lugar psíquico.

Não se trata, aqui, de algo recalcado que estaria inscrito no aparelho psíquico. Também não se traduz num trauma enterrado profundamente na memória. Parece que se trata de uma outra dimensão, algo em torno de uma ausência, de um vazio, uma falta, um nada.

Pontalis (2005, p. 207) usa a seguinte expressão: “Teve lugar algo que não tem lugar”. É como se aquele algo que determina o funcionamento do aparelho psíquico estivesse fora do alcance dele. O que escapa a qualquer possibilidade de memorização está, no entanto, fixado no âmago do ser. Ou seja, o nada é mais real para o sujeito do que as palavras, as lembranças, as fantasias.

É como se o ser sentisse em si um “buraco negro”. A presença-ausência desse “espaço desértico” é a prova daquilo que ele não vivenciou com sentido, num tempo próprio, e a intensa angústia sentida, esse nada impresso em suas entranhas, torna-se apelo a que seja reconhecido, pela primeira vez, para que possa ganhar vida, para que possa existir.

Winnicott (apud PONTALIS, 2005, p. 207), afirma: “É da não existência que a existência pode começar”. E nos convida a refletir: “O que nos faz sentir ‘vivos’ para além da adaptação, sempre tingida de submissão, a nosso ambiente?”.

Isso nos remete ao nosso próprio movimento de simplesmente existir e de tudo o que está implicado aí: o tempo, as relações, a criação, o brinquedo, a fantasia, a poesia. Todos componentes que nos possibilitam a passagem de um espaço para outro; de um estado de não ser para um novo estado de ser constituído; de uma posição paralisante de impotência para a vivência de uma possível existência.

Como analistas, diante de experiências com casos clínicos marcados por extrema angústia, nos tornamos sensíveis a uma realidade percebida como falta, vazio, nada. E isso nos incita a trabalhar em espaços de fronteiras móveis que, no processo de análise, precisam ser sempre retomados, reinventados durante todo o percurso, a cada momento, nunca se configurando como um processo linear. Espaços de construção, de reconstrução e de criação. Caminhos-estradas, onde “não nos cabe conhecer ou ver o que virá”1 mas que, ainda assim, somos convictos de que vale a pena caminhar.

 

O caso clínico

Abordar qualquer temática psicanalítica a partir do dimensionamento de um caso clínico é possibilitar que o pensar clínico e o metapsicológico se coloquem em processo de expansão. Trata-se de um trabalho que vai se delineando, pautado na transferência, para além do que é sabido e do que é consciente.

Nesse sentido, a construção de um caso clínico em psicanálise traz a dimensão da prospecção, ou seja, há que se lançar sobre o que ainda não se tem domínio; há que se pautar nas subjetividades envolvidas e há que apurar o ouvido e o olhar em busca de dar sentido ao drama pessoal que na clínica se desenrola.

No caso clínico em pauta, trata-se de uma jovem mulher, de elevado nível intelectual, que vamos identificar como X. Apresenta-se aparentemente tranquila. Busca a análise por achar que, às vezes, “sai do controle” e “se torna agressiva”. Diz que as pessoas não imaginam isso.

Com o passar do tempo, a narração de sua história vai deixando transparecer aos olhos da analista uma pessoa extremamente frágil em suas relações familiares, em especial, no que tange à figura materna. Um contorno egoico frágil vai se delineando, remetendo ao relacionamento inicial mãe-filha.

É possível identificar um estado de instabilidade frequente nessa paciente. Parece sempre invadida, sem “pele psíquica” (ANZIEU, 1989), sem proteção na fronteira. Fala de medos de aniquilamento, de entrar em estado de não integração, de perder o contato com a realidade, de desorientação espacial, entre outros.

Winnicott (1975) identifica essas dores psíquicas como próprias de um estado de angústia primordial. Essas angústias falam de ameaças à própria existência humana e têm origem em uma falha ambiental específica, basicamente advinda da mãe ou de alguém que a substituiu.

Para ele, esses temas iniciais da vida humana, que também chamou de “angústias impensáveis”, não devem ser entendidos em termos de conflitos gerados nas relações edipianas. Pertencem a um tempo mais arcaico. A regressão está ligada à ideia de que, frente a perturbações iniciais graves, houve um congelamento da situação de falha, e isso é o que gera a angústia. A regressão de que ele fala é sobretudo a regressão a uma situação de dependência e se refere ao desenvolvimento do eu.

O autor intui que no início o indivíduo não é uma unidade, e sua vulnerabilidade a estados mais regressivos depende em grande medida do modo como esse ser, ainda não integralizado, é exposto à realidade. Nesse momento, falhas importantes no relacionamento mãe-criança podem acarretar sérios prejuízos à organização de sua personalidade. No entanto, Winnicott (1975) acredita que, em situações futuras mais favoráveis, tal falha possa ser descongelada e tratada.

No processo analítico de X, há o relato de uma cena de brusco rompimento da mãe com ela, nos primórdios de sua infância, que a deixou “sem chão”, sentindo-se “muito estranha”, como se fosse “se desfazer”, “se despedaçar”. A cena se repete muitas vezes, durante seu percurso terapêutico. Isso me fez optar por um recorte desse aspecto importante, presente no perfil psíquico de X, para refletir sobre a sua trajetória, durante longos anos de processo analítico em minha clínica.

A separação física da mãe foi experimentada como uma catástrofe por X, logo, iminência de morte. Experiência infantil que nunca pôde ser digerida por ela sendo, então, lacrada e transfigurada em sensações de ser estranha. Talvez ela desejasse ter uma porção eterna de sua mãe para se assegurar de sua existência.

Mais do que um desejo, isso parecia ser sentido como uma realidade que se lhe apresentava como uma constante ameaça de ser desenraizada, cortada, aniquilada. Daí seus constantes temores de se perder e seus terrores com cenas de crimes com objetos cortantes.

Essa é a parte desviada da paciente que se sente ignorada e ao mesmo tempo ignorante de si. E em suas sensações de estranheza tenta evitar a consciência do “buraco negro” que a separação da mãe lhe causou e o consequente vazio das demais separações que a vida lhe foi apresentando: partidas de pessoas por morte ou viagem, término de relações, finais/conclusões de cursos, afastamento da análise, entre outros.

No desenrolar de sua existência, X vai preparando seu casulo particular, sua redoma e, assim, se enclausurando. Essa forma de ser dificulta seu processo de análise, uma vez que, protegendo-a do risco de morte sentido, de seu “despedaçamento”, a isola da experiência de vida possível, com toda a carga de ser vulnerável que a nossa humanidade nos impõe.

Protegendo-a das dores inevitáveis de sua condição humana, esse recurso utilizado por X evitava que ela entrasse em contato com expressões de vida, de afeto, de amor em suas várias funções, de afinidade, de cuidado, de compaixão, impedindo-a, assim, de se tornar capaz de amar e ser amada.

Para X, finais/separações não eram experienciados como processos de rejeições que ela pudesse suportar. Parecia se tratar de um corte violento de seu corpo do corpo daquela com quem ela se sentia contínua, daquela que ilusoriamente lhe garantia a existência física.

“Extinguir-se”, “desintegrar-se”, “sair da linha” podia ser comparado à perda da compreensão de si; à falta de ser envolvida por um entendimento, por um significado, que pudesse combater sua frágil autossuficiência, constituindo-se, dessa forma, uma proteção à sua identidade pessoal, sempre ameaçada de perda.

Os aspectos brutais incrustrados em sua natureza nos primórdios de sua existência permaneciam inalterados e a imobilizavam, impossibilitando-lhe novas formas de experienciar a vida.

As feridas desse violento rompimento precisavam ser cicatrizadas antes que ela pudesse suportar o final de seu contato corporal comigo. Seu movimento de saída da terapia foi ensaiado mais de uma vez.

À medida que seu processo de análise foi se conduzindo de forma a preparar X para assumir suas escolhas/sua vida, ela foi se tornando consciente de suas próprias forças intrínsecas para a condução de suas vontades, ao mesmo tempo que ia tomando consciência da atenção firme e cuidadosa pela qual ela estava circundada.

A partir desse momento, ela passou a experimentar a condição de ser uma pessoa falível, sentindo a agonia de seus conflitos, as dores e as dificuldades de sua vida e suas limitações, bem como percebendo a vida pulsante em si.

Sabemos que o processo de encapsulação é uma forma de proteção contra a ameaça de dissolução. Funciona como uma camada isolante contra as agruras do existir.

Conseguir conter seus sentimentos de derramamento dentro do contexto de suas produções escritas tinha se pautado como uma das vias encontradas por X. Sua veia literária lhe possibilitava uma forma organizada/disciplinada de ser. Colocava-a no controle de sua luta por uma integridade identitária.

Seus textos-poemas pareciam suportes para conter as inundações torrenciais de seus sentimentos indigeridos. Seus escritos ‘brutos’ traduziam a força de sua pulsão agressiva que, dessa forma, era escoada para fora de si.

Escrever se colocava como uma forma de X se inscrever num processo de existência; de ganhar um sentido para o seu mundo obscurecido pela solidão; de se confrontar com seus demônios; de transpor corajosamente um longo processo de vida vivido num abismo particular; de se encarnar, através das palavras e, assim, poder resistir às agruras de seu vazio existencial e deixar transparecer indícios de uma nova possibilidade de existir.

Saudade de sentir que, de certa maneira, a cristaleira era nosso segredo, o segredo daquelas tardes em que estava ameaçada de quebrar, me despedaçar, sabendo que veria você reunir meus cacos, colar meus pedaços e me passar um café. Existe amor, vó, existe amor.

 

A título de conclusão

Sabemos que processos arcaicos são fundamentais para a fixação de experiências/vivências posteriores. Se são profundas, essas marcas se tornam capazes de imprimir terrores mortais intensos naqueles que as experimentaram.

Nesse caso, esquemas de proteção tendem a surgir. Se, por alguma razão, a blindagem ou encapsulamento se apresenta como reação predominante, ela se torna a forma na qual as dificuldades posteriores poderão ser tratadas.

Perceber as sutilezas desse processo e acreditar nas possibilidades da terapia psicanalítica é tarefa árdua e longa, que exige de analistas e analisandos formas mais sensíveis de expressão/interação.

Trata-se de um grande esforço para tentar captar o significado daquilo que é inexprimível com palavras, mas que é tão profundo e tão pulsante, na forma de se fazer existir do ser humano.

Como analista, eu diria que essas experiências, que tanto nos angustiam, também nos desafiam a buscar o novo, a desconstruir o sabido e a reconstruir uma nova maneira de ser, mais sensível, mais vulnerável e, por isso mesmo, mais humana.

Um bom caminho talvez possa ser delineado por um pensamento psicanalítico que venha a se desenvolver como uma ciência poética.

 

Referências

ANZIEU, D. O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989.         [ Links ]

PONTALIS, J.-B. Entre o sonho e a dor. São Paulo: Ideias e Letras, 2005.         [ Links ]

TUSTIN, F. Barreiras autistas em pacientes neuróticos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. O brincar & a realidade. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ammalmeida.49@gmail.com

Recebido em: 15/09/2016
Aprovado em: 25/10/2016

 

 

SOBRE A AUTORA

Angela Maria Menezes de Almeida
Psicanalista e membro efetivo do CBP-RJ.
Coordenadora de seminários no Curso de Formação de Psicanalistas do CBP-RJ. Coordenadora de cursos livres na área de psicanálise.
Pedagoga.
Mestre em Educação pela UNIVERSO-RJ.
Especialista em Metodologia do Ensino Superior e em Pedagogia Empresarial pela UNIGRANRIO-RJ.

 

 

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