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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.46 Belo Horizonte Dec. 2016
Um lugar para chamar de seu: uso de tatuagens por adolescentes em programas socioeducativos
A place to call their own: use of tattoos for teenagers in socio-educational programs
Gilberto Lucio da SilvaI, II; Maria Consuêlo PassosIII
I Ministério Público de Pernambuco
II Tribunal de Justiça de Pernambuco
III Universidade Católica de Pernambuco
RESUMO
Na análise crítica da implementação de um programa de remoção de tatuagens em jovens infratores, a partir da articulação do atual estatuto das marcas corporais (ORTEGA, 2008) e do conceito de luta por reconhecimento, de Axel Honneth, procuramos compreender como, nas sociedades contemporâneas, cada sujeito procura criar para si um lugar no mundo. Essa articulação permitiu entender as marcas corporais como resistência ao desenraizamento das matrizes de sentido na vida do adolescente em conflito com as leis. O presente ensaio revela ser necessário cotejar a proposta jurídica com as características de um contexto em que dificilmente o adolescente se sente herdeiro e tradutor de normas e valores culturais de sua família e do seu meio.
Palavras-chave: Tatuagens, Lugar psíquico, Reconhecimento, Programas socioeducativos.
ABSTRACT
In the critical analysis of the implementation of a tattoo removal program for young offenders, through the articulation of the current statute for body marks (Ortega, 2008) and the concept of fighting for Recognition, by Axel Honneth, we sought to understand how, in contemporary societies, each subject seeks to create a place in the world for himself. This articulation allowed us to understand the body marks as resistance to uprooting the matrices of meaning in the life of the teenager in conflict with the law. This essay revels that it is necessary to collate the legal proposal to characteristics from a context in which the teenager hardly feels like an heir and a translator of norms and cultural values of their family and their environment.
Keywords: Tattoos, Psychic place, Recognition, Socio-educational programs.
Introdução
A psicanálise não vai reduzir quem quer que seja às suas particularidades culturais. Um tratamento pode permitir ao sujeito uma relação de descrença com essas particularidades a partir do momento em que ele reconheça que sua particularidade mais “íntima” pode, assim como uma luva que se vira do avesso, se alojar e se reencontrar no mais universal (DOUVILLE, 2011, p. 36).
Se, em sociedades tradicionais ou antigas, o ato de se tatuar já foi uma maneira de garantir um lugar sagrado, sendo símbolo de nobreza, elegância e distinção, ou, pelo contrário, era tido como manifestação demoníaca, marca de menos valia de quem a possuía, hoje essa prática ganhou novo impulso, ampliando, por um lado, os limites da noção de estética pessoal e, por outro, permitindo resistir ao
[...] desenraizamento das antigas matrizes de sentido, fim dos grandes movimentos ideológicos, dispersão das referências da vida cotidiana, fragmentação dos valores, etc. (PEREIRA, 2007, p. 68).
Para Barros (2014, p. 22),
[...] um dos usos recorrentes da tatuagem ao longo da história foi imprimir humilhação. A marca gravada na pele ficava como estigma e as pessoas teriam que viver com elas até o final de suas vidas.
Desde a guerra entre Atenas e Samos, quando os cativos atenienses eram marcados com um navio de guerra na testa e os de Samos com uma coruja, marcas no corpo eram utilizadas como forma de identificar seu escravos.
De forma semelhante, na guerra das facções criminosas é possível encontrar marcas de pertencimento.
Segundo Lise, Neto, Gauer, Dias e Pickering (2010, p. 633),
[...] estima-se que hoje, na população carcerária, 30% a 35% dos indivíduos do sexo masculino tenham algum tipo de desenho estampado no corpo. Esses desenhos demonstram, por meio de códigos, segredos da prisão, identificando quem vem a ser o dono daquela marca, qual é a especialidade do preso no mundo do crime.
Todavia, em sua pesquisa com mulheres que fizeram tatuagens, os autores observam que, embora
[...] o uso da tatuagem permaneça como sinal de rebeldia, os sujeitos pesquisados reconheceram como motivo para se tatuar a produção de um adorno, uma forma de expressão (LISE et al., 2010, p. 637).
Esse fato aponta para um novo estatuto da tatuagem em nosso meio social. Mas quase nunca a “fúria legiferante” (o mimetismo, a profusão e minudência das normas), apontada como elemento de formação do Brasil contemporâneo (PRADO JÚNIOR, 1979), espelha os contextos e controles socioculturais vigentes.
Em 18 de março de 2015, o juiz coordenador do 1º Juizado Especial Criminal da Comarca de Anápolis, do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás [TJGO], encaminhou à Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, cópia do projeto Programa de Remoção de Tatuagens Vinculadas ao Crime para “conhecimento, apoio e criação de novas políticas para a juventude”.
O projeto tem por objetivo geral promover amplamente para toda a população, mas com maior enfoque em jovens adultos e adolescentes,
[...] a remoção de tatuagens vinculadas ao crime de pessoas que as fizeram no passado somada a questões ideológicas de qualquer natureza, seja profissional, moral, passional, religiosa ou modismo e, hoje, se tornaram entraves nas suas vidas, fazendo com que experimentem inúmeros constrangimentos (SOUSA, 2015).
O projeto do TJGO procura se embasar na “experiência estrangeira bem-sucedida” para buscar “apoio na criação de programa semelhante no Brasil”, apresentando cópia de uma série de documentos referentes a alguns programas estrangeiros, a exemplo de Second Chance, da cidade de San Francisco, Fresh Start Project, do estado de New York, e Project New Start, do estado da Califórnia.
No entanto, mesmo nos Estados Unidos, origem de todas as experiências mencionadas, podem ser identificados graves entraves na implementação e na execução dos referidos programas, e a maior parte é reduzida ou abandonada em razão dos custos financeiros e operacionais.
Além de especificar um perfil de tatuagens como alvo da intervenção, em que são priorizadas as tatuagens realizadas nas mãos, braços, rosto e pescoço, em muitos programas norte-americanos a remoção de tatuagens é tida como estratégia de prevenção contra a inserção ou reinserção em facções criminosas ou gangues, quase sempre de origem étnica, e os programas de remoção norte-americanos são realizados em paralelo com atividades educacionais.
Destaque-se um elemento em comum nos programas norte-americanos de remoção de tatuagens, que é sua ênfase em uma abordagem que promete um “recomeço limpo”, sem as marcas de um passado vinculado ao crime e ao comportamento antissocial, representadas pelas tatuagens. Títulos como New Start [novo começo], Second Chance [segunda chance] ou Fresh Start [recomeço] assinalam uma visão de que a retirada das tattoos promoverá uma nova vida, totalmente diferente da vida anterior do indivíduo que sofrer a intervenção.
Este ensaio realiza uma aproximação com a temática, levando em conta a prática profissional de um dos autores, que inclui a fiscalização de programas socioeducativos no Estado de Pernambuco. Pretende-se refletir sobre a execução da proposta de intervenção voltada aos adolescentes em cumprimento de medida de internação ou de semiliberdade, em que o uso de tatuagens pode emergir como parte de um processo identitário.
Concomitantemente, objetivamos fazer uma articulação desse uso, compreendido como estando vinculado ao estatuto contemporâneo das marcas corporais, que aponta para o uso das tatuagens mais como forma de expressão pessoal de um si mesmo do que como estigma social (LE BRETON, 2003), e a visão conceitual que, na atualidade, mostra como cada sujeito procura criar para si um lugar no mundo: a luta por reconhecimento, concebida por Axel Honneth (2008, 2009).
Concordamos com Cela (2007) quando diz que tratar dessa questão envolve em princípio um duplo foco de análise teórico e empírico, em que, por um lado, busca-se a compreensão das relações intersubjetivas da vida cotidiana, importantes para a construção e o reconhecimento das identidades e, por outro, tenta-se identificar como se expressam os espaços públicos sobre as questões de reconhecimento de identidades, direitos e redistribuição de recursos públicos e nas representações acerca dos adolescentes.
Neste artigo, apenas esboçamos os primeiros passos na procura por respostas mais pertinentes ao “reconhecimento da diferença” previsto nos diplomas legais.
Identidade e níveis de reconhecimento
Para Costa e Gonçalves (2012, p. 1), a formação da identidade em crianças e, especialmente entre os adolescentes, se dá por meio de um processo intersubjetivo, em interação com a comunidade onde estão inseridos, na qual
[...] constituem seus valores ou preferências pessoais, a partir daquilo que é importante em seu contexto, aprendendo a conviver coletivamente, ao se sentirem parte do todo, aceitos e pertencentes.
A formulação da teoria do reconhecimento, de Axel Honneth, foi basicamente exposta na obra Luta por reconhecimento (2009), e é um desdobramento da concepção hegeliana de uma eticidade intersubjetiva, presente em todas as relações sociais, indica uma hierarquia pré-reflexiva, que serve como pano de fundo para a ação dos sujeitos ou para os julgamentos que fazem dos outros e de si mesmos.
Segundo Mattos (2006), caracteriza, desse modo, uma normatividade social, que, ainda que não articulada, ou explícita, é determinante na constituição das expectativas de comportamentos de uns em relação aos outros.
Mais especificamente, essa normatividade é vivida nos conflitos sociais, pois, de acordo com Testa (2008), a noção central do reconhecimento, é entendida como essencialmente conectada ao conflito, tendo como tese fundamental que a identidade dos indivíduos se determina em um processo intersubjetivo mediado pelo mecanismo do reconhecimento conflitante.
Em suma, a intersubjetividade é “reconhecedora” [riconoscitiva], de modo que:
[...] um relacionamento alcançado consigo mesmo, íntegro, só é possível dentro de uma certa sequência de formas distintas de reconhecimento (amor, direito, eticidade), entendidas como condições socioestruturais, cuja satisfação dá lugar a outras formas de relações positivas consigo (autoconfiança, autoestima, autorrespeito). A estas três formas de reconhecimento correspondem, negativamente, três experiências de desprezo/falta de reconhecimento, cuja ocorrência pode motivar moralmente os sujeitos não reconhecidos à luta pelo reconhecimento de suas identidades negadas (TESTA, 2008, p. 96).
De acordo com Costa e Gonçalves (2012, p. 3), a perspectiva formulada por Axel Honneth em sua teoria do reconhecimento compartilha com outros autores, a exemplo de Mead (1982; 1934) e Fraser (2006), a percepção de “um padrão comum de reconhecimento social intersubjetivo, que valoriza os sujeitos mais adaptados e seguidores de tais padrões”.
Esse padrão apresenta um desenvolvimento por etapas pelas quais cada indivíduo alcança seu processo de internalização de valores sociais. Essas etapas ou níveis correspondem às relações primárias, às relações jurídicas e à comunidade de valores, as quais delineamos em linhas gerais a seguir.
Ligações emotivas com fortes laços entre as pessoas (eróticas, de amizade e entre pais e filhos) constituem as relações primárias. Com especial atenção à relação entre a mãe e o bebê, utilizando como referência a categoria de dependência absoluta de Winnicott, Axel Honneth (2009) parte da definição da simbiose mãe-e-bebê (WINNICOTT, 1983), tornando-a, como exemplo de intersubjetividade primária, que tende a um processo de separação, e estabelece – nesse complexo percurso, que envolve a ampliação do campo de interesse social materno e a fluidificação de sua identificação primária simbiótica –, em que
[...] mãe e bebê aprendem a se diferenciar e se perceberem como autônomos, podendo, dialeticamente, estarem sós, ainda que dependentes (MACHADO; MACHADO, 2011, p. 100).
Para Honneth (2009, p. 178), “o amor representa uma simbiose quebrada pela individuação recíproca”, mas a independência é “sustentada por uma confiança afetiva na continuidade da dedicação comum”.
Com um ambiente facilitador, com a presença da “mãe suficientemente boa”, conforme a conceitua Winnicott, os processos cognitivos inerentes ao bebê podem ser acionados para estabelecer diferenças entre seu ego e o ambiente, produzindo a chamada “dependência relativa”, a “capacidade de estar só”, a imaginação e a fantasia, sustentadas na confiança na dedicação materna.
Sobre essa etapa Honneth (2009, p. 173) afirma:
Se a mãe souber passar pelo teste de seu filho, tolerando os ataques agressivos sem a vingança de privá-lo do amor, então, da perspectiva dele, ela pertence de agora em diante a um mundo exterior aceito sem dor; [e] pela primeira vez [...] ele terá de tomar consciência agora de sua dependência em relação à dedicação dela. Se o amor da mãe é duradouro e confiável, a criança é capaz de desenvolver ao mesmo tempo, à sombra de sua confiabilidade intersubjetiva, uma confiança na satisfação social de suas próprias demandas ditadas pela carência.
Justamente a segurança que transmite o amor desse primeiro objeto de cuidado é que permite à criança representar e satisfazer suas carências, e no âmbito da autorrelação prática adquirir autoconfiança.
Posteriormente, com a autoestima elevada e percebido como digno de respeito, o sujeito pode buscar preencher satisfatoriamente suas necessidades ou privações, porque entende que tem o direito a tal satisfação.
No âmbito das relações jurídicas se passa algo semelhante ao conflituoso processo de individuação amorosa. O mesmo padrão de socialização, presente no reconhecimento do amor, pois:
[...] só podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos como portadores de direitos quando possuímos, inversamente, um saber sobre quais obrigações temos de observar em face do respectivo outro: apenas da perspectiva de um “outro generalizado”, que já nos ensina a reconhecer os outros membros da coletividade como portadores de direitos, nós podemos nos entender também como pessoa de direitos, no sentido de que podemos estar seguros do cumprimento social de algumas de nossas pretensões (HONNETH, 2009, p. 179).
Sejam direitos liberais de liberdade, também chamados direitos negativos, que protegem a pessoa de intervenções desautorizadas do Estado em sua liberdade, vida ou propriedade, sejam direitos políticos de participação, que permitem o acesso aos processos de formação pública da vontade, sejam direitos sociais de bem-estar, que garantem ao indivíduo ter parte, de modo equitativo, na distribuição de bens básicos, esses configuram uma nova concepção de status de cada indivíduo na modernidade social (HONNETH, 2009, p. 189).
Esse status de “pessoa de direito” é obtido pela incorporação de regras da coletividade, que gera, por sua vez, a expectativa de disciplina na conduta e de um agir em conformidade com essas regras. O indivíduo passa a ser reconhecido como pessoa responsável pela coletividade e como sujeito pleno de direitos pelo Estado (COSTA; GONÇALVES, 2012).
O terceiro nível de reconhecimento, a comunidade de valores, é alcançado quando o sujeito, pessoa de direito, tem suas propriedades concretas/capacidades individuais enaltecidas pela coletividade, algo que só pode acontecer quando “o horizonte de valores é intersubjetivamente compartilhado” (COSTA; GONÇALVES, 2012, p. 7).
Nesse contexto propício, a estima social expressa um “medium social”, que diz respeito às diferenças de propriedades entre sujeitos humanos que estão vinculados intersubjetivamente.
A experiência de reconhecimento em cada sujeito só se completa, caso seus atributos pessoais correspondam ao que for digno de apreço e esperado pelo seu contexto social. Para Honneth (2009), a ideia de “pessoa” diz respeito ao indivíduo que constitui sua identidade primariamente a partir do reconhecimento subjetivo de sua capacidade jurídica. A condição de “pessoa por inteiro” inclui a obtenção de identidade, ou seja, ser reconhecido pela comunidade de valores da coletividade por aquilo que o caracteriza individualmente.
Entendemos que Honneth (2009) propõe que o reconhecimento seja visto não como algo inescapável, mas como uma possibilidade universalista de que os seres humanos procurem ser reconhecidos.
A crítica de Fraser (2006) a essa “concepção universalista de reconhecimento” alerta que as práticas da vida e a estrutura social específica são determinantes para que essa possibilidade possa ser alcançada.
Isso nos leva a refletir com Costa e Gonçalves (2012) sobre a prática costumeira, nos meios de comunicação, de apresentar o adolescente infrator com tarjas nos olhos ou com borrões nos rostos, que impedem a sua identificação ou “reconhecimento”, em atenção ao dispositivo legal em que a não exposição nítida da imagem é uma estratégia de proteção.
Todavia, sob outra ótica, esse anteparo pode produzir um estereótipo que favorece o preconceito: pois essa pessoa sem olhos, sem rosto se transforma em “objeto” igual a tantos outros rostos borrados ou encobertos, impessoais, reificando os sujeitos.
Para esses adolescentes, Costa e Gonçalves (2012) observam que a ideia de igualdade, que embasa o Estado moderno, nunca se constituiu como real e substancial, mas tão somente como uma formalidade abstrata universalista.
Sujeitos duramente afetados pela violência, ainda na etapa de relações primárias, também não possuem reconhecimento jurídico nos termos honnethianos, ou seja, não são parte do pacto socialmente estabelecido. Tampouco possuem reconhecimento de sua individualidade, pois lhes é praticamente impossível corresponder ao padrão esperado pela coletividade.
Marcas corporais e reconhecimento
Para Siqueira (2009) marcar e alterar o corpo tem se constituído uma das paixões da contemporaneidade. Tatuagens têm recebido um tratamento publicitário expansivo e cultuado que as vinculam à identidade de quem é tido como alguém “moderno”. E tem sido recorrente sua associação a um jeito de ser “jovem”, ganhando espaço entre adolescentes.
Para Ortega (2008) as práticas de personalização corporal, com vistas ao que denomina a constituição de uma bioidentidade, tais como a tatuagem, o piercing, a escarificação, os implantes subcutâneos, entre outros, não representam uma moda superficial de incorporação de elementos exóticos nas sociedades de consumo, tampouco são fruto de patologias mentais.
Para ele, essas modificações corporais representariam a saída encontrada pelos sujeitos para encontrar âncoras para o self, lugares de permanência e de estabilidade, em face da insegurança motivada pela reestruturação dos laços sociais que determinam a busca solitária pela autenticidade e pertencimento social, algum “elo perdido” entre cultura e indivíduo.
Douville (2009, p. 330) insiste sobre os “usos do corpo que os adolescentes põem à prova”, os quais promovem a articulação entre o psiquismo e o espaço social, e pondera que:
Nenhuma sociedade, nenhuma cidade tampouco, pode ser pensada antropologicamente quando se renuncia à análise da condição atual das estruturas intersubjetivas (o intercâmbio, o dom, a troca de palavra) que ordenam os modos de individualização, de filiação e de aquisição da autonomia dos próprios sujeitos.
Mais do que ritos de passagem eficazes e consistentes entre a infância e a vida adulta, as marcas corporais na atualidade estão associadas à devoção privada, ou à pertença a grupamentos específicos, mantendo sua função na estruturação de papéis sociais e associação entre pares.
Entretanto, ocupando o lugar do simbólico, as tatuagens em muitos casos são formas de garantir alguma resposta às injunções de sucesso e consumo dirigidas aos indivíduos mais jovens. Ante à carência de ritos formais nas instituições, facilitadores da inserção social, a exemplo do acesso à escola de qualidade e da capacitação técnica, que lhes proporcione sustento financeiro e reconhecimento social, muitos indivíduos criam uma estética pessoal própria, elegendo um espaço de “contracultura” em que o corpo e suas marcas ganham valor de referência no processo de identificação.
Todavia, para Douville, o que ocorre é uma falha de mediação imaginária em que:
[...] o corpo não encontra a cena e a narrativa para se produzir como um acontecimento que se dirige a outrem, lugar dos ornamentos, das promessas, das máscaras enganosas e das trocas possíveis. Aquém do retraimento, o corpo recapitula o gesto de marca por meio do qual tem início o corpo humano, na expectativa de encontrar no Outro um ponto de parada onde possa se acreditar e se sentir abrigado, acolhido e reconhecido. (DOUVILLE, 2009, p. 330-331).
Em princípio, a identificação garante
[...] a contabilidade necessária para o diálogo humano, uma vez que veículo e mediador de uma determinada cultura asseguram a transmissão e continuidade da mesma através das gerações (SIQUEIRA, 2009, p. 15).
Mas os processos identificatórios são alterados pela especificidade cultural em que emergem novos modelos de conduta e inserção social.
Sabe-se que o contexto contemporâneo erige como valor máximo o culto a uma obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta modernização, vivida como sociedade da “autoafirmação dos indivíduos que têm por valor maior o direito de escolha” (SIQUEIRA, 2009, p. 15).
Todavia, o impacto das massificações e do caráter impessoal dos laços sociais ameaça fortemente a experimentação adolescente do pensamento e do amor, levando-o a buscar algum “oásis de identidade” (Douville, 2009).
A identificação, enquanto processo de fundamental importância seja para o indivíduo, seja para os grupos sociais, tem apresentado como característica uma “expansão identificatória horizontal e uma decadência da identificação vertical ao líder” (SIQUEIRA, 2009, p. 105).
A ausência de um líder a seguir, pode tornar os indivíduos ávidos por alcançar a justa medida de si mesmos, maximizando suas experiências de modo a demarcar algum limite que seja, de forma que a própria experiência do excesso possa trazer algum “ponto de basta”.
Para o indivíduo jovem trata-se efetivamente de “até aonde posso ir”, sem outro “norte” a seguir senão aquele do limite de seu corpo e do corpo dos que lhe são próximos. Está aberto o campo para toxicomanias, esportes radicais e alterações corporais fabricadas.
Produto da estruturação individualista de nosso meio social, a importância atribuída ao corpo tem sido objeto de estudo de várias orientações disciplinares. Para o antropólogo Le Breton (2003), o corpo na sociedade contemporânea deixou de ser visto na sua inteireza e tornou-se algo composto por partes descartáveis sempre passíveis de melhoras, alterações, trocas, enfim, o corpo como que se tornou um acessório, uma prótese do eu, que é maleável.
Mas paradoxal e simultaneamente, ele se torna a principal representação do nosso ser, posto que é por meio dele que a interioridade é posta para fora, constituindo-se externamente através do corpo, ganhando por meio dele uma representação.
E é justamente como representação da singularidade de cada um que a tatuagem passa a fazer parte do espetáculo contemporâneo, e obtém valor de identidade, expressando no sujeito sua pertença ao grupo.
A marca é um limite simbólico desenhado sobre a pele […], uma espécie de assinatura de si pela qual o indivíduo se afirma em uma identidade escolhida (LE BRETON, 2003, p. 40).
Do ponto de vista psicológico, a tatuagem ajuda a processar lutos, perdas efetivamente acontecidas na realidade do sujeito, na externalização de conflitos, na representação de estados internos de tensão e angústia, e, sobretudo, serve para conquistar a identidade em uma esperada e desejável tentativa de autoafirmação.
Meio privilegiado de expressão para muitos indivíduos, a tatuagem reforça o sentido do “si mesmo” e pode ser sinal de autoestima, prova de masculinidade ou de liberação sexual para indivíduos jovens.
É no limite entre o psicológico e o social, que a tatuagem pode se caracterizar como código de inclusão grupal, em contextos em que o grupo parece garantir – ou de fato o faz –, a fantasia de suprimento e pertinência que é essencial a todo sujeito (Cf. SIQUEIRA, 2009).
Utilizando o instrumental teórico honnethiano, Costa e Gonçalves (2012, p. 8) enfatizam que:
[...] a identificação de algumas pessoas com a imagem “do outro social”, do diferente, “do estranho” pode ser a possibilidade de o sujeito sentir-se parte da coletividade, visível em seu contexto de interação, em última instância, “reconhecido” pela sua imagem negativa. A diferença, em relação à homogeneidade é, ao mesmo tempo, submissão e resistência, ausência de reconhecimento e busca por reconhecimento. Assim de um lado o sujeito assume tal identidade a partir de um processo de estigmatização social, de outro, o faz também como forma de resistência, não se submetendo ao padrão socialmente imposto, que não considera suas peculiaridades.
A tatuagem, parte estigma, parte resistência, imprime a promessa de abrigo, de acolhimento e de reconhecimento, acenando com a esperança de um ponto de parada em que, ou em quem acreditar.
À guisa de uma conclusão
Por um lado, o sistema socioeducativo e jurídico lida com o corpo adolescente como depositário de formas coercitivas de disciplinarização (CNMP, 2015; CRP, 2006); por outro lado, reiteram-se os mecanismos “civilizatórios”, que buscam promover a naturalização e a incorporação de códigos de comportamento social através de hábitos cotidianos e de educação.
As tentativas de sujeitar o adolescente infrator a uma ordem social ocorrem frequentemente nas instituições que os recebem, seja pelo cumprimento de rígidos horários para acordar e dormir, seja pelo exercício de atividades, formas de sociabilidade, espaço em que podem andar, etc. Em suma, a eles é proposta uma ‘alternativa’ adaptativa que dificilmente podem cumprir, e que sequer veem como objetivo a ser desejado.
Os programas de remoção de tatuagens parecem partir do princípio de que a simples retirada das marcas corporais terá o condão de proporcionar um recomeço social, um new start [reinício], semelhante ao costume, tão caro aos adolescentes de hoje, de dar um reload [recarregar] em um programa de computador ou game.
Mas a história de vida cobra um preço, e um recomeço, se possível, não se reduz a apertar um botão (do laser) para apagar o caminho percorrido e começar sem marcas um novo jogo. Sem o necessário acompanhamento pedagógico, trabalho de mentoria ou atividades educacionais, laborais e/ou de inserção no trabalho, as marcas do passado não serão tão facilmente apagadas ou alteradas.
Uma tatuagem demora para ser retirada. O uso do raio laser, técnica mais indicada, custa muito em termos de dor física para o indivíduo e de investimento financeiro do estado ou entidade que assuma sua realização.
No cenário de precarização dos serviços socioeducativos, estabelecer um programa com esse fito soa como um chiste, uma brincadeira de mau gosto, pois mesmo nos enaltecidos programas made in USA, a retirada das tattoos não está concretamente associada à queda nos índices de reincidência no delito.
Como garantir que o socioeducando, que receba o ‘benefício’ estatal de retirada de uma tatuagem vinculada ao crime, tenha o acompanhamento suficiente e necessário para evitar que retorne à prática de ato infracional, multiplicando as marcas físicas e sociais que lhe serão implacavelmente “tatuadas” pela vida?
Sem um olhar que recrie a duração de sua experiência, que faça a mediação de seus pequenos desvios, que dê regularidade à forma descontínua de sua vida, a esse jovem nada mais resta que o puro corte e a pura expulsão.
Mais que uma intervenção na dimensão estético-individualista, em que a imagem tem a função de oferecer ao portador e àquele que as recebe sensações específicas, a remoção de tatuagens vinculadas ao crime atua em uma dimensão epistêmica ou simbólica, em que as imagens veiculam valores sociais ou são fonte de (re)conhecimento.
Apagar a representação, aquilo que está visível, o icônico, pode se revelar um procedimento totalmente inócuo na alteração dos códigos subjacentes ao representado, nas convenções socioculturais inerentes à imagem tatuada.
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Endereço para correspondência
Gilberto Lucio da Silva
E-mail: gilberto.lucio@hotmail.com
Maria Consuêlo Passos
E-mail: mariaconsuelopassos@gmail.com
Recebido em: 31/10/2016
Aprovado em: 16/11/2016
SOBRE OS AUTORES
Gilberto Lucio da Silva
Psicólogo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Especialista em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Membro do grupo de pesquisa Socius/CNPQ.
Analista Ministerial em Psicologia/Ministério Público de Pernambuco (MPPE). Psicólogo/Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).
Maria Consuêlo Passos
Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC - SP), com estágio pós-doutoral na Université Paris V.
Professora Assistente da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Docente/Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Pesquisadora de psicanálise de família, metapsicologia dos vínculos e amadurecimento humano.
Estudiosa de Freud, Winnicott, Ferenczi e de críticos da sociedade como Lipovetsky, Bauman, Sennett, entre outros.