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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.46 Belo Horizonte Dec. 2016

 

 

Enfim juntos! Conjugalidade homoafetiva1

 

Finally together! Homoaffective conjugality

 

 

Stetina Trani de Meneses Dacorso

I Universidade Tiradentes
II Círculo Psicanalítico de Sergipe

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto apresenta uma análise das conjugalidades homoafetivas ou homoeróticas como conceituam alguns. A autora analisa o grupo das homossexualidades pelo viés da pressão cultural, que o considerou delinquente, doente, depravado. A mudança na cultura e nas leis possibilita que os homossexuais façam conjugalidade explícita. A hipótese da autora é que algumas situações de conflito nesses casais ou a dificuldade de manter suas parcerias podem ser decorrentes da pressão cultural sobre esse grupo e as identificações feitas pelos seus membros com esses valores. Para esta análise a autora utilizou textos psicanalíticos sobre cultura e grupos.

Palavras-chave: Psicanálise, Conjugalidades homoafetivas, Homossexualidades, Homoerotismo, Identificação, Grupo gay.


ABSTRACT

A study of so called homoaffective or homoerotic conjugalities. The cultural pressure that considered them somekind of delinquency, sickness or depravity. Cultural changes that allowed homosexuals to do explicit unions. The hypothesis that some conflict situations inside these partnerships or difficulties of preserving these conjugalities are a consequence of cultural pressure suffered by these group as well as their identification with some values. To make this analysis some texts about groups and culture were used.

Keywords: Psychoanalysis, Homoaffective unions, Homosexualities, Homoerotism, Identification, Gay group.


 

Qualquer maneira de amor vale a pena
Qualquer maneira de amor vale amar!

MILTON NASCIMENTO

 

Introdução

Até uma ou duas décadas atrás, ao falar de família, nos referíamos à conjugalidade hetero. Hoje lidamos com a conjugalidade homoafetiva, seus conflitos, suas questões e, consequentemente, com suas demandas à clinica psicanalítica.

Começamos a pensar em como abordá-los em sua especificidade, em suas particularidades relacionadas a seu sofrer.

Vamos delimitar nossa abordagem: sobre o sujeito individual da psicanálise nos referimos à descarga pulsional, aos ideais, às identificações, à constituição psíquica, à metapsicologia e seu circuito pulsional com respectivas escolhas objetais, Édipo e castração, bissexualidade; enfim, à especificidade psíquica de cada um. Não é por esse ângulo que abordaremos o casal homoerótico.

A ideia que primeiro nos assaltou foi que esse grupo – o das homossexualidades, possuidor de uma singularidade que não pode ser negada: ser pária até bem pouco tempo.

Primeira questão: Como esse grupo, cujos membros ficavam sós ou escondiam sua parceria, faz conjugalidade?

Segunda questão: Como esses membros lidam com sua conjugalidade quando sempre viveram uma sexualidade livre e submetida ao princípio do prazer?

Para pensar a questão grupal, lembremos Sigmund Freud, que considera a psicologia individual no sentido ampliado, isto é, psicologia social ([1921] 1979); além disso, nos remetemos à identificação o grupo unido que em volta de uma ideia ou ideal sofre junto a influência do social maior.

Começamos a pensar em várias questões. A análise que primeiro me convocou foi como um grupo, que desde sempre sofre com os preconceitos e estereótipos sociais, vai conseguir agora fazer boas parcerias amorosas. Analisar parcerias homoeróticas implica pontuar fatores com cuidado para não cairmos em armadilhas de construções sócio-histórico-culturais ou análises naturalistas.

Existe o hábito – construído há centenas de anos – de que pensar os casais nos leva a analisar o conceito de família e as regras que a perpassam ligadas à necessidade de procriação e aos cuidados da prole. Esse pensar estabeleceu como normal a tríade hetero-casamento-filiação.

 

Desenvolvimento

Ao longo do tempo temos estudado o amor, os casais e em como pensar/analisar as uniões levando em conta eroticidade e afeto. O arranjo dos parceiros são construções socioculturais mantidas por ideologias médicas, religiosas, pedagógicas, entre outras. Um ideal normativo restrito ao casal hetero, que se manteve ao longo dos tempos com sua áurea de normalidade, felicidade e conjugalidade a céu aberto.

Muitas questões dos casais gays são comuns a todos os casais: distribuição de tarefas no cotidiano; divisão e contribuição financeira; projetos de férias; visitas a família; decoração da moradia; compra de bens; organização do dia a dia, além de explicitação de sentimentos; maior ou menor vontade de sexo; quais amigos são mais interessantes e com quais conviver; sentimentos e visões de mundo partilhadas, quem é viciado em trabalho, quem conversa mais, quem é mais ativo e solucionador de questões, e tantas outras discussões que dizem respeito a pessoas que se amam e vivem juntas.

E enquanto sujeitos desejantes sua relação de casal também é marcada por sua história Edípica. Freud ([1911-1915] 1979) afirma que as escolhas amorosas do sujeito obedecem ao padrão de enamoramento de sua infância. O Édipo é a estrutura inconsciente que organiza a vida afetiva do casal.

Há também as diferenças que são características do casal gay e que vão constituir conflitos específicos de sua conjugalidade:

• famílias que se recusam a aceitar que não são dois amigos/duas amigas;

• reação do grupo social no entorno que compõe a rede de pertença;

• participação em reuniões de lazer, trabalho e outras;

• questões jurídicas/clubes;

• andar na rua com tranquilidade, de mãos dadas ou trocar afetos (comum em alguns lugares mas não em todos),

• questões de procriação e filiação.

Podemos continuar a enumerar outras tantas situações cotidianas tão comuns em casais heteros mas estranhas, proibidas ou complexas de resolver para os casais homoafetivos. Fica óbvio que não podemos insistir em ignorar a multiplicidade das diferenças e da singularidade.

Muitas análises numa tentativa de paridade entre as duas conjugalidades ainda se aferram a padrões ou estereótipos – que mesmo em casais hetero têm diminuído – como quem é ativo/passivo; quem desempenha o papel, a função de marido e de esposa, quem é provedor e tantas outras estabelecidas como leitura natural em casais heterossexuais.

Quando nos aprofundamos em sua singularidade, o casal gay com sua particularidade vai se apresentando como um gatilho para desconstruções em todos os níveis de análise das conjugalidades por instalar um novo e, portanto, sem enquadres e sem definições para sua relação.

A humanidade produziu muito material sobre o amor e as relações amorosas. Nosso imaginário foi preenchido com poesias e dizeres sobre o amor. O amor visto como algo que engrandece e enobrece, como atributo de felicidade. Para quem não tem amor a vida fica sem sentido!

Com a palavra Frida Khalo:

Esta manhã recebi sua carta, após muitos dias de espera. Senti tamanha alegria que comecei a chorar antes mesmo de lê-la. Meu menino, eu realmente não deveria reclamar de nada do que me acontece na vida, desde que você me ame e eu o ame. Este amor é tão real e belo que me faz esquecer todas as minhas dores e problemas; faz-me esquecer até a distância (ZAMORA, 1999, p. 99).

Para Costa (1998) o amor é uma invenção como a roda, a medicina, o pãozinho e os deuses. Essa crença é sustentada pela crença de que o amor é um sentimento universal e natural, surdo à razão e condição indispensável para a felicidade. O Banquete, de Platão, é a fonte do mito amoroso no Ocidente. Os padres retomam o esquema platônico de amor, aqui o amor verdadeiro é de Deus para Deus. O objeto ideal de amor laico é o amor cortês, quando Deus é substituído como objeto de desejo.

Quando o doce caçador me atirou, fiquei rendida,
entre os braços do amor ficou minha alma caída.
E ganhando nova vida, de tal maneira hei trocado,

Que é meu Amado para mim, e eu sou para meu Amado [...]
Atirou-me com uma seta envenenada de amor,
e minha alma foi feita uma com seu Criador
(SANTA TERESA apud COSTA, 1999).

Costa (1998) analisa que o sujeito amoroso moderno possui três fontes históricas:

1. O amor cortês e a mística cristã. A mística cristã antecede o amor cortês, reforçando o amor amizade comum entre os religiosos. Nesse período o sexo é visto como aquele que impede a plenitude do verdadeiro amor; é perigoso e violento. O amor cortês é a laicização do amor a Deus.

2. Teorias sobre o sujeito. Necessárias para explicar as reflexões sobre o sujeito em decorrência das mudanças político-econômicas. Surgem as análises sobre o desejo e depois o prazer nas situações amorosas. A felicidade amorosa é um estado de prazer, que deve perpetuamente se renovar e, quando não se renova, instala-se a inquietude.

3. Práticas de subjetivação. Criadas pelo convívio social na corte, que exigia contenção emocional. O amor aristocrático é glorificado em obras literárias.

Continuando sua análise, o autor considera que em Rousseau amor e sexo se uniram; o casamento e a família se tornam/são o lugar por excelência da reunião carne/sexo/amor. Dessa lógica surgem a sociedade burguesa e o amor ordeiro e prudente com vistas à reprodução da ordem social (COSTA, 1998).

As histórias de amor, que todos cultuam e que enriquecem nosso imaginário amoroso e romântico, se multiplicaram: Adão e Eva (para começar do comecinho); Romeu e Julieta; Tristão e Isolda; Love history, Uma linda mulher e outras histórias, poesias, peças de teatro, filmes.

Amor como o que engrandece, ligado ao Bom, ao Belo, ao Verdadeiro. Muitas construções poéticas, científicas, religiosas, médicas, pedagógicas, psicológicas e tantas outras que se referem ao “casal feliz para sempre”. Todos heteros!

Uma fala de um rapaz de 29 anos, de um caso de supervisão:

Era horrível ver aquelas cenas de sexo dos casais das novelas e pensar que eu jamais teria aquilo, porque sexo gay é putaria.

Esse jovem não está enganado em sua percepção. Temos uma censura severa nas cenas de amor entre gays, seja em novelas e filmes, seja no cotidiano e nos conceitos sobre sua sexualidade:

O amor que não ousa se chamar como tal é um carinho tão grande como aquele que havia entre David e Jonanthan... (David, o jovem pastor, que decapitou Golias e levou a cabeça a Saul – primeiro Rei de Israel e pai de Jonanthan, que era seu filho mais velho. Na Bíblia o encontro dos dois é assim anunciado “E a alma de Jonanthan ficou ligada à alma de David”. É aquela afeição profunda tão pura quanto perfeita. É Belo, é Delicado é a forma nobre de afeição. Não há nele nada estranho à natureza humana. O mundo não o entende, zomba dele e às vezes, ridiculariza-nos por sua causa (CULT, 2010).

Esse é um trecho do discurso de Oscar Wilde ([1854] 1900), o escritor irlandês de O retrato de Dorian Gray, acusado de sodomia com Lord Alfred Douglas perante a corte de Dublin, onde foi condenado a dois anos de prisão, apressando seu processo de decadência social, econômica e produtiva.

As diferenças, os conceitos, os julgamentos e os estereótipos sobre um grupo que tem um lugar específico na cultura humana desde o início dos tempos devem ser levados a sério. O grupo – das homossexualidades – que foi considerado anormal, catalogado como marginal, perverso, drogadito, delinquente, sádico, com tendências a badernas e sexo desenfreado “a putaria”. Agora esse grupo faz conjugalidade explícita – as poucas homossexualidades que se arriscavam até então se mantinham escondidas – e respaldadas juridicamente.

Nos Três ensaios ([1905] 1979) Freud tem uma nota de rodapé, de 1910 e já citada por nós em outro momento: o homem antigo dava mais importância à própria pulsão, enquanto nós a damos ao objeto. O homem antigo glorificava a pulsão e por ela reverenciava o objeto; nós desprezamos a atividade pulsional em si e encontramos escusas para ela apenas pelo mérito dos objetos.

Essa nota pode e deve ser articulada a todas as análises e julgamentos estereotipados que são feitos aos objetos – considerados “anormais” – utilizados para satisfação pulsional e com maior severidade ao objeto homossexual. A pulsão não tem um objeto fixo e determinado; o desejo vem sem nome, sem endereço, e-mail ou telefone.

O amor é um pássaro rebelde,
que ninguém pode aprisionar.
E que não adianta chamar se a ele convém recusar.
De nada convém ameaças e pedidos,
dizer coisas bonitas ou se calar,
[...] O amor... o amor...
O amor é um menino cigano
que nunca conheceu qualquer lei
(BIZET, Carmem, 1874).

Em Introdução ao narcisismo Freud ([1914] 1979) escreve sobre a violência decorrente do narcisismo das pequenas diferenças. Lembremo-nos da parábola dos porcos-espinhos, que denuncia que toda relação próxima comporta a hostilidade porque o diferente (tão próximo) ameaça o equilíbrio narcisista. Ameaça em minhas crenças, em minhas verdades inquestionáveis, em certezas abaladas pela existência deste tão semelhante e ao mesmo tempo tão diferente em suas escolhas e estilo de vida.

Em O mal-estar na civilizacão ([1930] 1979) Freud aprofunda sua análise. Quando o amor deve imperar entre “iguais”, a pulsão de morte se apresenta para destruir o próximo – sejam os grupos homo por hetero ou vice-versa; seja dentro do próprio grupo de homo quando alguns começam a se diferenciar em condutas ou opções de vida. Mas principalmente a necessidade de conter a sexualidade livre como forma de controle dos homens, manutenção da ordem e o desvio da pulsão para o crescimento da cultura. O crescimento da cultura relacionando ao aumento da população no interior das famílias, aprimoramento cientifico, artístico e estético.

E Freud mantém a análise, constante em sua obra, do sujeito e seu circuito pulsional:

A felicidade no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos; todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e, finalmente, de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos (FREUD, [1914] 1979, p. 103).

Na segunda tópica no estudo sobre o supereu, Freud o analisou como representante do isso, possuindo vínculos abundantes com a aquisição filogenética de cada indivíduo. E quando o eu passa por experiências frequentes e intensas, elas são transformadas em experiências do isso e preservadas como herança:

Dessa maneira no Id, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos. E quando o ego forma o seu superego a partir do Id, pode talvez, estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-os (FREUD, [1914] 1979, p. 53).

Ao nos referirmos à história erótica dos gays pelo seu lugar no social enquanto párias, condenados jurídica e culturalmente, para encontrar parecerias, precisavam recorrer a saunas, casas noturnas enquanto redutos de gays, salas de cinema; ‘pegação’ em pontos da cidade considerados perigosos, tendo de se esconder, disfarçar, mentir para uma sobrevivência na sociedade, obviamente, muito mais violenta e agressiva que nos dias atuais.

As parcerias rápidas se instalam pela dificuldade de manter outras formas de união numa cultura que os coloca à parte. A busca e a valorização da descarga sexual imediata e sem rédeas se instalou. O princípio do prazer dominando, mesmo que em desacordo com o mundo por ser a única possibilidade de relação. Enquanto párias correm por fora da “respeitável conjugalidade” formando e vivendo em guetos.

É comum a muitos gays se questionar como o rapaz citado anteriormente: “gostamos é de putaria!”. Seja lá o que isso signifique: swing, suruba, vários parceiros numa noite, brincadeiras sádicas ou masoquistas, mas é o sujeito perverso-polimorfo da psicanálise porém não pertencente à sociedade moral, estabelecida e da conjugalidade e parcerias aceitas como ideal, a hetero. Sociedade hipócrita, como assinalou Michel Foucault em várias de suas análises, assim como a psicanálise, por outra ótica.

A escolha de um objeto aceitável socialmente não é garantia de que os desejos perversos polimorfos tenham sido domados, escreve Freud ([1914] 1979, p. 196): “[...] disposição para as perversões de toda espécie é uma característica humana geral e fundamental”.

E acrescenta:

A normalidade é um resultado do recalque de certas pulsões e componentes constituintes da disposição infantil e da subordinação dos constituintes remanescentes sob o primado das zonas genitais a serviço da função reprodutiva. Demonstrei que as perversões correspondem a distúrbios dessa coalescência, devido ao desenvolvimento irresistível e compulsivo de certas pulsões componentes, enquanto que as neuroses podem ter sua origem atribuída a um recalque excessivo das tendências libidinais (FREUD, [1914] 1979, p. 289).

Assim, sob a ótica psicanalítica, todos gostam de uma putaria! Continuando nossa análise sobre o princípio do prazer e os gays, ocorreram consequências, que incluem em muitos uma conduta perigosa para si mesmos, como drogas, violência física e sexual, ‘pegações’ sem cuidados, que nos deram nos anos 1980/1990 o HIV com todas as consequências em termos de preconceito ao grupo, morte, falta de cuidados.

A literatura e a arte cinematográfica nos presentearam com muitas obras sobre o assunto nesse período. Até que as famílias bem estabelecidas, pertencentes ao modelo aceito e reforçado socialmente, também começaram a denunciar o HIV em seu interior.

Michel Foucault (1985) analisou a desordem familiar quando o dispositivo da sexualidade ‘invadiu’ o dispositivo da aliança. O raciocínio serve aqui também.

Em Moisés e o monoteísmo, Freud ([1938] 1979, p. 156-157) afirma:

Algo na vida de um povo que é passado, [...] nos aventuramos a comparar com o que é reprimido na vida mental de um indivíduo. [...] o conteúdo do inconsciente, na verdade, é, seja lá como for, uma propriedade universal, coletiva da humanidade [...] os precipitados psíquicos do período primevo se tornam propriedade herdada a cada geração exige apenas um redespertar.

Fazendo uma transposição para as homossexualidades e o modo como foram analisadas, enquadradas, rotuladas ao longo da história da humanidade, o inconsciente dos homoeróticos guarda toda a herança com que a cultura os tratou e retratou. As aceitações são casos e situações bem pontuais relacionadas às saídas que cada um encontrou/escolheu em seu momento sócio-histórico-cultural para organizar, adequar e conviver com seu grupo (homo ou hetero) satisfazendo seus circuitos pulsionais.

O eterno conflito entre amor/cultura. Adequar o princípio do prazer ao princípio da realidade é um processo custoso e doloroso. Uma questão complexa, porque cada um de nós, ao buscar e se comprometer com sua busca de felicidade, paga o preço por sua singularidade. E para as conjugalidades gays tem sido um processo difícil.

 

Ideias finais

Michel Foucault (1985), com a concepção de biopoder e o dispositivo da sexualidade, analisa que o poder opera não apenas dominando ou oprimindo, mas também construindo subjetividades. O exercício é do regime disciplinar que produz os discursos que atuaram como normatização. Norma que atua como ideal regulador estabelecendo fronteiras entre o licito e o ilícito. As tecnologias de si.

Nas últimas décadas o mundo mudou em relação aos gays e sua conjugalidade. Temos de pensar as diferenças, e não num modelo binário que iguala essa conjugalidade a outra retirando apenas o tom pejorativo sem perceber que, ao assim fazer, estamos apenas trocando-a de lugar na balança binária que tem no seu centro o considerado certo e verdadeiro. De um lado, o bom, o certo, o aceitável; de outro, o mau, o errado, o menor. Discutir relação binária não é acabar com as diferenças, o lógico, mas lidar com a diferença per si sem valores. Tarefa árdua para maioria de nós.

Retornamos a Freud em O eu e o isso (1923), quando relaciona as representações verbais aos processos internos de pensamento que na sua origem estão ligados a percepções. As famílias e seus componentes, principalmente as figuras importantes como pai e mãe, emitem sua opinião sobre escolhas homossexuais, que ficam registradas em nosso inconsciente mesmo quando não podemos entender seu significado. Mas nossa história edípica confirma que uma escolha pelo genitor do mesmo sexo provoca um receio da vingança do outro genitor.

À medida que crescemos, as figuras importantes são substituídas por professores e outras autoridades e, atualizando, podemos incluir a ciência e outros saberes respeitados, continuando com Freud (1923):

A tensão entre as exigências da consciência e o desempenho concreto do ego é experimentada como sentimento de culpa. Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego (FREUD, [1923] 1979, p. 52).

Não podemos acreditar que o fato de a sociedade estar mais aberta e disponível em aceitar as conjugalidades gays signifique que séculos de ostracismo e julgamento desapareceram da mente das pessoas e dos homoafetivos. As representações psíquicas não desaparecem de fora para dentro, e muitos não aceitam essa conjugalidade como já nos referimos anteriormente.

Os atos de violência a gays e transexuais continuam ocorrendo em nossa sociedade e fora das discussões em espaços considerados sérios, científicos! Como se fossem fatos isolados de pessoas ou grupos particulares, e não um registro na cultura sobre um grupo registrado como abominável, doente e repulsivo!

No entanto, discutimos o que séculos de repressão fizeram à sexualidade das mulheres, ao seu lugar na sociedade, nas relações profissionais e familiares! Mas esse pensar não é transposto para os gays e suas parcerias!

Devemos levar em consideração o que marcamos sobre a mente de um grupo nos textos freudianos citados anteriormente, havendo como consequência a possibilidade de aqueles que compõem as conjugalidades gay ser possíveis e passíveis de uma homofobia disfarçada. É possível ter uma expectativa inconsciente negativa, falta de crença em seu potencial para manter uma relação amorosa satisfatória e duradoura. Não há modelos de parcerias gays felizes em que possam se apoiar ou com as quais possam se identificar.

Alguma escutas:

Foi a melhor relação da minha vida, mas não vou assumir publicamente este tipo de relação: tem minha família, profissão, a cidade que nasci (M., 37, primeira relação homo).

Ele é enrustido, não aceita sua homossexualidade. Se saímos juntos, fica distante, não se aproxima. Não quer transar, diz que isso não é importante numa relação gay, que deve contar com mais amizade, transparência e respeito (H., 43, em conjugalidade).

Enfim, além da provocação que leva – como dissemos – a desconstruções. Além de questões de ordem pessoal referentes às organizações psíquicas individuais, é necessário que possamos escutar e analisar em cada casal homoafetivo ou parceiro os transtornos e os sofrimentos que milênios de construção sobre as relações amorosas de gays e sua forma de amar possam estar provocando.

Sempre podemos fechar os olhos às complexidades de um problema sugerindo soluções que reduzam a questão ao menor denominador comum. [...] O amor tem de ser apreciado sem se fugir para um otimismo ou pessimismo dogmáticos, sem se construir uma filosofia de medos ou uma moralidade dos desapontamentos (BOTTON, 2012).

 

Referências

BIZET, G. Carmem (1874-1875). São Paulo: Folha de S.Paulo, 2011. (Coleção Folha Grandes Óperas, 1).         [ Links ]

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ZAMORA, M. Cartas apaixonadas de Frida Kahlo. Compilação. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: stetina-dacorso@ig.com.br

Recebido em: 12/08/2016
Aprovado em: 25/09/2016

 

 

SOBRE A AUTORA

Stetina Trani de Meneses e Dacorso
Psicóloga.
Mestre em Literatura Brasileira CESJF-PUC Minas.
Psicanalista.
Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professora Titular do Curso de Psicologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (CESJF-PUC Minas).
Presidente Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) 2010/2012 e 2012/2014.
Didata e Coordenadora da Formação em Psicanalise do Instituto Brasileiro de Psicanalise, Dinâmica de Grupo e Psicodrama-JF (SOBRAP-JF).

 

 

1 Trabalho apresentado em plenária na XXXIV Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais “Laços familiares: um enigma”, realizada em 16 e 17 set. 2016, em Belo Horizonte, no Hospital Mater Dei.

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