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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.47 Belo Horizonte July 2017
Temporalidade e narrativas de si: efeitos da descontinuidade e da continuidade na historia de um adolescente em situação de rua
Temporality and self-narratives: effects of discontinuity and continuity in the story of a teenager living on the streets
Julia Coutinho Costa LimaI; Luciane De ContiII
I Círculo Psicanalítico de Pernambuco
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
Partindo do valor temporal da continuidade presente na contribuição de D. Winnicott – tanto no âmbito do processo de desenvolvimento do self quanto no estabelecimento do espaço transicional – chegou-se a uma aproximação com a ideia de narrativas de si como capacidade de dar sentido às próprias experiências de um modo pessoal. O artigo discute a importância dessa capacidade e os efeitos de sua fragilização através da discussão do caso de Leonardo/Bruno, um adolescente em situação de risco nas ruas em seus atendimentos com uma psicóloga numa instituição de acolhida. A relação transferencial surgiu como elemento propiciador para que o tempo passado se tornasse presente, favorecendo a produção de sentidos novos e a aquisição de um lugar na própria história.
Palavras-chave: Temporalidade, Narrativas de si, Adolescentes em situação de rua, Relação transferencial.
ABSTRACT
Starting from the temporal value of the continuity present on the contribution of D. Winnicott – both in the process of developing the self and on the establishment of transitional space –We have arrived at an approximation with the idea of the self-narrative as the ability to construct meaning to their own experience in a personal way. The article seeks to discuss the importance of this ability and the effects of its embrittlement trough the discussion of the Leonardo/Bruno case, a teenager living on the street, on his meetings with a psychologist in a shelter institution. The transferential relationship arrived as a propitiation element for the past to become the present, favoring the production of new senses and the aquisition of a place on his own story.
Keywords: Temporality, Self-narratives, Teenager living on the streets, Transferential relationship.
No quadro teórico da psicanálise, Donald Winnicott ([1945] 2000, [1960] 1983, 1975) foi um dos autores que deu destaque ao tema da vivência da temporalidade. Seria possível mesmo afirmar que “[...] toda a sua teoria repousa no valor temporal da continuidade” (VERTZMAN et al., 2007, p. 68). Essa continuidade é sobretudo referente à sensação de fluxo temporal, não sendo entendida meramente como numa linha cronológica. Para Winnicott, a continuidade temporal vai ser pedra angular da constituição de si.
Nesse sentido, é importante apontar também que Winnicott se insere em uma ‘linhagem’ de psicanalistas (junto com Ferenczi e Bowlby) para quem a questão do trauma pode ser entendida como uma ‘descontinuidade’ de cuidados do meio ambiente. Diferentemente da tradição freudiana que, apesar de sofrer modificações ao longo da sua obra, mantém o fator econômico como essencial para a força patogênica do trauma, onde o que estaria em jogo é a incapacidade do aparelho psíquico de processar e ligar, através de representações, o excesso pulsional (perigo interno) (ZORNIG; LEVY, 2006).
Para Winnicott, é justamente o estabelecimento dos cuidados ambientais que dá as bases para o sentimento de continuidade da existência, o qual protege os sujeitos dos excessos tanto pulsionais quanto externos. Apenas na ruptura dessa continuidade reside o potencial traumático.
Na trajetória profissional de Winnicott, uma experiência parece ter sido marcante para respaldar essa ênfase no papel dos cuidados ambientais no desenvolvimento do sujeito: sua experiência com as crianças que foram retiradas de casa durante a Segunda Guerra Mundial.
Em virtude dos bombardeios alemães a Londres, o governo britânico planejou a evacuação de crianças para o interior e convidou os psicanalistas Winnicott e Jonh Bowby para ser consultores psiquiátricos do esquema de evacuação e desenvolver medidas visando diminuir os danos e traumas a essas crianças. Eles ficaram responsáveis pela saúde mental de uma série de crianças que viviam o impacto da guerra e foram afastadas da família para viver no interior.
Todo o acompanhamento a elas continuou no pós-guerra e possibilitou a sua posterior elaboração teórica da experiência no livro Privação e delinquência (1987), cuja primeira parte intitula-se Crianças sob estresse: experiência em tempos de guerra.
As ideias e o modelo conceitual gerados a partir dessa experiência têm se mostrado férteis a ponto de poderem ser ampliados e de servir de recurso teórico para outros contextos em que crianças se encontram em situação precária do ponto de vista familiar e social, como testemunhou Gorayeb (2006) sobre sua experiência com supervisão de instituições em São Paulo.
O modo particular de compreender a dimensão da temporalidade aparece em diferentes aspectos da abordagem winnicottiana: em primeiro lugar pode-se dizer que a importância da temporalidade para esse autor está presente na forma como define o próprio modo de existência do self. O self é entendido não como uma estrutura, mas sim como uma experiência, um sentimento de continuidade de ser, ou de existência continuada no tempo.
Outro elemento que dá relevo à noção de temporalidade na sua obra é a descrição do desenvolvimento do self, dos processos por meio dos quais o self se constitui. Nesse sentido, deve-se lembrar que Winnicott considerava um sentimento de continuidade no tempo como uma conquista. Ou seja, um eixo central da abordagem de Winnicott é a tentativa de compreensão do modo como a criança – por meio da relação com um adulto-cuidador e da segurança gerada pelo cuidado – passa a apreender a realidade, com uma apreciação de tempo e de espaço que lhe são concernentes, que fazem sentido na sua experiência pessoal e capacitam-na a agir e a criar no mundo.
Nessa via de entendimento, pode-se desdobrar também sua concepção das narrativas de si no tempo. Para Winnicott ([1945] 2000), nos primórdios da vida, um bebê não pode ser pensado como um isolado, ele está ainda indistinto do ambiente circundante, na maioria das vezes, representado pela mãe.
Nesse momento de dependência absoluta, em que o self ainda não está integrado como uma unidade, o tempo é vivido como um tempo contínuo, ainda não é percebido como tempo de experiências pessoais. Para se constituir, o self precisa ultrapassar essa relação de dependência absoluta e se diferenciar. Esse processo de diferenciação, que é extremamente complexo, segue sendo ajudado pela ação da mãe, através da continuidade de seus cuidados e das falhas relativas na adaptação que ela vai permitindo que o bebê experimente (WINNICOTT, [1960] 1983, [1963] 1983).
O sentimento de tempo contínuo vem a ser construído a partir da continuidade nessa relação de cuidado. E as experiências alternadas de satisfação (momentos em que a mãe supre as necessidades do bebê) e de separação (momentos de espera de reencontro) vão pautando continuidades e descontinuidades e, assim, vão contribuindo para o processo de integração do self. Portanto, pode-se entender por que Winnicott considerava o tempo como a quarta dimensão da integração (DAVIS; WALLBRIDGE, 1982).
Nessa fase, a mãe – ou o cuidador de referência – teria como função apresentar gradualmente o mundo objetivo ao filho. É no contato com a mãe que surgem as primeiras interações entre criança e ambiente. O bebê experimenta, conjuntamente, um objeto do mundo real e o investimento afetivo e subjetivo sobre esse objeto. O objeto seria, então, simultaneamente objetivo e subjetivo, encontrado e criado. Assim, inicia-se a matriz da criação e do relacionamento com a realidade. Com isso, inicia-se também a experiência de sentir-se real.
Sentir-se real e ser capaz de apreciar a realidade externa em sua dimensão espaço-temporal é possível graças à continuidade dessas experiências compartilhadas no tempo. A essa capacidade Winnicott chama “realização”. Com ela, o sujeito vai situar-se na temporalidade que rege a realidade – aquela na qual os eventos ocorrem em relações de anterioridade, posterioridade ou simultaneidade. Ele vai poder dispor de suas experiências em uma linha temporal que organiza passado, presente e futuro.
Tomando esses conceitos, pode-se afirmar que é a partir do sucesso da realização, que se inaugura a construção de uma história de si. É a partir dessa base que uma narrativa de si vai poder fazer sentido para o sujeito.
Verztman et al. (2007, p. 67) corroboram essa ideia:
Essa sequência temporal, que organiza os acontecimentos, serve para ancorar o que o self foi, é e será, sem que ele seja destituído de sua unicidade e continuidade. Todas as experiências são sentidas como reais. A relação com os objetos do mundo adquire intensidade e significância.
Desse momento em diante, além da capacidade de poder situar-se numa cronologia compartilhada, os eventos vividos vão poder ser rearrumados segundo os valores subjetivos que imprimiram em cada trajetória de vida particular. Essa vivência temporal, que é subjetiva, remete às narrativas de si no tempo.
Poder construir uma narrativa de si repleta de vivências nas quais o próprio sujeito ocupa um papel privilegiado no mundo é um dos elementos que dá consistência à experiência do self (VERZTMAN et al., 2007). Ou seja, a possibilidade de construir uma narrativa de si na qual o sujeito se perceba como criador, narrativa em que, o que o sujeito narra lhe concerne. Nesse ato narrativo os eventos vão ter relação com suas próprias ações, seus sentimentos, seus pensamentos, enfim, com seu tempo.
Outro elemento que dá relevo à noção de temporalidade na obra de Winnicott é percebido quando tomamos o conceito de espaço transicional. Na leitura de Benilton Bezerra Jr (2007) e de Jurandir Freire Costa (2004), é a dimensão da temporalidade que oferece as condições pelas quais o espaço transicional se estabelece e torna possível a percepção dos fenômenos que nele se dão. O espaço transicional, ou espaço intermediário, vai ser adotado por Winnicott como uma área de continuidade que representa a união entre o mundo interno e o espaço externo, entre o eu e o não eu.
Na definição de Costa (2004, p. 97) “Espaço transicional é o campo potencial de interação, no qual determinados fenômenos psicológicos podem advir”.
Essa noção de transicionalidade é explorada através dos conceitos de objetos transicionais e de fenômenos transicionais, que se estendem por todo o “território” intermediário entre mundo externo e realidade interna, englobando o campo da experiência cultural, o brincar, a criatividade e a apreciação artística.
Assim, a área intermediária do espaço transicional torna-se o principal elemento na descrição dos sujeitos, pois lá onde o comportamento do ambiente é ativo e variável, ele faz parte do desenvolvimento pessoal do indivíduo e tem que ser incluído nas análises deste último.
Nesse sentido, o conceito de espaço potencial dá margem a outro aspecto da vida, que é a variabilidade, a mudança. Nesse espaço intermediário há uma área de manobra, uma área livre que não é tão fixa e constante como as dimensões da realidade externa, nem possui o potencial herdado que organiza e dá estrutura ao mundo interno, tornando-o também fixo e constante. A variedade e a variabilidade são produto das inúmeras possibilidades existentes no campo das experiências do indivíduo no ambiente (WINNICOTT, 1975).
A importância dessa capacidade de narrar a própria história e os efeitos de sua fragilização podem ser ilustrados pela história de um adolescente que vivia em situação de risco nas ruas.
O nosso contato com essa história se deu a partir da experiência da primeira autora, desenvolvida durante três anos, como supervisora institucional em um serviço público de acolhida e atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua.1
A partir desse caso esperamos poder refletir ao final sobre os efeitos da continuidade, vivida através do atendimento e da relação transferencial, num contexto de extrema descontinuidade e desenraizamento. Poderemos acompanhar a tessitura de algo novo, de uma narrativa de si onde antes só parecia haver retraimento e desconexão.
A história de um adolescente em situação de rua
Esse é o caso de Leonardo2/Bruno, que tinha 14 anos quando chegou ao Pátio (um centro de referência municipal para infância e adolescência em situação de rua). Lá se realizavam atendimentos psicológicos e sociais, oficinas com educadores, tendo como objetivo a reinserção familiar. Nessa época o Pátio oferecia atendimentos durante o dia, mas não funcionava como abrigo. Leonardo estava na rua desde os sete anos de idade.
Ele chegou trazido por outros meninos do grupo da rua que já frequentavam o Pátio. No início foi muito difícil o contato com ele, que tinha acessos de raiva e destruía os objetos físicos da instituição, mas nunca se envolvia em brigas com outras pessoas. Ele se isolava das atividades, em alguns momentos permanecia chupando dedo, não aceitava que o tocassem. Um aspecto importante: Leonardo não era seu verdadeiro nome, seu nome de batismo. Mas era o nome pelo qual era conhecido pelos outros meninos com quem convivia na rua. Ele se recusava a dizer o seu nome real à equipe, mas um dia contou – como se fosse uma brincadeira de adivinhação – que seu nome verdadeiro poderia ser um destes três: Leandro, Leonardo ou Bruno.
Leonardo também não falava de nenhuma referência à família, sequer a uma comunidade. Parecia haver uma forte ruptura com sua história, seu passado, com os traços e as memórias de si, compondo uma desconexão entre tempos, espaços, uma desconexão afetiva.
E, assim, se passaram os primeiros seis meses de acompanhamento. Foram seis meses de descontínuas idas e vindas ao Pátio. Leonardo não frequentava diariamente, mas sempre reaparecia. A equipe, de todo modo, permaneceu continuamente acolhendo-o. Ao final desse período, Leonardo começou a participar mais das oficinas com os educadores, e iniciou um vínculo mais próximo com Patrícia (uma das psicólogas da equipe). Um dia ele pôde contar para ela o seu nome, que era Bruno! E falar também da sua pasta, documentos que o Conselho Tutelar mantinham numa pasta com seu nome.
A partir daí, a equipe conseguiu informações sobre a família e soube das mudanças pelas quais tinham passado durante o tempo em que Bruno estava na rua. Os dados que constavam no Conselho Tutelar eram de que ele vinha de uma família que residia numa cidade do interior do estado, a 70 km do município sede do Pátio.
Segundo o conselheiro tutelar, quando Bruno era pequeno, seu pai – que costumava beber – espancava Bruno e seus irmãos menores. Estes foram retirados da convivência familiar pelo Conselho Tutelar e levados a um abrigo – em outra cidade – quando Bruno tinha menos de 7 anos e de onde ele fugiu para a rua. Também foi informado de que, durante o tempo em que Bruno estava na rua, o pai parou de beber, estava trabalhando como relojoeiro e conseguiu reaver a guarda dos filhos, junto com a mãe. Além disso, novos irmãos tinham nascido.
Durante uns dois meses Patrícia e os assistentes sociais da equipe trabalharam apostando na sensibilização para o retorno à família, com visitas domiciliares e atendimentos com o adolescente. Mas Bruno (que nesse período já começava a se apresentar com seu nome de batismo) continuava se recusando a voltar para casa.
Por outro lado, começou a se interessar bastante por essa história de sua família, se referindo ao tema constantemente nos atendimentos com Patrícia. Nessa época Bruno já estava com 15 anos. Porém, o acompanhamento no Pátio teve que ser interrompido por causa de uma medida de internação. Ele cumpriu sete meses de medida socioeducativa em regime fechado, por causa de um ato infracional cometido.
Após essa interrupção de sete meses, a Vara da Infância determinou que ele fosse encaminhado a um abrigo como medida de proteção e que voltasse a ser atendido no Pátio. Assim, Bruno retornou ao Pátio, e foi combinado um acompanhamento conjunto pelas equipes do projeto e do Abrigo. Ele passou a frequentar o Pátio uma vez por semana. E pediu aos técnicos do abrigo que falassem com Patrícia, pois “ela sabe sobre mim”.
Nesse ponto Bruno iniciou um movimento que pode ser pensado como historicização. Passou a contar a sua história, o que lembrava de sua ida para a rua, falava de seus irmãos. Falou também do que imaginava sobre o desejo dos pais, “Será que minha mãe não me quer mais?”.
Quando a sua certidão de nascimento foi encontrada, Bruno e Patrícia leram e falaram sobre as famílias e os nomes de famílias, avós, mãe, pai. Bruno parecia começar a se inserir em uma organização genealógica, temporal e identificatória. Num dos atendimentos com Patrícia, pediu os brincos que ela estava usando: “Vamos fazer igual a uma herança que passa de geração para geração, de pai para filho”. Ao que ela respondeu perguntando se ele já havia ganhado algo como herança. E, assim, Bruno começou a contar uma história sobre como ganhou do pai uma medalha do exército, contando também sobre sua relação com o pai.
Outro elemento interessante nesse processo foi o surgimento de uma relação com o futuro. Começaram a ter existência as ideias de prospecção e identificação com perspectivas futuras. Num dia em que Patrícia inicia perguntando os motivos de alguns de seus comportamentos violentos, ele fala: “Quando eu crescer e estiver igual a você, talvez eu não precise mais de violência”. E prosseguiu comentando as semelhanças e diferenças que percebia entre eles.
Assim, pode-se notar que há um futuro imaginado, “quando eu crescer”, bem como a possibilidade de falar de si, de simbolizar atos e sentimentos disruptivos como a agressão, por exemplo. Esse período durou cerca de cinco meses. Durante esse processo Bruno foi construindo projetos para sua vida, se aproximando da ideia de voltar para casa, de rever a família, no que teve êxito.
Patrícia e a assistente social da equipe realizaram visitas domiciliares, atendimentos à família e atendimentos conjuntos com a presença de Bruno. Um trabalho foi feito para facilitar o retorno dele para casa. Esse trabalho inclusive buscou ouvir as resistências e as dificuldades apresentadas pelos pais no contato com o filho, que para eles era agora um adolescente.
Um novo tempo na história de Bruno se inaugurou. Passou a viver novas experiências, conflitos, ciúme dos irmãos menores, provocações aos pais. Mas agora, nesse novo tempo de vida ele passou a ter um espaço próprio, de pertencimento e de busca de vínculo.
Considerações finais
Gostaria de finalizar discutindo alguns pontos relevantes a partir desse caso. Primeiramente apontar a centralidade da enunciação. Construir uma narrativa sobre si não é indiferente às condições de enunciação, nesse caso, sobretudo é dependente do outro que recebe essa palavra: para Bruno, o falar de si só teve significância na relação com Patrícia. Foi para ela – em sua escuta interessada – que ele se contou.
O valor da relação transferencial – entendida como um plano de compartilhamento afetivo que favorece a produção de sentidos ou a elaboração da experiência emocional (KUPERMANN, 2008, FIGUEIREDO, 2009) – tem que ser enfatizado para compreendermos as possibilidades de Bruno se apropriar de sua história e construí-la.
Num contexto de atendimento institucional, em que os movimentos transferenciais de Bruno em relação a Patrícia (com sua busca de ligação, identificação, reconhecimento) fossem ignorados, talvez ele não tivesse conseguido sair da desconexão, tampouco viver o processo de “realização”, com apreciação de tempo e espaço e chegar à constituição de narrativas de si.
Por outro lado, a sustentação de todo esse processo teria sido muito dificultada se os movimentos contratransferenciais de Patrícia fossem também negados, ou não houvesse um espaço, como o da supervisão institucional, para que fossem falados, identificados, reconhecidos e respeitados. Por exemplo, seria possível perguntar a ela o que significava viver uma relação de dependência com um adolescente tão desamparado e sem referentes.
A relação transferencial nesses casos ganha contornos importantes também porque, quando algumas dessas capacidades constitutivas – como confiar no ambiente, usar os fenômenos transicionais, brincar – não puderam ser adquiridas no processo de desenvolvimento, elas precisarão ser vividas, pela primeira vez na transferência.
Zeferino Rocha (2010) lembra também que, nesses casos, o que está em jogo é criar condições para que, na análise, algumas experiências possam terminar de acontecer, possam ser vividas e significadas. Aqui o tempo adquire uma nova dimensão, mais do que ressignificação do passado, sua significação, abrindo novas perspectivas de futuro e novos sentidos.
Daí a importância da figura real do analista. E daquilo que Winnicott ([1956] 2000) chamou “adaptação suficientemente boa do analista”, que possibilita que, pela primeira vez na vida do paciente, haja o desenvolvimento e a integração do ego, e o início da capacidade de uso dos objetos. Agora o ego poderá viver impulsos do id e sentir-se real ao fazê-lo.
Winnicott também coloca que nesse estágio uma das características da transferência é que, como analistas, devemos permitir que o passado do paciente se torne presente, isto é, nessa fase, o presente é o passado. É o que parece ter sido de certa forma experimentado por Bruno na relação com Patrícia.
Winnicott ([1956] 2000, p. 395) afirma:
[...] o comportamento do analista [...] por ser suficientemente bom em matéria de adaptação à necessidade, é gradualmente percebido pelo paciente como algo que suscita a esperança de que o verdadeiro eu poderá finalmente correr os riscos implícitos em começar a experimentar viver.
Ser suficientemente bom em matéria de adaptação à necessidade implica uma presença constante, que cuide e sustente a situação no tempo.
Outra característica específica desse jogo transferencial é o papel crucial da instituição em si. Ela provê um lugar de cuidados (inclusive os cuidados físicos mais primários: alimentação, banho, descanso) e de relações significativas, em que vários profissionais de uma equipe estão lá para acolhê-lo. Patrícia era não apenas a analista de Bruno, mas uma psicóloga do Pátio, membro e representante da instituição como um todo.
Com isso tudo, podemos destacar o valor da continuidade para o processo de mudança nas narrativas de si. A sustentação da continuidade no acolhimento de Bruno, com a manutenção de seu lugar na instituição, a manutenção dos vínculos constituídos, além da sistematicidade dos atendimentos com Patrícia, parece ter ofertado espaço livre para que ele iniciasse e experimentasse algo novo, algo que não tinha antes.
Sabemos que, para Winnicott, a continuidade é pedra angular da constituição de si, participa do processo de constituição subjetiva, desde o princípio, com a confiabilidade dos cuidados da figura materna. Daí pode-se entender que a continuidade que se valoriza não é igual a uma estabilidade imutável e árida, na qual todas as condições têm que se manter as mesmas, mas sim uma continuidade viva, permeada pela segurança nas relações.
E relações não são estanques; podem se modificar, mas o elemento facilitador seria que a mudança fosse paulatina e possível de ser lidada pelo sujeito, diferentemente de um rompimento brusco.
Assim, entendemos que um elemento-chave aí é a continuidade da figura com quem se mantém um vínculo significativo, a importância desse alguém que siga como referência ao longo de todo o processo.
Outro aspecto fundamental a ser destacado é a possibilidade de articulação entre as noções de temporalização da experiência, narrativas de si e identidade. onde a temporalidade da narrativa realiza uma tessitura da experiência viva do tempo.
E, assim, uma nova qualidade da experiência se afigura: a experiência se torna experiência pessoal, assim como o tempo se torna tempo humano quando narrado. Isto é, através da narração, o tempo se integra à ação, conferindo significado à experiência e tornando a vida, uma história de vida.
Referências
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Endereço para correspondência
Julia Coutinho Costa Lima
E-mail: juliacoutinholima@gmail.com
Recebido em: 15/05/2017
Aprovado em: 30/05/2017
SOBRE AS AUTORAS
Julia Coutinho Costa Lima
Psicóloga pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Mestre em saúde coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Doutora em psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Associada do Círculo Psicanalítico de Pernambuco.
Luciane De Conti
Bacharel e licenciada em psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mestre e doutora em psicologia do desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com doutorado sanduíche na Université de Nantes, França.
Professora adjunta e pesquisadora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e da Pós-Graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
1 Uma apresentação e reflexão mais detalhadas desta experiência de supervisão com equipes multiprofissionais, no contexto da assistência social, foi construída em um artigo ( Lima; Mello , 2012), que tematiza inclusive o espaço da supervisão como suporte para elaboração de anseios e mobilizações emocionais que surgem na relação dos profissionais com crianças e adolescentes em situação de risco.
2 Os nomes são fictícios, de modo a preservar a identidade dos sujeitos. A duplicidade de nomeação do adolescente será esclarecida adiante.