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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.30 no.45 São Paulo Dec. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM II

 

O que falar quer dizer?

 

What does talk mean?

 

 

Dominique Fingermann*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Freud inventou a psicanálise como experiência clínica e como teoria, descobrindo “a força da palavra”. Sua obra completa investiga os fundamentos científicos e as conseqüências clínicas desse “poder mágico”. Lacan prosseguiu explorando a função da palavra no campo da linguagem explicitando como a linguagem estrutura o sujeito em torno de uma falta de sentido. A fala burla essa falha estrutural e “produz”, pelo seu contorno, a singularidade do humano e o sentido do ser. O tratamento psicanalítico depende do manejo pelo analista da lógica dessa estrutura.

Palavras-chave: Associação livre, Estrutura, Fala, Linguagem, Psicanálise.


ABSTRACT

Freud invented psychoanalysis as a clinical experience (talking cure) and as a theory when he discovered the power of the speech. His complete works investigates scientific foundations and clinic consequences of this “magic power”. Lacan went forward exploring speech function in the language field explaining how language structures the subject around a lack of sense. Speech lures this structural missing link producing boundaries to produce human singularity and the meaning of being. Psychoanalysis treatment depends on the handling of this logic structure by the analyst.

Keywords: Free association, Structure, Talk, Language, Psychoanalysis.


 

 

O indizível é aquilo que não se pode calar.
Jorge Semprun

Freud: a força da palavra (1890)

Freud começou a aventura psicanalítica descobrindo – quase fortuitamente, segundo ele – “a força da palavra”, descoberta que acirrou para sempre a sua paixão pelo saber: desvendar os fundamentos do “tratamento psíquico” pela expressão verbal.

Perspicaz, desde 1890 ele se mostra admirado com o funcionamento desse

Tratamento – seja de perturbações anímicas ou físicas – por meios que atuam, em primeiro lugar e de maneira direta, sobre o que é anímico no ser humano. Um desses meios é, sobretudo, a palavra, e com efeito as palavras são a ferramenta essencial do tratamento anímico. O leigo por certo achará difícil compreender que as perturbações patológicas do corpo e da alma possam ser eliminadas através de “meras” palavras. Achará que lhe estão pedindo para acreditar em bruxarias. E não estará tão errado assim: as palavras de nossa fala cotidiana não passam de magia mais atenuada. Mas será preciso tomarmos um caminho indireto para tornar compreensível o modo como a ciência é empregada para restituir às palavras pelo menos parte de seu antigo poder mágico (Freud, 1890/ 1905 p. 283).

Sabemos que foi necessário o longo e frutífero caminho da sua obra inteira para que ele tornasse compreensível como a ciência procedia para, então, restituir a força da palavra, elucidar a sua eficácia e usá-la para produzir modificações radicais no ser humano.

Vale lembrar que, em 1891, com a publicação dos “Estudos sobre a afasia” (Figura 1), Freud esboça seus primeiros marcos metapsicológicos. Já alertado, pela clínica, sobre o poder “mágico” da palavra, ele demonstra aí a sua função no campo da linguagem, a partir da articulação entre as representações e o corpo: entrelaçamento recíproco do qual o afeto é testemunha.

 

 

A palavra é a unidade funcional da linguagem. A palavra é um conceito complexo construído a partir de impressões distintas; corresponde a um intricado processo de associações no qual intervêm elementos de origem visual, acústico e sinestésico. Sem dúvida, a palavra adquire seu significado mediante suas associações com a idéia do objeto (conceito) (...) este é ele próprio outro complexo de associações constituído pelas mais diversas impressões visuais, auditivas, táteis, sinestésicas e outras (Freud, 1987, p. 90).

Em 1896, nos “Estudos sobre a histeria”, quando explicita o método que vai dar lugar à dupla operante associação livre/interpretação, Freud encaminha bem a explicação científica do poder “mágico” da palavra, e o porquê de “o ser humano encontrar na linguagem um equivalente do ato” deixa de constituir um mistério1 (Freud, 1896/1974). O seu método de investigação das causas dos sintomas confirma duplamente as conseqüências desse “aparelho de linguagem”: de um lado pela eficiência na técnica terapêutica e do outro pela coerência da metapsicologia que Freud definitivamente inaugura. A clínica freudiana exposta desde então verifica em que medida os afetos e as representações estão ligados e enredados em complexos laços simbólicos, e como a expressão verbal opera nesse emaranhamento: “O encadeamento lógico não lembra apenas uma linha em ziguezague, mas antes um sistema de linhas ramificadas e, sobretudo, convergentes” (Freud, 1896/1974, p. 234).

Quando finalmente, em 1900, na Interpretação dos sonhos, Freud apresenta publicamente o “aparelho psíquico” (Figura 2), deduzido de sua experiência clínica, ele leva em conta os esboços metapsicológicos construídos passo a passo à medida que se realizavam suas descobertas clínicas.

 

 

O entrelaçamento do corpo com o outro (Nebenmensch) e as representações, visível desde o “Quadro esquemático da sexualidade”, de 7 de janeiro de 1895 (Freud, 1895/1977) (Figura 3), assim como a organização sistematizada das inscrições das experiências sensoriais, suas transcrições e representações, expressa pelo esquema da carta 52 a Fliess (Figura 4), são figurações metapsicológicas necessárias para compreender a aparente simplicidade do esquema do aparelho psíquico da primeira tópica e a clínica que esta sustenta.

 

 

 

No entanto, todas as figurações freudianas do aparelho psíquico fundado na descoberta do inconsciente (Unbewusst), inclusive a segunda tópica (Figura 5), deixam em aberto algo que sempre escapará a essa aparelhagem do corpo pelo aparelho das representações. O Unbekannt,o umbigo do sonho, resto inatingível de todos os que são analisados na Interpretação dos sonhos, não é um produto circunstancial da discrição ou das imperfeições do relato, mas um resto estrutural, recalque primário, falta que, longe de invalidar o método de associação livre da regra fundamental, a funda: “O que desejamos ouvir de nosso paciente não é apenas o que sabe e esconde de outras pessoas; ele deve dizer-nos também o que não sabe” (Freud, 1895/1977). Falha fundamental da linguagem que, encenada na fala, pelas virtudes da transferência, justifica o complexo dispositivo ficcional da associação livre, o manejo estratégico da transferência e da angústia, a operação intempestiva da interpretação e, no seu limite, as construções em análise.

 

 

Lacan: função e campo da palavra e da linguagem (1953)

Nesse célebre e polêmico texto, Lacan, freudiano, desenvolve minuciosa e extensamente a renovação lograda pela prática clínica freudiana (talking cure) de explorar o campo da linguagem e os fundamentos científicos que esclarecem a sua eficiência supostamente “mágica”.

A linguagem não é um mero instrumento, meio de comunicação, compreensão, que o falante utiliza para se “expressar”, mesmo porque “serve” tanto para a comunicação quanto para o mal-entendido e o desconhecimento.

A linguagem é a condição do inconsciente, pois é a condição do humano: alienado e forçado à sua “representação” pelo seu sistema de signos que possui, este está fadado à divisão, ao desvanecimento e à intermitência. O “Penso, logo sou” cartesiano marca curiosamente a partição entre o “eu sou” e o “eu penso”. Quando o sujeito se reconhece no pensar, algo do ser escapa à representação: é no intervalo que ele vai buscar o seu tempo perdido, no intervalo entre os ditos, no interdito, e no deslizamento de uma representação para outra. Dividido, desvanecido, intermitente, algo sempre falta a ser dito e representado: recalque originário que condiciona todas as artimanhas e artifícios das formações do inconsciente.

A linguagem é condição da subjetividade, porque é na fala, dirigida desde sempre ao Outro, que o sujeito se constitui. Ele se realiza na textura dos enunciados que a enunciação trama. É na fala recortada da linguagem, isto é, no uso singular das leis de combinação dos elementos próprios a cada língua, que o sujeito produz, muito mais do que uma expressão, o estilo e a marca de sua existência sempre subposta (sub-jectum) aos enunciados de sua fala. O sujeito é função da fala – Lacan o designa como parlêtre para marcar que, alem da fala que atualiza a sua presença dividida no mundo, nada dá sentido ao ser, a não ser a fala que atualiza a sua presença dividida no mundo.

“O inconsciente é estruturado como uma linguagem” – eis a conclusão lacaniana fornecida por sua prática clínica, orientada pela leitura de Freud, sobretudo pela Interpretação dos sonhos, O chiste e sua relação com o inconsciente e a Psicopatologia da vida quotidiana. Esses textos explicitam e exemplificam como o “patológico” das formações do inconsciente (atos falhos, sonhos, sintomas, humor) evidencia a lógica da aparelhagem psíquica, ou seja, da estrutura do ser humano: dizer o que não pode ser dito, por meio da condensação e do deslocamento, dizer pelo equívoco, e o nonsense, o que está fora do sentido e determina o peculiar da humanidade de cada um.

 

A linguagem estrutura o humano

A linguagem estrutura o humano, organiza seu corpo, seu desejo e seu laço com o outro

Desde os primeiros gritos e balbucios, fazer-se ouvir pelo Outro é vital, uma vez que da resposta depende a transformação do corpo biológico em corpo pulsional. Em torno dos orifícios do corpo, a resposta do Outro às necessidades erogeniza as zonas que ordena e cifra, inscreve o grito como demanda dirigida ao outro suposto decifrar, e inaugura o campo do desejo, pois sua resposta, primordial, será sempre faltosa. A subjetividade é formatada pela sujeição inaugural ao “discurso do Outro” e à castração que ela determina, motivando forçosamente o desejo. Lacan escreve “Outro”, com maiúscula, para distingui-lo do “alter ego” e para salientar o quanto qualquer outro parceiro da novela familiar ou da vida encarna o aparelho simbólico que determina toda e qualquer intra e intersubjetividade. Qualquer outro encarna essa alteridade complexa, à qual o sujeito precisa se submeter perdendo a liberdade de ser qualquer coisa, ganhando a oportunidade de não ser uma coisa qualquer, ou seja, de se distinguir com Um diante dos outros, Um falante, cuja fala funda e produz como sujeito “distinto”, embora alienado (alien).

Desde a primeira resposta o grito é transformado em demanda, ou seja, em significante do sujeito que representa o significado do sujeito para o outro. A lingüística evidenciou a duplicidade dos signos da linguagem: o significante, aspecto material que em si não quer dizer nada, e o significado, que não se apreende diretamente, mas só pelo intermédio dos jogos de superposições, entrecruzamentos, derivações, emaranhamentos das infinitas combinações do material significante.

O significante substitui o significado, e essa operação metafórica condena o sujeito assim representado à ficção e ao equívoco. O significante em si não quer dizer nada, são apenas suas articulações e combinações que evocam e equivocam um sentido. Essa substituição é sempre insuficiente e inadequada, ela não dá conta do recado, promove a busca de outra representação mais adequada ao que faltou dizer: deslocamento. O resultado sempre será parcial: não há identidade de percepção, a representação é sempre uma “parte para o tudo”, é sempre metonímica.

É por causa da irredutibilidade do significante ao significado, visto que um nunca alcança o outro, que a representação jamais se iguala à coisa, que o ser falante precisa usar esses dois recursos da linguagem – metáfora e metonímia – como modalidades possíveis de articulação dos significantes que representam seu significado e que lhe dão sentido.

 

Não tudo é linguagem

Portanto, essa “estrutura do significante” revela logo o seu limite. Na novela familiar do neurótico, o limite do discurso do Outro para lhe garantir um sentido se revela muito cedo; o Outro aparece então como enigma, como falta, como “desejo”. Se o romance familiar parece escrito como um script oriundo do Discurso do Outro, regulando as identificações do sujeito e respondendo – em parte – à questão “Quem sou eu?”, é no desejo do Outro, naquilo que não se explicita no discurso, que vai ser lido “O que sou eu?”. É com a sua pantomima (Freud, 1909/1976) sintomática, moldada pela sua fantasia (intérprete do “desejo do Outro”), que o sujeito atua, encena o limite do sistema, como desejo do Outro.

Tanto a teoria como a clínica demonstram o limite da linguagem com a qual o humano tem que se haver. Pulsão de morte foi o nome dado por Freud para essa dimensão que se efetiva na repetição; Lacan por sua vez a chamou de Real, designando como “gozo” aquilo que permanece impensável, inimaginável, fora do alcance do verbo e da imagem, e que, entretanto, causa e suporta todo o enredamento que recobre (encobre) e constitui a nossa realidade.

Deparamos, assim, com o grande desafio da psicanálise: como uma prática que não tem outro meio a não ser a fala vai tratar esse resto que estorva o sujeito? É mesmo este o desafio crucial da psicanálise e do psicanalista: “topar” com o resto real da estruturação do sujeito pela linguagem. A palavra topar tem dois sentidos: “deparar” e “aceitar, incluir”. O método analítico inventado por Freud (associação livre – atenção flutuante) permite “topar” com as duas dimensões da fala: a estrutura de seus ditos e a emergência de seu não dito. A ética lacaniana nos ajuda a não perder o rumo da fala e o prumo do Real..

 

A fala na cena analítica: associação livre e atenção flutuante

Os conceitos que permitem apreender a função da fala no campo da linguagem na técnica analítica – enunciado, enunciação, significante, significado, metáfora, metonímia – testificam as condições de sua operacionalidade. A associação livre, entre falar tudo e falar qualquer coisa, trabalho forçado sem escapatória, tende irremediavelmente à exploração do dito e de sua estrutura, assim como do não dito e das tentações de sutura que ele implica. A transferência orienta esses dois eixos, e seu manejo pelo analista revela a sua lógica mais do que denuncia a sua patologia. A atenção flutuante é um procedimento fundamental do tratamento do texto neurótico. A fala não cai no vazio, e sim numa suspensão de sentido que a regra fundamental já solicitava: “Dizer tudo, mesmo se for sem sentido etc.”.

Freud esclareceu minuciosamente como a associação livre – que implica o acolhimento do sujeito pelo dispositivo analítico – permite que a narrativa assim proporcionada atualize na transferência o enredo e o enredamento do sujeito no emaranhamento próprio da ficção tecida no seu romance familiar.

 

Silêncio e voz: a interpretação e o ato analítico

O manejo dessa transferência tagarela e cheia de sentido tende, aos poucos, ao avesso: o silêncio e a voz do analista, a sua presença, tendem tangencialmente a reduzir o barulho da tagarelice dos sentidos que a neurose dá ao “desejo do Outro”, até o limite da estrutura: castração pura e seu mais além, o ato. A interpretação, no final das contas, silencia as interpretações dramáticas que a neurose deu à tragédia de seu destino de sujeito dividido, castrado, e mortal. O ato do analista encena essa interpretação sem palavra que conduz a análise à sua conclusão.

 

No final das contas

Quem conta um conto, aumenta um ponto. O ponto que se marca no final da análise é a transformação da falta em causa: o que fazia falta e assombrava o destino se descobre causa e renova a história. Talking cures.

 

Referências

Freud, S. (1905). Tratamento psíquico. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 7, p. 283). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1890).         [ Links ]

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Soler, C. (1998). A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra Capa.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Dominique Fingermann
Travessa Alonso, 30 – Vila Madalena
05436-060 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3032-7674
E-mail:dfingermann@terra.com.br

Recebido: 17/04/2007
Aceito: 02/05/2007

 

 

* Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.
1 Mas a linguagem serve de substituta para a ação; com sua ajuda, um afeto pode ser “ab-reagido” quase com a mesma eficácia. Em outros casos, o próprio falar é o reflexo adequado: quando, por exemplo, essa fala corresponde a um lamento ou é a enunciação de um segredo torturante (como no caso de uma confissão).

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