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Ide
Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.30 no.45 São Paulo Dec. 2007
PUBLICAÇÕES
Entre a lei e o desejo
João de Fernandes Teixeira
Peluso, Antonio Cezar & Nazareth, Eliana Riberti, Psicanálise, direito, sociedade: Encontros possíveis. São Paulo: Quartier Latin, 2006, 256 p.
Se neste começo de século já se cogita, ainda que de forma velada, renovar a ciência do direito a partir de descobertas psiquiátricas proporcionadas pela Década do Cérebro, nada é mais oportuno do que um livro que aborde as interfaces entre a Psicanálise e o Direito. Pois, se havemos de reformar a ciência do direito ou fazer com que esta assimile novas influências, por que fazê-lo unicamente através da neurociência e sua parafernália tecnológica deixando de lado um dos movimentos que mais influenciou a psiquiatria e a psicologia na contemporaneidade?
As relações entre Psicanálise e Direito – com ênfase no direito da família – são o mote da coletânea organizada por Antonio Cezar Peluso, ministro efetivo do Tribunal Superior Eleitoral e pela psicanalista Eliana Riberti Nazareth. Nela participam quinze autores, entre advogados, psicanalistas, juízes de direito, todos com artigos que abordam esse tema candente a partir de múltiplas facetas, em que se procura saber
de que maneira se envolvem e entrelaçam esses dois planos do existir, o ser jurídico e o ser psicanalítico que habitam em cada um de nós e que nos fazem, no rigor da palavra, sujeitos assim da regra, como do inconsciente (p. 17).
Diante de tamanha riqueza de material terei de contentar-me, por falta de espaço, em comentar apenas uns poucos artigos que muito me chamaram a atenção, sem que com isto esteja subentendendo que os outros não seriam merecedores de igual destaque.
Começo comentando um artigo mais próximo da Psicanálise, de autoria de Eliana Riberti Nazareth e Paulo Henrique Fernandes Silveira, que coloca em tela, em última análise, a dificuldade que as sociedades pós-modernas enfrentam na própria constituição de seus núcleos familiares. Os autores apontam para a existência de uma tensão essencial nas relações humanas vividas nessas sociedades, que, se de um lado são pautadas pela valorização crescente do narcisismo, que nos leva a cultivar relações levianas e passageiras, de outro lado apresentam o padecimento pela falta do outro, a frustração advinda da incompletude. Jogo de difícil solução que nos remete, em profundidade, ao modo como a teoria psicanalítica pode, hoje em dia, debruçarse sobre o problema das relações humanas.
O texto seguinte, “O amor como critério moral”, de autoria do Frei Betto, convida-nos a uma reflexão sobre a moral clássica, sugerindo uma revisão da concepção habitual de pecado, que na comunidade cristã é entendido como ato isolado, de responsabilidade estritamente pessoal e circunscrito à introspecção. A esta concepção, Frei Betto contrapõe o que ele chama de “dimensão social do pecado”, ou seja, sua compreensão contextual em que os valores burgueses impregnados pela ideologia dominante em nossa sociedade passam a ser questionados. O pecado é um ato livre, diz-nos Frei Betto, mas executado por uma pessoa que vive presa “aos mecanismos de seu inconsciente, aos fatores biogenéticos de seu desenvolvimento, aos determinismos fisiológicos, psicológicos e sociais, dos quais ela nem tem consciência, mas que moldam a sua maneira de pensar e viver” (p. 129). E prossegue: “O pecado, que nasce no coração do homem, encontra-se historizado na forma de estruturas opressivas que se tornaram causas objetivas desse mesmo pecado” (p. 133).
Frei Betto critica os discursos oficiais da moralidade e da ciência, que se apresentam, na sua forma ideológica, sem suas raízes histórico-sociais. É nesse sentido que hoje se propala, em nome de bases científicas – ou neurocientíficas – o caráter irremediável dos psicopatas, homossexuais e esquizofrênicos, bem como de todos aqueles que apresentam problemas psíquicos que os desajustam das sociedades atuais esquecendo-se que são as contradições sociais que geram esses desequilíbrios biopsíquicos. É em nome dessas “bases científicas” que as novas ciências da mente, querem influenciar a ciência do direito, tornando-se instrumentos ideológicos da marginalização social, da segregação definitiva e do aniquilamento pessoal. Terá razão Frei Betto? Será que o uso não-ideológico das ciências da mente deve se refletir num abrandamento da responsabilidade individual face às situações concretas em que as pessoas agem? Que papel deve ter esta premissa ao considerarmos a ciência do direito? Talvez estas sejam as questões que mais importem a quem lê este artigo com os olhos voltados para a busca de interfaces entre Direito, Psicologia e Psicanálise.
Outros artigos, de autoria da psicóloga Ana Lúcia Pereira Cardoso, da psicanalista Lia Rachel Colussi Cypel e da advogada Lia Justiniano dos Santos, recaem sobre o tema da mediação e suas interfaces com a Psicanálise. Nesses artigos a idéia de mediação é apresentada como alternativa para a resolução de conflitos – especialmente na família e no interior de outros grupos – longe dos tribunais. A mediação seria outro caminho – como observa Lia Rachel Colussi Cypel –, pois os tribunais “paradoxalmente, embora ofereçam a possibilidade de solução do entrave (...) incentivam e promovem a competição, o incremento da desavença” (p. 168) e, no caso do conflito familiar dificultam as relações entre cônjuges e entre seus filhos após os processos de separação que poderiam ser menos penosos. Mas, pergunta-se a psicanalista, quem deve ser o mediador, e que tipo de formação ele deve ter? Sua resposta não está na formação de um profissional específico, mas na formação de equipes multidisciplinares habilitadas para esta função.
A advogada Lia Justiniano dos Santos nos traz a narrativa de um conflito num condomínio, e sobre como o processo de mediação poderia encontrar uma solução sem apelar para a figura hierarquizada de um juiz. Nos processos de mediação é preciso reunir as partes, tentar fazer com que elas se comuniquem e discutam o problema, uma tarefa que pode exigir, além da participação de um advogado, a de um psicanalista, pois, como no caso da família, não é incomum que o conhecimento e a percepção dos perfis psicológicos dos conflitantes seja algo necessário para iniciar e promover uma negociação. Também neste caso, a solução estaria nas equipes multidisciplinares das quais participariam advogados e psicanalistas.
A coletânea é encerrada com um artigo profundamente inquietador de autoria do desembargador Sidnei Agostinho Beneti, “Personalidade e opções psicológicas de julgamento”. Nele o autor aponta para uma verdade que freqüentemente tendemos a esquecer: que os juizes são seres humanos, dotados de um psiquismo, e assim sendo, submetidos a vicissitudes e fraquezas pertinentes ao humano. A decisão judicial é inevitavelmente eivada de aspectos subjetivos do julgador que, por mais isento que tente ser, é influenciado pela sua história de vida e por suas crenças inconscientes. O juiz julga a partir de uma representação dos fatos que lhe é fornecida, por ambas as partes, e sobre esta pesam esses inevitáveis aspectos subjetivos.
Com coragem, Sidnei Agostinho Beneti aponta para vários fatores subjetivos que podem influenciar decisões judiciais, que incluem até a preguiça de ler os autos, num sistema judiciário inflacionado em que os juízes do Supremo Tribunal recebem milhares de processos por ano para serem julgados. Novamente o que está em questão – embora não tratado explicitamente nesse artigo – é o risco das decisões autocráticas num modelo hierarquizado como o que tradicionalmente temos nos nossos Tribunais, cuja alternativa seria, em todos os casos quantos forem possíveis, a solução pela mediação.
Vivemos todos numa civilização que produz muitos descontentes,muito mal-estar e muito estresse causado por sua moral sexual.Nesse contexto, fica difícil imaginar como poderíamos estar falando de Direito e Psicanálise, como poderíamos estar encontrando uma conciliação entre, de um lado os aparelhos ideológicos de uma civilização inevitavelmente repressiva e de outro o resgate do desejo. Sabemos que o mundo da regra é aquele no qual o desejo é necessariamente limitado, se não recalcado.Mas o que dizer das sociedades nas quais é o “vazio da regra” que se transforma em instrumento de supressão? Daquelas em que a impossibilidade do exercício da regra é o modo de instaurar a autocracia na sua forma mais repressiva e a ausência da regra ou sua existência apenas virtual instaura a impotência entre seus participantes?
O aspecto paradoxal destas sociedades é que nelas a renúncia e a restrição ocorrem porque a possibilidade de seguir qualquer regra foi abandonada. Seus tribunais são kafkianos e há sempre alguma razão pífia que leva à impossibilidade de cumprimento da regra. O poder se instaura pela desordem e pela sensação de liberdade que essa desordem proporciona. A alternativa para essas sociedades é seguir um caminho para fora dos tribunais, para fora das instituições no sentido de instaurar um sistema de regras paralelo e específico como ocorre durante os processos de mediação. Talvez a lição que essas sociedades nos ensinem é que precisamos do direito – de “algum tipo” de direito – e que a lei e o desejo talvez não sejam tão opostos assim.
Jassanan Amoroso Dias Pastore contribui para a coletânea com o artigo “A família contemporânea: Ludicidade, educação e subjetividade” e desenvolve um ponto de vista próximo a este, invocando com muita propriedade o texto de Hélio Pellegrino, que diz: “A Lei não existe para humilhar ou degradar o desejo, mas para estruturá-lo, integrando-o no circuito de intercâmbio social” (p. 142). Palavras que ainda não encontraram eco nos países que vivem a bagunça autoritária.
Endereço para correspondência
Rua da Paz 342 – Alto da Boa Vista
04713-000 – São Paulo – SP
Tel.: 11 9614-5898
E-mail: jteixe@terra.com.br
Recebido: 15/07/2007
Aceito: 25/07/2007