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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.31 no.146 São Paulo June 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

A infância roubada: uma reflexão sobre a clínica contemporânea*

 

The stolen childhood: reflections on the contemporary clinic

 

 

Myrna Pia Favilli**; Bernardo Tanis***; Maria Celina Anhaia Mello****

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os autores pretendem desenvolver uma reflexão sobre as vicissitudes da infância na clínica contemporânea. Baseiam-se, para tal, em alguns conceitos provenientes da antropologia e da sociologia, que se ocupam do estudo de características próprias de nossa época, como a aceleração do tempo, o excesso de espaço e o excesso de interpretações. Utilizando idéias de transitoriedade, rapidez, não-pertinência, próprias dos “não-lugares”, levantam a hipótese da infância atual, vista em nossas clínicas, entendida como um “nãolugar” dentro do tempo de vida. Os autores tocam no modo como a cultura atual atravessa a interioridade parental e se reflete nos processos de subjetivação, inculcando na criança a urgência de satisfação de aspectos narcísicos. Discutem como a infância perde sua especificidade de tempo lúdico, de tempo mágico, de pertinência às fantasias simbolizadas toda vez que essa urgência do “futuro adulto” atravessa o imaginário parental e se questionam sobre como pensar as angústias desses pais, frutos de outro tempo, de um tempo do brincar.

Palavras-chave: Adolescência antecipada, Clínica contemporânea, Cultura narcísica, Lugar da infância.


ABSTRACT

The authors intend to develop a reflection over the childhood’s vicissitudes in contemporary clinic. For this, they based themselves on anthropological and the sociological concepts concerning the study of proper characteristics of our time, such as time rushing, the excess of space and the excess of interpretations. Using ideas of transience, rapidity, not-relevancy, proper of the “no-places”, they raise the hypothesis of the present infancy, seen in our clinics, to be seen as a “no-place” in the life time. The authors focus on how the current culture traverses the parental inner-self and reveals itself in the subjectivation processes, inculcating over the child’s mind the urgency of narcissistic satisfactions. They argue on how the infancy loses its distinctiveness of playful and magical time, every time that such an urgency of the “adult future” crosses parental’s imaginary. They think about the anxiety of those parent products of another time, a playful time.

Keywords: Early adolescence, Contemporary clinic, Narcissist culture, Childhood place.


 

 

Que criança é essa, a da clínica contemporânea? Que criança pós-moderna é essa? Ao nos debruçarmos sobre esse tema, como introdução e reflexão acerca dos exemplos clínicos, vêm à tona os inúmeros textos de sociologia e antropologia que se ocupam da sociedade “supermoderna”, nome usado por Marc Augé (1994) em seu livro Não-lugares, no qual justamente estuda as características próprias da nossa época, quais sejam:

1) A aceleração do tempo, em que a “superabundância” factual do mundo contemporâneo leva a uma “aporia” na atribuição de sentido a toda essa sobrecarga de acontecimentos; os tempos modernos exigem que se dê um sentido ao “mundo” (presente e passado), e não apenas a um recorte demarcado (sua própria vida, sua cidade, sua história). Temos que dar conta de um excesso de tempo.

2) O “excesso de espaço” em que os acontecimentos se desdobram à nossa vista pela comunicação instantânea de outros espaços, além do excesso de espaço imaginário transmitido o tempo todo pela mídia e pela publicidade, e que inocula novos cenários de desejos a serem realizados e novas formas de desejo a serem satisfeitas.

3) A figura do ego, do indivíduo, que quer para si a “interpretação do mundo” a partir das interpretações que lhe são dadas pela distribuição da informação. Cada indivíduo quer para si o direito de decidir sobre essas informações. Isso significa viver um mundo em que ele mesmo se representa e lhe permite traçar seu destino particular. Excesso de interpretações.

Como vemos, trata-se de um texto de extensa reflexão antropológica e a ele remetemos o leitor.

Para refletirmos, utilizamos o conceito de Augé de Não-lugares espaciais de nossa sociedade contemporânea como uma metáfora privilegiada para pensarmos a infância tal como ela pode ser entendida hoje. Ele define como “não-lugares”, ao contrário dos lugares investidos de sentido (pátria, cidade, casa), os lugares de trânsito, de passagem, de pouco investimento afetivo, apesar de serem os espaços mais habitados na sociedade pós-moderna. Bons exemplos são as estações de trânsito, os aeroportos, as ruas, as rodoviárias, os hotéis etc., lugares onde a vida transcorre sem que haja um sentimento de pertinência. O autor faz derivar daí a constatação de um sentimento que atravessa nosso tempo e diz respeito à solidão que impregna a sociedade contemporânea. É um sentimento por nós conhecido, e que se configura objetivamente na impossibilidade de construção de laços afetivos no modus vivendi contemporâneo. Podemos dizer que a sociedade atua o espaço persecutório do isolamento e do abandono.

Fazendo uso dessa idéia de rapidez, de transitoriedade, de não-pertinência, própria dos não-lugares, levantamos a hipótese de a infância atual, vista em nossas clínicas, ser entendida como o “não-lugar” dentro do tempo de vida. (Queremos ressaltar, contudo, que, dentro de uma perspectiva mais abrangente, as diferenças sociais podem já ter introduzido esse sentimento de não-lugar para a infância carente.)

Nos retratos da clínica atual, vamos acompanhar crianças fora de seu lugar de infância, vivendo já um ideal “adulto”, do tempo futuro, que lhes é apresentado como modelo pelas figuras parentais. Mantendo sempre a posição psicanalítica, entendemos a transmissão da cultura através da relação primária, quando a configuração edípica vai obrigar a internalização parental, portanto dos portadores da cultura, a se organizar como estrutura mental na formulação do superego.

O que queremos comentar aqui é o modo como a cultura atual, atravessando a interioridade parental, vai se refletir nos processos de subjetivação, inculcando uma urgência da satisfação de aspectos narcísicos que, em suas camadas mais primitivas, leva a uma identificação sincrônica com os aspectos primários que deveriam ser superados pela vida mental em seu início. A alteridade, enfim, a socialização, não é de fácil acesso. É interessante notar que apenas quando o discurso parental se choca com esse desejo primitivo é que se torna possível a noção de alteridade. Parece que, de alguma forma, as mensagens parentais modernas não se chocam com os desejos mais primitivos. Mas, se essas crianças entram em conflito, às vezes grave, vale a pena perguntar e questionar, como analistas, os rumos da vida mental no homem moderno. É nesse nível, acreditamos, que a análise de crianças pode contribuir para o pensamento da conflitualidade moderna.

A infância, exemplificada pelas crianças da clínica contemporânea, mostra-nos como o problema pós-moderno atinge as camadas com acesso à psicanálise. Quanto às camadas menos favorecidas, o problema da violência, por exemplo, merece um estudo particular que também diga respeito à introjeção de figuras parentais, se é que queremos manter o vértice psicanalítico.

Voltemos, entretanto, à nossa clínica atual, em que podemos constatar como a infância perde sua especificidade de tempo lúdico, de tempo mágico, de pertinência às fantasias simbolizadas, toda vez que essa urgência do “futuro adulto” atravessa o imaginário parental.

Nesse aspecto, torna-se interessante ressaltar que as sintomatologias apresentadas nos retratos da clínica são resultantes de valores que os pais querem inocular (inconscientemente?) como possibilidades de sucesso na vida adulta: competitividade, aparência física etc. Se, mesmo nos casos em que o discurso paterno está de acordo com a ideologia societária, cria-se um plus de angústia, vale a pena refletir sobre o tempo de infância como objeto particular e que faz parte dos direitos do futuro adulto.

Como pensar esses pais? Afinal, como foram criados no tempo mais antigo, tempo de brincar, será que se sentem deslocados, buscando nos filhos uma compensação? De qualquer modo, parece que os tempos modernos lhes deram uma rasteira. Quem sabe as angústias vividas se transformaram nos ideais supermodernos e eles se sentem confundidos? Desejam a seus filhos um sucesso que lhes foi negado? Teriam esses pais pulado etapas e não vivido o conflito adolescente, buscando vivê-lo agora e delegando os filhos a profissionais? Sentem que algo precioso foi perdido e hipervalorizam a juventude? Será que sofreram repressão excessiva a uma rebeldia possível e não puderam vivenciar o conflito adolescente?

Não nos estenderemos sobre o assunto neste trabalho, mas vale a pena ressaltar a importância desse aspecto nas entrevistas com os pais. Trata-se de um ponto que merece a nossa atenção, pois estamos propondo a hipótese de uma antecipação da problemática adolescente em nossas crianças, tal como emerge nas situações clínicas.

A adolescência se caracteriza pela busca da identidade possível, que se constitui no desafio adolescente. Negar-se a essa experiência vai perturbar toda a vivência adulta, uma vez que as formas eficientes e originais de resolução do viver não foram equacionadas pela dor que ela pode causar. A vida adulta resultante dessa negação nada terá a ver com a qualidade criativa da experiência que se fez saber. Em muitos casos, observamos a tentativa extrema de viver a adolescência perdida na vida adulta; em outros, o eterno desafio adolescente continua pela vida afora como uma impossibilidade de superar a turbulência característica dessa etapa. É como se a vida se transformas-se numa busca incessante de sentido que, quando não encontrado, revertese em patologias graves, tais como anorexia, bulimia, depressão, suicídio, toxicodependências, esquizofrenias, pensamentos delirantes etc.

Como vemos, a experiência adolescente não pode ser pulada, driblada ou ignorada.

Mas o que acontece se ela for precocemente absorvida como modelo identificatório?

Voltemos então às nossas crianças. Hoje em dia, o que é incentivado pela vida moderna é o não-lugar infantil articulando-se à vida das crianças, cada vez mais em tarefas intensamente regradas, em horários cada vez mais rígidos, em expectativas de performances cada vez mais sofisticadas. Nos tempos ditos antigos, as crianças supercompetitivas, imitadoras dos adultos, com excessiva colocação de ênfase na aparência em detrimento do brincar, eram consideradas problemáticas, visando, então, a análise a uma maior expansão das qualidades próprias daquilo que, nós analistas, chamamos de investimento afetivo genuíno. No entanto, se o mundo moderno pede isso, como pensar a análise de crianças?

 

Retratos da clínica atual

Procuraremos retratar certas características dessas crianças e suas famílias, lembrando que, na nossa clínica, é sempre da singularidade de cada analisando e seus pais que nos ocupamos.

Nos casos aos quais faremos referência, é comum os pais relatarem que seus filhos são crianças muito especiais, com inteligência acima da média e que se destacam em relação aos colegas. Ou são extremamente bonitas, ou grandes e fortes, ou se sobressaem em algum esporte para o qual treinam especialmente. Também as escolas que freqüentam foram escolhidas por sustentar uma bandeira de excelência.

Em contrapartida a todo esse quadro de destaque, ou como seu corolário, notamos que muitas delas têm medos e inseguranças, não dormem bem à noite e só conseguem fazê-lo quando alguém deita em sua companhia, de preferência na cama dos pais.

Na maioria das vezes, são crianças com poucos amigos, pois, por serem, extremamente competitivas, acabam rejeitados pelos coleginhas.

Lembramos de um menino extremamente competitivo no jogo, muito dependente de cada um dos movimentos do analista, e que não suporta perder. Caso não vença, a angústia se mostra intolerável. Parece não existir uma discriminação adulto/criança; somos iguais aos seus olhos e o desafio deve ser vencido. Reconhecemos um certo padrão: o menino começa a desenvolver um jogo de natureza competitiva e, perante as angústias que emergem, parece perder o controle, como se não houvesse uma elaboração em face das pressões e exigências do superego.

Quando o analista conversa com ele sobre alguns dos aspectos percebidos e sugere que poderia ser interessante continuar os encontros, mostra-se muito interessado e aliviado. Tem-se a impressão de que a possibilidade de lidar com a sua ansiedade de vencer e a possibilidade de encontrar uma figura que ao mesmo tempo seja mais experiente, mas também acolhedora, nele provocam alívio e o vislumbre de algo novo. Talvez o guerreiro dessa nova Esparta pós-moderna possa encontrar outras formas de realizar suas potencialidades e se projetar de modo menos aterrador para o futuro. Talvez o mundo, o espaço cultural, deixe de ser usado apenas como uma arena.

Quando é apontado para seus pais o desenvolvimento desarmônico do seu filho, e que o “futuro astro” pode ser uma criança que está sofrendo em virtude de um excesso de idealização e projeção de expectativas, tanto da parte dos pais como da cultura narcísica em que vivemos, eles reagem questionadores &– é difícil reconhecer os aspectos idealizados projetados no filho, assim como as próprias inseguranças acobertadas e racionalizadas pelos aspectos narcísicos da cultura. Mas o questionamento cede espaço para um sentimento de alívio e elaboração das próprias expectativas.

Os encontros com os pais são muito importantes: dir-se-ia que durante em seu transcorrer que estes são apresentados aos filhos que não queriam conhecer de perto, a não ser como realização de seus ideais. Palavras como “companheiro”,“colega”,“amigo”não são registradas com muita freqüência no discurso deles; o mundo é uma guerra, e devemos estar prontos para vencer, ou sermos derrotados.

Outro grupo de crianças com os quais temos nos deparado, e cuja problemática se entrelaça com a anterior, é formado pelas que vivem uma antecipação da problemática adolescente. São meninos e meninas por volta dos sete, oito anos de idade, que têm que fazer frente a angústias para as quais ainda não contam com um aparato mental com elementos suficientes para suportá-las. Chamadas a saltar da tenra infância para a adolescência, queimam etapas do desenvolvimento.

Mas haverá, nos nossos dias, espaço e tempo para a latência?

Pensemos o caso de uma menininha de oito anos, como emblemático dessa situação. Apresenta-se como uma adulta no vestir-se, no linguajar, na maneira de se relacionar. Seus desenhos são todos de moda, modelos e grifes. Corpos magros, fisionomias idênticas, só há diferenciação no vestuário, nos penteados.

O foco é a aparência. Seus interesses são seu corpo, seu regime alimentar, as roupas que vai vestir hoje e quais vestirá no futuro. As fantasias com fadas, princesas e bruxas não habitam seu cenário mental; seu imaginário é recheado dos ideais de consumo, beleza e sucesso. Os pais compartilham das mesmas preocupações; querem uma filha magra, bem vestida, com corpo e atitudes de moça, sem se dar conta do sofrimento da criança.

Como uma celebridade, representa em suas sessões um programa de TV em que é uma artista famosa que sabe tudo, ensina a todos e fornece seu e-mail aos seus fãs telespectadores. No resgate dessa possibilidade de brincar, a analista chama os “intervalos comerciais” para, nos “bastidores do programa”, encontrar espaços para lidar com o desamparo, a fragilidade, os terrores infantis. Nos bastidores a estrela pode abandonar o personagem e falar sobre aquilo de que tem medo, o que a entristece. Paradoxalmente, seu desejo é encontrar ou ser uma formiguinha, um animalzinho de estimação bem pequenininho, que caiba em uma caixinha. Quando “o programa volta ao ar”, a “estrela” ressurge com todo seu glamour.

Dentro dessa dinâmica contemporânea, deparamos com pais ansiosos por aproveitar a vida, viverem uma adolescência talvez perdida, delegando a nós a função de propiciar um espaço de inserção do lúdico, do mágico, da fantasia no mundo infantil, como se fôssemos um personal das emoções.

Como esses pais lidam com as expectativas individuais e culturais em relação ao futuro de seus filhos? Haverá outro modo, menos narcísico e exigente?

O trabalho clínico com essas crianças, como vemos, contempla também entrevistas com os pais para oferecer a eles uma oportunidade de refletir e rever as crenças que sustentavam certos modelos identitários, pois, como assinalado anteriormente, é através das identificações primárias que o psiquismo se constitui. Modelos extremamente rígidos requerem uma intervenção; caso contrário, o psiquismo infantil pode não tolerar a tensão entre as transformações inerentes ao processo de análise e certas demandas parentais.

Este breve retrato mostra como algumas configurações subjetivas da cultura narcísica, de valores individualistas e competitivos, atravessam o crivo subjetivo dos pais e podem intensificar determinados aspectos da configuração edípica, reforçando angústias de castração ou retaliação e levando a criança a compreender a existência como uma permanente luta &– não pelo desenvolvimento, mas pela supremacia. Em um mundo de fortes e fracos, qual o preço a pagar? Trata-se de ganhar a todo custo. Assim, um dos benefícios da análise poderia ser a possibilidade de transformar um sentimento negativo de solidão numa experiência em que a solidão se manifeste como fundamento da singularidade. Não se trata de uma apologia do estar só, do guerreiro solitário e da mini top model, e sim do estímulo à capacidade de se voltar para o outro a partir da solidão. Concebida desse modo, a solidão pode ser um baluarte de resistência contra as forças de um narcisismo negativo e destrutivo que favorece o desligamento.

Em nossa clínica, é evidente que a análise da conflitualidade psíquica, que vai desembocar na problemática superegóica (pois sabemos que é por aí que a cultura se internaliza no indivíduo, através da psique parental), sempre irá buscar interpretar os excessos de sofrimento que estão sendo acarretados, qualquer que seja o cenário externo atual. Para isso, temos toda a bagagem conceitual que a psicanálise nos oferece e que, encarnada na relação analítica, propicia um antídoto aos excessos relacionais.

Gostaríamos, contudo, de levantar como problemática para os analistas de nosso tempo o seguinte dilema: se as sintomatologias modernas já indicam as preponderâncias narcísicas, os transtornos alimentares (justificados atualmente pelo culto do corpo), as violências explícitas, as droga-adições como soluções mortíferas para a necessidade de poder e para a fuga da solidão e do abandono, como refazer ou repensar um lugar ainda possível para a infância? Será que o lúdico, o mágico, as fantasias terão espaço numa sociedade futura onde a tecnologia faz surgir também modelos exigentes, ao lado das figuras parentais? Como reverter um quadro em que a criança é consumida pelas imagens midiáticas, e se torna consumidora num espaço social que necessita dela como mercado? Para esse mundo pós-moderno, já delineado, é necessário que tudo seja assim. Mas, além de cuidar dos excessos em sala de análise, poderemos, como analistas, interferir no processo para que a infância não seja roubada de nossas crianças? Poderemos lutar para transformar a tecnologia em sonho? Seria possível brincar de papai e mamãe no espaço virtual?

Não poderemos deter esse futuro. As sociedades sempre caminharam e não será possível impedir seus passos ou retornar a um passado já perdido. Poderemos, talvez, tentar introduzir um pouco de “alma” na perfeição do esporte, na veste industrializada, no corpo sob suspeita, como os que nos apresentam as crianças às quais fizemos referência. Os príncipes e as princesas futuros deverão conter as metas culturais que atravessam os imaginários parentais. Não será possível fugir disso. Se o analista não se apropriar dessa modernidade, estará incluindo uma visão moralista ou saudosista dos tempos passados.

Procurar refletir com esse pano de fundo será o desafio para o analista contemporâneo: não patologizar os desejos configurados por uma nova forma de viver (rapidez de tempo, multiplicidade de espaços, os não-lugares, o excesso de representação individual etc.), pois a época parece ser de um excesso de desejos a serem realizados. Perdeu-se, talvez, algo da satisfação alucinatória representada pelos devaneios conscientes. Hoje, tudo é urgente e concreto. Instalar o simbólico nesse mundo concretizado deve fazer parte do discurso analítico. Fazer do espaço analítico um lugar transformado de uma infância possível.

Para isso, declaramos firmemente que o analista de crianças tem sempre a seu dispor uma bússola para guiá-lo quando o excesso de angústia de seus analisandos anunciar, aí sim, a patologia de toda uma época. O que hoje poderíamos chamar de patologia apresentada pelas crianças da clínica atual diz respeito às vivências de conflitos que estávamos acostumados a encontrar fundamentalmente na adolescência, quando o jovem é chamado a uma participação social que difere da vida infantil em que deveriam predominar a fantasia, o pensamento mágico, o lúdico. Dessa maneira se exterioriza uma precocidade do conflito adolescente, provocando infelicidade nas crianças por não disporem de elementos para responder a tais conflitos, mimetizando então o adulto.

Mais do que a infância de algumas crianças em particular, é a infância como tempo de treino para o viver que tende a se esgarçar nos tempos modernos. Estaremos dentro, como conceitua Augé, de uma característica societária que se descortina como um paradoxo: “a sociedade da solidão”.

 

Referências

Augé, M. (1994). Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus.        [ Links ]

Aulagnier, P. (1975). A violência da interpretação. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Favilli, M. P. (2005). O agir criativo: O adolescente que se faz adulto. In Anais do 1º Simpósio Internacional do Adolescente. São Paulo. Recuperado em 13 de abril 2007 da SciELO: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?.        [ Links ]

Ferrari A. B. (1996). Adolescência. O segundo desafio. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Tanis, B. (2004). Circuitos da solidão: Entre a clínica e a cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Myrna Pia Favilli
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Maria Celina Anhaia Mello
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Recebido: 04/06/2007
Aceito: 18/06/2007

 

 

* Artigo baseado em trabalho apresentado no XXVI Congresso Latino Americano de Psicoanálisis, da Fepal. Lima, outubro 2006.
** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
***Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
**** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

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