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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo Dec. 2010

 

EM PAUTA - PSICANÁLISE E ESCULTURA - PER VIA DI LEVARE

 

O artesão e a imaginação dos quatro elementos1

 

The artisan and the imagination of the four elements

 

 

Thaïs Wense de Mendonça Cruz*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se de um estudo do trabalho do artesão, que abrange a produção de objetos concretos e o processo de imaginar a si mesmo na relação com a matéria-prima. É uma investigação sobre a imaginação material presente no trabalho do artesão, na forma como Bachelard a compreende, ou seja, geração de imagens dinamizadas pelas propriedades dos quatro elementos descritos por Empédocles. A imaginação é tida como atividade psíquica que conduz o artesão à transcendência de seus afetos para empreender um mergulho na solidão, isto é, conhecimento anagógico da irrealidade, na qual irá se encontrar com a pré-história de seu fazer e consigo mesmo.

Palavras-chave: Artesão, Matéria-prima, Conhecimento, Transformação, Anagogia.


ABSTRACT

This is a study of the craftsman’s life and work. It involves from the process of imagining himself in relation to raw material untill the production of concrete objects. This is an investigation about the material imagination, present in the work of the craftsman, in the sense that Bachelard understands it, ie, creating images, stimulated by the properties of the four elements described by Empedocles. Imagination is considered psychic activity that leads to transcendence of the craftsman’s affections to undertake a dive in solitude, that is, the anagogical knowledge of the unreality, where he will stand facing with the pre-history of its making and himself.

Keywords: Craftsman, Raw material, Knowledge, Transformation, Anagogy.


 

 

Tendo passado parte de minha vida em uma área rural, quase que completamente isolada da vida urbana, convivi muito com artesãos que faziam aparecer da natureza, no meu olhar infantil, quase tudo do que necessitávamos para sobreviver ali. Eram pessoas capazes de retirar dos rios, das árvores, do sol, dos animais e da terra não só os víveres, mas também panelas, tamancos, vestidos, brinquedos e ainda histórias e orações que acalmavam as crianças na hora de dormir e os adultos na forma de um aconselhamento por refletirem, no desenrolar das histórias, sua própria experiência vivida.

Dessas experiências primeiras, fui desdobrando a ideia de estudar o artesanato enquanto trabalho-criação enraizado nos primórdios da história da humanidade. Com esse propósito viajei para lugares distantes no interior de Minas Gerais em busca de pessoas que trabalhassem em condições as mais rudimentares e originais possíveis. Encontrei ali artesãos que conservavam a mesma tradição na manufatura de seus objetos daquelas descritas nos livros de artesãos e alquimistas da Idade Média, quando essas duas artes se misturavam. Essas pessoas que entrevistei, e com as quais convivi, sentiam-se parte de um tronco enraizado na pré-história do próprio artesanato e com ele no nascimento do “homo faber”2.

É na forma artesanal que o trabalho ainda preserva vínculos com seu sentido original, em que todos os rituais mentais e práticos que envolvem sua preparação e realização compreendem uma síntese entre técnica, arte, religião e magia. Tudo isso é explicado pelos artesãos em termos de uma “sina” ou de uma vontade maior que deles se apossa. Assim explica a tecelã Fazinha, uma senhora na ocasião com 90 anos: “Gosto muito de trabalhar, a gente já vem desde pequena com aquela inclinação de trabalhar... Até hoje tô picando retalho, se deixar, fico picando retalho até tarde, até o outro dia” (Cruz, 1998, p. 75). Ela fazia longas tiras com tecidos velhos para tecer no dia seguinte. “Atualmente teço das sete às onze horas da manhã, teço porque tenho vontade de trabalhar, e isso acalma minha vontade” (p. 75).

O universo desses artesãos não vai muito além do de suas oficinas. A ideia era encontrar certo primitivismo de viver e trabalhar que oferecesse um campo de pesquisa. Queria encontrar indivíduos cujo psiquismo tivesse acesso às imagens primeiras presentes neles, fornecida pela própria natureza e em seu entorno. Já atraída pelas ideias de Bachelard e considerando que o psiquismo humano formula-se primitivamente em imagens, pretendia ir em busca de captar o pré-reflexivo, nas palavras de Bachelard, encontrar metáforas reais. Com isso quero dizer ultrapassar as metáforas imediatas, para encontrar um pensamento autônomo. As metáforas fáceis, segundo ele, correm o risco de se completar no próprio reino da imagem sem considerar a experiência, em uma espécie de racionalização formal, de uma cristalização sem raízes.

Encontrei com os artesãos uma forma de viver e pensar guiada por sua capacidade forte de imaginar, de devanear em torno da matéria-prima e dos elementos que a compõe. Nesse passo, os valores sociais vão ficando progressivamente de menor valia em nome do desejo de algo maior, preexistente. Esse preexistente é aqui compreendido como a imagem do primeiro artesão daquela matéria-prima, ou a própria matéria-prima em estado puro que com ele se confunde. Através de sua capacidade de imaginar, o artesão sente-se como herdeiro de uma tradição que lhe dá existência.

Percebi que cada detalhe dos rituais de sua arte serve para, a um só tempo, fazer aparecer o objeto pronto e atualizar um mito de transformação e criação. O fazer artesanal, assim compreendido, por um lado carrega em si um acúmulo de conhecimentos técnicos necessários à sua concretização, por outro, está firmemente enraizado em um universo dos símbolos que mobilizam o psiquismo humano em busca de desenvolvimento e realização.

 

A poética dos quatro elementos

A poética da imaginação material é bem explicada nos termos usados por Peçanha (1985), uma liberação do espírito do peso do passado com uma consequente abertura sincronizada para o futuro e para a companhia dos quatro grandes reinos da natureza, representados nos quatro elementos água, fogo, terra e ar. Os alquimistas pensavam na combinação dos quatro elementos e de suas propriedades, a saber, umidade, secura, dureza, maciez, doçura, amargor etc., como dando origem, em suas combinações, a todos os corpos e matérias existentes. Identifiquei nos artesãos que encontrei esse mesmo tipo de imaginação autônoma. Eles são como que guiados por uma vontade que neles se desenvolve e à qual observam, através de sensações físicas, sentidas e imaginadas.

Daí a fecundidade dos elementos em despertar a imaginação humana evocando, com suas propriedades, sensações e estados de humor, mobilizando um devaneio3. Assim temos o exemplo nas palavras de Cleófas, grande ceramista e parteiro: “O barro é maravilhoso quando ele está úmido. Ele é mole, ele é elástico, ele tem uma beleza. Ele quando é úmido! Você pode reparar. Você tem uma peça úmida, você pega, ela é mole, parece que ela está viva! Mas quando ela seca (disse apontando)... Ela é seca e crua, ela parece morta, ela é apagada, ela não tem vida, você entendeu?” (Cruz, 2001, p. 172). É verdade que na comoção com que ele falava estava implícito todo o resto, ou seja, precisava se sentir doce e macio como os bebês que a mulher dele gerava, um a cada ano, e que ele pessoalmente colhia de seu ventre, assim como os potes úmidos que ele punha no forno com sua força geradora.

Cleófas amava o barro compreendendo e aceitando seus dinamismos. Esses artesãos utilizam-se, em seu pensar intuitivo, de imagens alquímicas, pois sentem conviver com os elementos que dormem dentro deles na forma de afetos que são despertados através de sua ação sobre a matéria-prima. As propriedades dos elementos promovem nos artesãos sensações muito primitivas que animam uma série de imagens. Essas imagens ganham autonomia e se desdobram no corpo do artesão. Paracelso (1992) relata que tanto o artesão como sua arte são criados do mesmo elemento e que penetrar no fundo de uma arte é chegar à própria natureza. Nesse sentido, o artesão que encontra a matéria-prima que lhe corresponde não existe mais por si, mas sim pelo artesanato que desenvolve.

O artesão a cada obra nova inaugura um novo conhecimento de si e da matéria. Por isso cada peça artesanal é única, pois é fruto de uma experiência única. Quanto a isso, Octavio Paz comenta que “o objeto artesanal nos entra logo pelos sentidos, vivendo em cumplicidade conosco de tal forma que jogá-lo fora é quase como jogar um amigo na rua” (Paz, 1991, p. 50).

O artesão assim compreendido é, portanto, um poeta que pensa com as mãos. Se por um lado ele domina os conhecimentos técnicos e objetivos, operados pela razão, por outro ele se entrega a devaneios em uma zona desconhecida. Neste lugar busca uma experiência nova na antiga arte de trabalhar que ele bem conhece. Para tanto, a função do pensar precisa se recolher com suas memórias para dar lugar a outra função que não se vale da memória, e sim da esperança. O trabalho conhecido e os conhecimentos técnicos dão sustentação material à realização e apoio a seus devaneios.

Bachelard (1977) propõe uma forma de conhecer que põe o homem em contato com a função do irreal, tão importante e necessária quanto do real. Ressalta que o ato de conhecer nunca é ingênuo e linear, pois nosso espírito é velho e carrega todos os nossos preconceitos que filtram a realidade na forma que esta se apresenta. Nesse passo, o possível rejuvenescimento que o ato de conhecer proporciona é aceitar a transformação brusca que contradiz um conhecimento anterior. Isso se dá através do devaneio que introduz, pela descontinuidade no tempo, estados mentais anteriores, ainda da infância que brinca ou do alquimista que “imprime em seus objetos seus dons e suas imagens” Bachelard (1983, p. 51). Essa forma de conhecer se dá através da descontinuidade da imaginação. É o conhecimento anagógico. Este modo de conhecimento pode ser facilmente compreendido se pensarmos que, diz esse autor, conhecemos a queda para baixo e imaginamos o impulso para o alto.

 

Um antigo método de conhecer a irrealidade

O termo anagógico foi usado na Antiguidade por Dionísio Areopagita para descrever um método de conhecer que alcançasse revelações que o raciocínio humano puro não pode alcançar. Com o uso dessa função, Deus pode ser encontrado na natureza e os homens não precisam de mediação alguma para contatá-lo. Com as revelações desse filósofo, muitos heréticos como os Cátaros, Beguines, Albigenses e outros foram para a fogueira, pois dispensaram a mediação oferecida pelos padres. Esse ato de conhecer compreende uma entrega ao momento presente, um estado nascente em que todo o saber anterior é dispensável.

Felício comenta que não se trata de eliminar a função do real, mas de “estabelecer um equilíbrio fecundo a fim de que se chegue a uma ontogênese da imaginação” (Felício, 1994, p. 3). Assim Cleófas descreve sua descoberta de uma nova ferramenta: “Quando eu peguei o ferrinho... Que eu parei... Por curiosidade.... Surgiu uma facilidade no trabalho que me possibilitou fazer e eu fiz, aos pouquinhos, sabe? Um sistema que eu não tinha pensado... De repente surgiu...”. Nesse “de repente surgiu” está uma lacuna em que o pensamento não pode penetrar. Vi nessa passagem a anagogia acontecer. Trata-se de uma poética do fazer que se unifica pela ação de um complexo do artesão. Bachelard diz que “se o complexo falta, a obra, desligada de suas raízes, deixa de se comunicar com o inconsciente” (Bachelard, 1989, p. 24), e assim perde-se o sentido e o fio da imaginação é cortado.

Nessa forma anagógica o conhecer se dá através de uma revelação. Essa revelação é resultante do encontro com o objeto, de modo que a subjetividade do conhecedor reage com a do objeto. Tanto o sujeito do conhecimento como seu objeto mudam de nível de realidade para um universo de símbolos. Freud (1900/1972, p. 559) usa o termo anagógico para designar uma “suprainterpretação” de alguns sonhos raros que revelam pensamentos de profunda importância, depois o retoma ao se referir a certa classe de fantasias muito primitivas, como as de renascimento.

Para realizar sua obra, e estabelecer-se no conhecimento anagógico, o artesão precisa acalmar suas paixões na forma como ensina o poeta Edgar Quinet (1989, p. 184), dizendo que, quando precisa aplacar um mar em fúria, contém sua própria cólera. O procedimento é aquele ensinado por Cleófas − “aos pouquinhos” o indivíduo deixa de se irritar com os elementos, aprende a observá-los. Ele alcança uma zona de calma onde todos os órgãos do seu corpo, em sua imaginação, dão nascimento às regiões cósmicas, lugar onde é possível amaciar as coisas mais duras, adoçar as mais amargas. Recuperar coisas perdidas, despedir- se das que morreram.

Trata-se de conquistar a verdadeira calma do homem que, como ensina Bachelard (1989), é aquela conquistada sobre si mesmo, uma conquista e amaciamento da própria cólera. A calma natural não é a mesma calma igual àquela conquistada. Tudo isso se passa em uma espécie de imaginação movida pelo que Bachelard chama de função do irreal, que movimenta a imaginação material dando origem a todas as formas de poesia, de metáforas reais.

Já o pensar da função do real, da imaginação formal, entra como organizador da experiência. Esse pensar repete o conhecido de diversas formas, mas nada cria. O que a função do real opera é dar forma ou rascunhar algo inefável que já ocorreu, esta função trabalha após o acontecido. Assim fala um artesão que procurava fazer sapatos para sobreviver ao lado de suas experiências com o couro: “mocassim não tinha jeito... Todo mocassim tinha que ser um mocassim... Aquele sapato costurado à mão. Fazia aquilo para vender em loja de calçado...” (Cruz, 2001, p. 129). Ele se sentia empobrecido com a tarefa de impor à matéria uma forma já padronizada, já conhecida. Ele mesmo sofria com a impossibilidade de encontrar vida naquele fazer. Era impossível criar na oficina de mocassins o universo próprio que mobilizasse a função do irreal.

A função do irreal, operado pela anagogia, acontece em um encontro breve em que o objeto-matéria e seu conhecedor-ar-tesão se mesclam e sofrem em suas naturezas o conhecimento que os transforma. Essa função se apresenta de pronto para depois desaparecer, ela é composta de formas simbólicas, mutáveis como Nereu, e cuja substância não pode ser alcançada diretamente. A ideia do método anagógico é de que a imagem ou símbolo é o rascunho do que está oculto. O segredo da revelação está na própria imagem, que só pode ser desvendada pela purificação das paixões, dos desejos e das memórias da vida comum. O método anagógico compreende uma luta com a matéria-prima dentro do próprio artesão, em que amor e ódio se misturam e a obra aparece na medida em que o ódio vai sendo amaciado pelo trabalho com a matéria.

Trata-se, portanto, de uma luta com a matéria-prima, representada pela matéria a ser trabalhada e pelo próprio artesão, pois, para se fazer conhecer através da realização da obra, a matéria precisa que alguém de igual força e sabedoria lhe oponha resistência. Parte do aprendizado do ser artesão, na forma como encontrei, faz parte do que era necessário para ser alquimista; cada trabalho tinha o caráter de uma iniciação que podemos chamar de moral, uma purificação do artesão e da matéria-prima. A cada obra nova é preciso voltar a um estado nascente, nas palavras de Bachelard, “um estado de vigor psíquico ao momento próprio em que a resposta se desprende do problema” (1983, p. 41).

Compreendi na experiência que a imaginação material do artesão se desenvolve na esperança que ele tem de que, tratando sua matéria-prima com amor, ela se fará conhecer no encontro, ela se abrirá para esse encontro. O amor, representado na paciência e na aceitação com que se dedica ao trabalho, é como um Alkahest4, ou solvente universal dos alquimistas, que devolve cada coisa a sua própria substância primeira a fim de conhecer-lhe a intimidade. Nesse processo, limpa também o homem de suas paixões, acalma seu pensar, torna-o capaz de, por alguns instantes, transcender os sentidos externos e alcançar a imaginação material livre das memórias e fixações da história pessoal.

Servindo à matéria-prima com carinho, atendendo a suas necessidades, seu pedido de tomar essa ou aquela forma, no entender do artesão, irá forçar uma comunicação entre ele e ela de modo que algo lhe será revelado.

O artesão é um poeta que, com as mãos, desperta na matéria seu próprio desejo. Vi em Bachelard (1989, p. 21) que “o homem é uma criação do desejo e não da necessidade”, pois o homem descobre seu espírito mais na alegria do que no trabalho, e pude presenciar no trabalho do artesão o tanto de alegria que aquele fazer tão singelo e detalhado lhe proporciona. A riqueza está naquilo que vai sendo imaginado. Tal riqueza e felicidade são capazes de mobilizar até os bebês.

Durante a experiência recente, ao observar um bebê5, vi-me novamente mergulhada nas sensações promovidas pelo convívio com os artesãos. Percebi que o bebê que eu observava ficava completamente parado, sentindo o vento no rosto ou olhando o balançar da folhagem. Certa vez, observei-o tentando apanhar com a ponta dos dedos um raio de sol na parede branca. Lembrei-me das palavras de Bachelard (1988), dizendo que a infância não é uma coisa que morre em nós e seca cumprindo o seu ciclo. Não é uma lembrança, é o mais rico dos tesouros e continua a nos enriquecer sem que o saibamos. Abandonar completamente a criança em si é morrer.

Ali estava eu de novo na oficina do ourives Juarez, vendo-o apanhar, com a ajuda dos olhos, o reflexo do ouro de um brinco na medida em que o deixava se movimentar com mais leveza. Certo dia, ele me chamou e nos aproximamos da janela. Lá ele fez o brinco balançar na minha frente, fez ajustes no engaste da peça, voltou a balançá-lo, uma luz suave se desprendeu do ouro, absorvendo um raio de sol. Ele me olhou com os olhos estrábicos e um sorriso indescritível insinuou-se em seus lábios. Era desnecessário falar, pois ele estava satisfeito, muito satisfeito. A peça que acabara de fazer era capaz de absorver completamente um raio de sol.

Fiquei profundamente tocada e agradecida por ele ter me deixado presenciar algo que sabia ser de sua intimidade, um segredo impronunciável. Juarez é um renomado mestre artesão e quase não falava. Meu convívio com ele foi quase unicamente de observá-lo, troca de olhares, caretas, sorrisos e sinais. Percebi que para ele as palavras eram capazes de introduzir algo diferente em sua oficina. Costumava envesgar os olhos para examinar os objetos e a pôr os dedos nos lábios.

Para esses artesãos, o trabalho ocupa o centro de suas vidas. Parecia que a relação com o trabalho ia além da necessidade de subsistência material. Muitos deles viviam em condições precárias, não tinham sequer luz elétrica. Por vezes se dedicavam ao artesanato nos momentos de folga, até mesmo durante a noite, e tinham outra atividade paralela para se sustentar. A tecelã Margarida explica a situação assim: “O tear é bonito, porque é até que... eu... ele é que me deu o modo deu viver!... Cê entendeu? Então tem que ter amor nele, uma coisa fina...” (Cruz, 1998, p. 64). A tia-avó dessa artesã tecia para acalmar sua vontade, e a mãe dessa tia-avó teceu até ficar cega.

Wright Mills (1976) explica que o ritmo do trabalho artesanal obedece muito mais aos ritmos biológicos do artesão que às exigências de produção. Constatei que tanto doenças físicas como estados de humor eram impedimentos para dar prosseguimento a alguma obra, ou de algum modo eram aceitos como interferência no resultado. Também era levada em consideração a forma como a matéria-prima poderia reagir naquele dia, seja por causa das condições atmosféricas, seja pela fase da lua, da temperatura do solo, ou porque naquele dia estava difícil entender as exigências da matéria, como se ela e o artesão estivessem brigados. Era difícil precisar onde estava a alteração de humor.

Lembro que, no início da coleta das entrevistas, pensava que aquelas pessoas, pelo isolamento em que viviam em suas oficinas, eram quase todas mentalmente perturbadas. Um mundo fantástico, que permeava a realidade concreta das oficinas, era ali considerado na mesma medida dos fatos do cotidiano. Apenas entre crianças com seus brinquedos, entre os escritos de alquimistas e entre esses artesãos observei alguém tratar uma matéria aparentemente inerte como substância viva. Ouvi, certa vez, de um marceneiro a seguinte afirmativa: “O som é bom demais que sai do jacarandá... Pode tocar rádio, passar avião, qualquer barulho, não rouba o som do jacarandá” (Cruz, 2001, p. 219). Olhei para Mestre Magalhães e vi na minha frente, na penumbra, uma velha árvore de jacarandá, segurando um pedaço de si mesma perto do ouvido. Sob a luz amarelada de sua oficina, era difícil discriminar seu braço de pele escura e dedos nodosos e o pedaço de madeira que ele segurava. Compreendi assim que as coisas nos devolvem o olhar e que, quando elas nos parecem indiferentes, é porque as olhamos com olhar indiferente.

 

O encontro com a imaginação material

Bachelard (1988, p. 120) elucida o movimento da imaginação dizendo que, para encontrá-la, é preciso reencontrar “a criança que fomos para além da zona da história da família, a zona dos pesares, até alcançarmos uma infância anônima, puro foco de vida”. Ali a mãe e a criança estão livres, ambos incólumes ao tempo, o pai também, e os elementos são outros. Trata-se de um corte epistemológico no próprio ato de conhecer.

Assim fala Lusa de seu trabalho enraizado na saudade de infância que não consegue exorcizar: “São ruínas da minha infância... O passado... trabalho com a recordação, com a saudade...” (Cruz, 2001, p. 189). Em outro momento ela fala de sua tentativa de ultrapassar a infância perdida para reencontrar-se com a cerâmica: “Já fui ceramista um dia... não sei o que teria sido da minha vida sem a cerâmica, seria um profundo vazio...” (p. 185). Esta ceramista estudou cerâmica na Grécia e, apesar de dominar muito bem a técnica da cerâmica artística, o complexo do elemento a dominou, aprisionando-a na saudade da fazenda da família, da terra abandonada, da infância perdida. Assim ela fala de sua paixão: “Eu voltava para casa com o vestido amarrotado todo sujo. Abandonei as bonecas, meus brinquedos... Queria estar com a argila mole o tempo todo, envolver-me nela, brincar com ela... Não conseguia resistir... Os adultos distraíam, eu ia para a beira do rio” (p. 181).

Com o rolo compressor das exigências sociais, a criança criadora, à medida que se torna adulta, vai se desligando do universo simbólico que alimenta sua criação para conectar-se a um simulacro do símbolo sem nenhum poder de atração, pois é forma vazia, pobre repetição de padrões sociais previamente definidos. Assim fala Cleófas: “O artista é uma criança grande, porque uma criança sempre é artista, sempre ele cria... Quando ele cresce, ele se firma conceitos que a sociedade oferece a ele, ele se bitola naquilo, e aí ele se impede de criar” (Cruz, 2001, p. 167).

Os artesãos são considerados poetas porque a poesia não se insere na temporalidade. O espaço da oficina, embora esteja inserido na realidade, alguns fenômenos que ali ocorrem são atravessados por impressões absurdas próprias da experiência onírica. Isso em parte é promovido pelo espaço fechado e o clima psicológico de segredo. Tive algumas experiências dentro das oficinas de fragmentação temporal e dinamização de matérias que antes pareciam inertes. Assim foi minha primeira visita ao ceramista Cleófas:

Um portão de garagem, já fechado, vedava totalmente a comunicação do espaço de trabalho com a rua. Entramos pela lateral e a penumbra deixava apenas entrever o contorno de vasos e mais vasos, dos mais variados tamanhos, alguns da altura e diâmetro de Cleófas, cujo corpo dobrava de tamanho na atmosfera mal iluminada.
Atravessar aquela penumbra para alcançar, no fim do galpão, o espaço do forno, em um pequeno quintal que recebia pela fresta da chaminé a luz do dia, obrigava-me a encostar o corpo, vez por outra, nos vasos úmidos. Fui acostumando os olhos à penumbra e vendo que as crianças seguiam na frente, abraçando os vasos. Suas roupas e pele, parcialmente encobertas pela argila, faziam com que as perdesse de vista a todo instante, confundindo-as com os vasos.
Vez por outra, aqui e ali, era surpreendida com o que parecia ser um vaso a mover-se repentinamente com rapidez à frente. De vez em quando perdia Cleófas de vista e o chamava. Ele respondia adiante, balançando os braços enormes, com uma voz cujo eco o ambiente fechado tornava cavernosa: “Venha por aqui!”. Surpresa, descobria que o que parecia ser um vaso grande, sob a atmosfera rubra da penumbra, era Cleófas que havia parado por alguns instantes.
À medida que nos aproximávamos do forno, o frescor úmido dos potes recém-moldados ia ficando morno, e o contato involuntário da pele com aqueles vasos de umidade morna dava a ilusão de sentir em torno de mim mãos humanas. (Cruz, 2001, p. 79)

O artesão, nessa temporalidade de sonho, para ali habitar e trabalhar contrai seu espírito, despojando-o de seus prazeres imediatos. Ele não pode perder de vista a matéria-prima que ali se transforma. Embora enraizados em uma tradição, a memória do passado pessoal do artesão perde a força em seu desenvolvimento, dando lugar ao enraizamento em uma unidade mítica que brotou de um primeiro artesão ideal daquela matéria primeira, inseridos, tanto ele como aquela matéria, em uma descontinuidade temporal em que habitam os quatro elementos e suas combinações. Apenas o primeiro artesão mítico tem a força necessária para dinamizar os elementos e, por isso, quanto mais o artesão dele se aproxima, mais se sente completo e satisfeito com suas realizações, tornando-se capaz de apanhar uma ressonância do trabalho do primeiro artesão. Assim fala Cleófas dos seus primeiros sonhos com a cerâmica: “Fazer uma peça para mim era um sonho... Era algo assim... Uma coisa muito alta que eu poderia conseguir... Mas eu não sabia nem como...” (Cruz, 2001, p. 215). Adiante nas primeiras tentativas, comenta: “A primeira peça que fiz, não ficava em pé de jeito nenhum, fazia, caía, fazia, caía... Eu tenho até umas fotos aí... Eram feinhos, sabe?... Mas foi uma experiência tremenda” (p. 175).

No decorrer do enraizamento de Cleófas na sua arte, fui percebendo que faltava para ele o pai, e assim sua compreensão da cerâmica não se completava; o fogo ausente ficava a queimá-lo até que, às ocultas, ele observa outro artesão realizando secretamente a queima das peças, e nessa sua descrição lembrei-me das palavras de Bachelard (1989, p. 31): “O amor não é mais do que um fogo que se transmite. O fogo é um amor que se descobre”. Isso aliviou o medo do artesão e ele pôde se aproximar do fogo e selar uma aliança com o passado mítico de sua arte e da espiritualidade humana.

Os desdobramentos de sua criação transformaram completamente a vida, materialmente árida e pobre. Sua vasta obra compreende a criação de vasos enormes que são despachados para vários estados do país, todos eles decorados com símbolos da cristandade primitiva e cuja textura lembra a pele humana. Esse artesão criou para si uma nova religião, composta de fragmentos de textos que ele retira de livros religiosos, de sonhos e de experiências na oficina, que recebe como revelações. Ele busca uma espécie de unidade em que acredita habitar, em seu trabalho na oficina e na forma de viver; na Terra Prometida, ajuda a Mãe-Terra a aperfeiçoar sua obra. Sua obra é realizada por ele ao lado de seus (até o ano em que o acompanhei) 17 filhos, cujos partos, com a exceção do primeiro, foram realizados por ele. Além disso, boa parte da comunidade em que mora e trabalha busca nele aconselhamento para as diversas decisões e problemáticas da vida diária.

Na forma descrita por Cleófas e por outros, compreendi a cristalização de um complexo como algo que vem se constituindo desde o nascimento, ou até antes. Li o seguinte de um entalhador de pedras:

O trabalho é algo que se aprende, mas a arte vem com o sangue da parentela e além, embora ninguém possa ter certeza de onde ou quando, pois transformar o granito em obra é necessário saber arrancá-lo das entranhas da terra, trazê-lo para casa e dar-lhe forma, e isso é aquisição de gerações. Começa-se no berço a ouvir os cinzéis toc, toc... até adquirir o jeito da mão. (Pacheco, 1991, p. 138)

 

Os complexos do artesão

Ao falar dos humores, Breuer (Breuer & Freud, 1893/1974, p. 278) propõe que esses fenômenos provêm de “ideias que existem e estão atuantes abaixo do limiar da consciência”. E que toda atividade intuitiva é dirigida por essas ideias. Continuando em seus comentários sobre as variações de humor nos ataques histéricos, diz que “muitos pacientes inteligentes admitem que seu ego bem lúcido contemplava com curiosidade e surpresa todas as coisas loucas que haviam feito e dito...”. Diz Breuer que, embora conscientes dessas coisas, esses pacientes não poderiam evitar o ataque (p. 284).

De acordo com Freud (1914/1974, p. 41), a Teoria dos Complexos, criada por Jung, não pode ser incorporada à teoria psicanalítica, mas que o termo “complexo” serve à psicanálise “para resumir um estado psicológico de maneira descritiva”. Freud fala de um “complexo de ideias” (Breuer & Freud, 1893/1974, p. 113) que, presente na consciência, torna compulsória uma tendência para seguir uma linha de pensamentos e de ações.

A ideia de complexo vem ao encontro de uma estrutura de ideias cujo núcleo, habitado por um forte conteúdo afetivo, atrai para si uma série de experiências emocionais, organizando-as e dando-lhes um sentido sem que a vontade e a consciência do indivíduo participem diretamente. Os complexos são, portanto, como resíduos de um estágio primitivo da consciência do homem que se formou pela intensificação de um afeto. O termo “primitivo” se aplica mais ao sentido de uma consciência primeira que de pouco desenvolvida. No lugar do complexo está enterrada uma qualidade humana preciosa à espera de ser descoberta e desenvolvida. O complexo de um elemento nos dá um devaneio que “nos abriga do mundo” (Bachelard, 1988, p. 97). Seguir esse devaneio é promover o conhecimento anagógico do elemento, libertando o sonhador do mundo que guia sua atenção. Esse devaneio devolve o sonhador a uma serena solidão onde reina o repouso concreto, longe dos desejos da razão, pois entre imaginação e razão há uma “polaridade de exclusão” (p. 52).

Para um artesão, estar em contato com um complexo depende da capacidade e da habilidade de estar próximo o suficiente para se alimentar do elemento que vai guiar sua imaginação, e distante o suficiente para não ser eclipsado por ele na forma de uma possessão. Assisti algumas vezes a situações em que o artesão estava vivamente possesso pelas reações físicas da matéria- -prima, que certamente o absorviam completamente. Assim foi no meu encontro com Donizeti, ferreiro e habilidoso fabricante de sinos. Só era possível conversar com ele nas primeiras horas da manhã, depois disso ele ia ficando de muito mau humor.

Certa vez insisti em entrar na oficina, apesar dos avisos de seus irmãos de que era perigoso (eles pareciam ter medo de seu caráter irascível). A oficina estava quase que completamente às escuras, iluminada apenas por uma fornalha ardente. Ao lado da fornalha divisava um homem de dorso largo e nu com algo como uma pá na mão, remexendo um amálgama rubro. Tentei falar e ele me olhou com olhos esbugalhados que chispavam, e senti um temor que não sabia se vinha do intenso calor das matérias ou daquele homem aparentemente enlouquecido.

A imagem de Donizeti, assim representada, contrastava com a doçura do indivíduo radiante e capaz de um humor irônico que encontrara às sete horas da manhã. Ele ria dos padres que lhe encomendavam sinos sem entender o que estavam fazendo. Segundo ele, os sinos de cuja têmpera resulta um som em Dó, induz a sentimentos de tristeza e saudade, só servem para anunciar velórios. Para orar tem de resultar em Sol, esse é um convite real à oração. Segundo ele, os padres querem sinos baratos e, desprezando a importância da têmpera, nem percebem quando o sino toca “no tom do latido de cachorro”.

Para conseguir a proximidade dos elementos sem risco de ficar contaminado, é preciso purificar os elementos e, em um mesmo movimento, remover as impurezas ocultas de si. Como se pode criar se as grandes intuições provêm da sabedoria divina e, como ensina Bachelard (1983, p. 189), “esta não pode habitar na imundice?”. Como os alquimistas, os artesãos nos dão lições de moral primitiva, cujo alcance depende da interpretação anagógica. O ourives Cezar Carneiro falava constantemente da necessidade de purificar os metais antes de cada trabalho:

Vou te mostrar como é o começo da joia... é um maçarico. O cadinho de fundição... aí vai a novecentos graus... mil graus... Oh... Aumenta a chama, o fogo sai com violência, assim você funde o ouro, ele fica como uma gema de ovo. Depois você põe cobre e prata e bórax para ajudar na fusão dos elementos... Cê entendeu? Se o ouro ainda preserva impureza, não adianta...”, diz ele com olhos tristes, “ele fica quebradiço... não é confeccionável. (Cruz, 2001, p. 204)

Sinto em seus comentários que esse processo se refere à arte do ofício e à natureza humana.

Tanto o alquimista como o artesão precisam, para realizar sua obra, profetizar sobre a matéria. Assim fala Mestre Magalhães, narrando como havia dentro dele um violão pronto que montara a partir das observações da infância. Sem conhecer nada da técnica, ele constrói seu primeiro violão, o mais perfeito que o dono da oficina já vira:

Demorei vinte dias... Fui fazendo, imaginando a passagem do som pelas cordas. Antes, quando tinha tempo, pegava restos de madeira e improvisava violão. Aquele era de verdade. A gente percebe o som que vai sair. Não sei como sabia, mas sabia que tinha que ter leveza, tinha que ser maleável... O técnico falou: ‘O violão dele ficou muitoo bão!’. Ganhei assim o emprego... (Cruz, 2001, p. 215)

Quando um artesão se torna mestre, dominando todos os artifícios de sua arte, corre o risco de matar sua imaginação pelo orgulho de seu saber. Seu espírito fica velho se ele não conserva a penumbra em que a matéria-prima viva se movimenta. Ele perdeu a esperança de realizar uma boa obra e só conserva a memória orgulhosa e pobre de tudo o que acumulou. Assim falava Cleófas de outro ceramista. Dito sabia tudo sobre os segredos da queima, mas não ensinava. Dito era uma pessoa raivosa, não gostava de companhia. Apesar de ceramista, seu companheiro era o álcool, seu coração estava cheio de rancor: “um dia encontrei ele numa situação terrível... tava passando fome...” (Cruz, 2001, p. 174). O barro para Dito estava perdendo a vida, secou, e ele não sabia como revivê-lo.

 

Conclusões

Através dessa pesquisa compreendi que a relação que o artesão estabelece com sua matéria-prima é algo que permeia todos os aspectos de sua existência. A escolha da atividade artesanal parece que se impõe à pessoa do artesão, não por uma escolha consciente, mas por uma espécie de missão que adere a um desejo seu. Pude ver que eles procuram o melhor representante, fora de si, dessa matéria, o mais próximo possível da natureza, na forma em que pode ser encontrada sem ter sido aproveitada anteriormente ou sofrido muitos processos de tratamento alheios à sua oficina.

No próprio processo de limpeza da matéria, que a maioria deles gosta de pessoalmente se ocupar, se estabelece um nexo contínuo entre aquele artesão e aquela matéria. De certa forma, ambos passam pelo mesmo processo. Como dizia a ceramista Manuela:

O barro é sovado pela maromba. Aí ele descansava. O ideal era ele descansar, pelo menos uns dois dias... Ele achava que ia ajudar... (eu: Ele quem?). É que a gente chamava um oleiro de fora... Ele chegava sexta-feira e às vezes já queria trabalhar à noite mesmo”. (Cruz, 2001, p. 224)

Nas entrevistas com essa ceramista, nunca fiquei sabendo quando ela falava do barroou do oleiro, e se o oleiro de fato existia o tempo todo ou se era ela mesma. Ambos pareciam ocupar o mesmo lugar em seu coração e operar sobre ela muitas proezas, dada a emoção que a tomava ao falar deles.

Percebi que o resultado do trabalho do artesão depende de um equilíbrio difícil entre o aproximar-se da matéria-prima o suficiente para gerar imagens, desdobramentos e prazer no trabalho, e ficar afastado o suficiente para não se deixar possuir pelos complexos dos elementos que se movimentavam nele e na matéria. Tal equilíbrio lhe acalma os sentimentos. Essa calma é fundamental para concentrar-se na dupla tarefa de construir o objeto com o uso de suas ferramentas e de desconstruí-lo dentro de si em sua imaginação. Como exemplo, o depoimento da tecelã Margarida, que dizia ser capaz de colher o algodão no pé e me entregar o vestido pronto até as tintas. Isso era uma espécie de poder que a fazia sentir-se como escolhida pela natureza, com a missão de ajudá-la no amadurecimento dos elementos e, em troca, receber grandes revelações que se desdobravam em sua vida marcada por transformações inesperadas.

A possibilidade de movimentar-se no devaneio, para a frente e para trás, na construção e na desconstrução de um objeto, dá ao artesão um duplo poético que equivale, na mitologia, a possuir asas que o conduzem em quase todas as direções dentro dos limites dados por sua matéria-prima.

Esses artesãos encontram grande alento em suas oficinas perseguindo imagens que se organizam em torno de seu fazer. Sentem-se ali reconfortados de suas dores e angústias psíquicas, pois encontram imagens novas para amores da infância que abrigam, aconchegam e alimentam. Como disse Marie Bonaparte (1989, p. 120) “amamos nas imagens o resultado de nossos amores de infância, desses amores que se dirigiram no princípio à criatura-abrigo, à criatura-nutrição que foi a mãe ou a ama de leite”, ou seja, amar uma imagem é encontrar, sem o saber, uma metáfora nova para um amor antigo.

Acompanhar a fala dos artesãos é como escutar poesia. Assim, tanto as coisas objetivas como as fantásticas narradas por eles, e o aspecto de seus objetos e oficinas, levam o observador a considerá- los matéria de devaneio, metáforas que os conduzem a algum lugar. Esse lugar é o cenário do encontro fugidio consigo mesmo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Thaïs Wense de Mendonça Cruz
Rua Estela Sezefreda, 43
05415-070 – São Paulo – SP
tel.: 11 3061-3802
E-mail: thaiswense@gmail.com

Recebido: 10/06/2010
Aceito: 20/06/2010

 

 

* Psicóloga pela Universidade Federal da Bahia. Mestra e doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Membro filiado da SBPSP.
1 Este trabalho se fundamenta em uma experiência de quase dez anos de convívio e observação de artesãos, de diversas matérias-primas, e de leituras sobre a imaginação dos quatro elementos da obra de Gaston Bachelard, alquimia e a arte artesanal em si. Essa pesquisa teve início em 1990 com o trabalho com o Prof. Dr. João Augusto Frayze-Pereira, dando início ao curso de mestrado, e terminou em 2000 quando apresentei a tese de doutorado cujo título é À escuta do fazer: a imaginação simbólica entre o artesão e a matéria-prima.
2 Ernest Fisher, em seu livro A necessidade da arte (1981), comenta que o ser pré-humano que se desenvolveu e se tornou humano só foi capaz de tal desenvolvimento porque possuía um órgão especial, que é a mão. Para ele, este órgão é o iniciador da humanização.
3 Devaneio é compreendido, nas palavras de Bachelard, como mnemotécnica da imaginação. A ideia é retomar contato com o que não aconteceu (porque o destino do homem não soube utilizar), e não com uma técnica de recuperação da memória dos fatos vividos.
4 Os alquimistas meditavam sobre como poderiam abrir os objetos para, na intimidade deles, captar a substância primeira. Daí surgiu a ideia de um solvente universal capaz de abrir suavemente o que está fechado.
5 Curso de observação de bebês sob a supervisão da Profa. Dra. Marisa Pelella Mélega, na SBPSP.

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