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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo Dec. 2010

 

CARTAS DO LEITOR

 

 

Caro Luiz

Li com bastante interesse seu artigo sobre o “endereço desconhecido”. Como sempre, a leitura foi envolvente, a urdidura da trama nos leva a acompanhar o engenho da composição, deixando-nos na expectativa de algum desenlace surpreendente. So far, so good...

Deparei-me, no entanto, com dois erros no texto que, normalmente, poderiam ser tomados como simples enganos, mas que, no contexto da narrativa, talvez tivessem “endereço conhecido”.

Quando você sugere que a parte-Martin-do-self tinha se tornado “um ventrículo que dava voz ao Barão”, fiquei me indagando por que seria que a câmara propulsora cardíaca tinha ocupado o lugar da arte da ventriloquia? Seria porque os efeitos desta última implicam mera repetição estéril sem destinação definida (ou seja, com endereço desconhecido), ou seria porque o coração sempre intui o endereço de suas mensagens?

Você teve a generosidade (ou, talvez, a coragem) de nos apresentar um belo sonho acompanhado de uma interpretação de seu analista, sugerindo que o seu “Foi um comportamento covarde”, Isto o deixou estupefato (sic), impondo-lhe, ao longo do tempo, “a necessidade de sua permanente reelaboração”, categoria na qual o presente artigo possivelmente se inclua.

Seguindo seu depoimento, uma vez tendo se sentido torturado por aquele pai/analista, em nome de uma ética que não se acumplicia com o mal, você, como Heinrich, estaria autorizado a apontar sua arma contra ele. Você interrompe aí seu relato confessional, deixando a nós, leitores, a incumbência de imaginarmos o final desta história.

No último parágrafo, no entanto, deparei-me com um lapso que me deixou “estupefato”. há a menção à morte de Meltzer ao redor de 1955. Ora, sabemos que Meltzer morreu em 2004, e, portanto, no texto, sua morte foi antecipada cerca de 50 anos. Supondo-se que, por deslocamento, ele estivesse representando o seu analista, será que esta eliminação precoce não forneceria aos leitores uma pista de sua vivência em relação ao “self blindado” com o qual você se identificara projetivamente?

Em seu texto famoso sobre os quatro sentidos da narrativa, Dante nos adverte que o sentido alegórico expressa “uma verdade, oculta sob um belo engano”...

Um grande abraço do colega e amigo,

Luiz Carlos Junqueira Filho

 

 

Caro Junqueira

Muito obrigado pelo escrutínio que você fez de meu artigo. Como sabemos, os psicanalistas não cometem erros, mas lapsos. Devemos reconhecê-los, imaginar sua função, mas é também interessante deixá-los indecifrados.

Assim, conservam um pouco de sua poesia e mistério.

Por outro lado, imaginei que você associaria o meu relato ao final surpreendente de um filme que você conhece bem: O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante. Creio de Georgina estava, sim, autorizada a atirar no ladrão-torturador Albert Spica, canibal de alma.

Um abraço amigo do Luiz

 

 

Luiz Carlos Junqueira Filho
Rua Helena, 170/123
04552-050 − São Paulo − SP
tel.: 11 3842-3060
E-mail: mr.junqueira@uol.com.br

Luiz Meyer
Rua Santa Cristina, 17
01443-020 − São Paulo − SP
tel.: 11 3062-6298
E-mail: luimeyer@uol.com.br

 

 

IDE 49 O SONHO E A PELE

 

Santos, 23 de maio de 2010

 

Prezado Bernardo

Acompanho seus escritos e vejo, na ide, que você continua − que bom! − a se interessar pelo assunto tantas vezes deixado de lado, que é a relação ser humano/mundo. Seja falando da solidão, da cidade ou da compulsão. Continua a se perguntar: 1) como ocorre e 2) por que nós, psicanalistas, não nos perguntamos mais sobre isso.

Alguém contestará: claro que nós nos perguntamos sobre isso e estabelecemos hipóteses. Entretanto, você disse em outro trabalho (2003) , temos tido dificuldade em nossa elaboração de teorias “sem cair nas teorias ultrapassadas que opõem psique e mundo, ora vendo o segundo como projeção do primeiro, ora vendo o primeiro como determinado exclusivamente pelas forças do segundo”.

Lembrando o que nos diz Norbert Elias (1994) , um dos autores fora da psicanálise com os quais você dialoga muito bem, faltam-nos instrumentos conceituais que possibilitem que adentremos com maior precisão no terreno daquilo que constitui o humano: a inter-relação entre aquilo que nos parece ser do indivíduo e aquilo que nos parece ser da sociedade.

Outro dia vi na TV uma ovelha criada por, e juntamente com, três cachorros. A dona dos animais apontou a semelhança do comportamento da ovelha com o dos cachorros, e concluiu que só faltava latir. Obviamente isso não acontecerá. Mesmo criada como cachorro, ela manterá, por uma programação natural, sua condição de ovelha, não latirá, balirá.

Aos humanos foi destinada outra história: nossa reconhecida situação inicial de desamparo nos torna totalmente dependentes do entorno, um desamparo de tal ordem que não nos tornaríamos humanos se alguém não nos reconhecesse como tal e aceitasse em nos passar os códigos humanos. Só falaremos como humanos se alguém nos ensinar. Nosso desamparo é completo, identitário.

Você apresenta um elenco dos mais frequentes sintomas do mal-estar na atualidade, não se deixando seduzir pelos apocalípticos do momento, nem se paralisar com os que temem os novos caminhos abertos, continuando a se interessar por “uma ampliação da nossa concepção de inconsciente na direção de uma instância que não se confunda com a pura interioridade”.

 

Obrigada!

Maria José
tel.: 13 3239-8928

 

 

São Paulo, 1º de outubro de 2010

 

Prezada Maria José,

Procuro através do texto um leitor imaginário, anônimo, desconhecido; quando o texto encontra o leitor, um novo diálogo se inicia. Diálogo que pode abarcar desde um receptivo acolhimento e identificação a um embate de ideias e estilo, passando por uma variedade de ideias e afetos. Seu generoso gesto de compartilhar parte deste diálogo é um presente para mim que, como autor, lhe agradeço emocionado.

Reconheço na sua carta que compartilhamos de certos interesses e até convicções em torno do que nos constitui como sujeitos no seio de uma cultura, e que, como psicanalistas, não podemos senão conceber nossa condição subjetiva como fruto deste caldeirão cultural ao qual somos lançados desde o nascimento, ou melhor, desde nossa concepção. É impensável uma relação de exterioridade entre o indivíduo e a cultura. Ainda mais uma leitura atenta do texto freudiano deixará aparecer o quanto o fundador de nossa disciplina concebia o trabalho da análise como um trabalho da cultura.

Você lembra, com razão, o desamparo constitucional no qual a cria humana chega ao mundo e que nos torna dependentes do outro. Este outro materno que ao mesmo tempo nos humaniza e erotiza e que, ao introduzir elementos para uma discriminação eu-não eu, quebra a ilusão de fusão onipotente e se constitui em obstáculo para nosso ideal imaginário de plenitude e, de todo o poder, de ser tudo para este outro. O tema da alteridade que recentemente discutimos os psicanalistas latino-americanos no Congresso da FEPAL em Bogotá não deixa de ser um bom articulador para as questões que nos interessam. O filósofo Levinas, considerando a dimensão ética do encontro com este outro, coloca em questão nosso narcisismo ao assinalar que “A relação com outro não é uma relação idílica e de harmoniosa comunhão, nem uma empatia na qual possamos nos colocar no seu lugar: o reconhecemos como semelhante a nós e ao mesmo tempo exterior; a relação com o outro é um Mistério”.

Vislumbramos através dessas palavras a fenda aberta pela alteridade, a trilha que nos conduz do cruzamento, encontro, embate e deslumbramento com o outro, ao desconhecido, o estranho, o mistério. Deste modo, Maria José, penso que este indizível do outro (indivíduo, sociedade) se faz presente e demanda constantemente nosso esforço no contato com a alteridade, com o estrangeiro em nós, na sessão analítica ou quando nos aventuramos no exercício de compreender e agir no mundo em que vivemos.

Sua carta é um estímulo para novos textos!

 

Obrigado,

Bernardo

 

 

Maria José Ferreira Mota
Av. Bernardino de Campos, 562/711
11065-002 − Santos − SP
E-mail: mariajosemota@uol.com.br

Bernardo Tanis
Rua Capote Valente, 432/142
05409-001 − São Paulo − SP
tel.: 11 3062-1855
E-mail: tanis@uol.com.br

 

 

Nossa resposta*:

Alice, que bom ter um interlocutor! Quanto mais, vários. Nesse caso, nós − Heloisa e Mirian, Griffin, Sabine, Nick, a revista ide, e agora, você.

As suas contribuições, as imagens que você trouxe, como a dos “lençóis ao vento” do Tom Zé, vieram enriquecer esse universo plástico de luz e sombra, multidimensional, com explosões de sensorialidade. A presença da dor é inevitável. O impacto estético movimenta níveis profundos e desconhecidos em nós. Esse diálogo fértil nos levou ainda além. Fomos à Espanha encontrar Nick Bantock e, agora, acrescidas de mais essa experiência de sabores, aromas e imagens, voltamos ao diálogo com você.

A psicanálise nos tem possibilitado as aberturas necessárias para viver e procurar expansões diante do Mistério.

 

Muito obrigada,

Heloisa e Mirian

 

 

Heloisa de Moraes Ramos
Rua Sergipe, 401/511
01243-001 − São Paulo − SP
tel.: 11 3257-8682
E-mail: hmramos@uol.com.br

Mirian Malzyner
Rua Purpurina, 155/67
05435-030 − São Paulo − SP
tel.: 11 3815-8115
E-mail: mirian.malzyner@uol.com.br

 

 

* Resposta à carta de Alice Paes de Barros publicada na ide 50.

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