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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo Aug. 2011
ARTIGOS
Pessoa e Freud: "translação" e "sublimação"1
Pessoa and Freud: "displacement" and "sublimation"
Leyla Perrone-Moisés*
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
RESUMO
Este artigo examina o conceito de "translação", explicado por Fernando Pessoa em carta a João Gaspar Simões, e os "métodos" expostos pelo semi-heterônimo Bernardo Soares no Livro do desassossego, à luz dos mecanismos de substituição e recobrimento detectados por Freud no sonho, no devaneio e na rememoração. Seu objetivo é mostrar as semelhanças e diferenças no que se refere ao papel do inconsciente e da consciência na criação poética e no processo de "sublimação", tal como este ocorre na obra pessoana.
Palavras-chave: Poesia, Sublimação, Translação, Heteronímia, Inconsciente, Consciência.
ABSTRACT
This article examines the concept of "displacement", explained by Fernando Pessoa in a letter to João Gaspar Simões, and the "methods" exposed by his half-heteronym Bernardo Soares in the Book of Disquiet, in comparison with the mechanisms of substitution and repression detected by Freud in dreams, day-dreams and memories. It aims at showing similarities and differences regarding the part of unconscious and consciousness in poetic invention and in the process of sublimation as it occurs in Pessoa's work.
Keywords: Poetry, Sublimation, Displacement, Heteronyms, Unconscious, Consciousness.
Em uma carta bem conhecida de 1931, dirigida a João Gaspar Simões (Pessoa, 2007a, pp. 179-187), Pessoa exprimiu sua opinião sobre a teoria de Freud, que inspirava as análises do crítico. A primeira observação que se impõe, e que já tive a ocasião de fazer em uma comunicação anterior (Perrone-Moisés, 2010, pp. 72-78), se refere ao conhecimento compreensivo que ele tinha dessa teoria, apesar de sua declaração, na mesma carta: "Não tenho lido muito de Freud, nem sobre o sistema freudiano e seus derivados".
De fato, na biblioteca pessoal do poeta, a única obra de Freud encontrada foi Un souvenir d'enfance de Léonard de Vinci (Freud, 1910/1927) e nenhuma outra obra de psicanálise. Tudo indica que o conhecimento da psicanálise, revelado por Pessoa, era na verdade um reconhecimento. Diz ele, na mesma carta: "Já antes de ter lido qualquer coisa de ou sobre Freud, já antes, até, de ouvir falar nele, eu tinha pessoalmente chegado à conclusão marcada (1)". Ora, "a conclusão marcada (1)" é o princípio mesmo da psicanálise, isto é, a existência do inconsciente2. Mais adiante, a respeito dos efeitos das características psíquicas no estilo literário, ele repete: "Não precisei de Freud nem ele, que eu saiba, me esclareceria nesse pormenor". Que os poetas sabem mais, e antes, é fato reconhecido por Freud e, depois, por Lacan.
Não vou voltar aqui às considerações acerca do freudismo feitas por Pessoa naquela carta. Selecionarei apenas um ponto desse texto, para confrontá-lo em seguida com um fragmento do Livro do desassossego (Pessoa, 2007b) que pode, ao mesmo tempo, ser lido à luz da psicanálise e esclarecer uma questão levantada mas pouco desenvolvida por Freud: a questão da sublimação.
Na carta a Gaspar Simões, entre os "três elementos importantíssimos na vida da alma, e portanto da interpretação dela", Pessoa destaca: "(3) o que poderei chamar, em linguagem minha, de translação, ou seja, a conversão de certos elementos psíquicos (não só sexuais) em outros, por estorvo ou desvio dos originais, e a possibilidade de determinar a existência de certas qualidades e defeitos por meio dos efeitos aparentemente irrelacionados com elas ou eles".
Detenhamo-nos na palavra "translação". Como observa Pessoa, a palavra é dele, e não de Freud. No Dicionário Houaiss da língua portuguesa, encontramos: "translação 1 ato, processo ou efeito de transladar(-se); ...". E: "transladar 1 transferir (-se) para outro lugar; ... 3 transpor para uma outra língua; ... 5 passar a responsabilidade de (algo) para (outrem); 6 alterar-se, transformar-se; ... 9 dar sentido metafórico a". Qualquer leitor atento da obra de Pessoa verá, de imediato, que essas acepções lhe convêm, principalmente a acepção 5, passar a responsabilidade (de algo) para outro, o que ele designou com o neologismo "outrar-se". Mas nem todas essas acepções correspondem aos sentidos que Freud deu aos termos afins, "deslocamento" (Verschiebung), "recalque" (Verdrändung) e "sublimação" (Sublimierung), de que trataremos mais adiante.
Em Metapsicologia (1915/1940), Freud resume: "A observação nos revela que os destinos das pulsões são os seguintes: a transposição para o contrário; a transposição para a própria pessoa; o recalque; a sublimação". Todos esses "destinos" são translações, no primeiro sentido da palavra: mudar de lugar. Em outros pontos de sua obra, Freud definiu exatamente os três primeiros destinos; mas nesse texto, como em outros, deixou em aberto a questão da sublimação, que não chega a ser um conceito, mas apenas uma noção pouco desenvolvida teoricamente, e até mesmo um mecanismo reconhecido como misterioso, no caso dos poetas e dos artistas.
Freud criou o termo "sublimação"3, mas deixou muito pouco a esse respeito, quando se trata da sublimação artística. Em Metapsicologia (1915/1940), ele deixa expressamente fora de sua análise o quarto destino das pulsões, isto é, a sublimação. Em "A criação literária e o sonho desperto" (1908/1933), ele começa por afirmar que, a respeito da origem das obras e de seu efeito sobre o receptor, o próprio criador "não sabe dar uma resposta, ou pelo menos uma resposta satisfatória" (p. 69). O mesmo quanto ao efeito da obra de arte sobre o receptor: "Como alcança ele esse resultado? Isso é seu próprio segredo" (p. 80)4. No próprio livro que Pessoa possuía, Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci, que é de sua fase final, Freud diz: "O dom artístico e a capacidade de trabalho estando intimamente ligados à sublimação, devemos confessar que a essência da função artística permanece também psicanaliticamente inacessível"5.
É nesse ponto que Pessoa pode auxiliar a psicanálise6. Um texto particularmente esclarecedor, nesse sentido, é um dos "grandes trechos" do Livro do desassossego intitulado "Educação sentimental" (Pessoa, 2007b, pp. 439-442). Nesse justamente famoso fragmento, seu "semi-heterônimo" Bernardo Soares expõe seu método de cultivar as sensações. Recapitulemos, em síntese, os passos desse método.
O "primeiro passo" consiste em "sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente". O resultado é uma exacerbação do prazer, mas também do sofrimento: "sentir excessivamente, se por vezes é gozar em excesso, é outras sofrer com prolixidade".
O "segundo passo" tem como objetivo "evitar o sofrimento" e, para isso, "há vários caminhos". Um deles consiste em "aplicar-se exageradamente a analisar a dor", "acrescenta[r] a toda dor o prazer de analisar". Resultado: "Exagerado o poder e o instinto de analisar, breve o seu exercício absorve tudo e da dor fica apenas uma matéria indefinida para a análise". Outro caminho ou "método", "mais subtil" e "mais difícil", consiste em: "Encarnar a dor numa determinada figura ideal. Criar um outro Eu que seja encarregado de sofrer em nós, de sofrer o que sofremos. Criar depois um sadismo interior, masoquista todo, que goze o seu sofrimento como se fosse de outrem". Um terceiro método "é dar às angústias e aos sofrimentos, por uma aplicação irritada da atenção, uma intensidade tão grande que pelo próprio excesso tragam o prazer do excesso". E Bernardo Soares assim sintetiza o "segundo passo":
E quando, como em mim [...] os três métodos são empregados conjuntamente, quando uma dor, sentida, imediatamente, e sem demoras para estratégia íntima, é analisada até a secura, colocada num Eu exterior até a tirania, e enterrada em mim até o auge de ser dor, então verdadeiramente eu me sinto o triunfador e o herói. Então me pára a vida, e a arte se me roja aos pés.
O "terceiro passo", descrito em seguida, "é o que custa porque exige aquele esforço interior que é imensamente mais difícil do que o esforço na vida". Ele consiste em "passar a sensação imediatamente através da inteligência pura, coá-la pela análise superior para que ela se esculpa em forma literária e tome vulto e relevo próprio". A obra poética é assim "o fim, o requinte supremo [...] da minha cultura dos estados de alma".
Esse texto de Pessoa já tem sido objeto de várias análises. Por isso, desejo deixar claro, desde já, que este enfoque não pretende ser o único possível, nem invalida outras leituras. Examinemos os três passos do "método" de Bernardo Soares à luz da psicanálise. Segundo Freud, o ser humano está sempre em busca de prazer. Quando, ao invés dele, encontra o sofrimento, faz tudo para se livrar deste. "Aplicar-se exageradamente a analisar a dor", "acrescentar a toda dor o prazer de analisar", é uma "intelectualização", isto é, "a preponderância conferida ao pensamento abstrato sobre o reconhecimento dos afetos" (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 242). Devemos convir que, por sua feição psicológica e sua aguda inteligência, Pessoa era um mestre na arte de analisar e abstratizar.
Será essa uma atitude de defesa? Sem dúvida, sim. Será um recalque? Não, porque o recalque consiste em mandar para o inconsciente o afeto desagradável, onde ele permanecerá oculto até voltar em um sonho, em um sintoma ou em um lapso. Ora, o primeiro passo proposto por Bernardo Soares consiste em mandar para a consciência, e Freud afirma peremptoriamente: "Todo recalcado permanece necessariamente inconsciente" (1915/1940, p. 65).
O segundo método ou caminho é o de "encarnar a dor numa determinada figura ideal. Criar um outro Eu que seja encarregado de sofrer em nós, de sofrer o que sofremos". Entramos aí em um terreno muito delicado, do ângulo psicanalítico. Em 1923, ao cabo de sucessivas retificações, Freud avançou a hipótese de que a sublimação se produz por intermédio do Ego, que transforma primeiramente a libido sexual em libido narcísica, dessexualizando-a, para dar-lhe posteriormente outro objetivo, socialmente mais valioso.
No caso de Pessoa, a "figura ideal" não é um Ego ideal, mas um "outro Eu". A maior parte dos indivíduos, na elaboração de um Ego ideal, não se afasta tanto de si mesmo a ponto de "outrar-se". Trata-se, mesmo, da mais espetacular façanha de seu imaginário, a criação dos heterônimos. Do ângulo hegeliano da constituição do sujeito, deparamo-nos, em Pessoa, com uma dialética emperrada, ou desviada: depois de passar pela antítese do outro, o sujeito pessoano não volta à plenitude do uno, mas se dispersa na alteridade. De maneira análoga, podemos dizer que, do ângulo psicanalítico, a sublimação pessoana não se detém na estase narcísica, mas se realiza no campo da alteridade. A"translação" pessoana é uma perda ou um abandono do Ego. No processo da sublimação pessoana, não é apenas o objeto produzido que é exterior, mas o próprio autor se exterioriza7.
A respeito da criação de outros eus pelos ficcionistas, Freud deixou uma observação que parece servir à leitura de Pessoa: "O romance psicológico deve sua característica à tendência do autor moderno a cindir seu eu, pela auto-observação, em ‘eus parciais', o que o leva a personificar em heróis diversos as correntes que se chocam em sua vida psíquica" (Freud, 1908/1933, p. 28). Entretanto, os principais heterônimos, com exceção de Bernardo Soares, não são "eus parciais", mas outras personalidades completas, com biografia e obra. O próprio fato de ele distinguir Bernardo Soares como semi-heterônimo o demonstra.
Já quanto à função dos heterônimos na expressão das "diversas correntes que se chocam em sua vida psíquica", é tentador identificar o "ele mesmo" (e em certa medida também Bernardo Soares) com o Ego que sofre, Caeiro como o Ideal do Eu, Ricardo Reis como o Superego e Álvaro de Campos como a explosão de todas as pulsões reprimidas8. Entretanto, além de essa leitura implicar certa simplificação, temos de levar em conta que a capacidade pessoana de "outrar-se" supõe o reconhecimento de outros, com outros gozos e outras dores, o que representa um trabalho do imaginário que impede o enclausuramento do simples neurótico em um imaginário egocentrado. No caso de Pessoa, os outros eus não reforçaram o Ego, mas eram tão outros que o anularam: "Sou porém menos real que os outros, menos coeso [?], menos pessoal, eminentemente influenciável por eles todos"9; "em tudo isso me parece que fui eu, o criador de tudo, o que menos ali houve"10; "Mas eu, de ter tanta alma / Nem minha alma chego a ter" (Pessoa, 2005, p. 531) etc.
Como no caso da intelectualização, do primeiro passo, não podemos falar aqui de recalque, porque esse trabalho do imaginário é consciente. A operação consciente de criar um outro eu, típica de Pessoa, é aqui definida por ele mesmo como um mecanismo de defesa. O curioso é que ele a caracterize como um "sadismo interior, masoquista todo, que goze o seu sofrimento como se fosse de outrem". Sadismo, porque se trata de infligir sofrimento a outrem, e masoquismo, porque é "como se fosse de outrem". A inter-relação do sadismo com o masoquismo é ponto pacífico para os teóricos da psicanálise, que por isso criaram o termo "sadomasoquismo". O masoquismo de que fala Bernardo Soares tem a ver com a pulsão de morte que atinge o Ego em sua autoanulação.
O terceiro passo é o que nos permite ver o resultado desse trabalho do imaginário. Passar a sensação através da inteligência pura e coá-la pela análise superior tem como objetivo final "esculpi-la" na forma literária, na qual ela "tom[a] vulto e relevo próprio". Estamos aí no exercício da sublimação artística, sobre a qual Freud deixou mais interrogações que explicações, e que sobre a qual Lacan diz que os psicanalistas só podem "colher migalhas" (Lacan, 1986, p. 279). O processo criativo de Pessoa mobiliza o inconsciente ao mesmo tempo que o consciente. E a famosa fórmula pessoana - "O que em mim sente ‘stá pensando" – é uma preciosa ajuda para entender a sublimação artística em geral.
Quanto aos escritores, apesar de suas ressalvas, Freud estabelece certas relações que são plenamente confirmadas na obra de Pessoa: a relação da obra literária com o sonho desperto e a origem desse sonho na infância. Diz Freud: "[...] a hipótese segundo a qual a obra literária, tal como o sonho diurno, seria uma continuação e um substituto do jogo infantil de outrora" (Freud, 1908/1933, p. 79). O primeiro ponto, o do sonho desperto, é desenvolvido por Bernardo Soares em numerosos textos do Livro do desassossego. Quanto à origem desse processo nos jogos da infância, um texto desse livro, em particular, poderia ser usado por Freud como confirmação de sua teoria. É o fragmento que se inicia por "Quando criança eu apanhava os carrinhos de linha" e prossegue: "Quando um dia consegui haver às mãos o resto de umas pedras de xadrez, que alegria não foi a minha! Arranjei logo nomes para as figuras e passaram a pertencer ao meu mundo de sonho. Essas figuras distinguiam-se nitidamente. Tinham vidas distintas [...]" (Pessoa, 2007b, p. 241).
Freud atribui esses devaneios a "sua majestade o eu, herói de todos os sonhos diurnos, como de todos os romances", e os chama de "narrativas egocêntricas". Ora, sobre esse ponto, Pessoa nos leva a discordar. O "terceiro passo" proposto por Bernardo Soares consiste em "fixar" a sensação em um objeto fora de si, "[dar] completa exterioridade ao que é interior", "[realizar o irrealizável"], "[conjugar] o contraditório", "[tornar] o sonho exterior". Por ser exterior, desligado do Ego sofredor, embora originado neste, esse objeto (a obra) é doado a todos os outros como um significante social, capaz de ser preenchido por inúmeros significados. Isso é o que ele chama de dar à sensação "seu poder de puro sonho".
A partir desse ponto, a explicação de Bernardo Soares muda de estilo, deixa de ser explicação para transladar-se em metáforas, que já não são explicações mas realizações de um objeto artístico:
... estagnador de vida que sou, burilador de inexatidões, pajem doente de minha alma Rainha, lendo-lhe ao crepúsculo não os poemas que estão no livro, aberto sobre os meus joelhos, da minha Vida, mas os poemas que vou construindo e fingindo que leio, e ela fingindo que ouve, enquanto a Tarde, lá fora não sei como ou onde, dulcifica sobre esta metáfora erguida dentro de mim em Realidade Absoluta a luz ténue e última de um misterioso dia espiritual.
Note-se que o poeta diz: "lendo [...] não os poemas que estão no livro, aberto sobre os meus joelhos, da minha Vida, mas os poemas que vou construindo". É esse passo de libertação do Ego ("não os poemas da minha Vida") que os poetas menores, puramente expressivos, não conseguem dar. O que interessa a Bernardo Soares são os poemas que ele vai construindo, e que já não são os de sua vida pessoal. Parece haver, aí também, um necessário desinvestimento no Ego para que ocorra a sublimação pessoana. Há também, aí, dados para se compreender o efeito da arte, que o poeta é o primeiro a sentir. Diante desse objeto exterior, isto é, social, o próprio produtor se comporta como outro, "lendo" para si mesmo o poema.
Isso contradiz as primeiras afirmações de Freud sobre a sublimação, quando ele a via "em estreita dependência da dimensão narcísica do Ego"11. Mas é preciso levar em conta que sobre esse ponto, como sobre outros, a teoria freudiana é uma teoria em mutação, sobretudo a partir de 1920, quando se inicia a fase conhecida como "segunda tópica". Nas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, da última fase (1932/1976), diz Freud: "Designamos por sublimação uma certa espécie de modificação da meta e mudança do objeto em que entra em consideração a nossa avaliação social".
Outro ponto da esparsa teoria da sublimação, por Freud, apresenta interesse quando o confrontamos ao caso de Pessoa: a relação desse processo com a sexualidade. De início, o psicanalista atribuía a todas as pulsões uma origem sexual. Mas, na saída pela sublimação, ele passou a ver, a partir de certo momento, como registra em O ego e o id, uma "energia dessexualizada" (Freud, 1923/1974). Pessoa, como se sabe, sempre se opôs às interpretações puramente sexuais. Na carta a Gaspar Simões, ele define a "translação" como "a conversão de certos elementos psíquicos (não só sexuais) em outros, por estorvo ou desvio dos originais". E, no próprio texto de "Educação sentimental", Bernardo Soares põe em pé de igualdade com "os actos finais e carnais do amor", a visão, o tato, o gosto, o olfato.
No único livro de Freud comprovadamente lido por Pessoa, Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci (1910/1927), vários trechos sublinhados pelo poeta se referem à ausência de vida sexual. Já na p. 28 do livro, Pessoa grifou: "Leonardo deu o exemplo de um frio afastamento de toda sexualidade"12. Mais adiante, na p. 47, o trecho sublinhado por Pessoa é o seguinte: "É talvez por isso que a vida de Leonardo foi tão mais pobre em amor do que a de outros grandes homens e artistas"13. Mas Freud conclui com um alerta, também grifado por Pessoa na p. 204: "Uma repressão quase total da vida sexual real não cria as condições mais favoráveis ao exercício das tendências sexuais sublimadas"14. Se considerarmos o que Eduardo Lourenço chamou de "a sexualidade branca" de Pessoa, ou as reconhecidas dificuldades sexuais do poeta, podemos compreender por que esses trechos sublinhados lhe interessavam particularmente.
Sobre a questão dos efeitos supostamente benéficos da sublimação, também há algo a dizer. Bernardo Soares registra um estado de euforia no momento da produção do objeto poético. A mesma satisfação que seus leitores futuros experimentariam ao ler seus textos, que, apesar dos conteúdos deprimentes, euforizam pela beleza formal. Mas é preciso contradizer aqueles que veem a sublimação artística como uma salvação pessoal. O testemunho de numerosos artistas nos mostra que a satisfação com o objeto produzido nunca é definitiva. Se o fosse, eles produziriam uma única obra, e não recomeçariam sempre, como eternos insatisfeitos.
A sublimação poética é vital, na medida em que ela exterioriza e socializa a dor em um objeto de prazer estético. Entretanto, ela não é somente euforizante. Em O ego e o id (1923/1974), Freud observa que, ao desviar o objetivo sexual para outro fim, dessexualizado, o Ego fica à mercê das agressões do Superego, e sofre um assalto da pulsão de morte. A vida pessoal de vários poetas modernos se encerrou com o suicídio, e o alcoolismo fatal do homem Pessoa demonstra que escrever não o salvou da depressão15. No seu caso, a perda do eu produziu uma obra magnífica, mas foi certamente dolorosa para o homem que a escreveu. A sublimação não é a cura da neurose. Mas, como diz Bernardo Soares, a obra que ela produz "traz compensações pela alma fora que a vida nunca poderá dar".
Podemos concluir dizendo que o fragmento intitulado "Educação sentimental" fornece elementos que, se não esclarecem como ocorre a sublimação em todos os poetas, pelo menos16 ajudam a compreender como ela ocorre em Pessoa, mestre em "translações".
Referências
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Endereço para correspondência
Leyla Perrone-Moisés
IEA-USP
a/c Sandra Codo
E-mail: sancodo@usp.br
Recebido: 18/04/2011
Aceito: 06/05/2011
* Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Crítica literária.
1 Comunicação apresentada no Colóquio Internacional "Nietzsche, Pessoa, Freud", realizado em Lisboa em maio de 2011.
2 Que Pessoa chama de "subconsciente", termo utilizado por Freud no início de sua teoria, mas abandonado posteriormente por remeter à psicologia corrente.
3 A palavra "sublimação" remete à teoria estética do "sublime", atribuída a Longino e desenvolvida por Kant.
4 E finalmente: "A verdadeira fruição da obra literária provém de que, por ela, nossa alma fica aliviada de certas tensões" (Freud, 1908/1933, p. 81). Lacan considera essas explicações de Freud como insatisfatórias, e até mesmo "grotescas" porque, ao atribuir a fruição da obra aos fantasmas proibidos para o receptor, e corajosamente exibidos pelo criador, o criador da psicanálise escamoteia a questão do belo e de sua relação com o desejo. Mas o próprio Lacan não se estende muito sobre essa questão (cf. Lacan, 1986, p. 279).
5 "Le don artistique et la capacité de travail étant intimement liés à la sublimation, nous devons avouer que l'essence de la fonction artistique nous reste aussi psychanalytiquement, inaccessible" (Freud, 1910/1927, p. 212).
6 "A ausência de uma teoria coerente da sublimação permanece sendo uma das lacunas do pensamento psicanalítico" (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 497).
7 Como observa Richard Zenith, a respeito do famoso poema "Autopsicografia": "Pessoa gostava de oferecer três argumentos, três exemplos, três razões, e a palavra ‘autopsicografia' decompõem-se em três partes vitais, auto+psico+grafia. Ou, passando dasraízes gregas para o português, eu+alma/vida interior+escrita" (Zenith, 2010, p. 315). Do ângulo psicanalítico, verificamos a mesma tripartição: dor = Ego –> intelectualização = alteridade–> escrita = sublimação.
8 Como me aventurei a fazer em Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro.
9 Rascunho de carta a Adolfo Casais Monteiro (Pessoa, Páginas íntimas..., p. 103).
10 Carta a Adolfo Casais Monteiro (Pessoa, 2007a, p. 422).
11 Cf. Laplanche & Pontalis, 1992, p. 498.
12 "Léonard donna l'exemple d'un froid éloignement de toute sexualité".
13 "C'est peut-être pourquoi la vie de Léonard fut tellement plus pauvre en amour que celle d'autres grands hommes et d'autres artistes".
14 "... une répression presque totale de la vie sexuelle réelle ne crée pas les conditions plus favorables à l'exercice des tendances sexuelles sublimées". Essa restrição se deve ao fato de Freud ter acreditado que a sublimação, embora dessexualizada, devia sua força motriz à sexualidade. Os escritos mediúnicos de Pessoa revelavam a mesma preocupação:"Pessoa receava que esta falha em ser um homem completo, na sua vida social, amorosa e sexual, pudesse lesar o seu trabalho criativo" (Zenith, 2010, p. 323).
15 Ver a esse respeito, Ana Cecília Carvalho,"Limites da sublimação na criação literária", Estudos de psicanálise nº 29, Rio de janeiro, 2006, pp.15-24.
16 "Pelo menos" é uma formulação frequente na obra pessoana, na qual esse"menos" é sempre mais poesia.