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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.61 São Paulo Aug. 2016

 

EM PAUTA | CORPO: MISTÉRIO, AMBIGUIDADE

 

Onde começa o corpo?

 

Where does the body start?

 

 

Maria Helena Fernandes

Psicanalista, doutora em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de Paris vii, com pós-doutoramento pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (Unifesp). Professora do curso de Psicanálise e professora colaboradora do curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo. É autora dos livros L'hypocondrie du rêve et le silence des organes: une clinique psychanalytique du somatique (1999), Corpo (2003) e Transtornos Alimentares: anorexia e bulimia (2006)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho pretendemos retomar a problemática do lugar do corpo na teoria freudiana com o objetivo de propor uma discussão a respeito da especificidade das condições de escuta do analista diante da presença do corpo na situação analítica. Tomaremos como ponto de partida a instigante questão colocada por Pierre Fédida que, citando Georges Bataille, que sugere que o corpo começa na boca, avança a proposição de que, após a construção freudiana, não se pode mais localizar onde o corpo começa. Para explorar essa questão, pretendemos explicitar o processo de construção da noção de um corpo psicanalítico no pensamento freudiano. Buscaremos demonstrar que a teoria freudiana possui uma abordagem própria do corpo na qual a alteridade é um elemento-chave. E isso tem, certamente, implicações clínicas e metodológicas que possibilitam uma reflexão sobre a natureza da eficácia da escuta analítica diante das diversas for-mas de presença do corpo no sofrimento contemporâneo.

Palavras-chave: Corpo. Metapsicologia. Alteridade. Escuta analítica.


SUMMARY

This article aims at revisiting the role of the body in Freud's theory, so as to foster a discussion on the specificity of the listening conditions, by the therapist, in the presence of the body in the analytic situation. We shall take as reference Pierre Fédida's thought-provoking question, in which, by quoting Georges Bataille and his belief that the body starts in the mouth, takes further the proposition that, after the Freudian construction, it is no longer possible to identify where the body starts. In order to look into such subject-matter, we intend to expound on the construction process of the idea of a psychoanalytic body according to Freud. We shall seek to demonstrate that Freud's theory consists of a particular approach concerning the body, in which alterity/otherness accounts for an essential element. Such fact certainly leads to clinical and methodological implications, thus bringing about a reflection into the nature of the efficacy of the analytic listening towards the various types of body presence in contemporary suffering.

Keywords: Body. Metapsychology. Alterity. Analytic listening.


 

 

Fala-me dificultosamente
de um país não documental
onde apenas acontece
o que em verbo não se conta
e só em sonho, em sonho e sombra, se adivinha.

(Carlos Drummond de Andrade, Corpo)

A clínica psicanalítica, funcionando como espelho da cultura, reflete atualmente a imagem de uma verdadeira fetichização do corpo, que se traduz pela preocupação excessiva não apenas com o seu funcionamento, mas, sobretudo, com a sua forma. É assim que, cada vez mais, ocupa lugar de destaque na cena contemporânea a obsessão pela magreza, a compulsão para fazer exercícios físicos, o horror ao envelhecimento, as excessivas e múltiplas intervenções cirúrgicas de modelagem do corpo, a busca psicopatológica da saúde ou, ao contrário, uma negligência destrutiva do corpo, que aparecem hoje, em nossa clínica cotidiana, ao lado de uma vasta gama de descompensações somáticas.

É o corpo que toma a frente da cena, constituindo-se como fonte de insatisfação e de impedimento à potência fálico-narcísica. De veículo ou meio de satisfação pulsional, o corpo passa a ser também veículo ou meio de expressão da dor e do sofrimento. Um sofrimento que, às vezes, parece encontrar dificuldade para se manifestar em termos psíquicos (Fernandes, 2009 & 2011).

De fato, atualmente o declínio da interioridade e o concomitante privilégio da exterioridade, conferindo à imagem um papel central, vêm sendo amplamente assinalados pelos psicanalistas. O que parece interessar agora, salienta Joel Birman (2001),"é a estetização da existência e a inflação do eu, que promovem uma ética oposta à do sofrimento" (pp. 248-249). A meu ver, essa cultura do evitamento da dor indica uma espécie de precariedade da atividade psíquica, na qual o espaço para uma reflexão sobre o sofrimento encontrava abrigo e possibilidade de elaboração. No lugar dessa reflexão, observa-se atualmente um imperativo constante de superação imediata de todo sofrimento, como se as marcas das dores da vida não pudessem mais encontrar uma inscrição psíquica, ficando destinadas a uma inscrição corporal. O corpo, sua imagem, seu funcionamento, suas formas e deformações, constitui-se, assim, como lugar privilegiado de abrigo do sofrimento.

Do mesmo modo que se constata na clínica um aumento considerável de demandas de análise que passam pelas questões corporais, também observa-se uma avalanche de trabalhos abordando direta ou indiretamente as problemáticas corporais. As publicações psicanalíticas têm mostrado que, nas últimas décadas, o corpo vem retornando ao cenário da psicanálise após um longo período de esquecimento e, por que não dizer, de desprezo.

Escritas nos anos 1980, quando se agitavam na França os debates em torno da questão do corpo na psicanálise, as palavras de Jean Starobinski parecem ainda bastante atuais:

Hoje a questão do corpo aparece como se nós o reencontrássemos após um esquecimento muito longo: a imagem do corpo, a linguagem do corpo, a consciência do corpo e a liberação do corpo tornaram-se palavras de ordem. Contagiosamente, os historiadores se interessam por tudo o que as culturas anteriores à nossa fizeram com o corpo: tatuagens, mutilações, celebrações, rituais ligados às diversas funções corporais. Os escritores do passado, por sua vez, de Rabelais a Flaubert, são tomados como testemunhas: no entanto, de repente, percebemos que não somos o Cristóvão Colombo da realidade corporal. Este foi o primeiro conhecimento que adentrou o saber humano: "Eles perceberam que estavam nus" (Gênese, 3, 7). Depois desse momento, o corpo não pôde mais ser ignorado. (1980, p. 261)

Starobinski evoca a percepção da nudez como a evidência irrefutável da corporeidade do sujeito, um sujeito feito de carne e osso, habitando um corpo. No entanto essa unicidade do corpo imediatamente se transforma numa verdadeira multiplicidade de corpos se o olhar se dirige para o corpo enquanto objeto de estudo de tão variados campos do conhecimento humano. Há de se reconhecer, então, que falar do corpo supõe defrontar-se com vários corpos: o corpo biológico, o corpo filosófico, o corpo histórico, o corpo estético, o corpo religioso, o corpo social, o corpo antropológico e, certamente, o corpo psicanalítico.

É justamente este corpo, abordado pelo instrumental teórico-clínico da psicanálise, que interessa aqui.

Diante desse panorama, o lembrete "não somos o Cristóvão Colombo da realidade corporal" poderia ser escutado como um convite para pensarmos o corpo pelo viés epistemológico, único guardião da possibilidade de uma interlocução fecunda entre a psicanálise e as demais disciplinas em que o corpo também se constitui como objeto de interesse e estudo. Além disso, a problemática do corpo representa um ponto fundamental nas distinções epistemológicas que devem ser sistematicamente enfatizadas, de forma a salientar também a especificidade da metodologia psicanalítica.

 

O corpo em Freud

Nos últimos anos, a questão do corpo na psicanálise tem me ocupado bastante e deu origem a vários artigos e três livros. No primeiro livro, abordei as vicissitudes da percepção do corpo nos processos de adoecimento somático (Fernandes, 1999). No segundo, dediquei-me a explorar o lugar do corpo na teoria freudiana (Fernandes, 2003). E, no terceiro, sobre a anorexia e a bulimia na clínica psicanalítica, propus-me a contribuir para melhor compreender as distorções da imagem corporal tão comum nesses casos (Fernandes, 2006). Neste artigo pretendo retomar a problemática do lugar do corpo em Freud com o propósito de revisitá-la sob uma nova perspectiva. Isto é, com o intuito de propor uma discussão a respeito da especificidade das condições de escuta do analista, particularmente, diante da presença do corpo na situação analítica.

Ao final dos anos 1990, Pierre Fédida lançou na França um artigo intitulado "Par où commence le corps humain?". Anos mais tarde, esse artigo deu título a um pequeno livro que reúne, além desse, outros preciosos artigos de Fédida sobre a regressão na situação analítica (Fédida, 1998 & 2000). O que interessa a Fédida, nessa ocasião, é refletir sobre as condições de recepção e de construção da cena psíquica inconsciente que o analista dispõe em sua própria regressão, isto é, a capacidade de regressão do analista à escuta de seu paciente. Para responder a essa questão, Fédida parte das contribuições de Georges Bataille que, evocando a horizontalidade dos animais e o eixo boca-ânus, sugere que o corpo começa na boca. O que Fédida irá avançar é que, após Freud, não se pode mais localizar onde o corpo começa. Tomar como ponto de partida da nossa discussão essa instigante pergunta de Fédida supõe a formulação de uma pergunta anterior: que lugar ocupa o corpo na teoria freudiana?

Partindo da descoberta de que a fala afeta o corpo, Freud nos ensina que se o corpo da histérica se afasta do corpo da anatomia, ele se aproxima, no entanto, de um corpo representado a partir de uma linguagem popular e não científica. Esta diferença, entre o corpo científico e o corpo popular, evidenciada de forma exemplar pelo fenômeno da conversão histérica, inaugura a distinção entre o corpo biológico e o corpo psicanalítico. Enquanto o corpo biológico obedece às leis da distribuição anatômica dos órgãos e dos sistemas funcionais, constituindo um todo em funcionamento, isto é, um organismo, o corpo psicanalítico obedece às leis do desejo inconsciente, constituindo-se em relação com a história do sujeito.

Sendo assim, dizer que Freud funda a distinção entre o corpo biológico e o corpo psicanalítico equivale a dizer, conforme já foi salientado por Joel Birman (1991, p. 141), que a psicanálise realiza uma passagem da lógica da anatomia para a lógica da representação. O corpo da psicanálise é então um corpo atravessado pela linguagem. No entanto, a meu ver, isso não esgota a problemática do corpo em Freud. Foi justamente o que tentei demonstrar de forma detalhada anteriormente, ao abordar a questão do corpo na clínica psicanalítica a partir de uma releitura do texto freudiano (Fernandes, 2003).

Nesse trabalho enfatizei que, longe de estar excluído da psicanálise, o corpo encontra-se, ao contrário, no centro da construção teórica de Freud. Se tivéssemos tempo aqui para percorrer a metapsicologia seria possível demonstrar que o discurso freudiano, tendo se desenvolvido a partir da histeria e do sonho numa complexidade crescente que vai da pulsão ao ego corporal, enuncia uma abordagem própria do corpo, na qual a alteridade é um elemento-chave.

Esse posicionamento estratégico, por assim dizer, da alteridade na teoria freudiana do corpo, representa ainda a possibilidade de refletirmos, do ponto de vista metapsicológico, a respeito da natureza da eficácia da escuta analítica. Ao dar visibilidade à operacionalidade clínica de nossas considerações teóricas, será, portanto, o que se passa entre o analista e o analisando, na situação analítica, o que nos permitirá produzir uma primeira precisão na nossa questão: para a psicanálise, onde começa o corpo?

Retomar a questão do lugar do corpo no discurso freudiano obedece a um duplo objetivo: de um lado, explicitar o processo de construção da noção de um corpo psicanalítico, e, de outro, melhor instrumentalizar a nossa escuta para acolher as diversas formas de presença do corpo na nossa clínica contemporânea.

Vejamos, então, a seguir, alguns pontos cruciais no pensamento freudiano que permitem visualizar o modo como Freud, paulatinamente, coloca em evidência essa posição central da alteridade na sua teoria do corpo.

 

O corpo e o eu

Em 1905, enfatizando a sexualidade infantil como perversa e polimorfa, Freud salienta a dimensão erógena de algumas zonas do corpo, permitindo a emergência de um corpo autoerótico, corpo fragmentado, que, com a introdução do conceito de narcisismo em 1914 e a extensão dessa erogeneidade a todo o corpo, passa a ser pensado como corpo narcísico. Pode-se dizer que, transpondo o corpo biológico em um corpo erógeno, Freud inicia um verdadeiro movimento de transformação na concepção do corpo. Essa época de sua teorização marca apenas o começo de um percurso que funda a noção de um corpo psicanalítico, como pretendo demonstrar aqui.

A passagem de um corpo autoerótico, fragmentado, para um corpo unificado pelo narcisismo prepara o terreno para dois movimentos teóricos importantes: a retomada do conceito de pulsão em 1915, que mais tarde resultará no segundo dualismo pulsional, e a criação da segunda tópica, que traz a emergência do ego corporal. Poderia parecer evidente que fosse ao id, o polo pulsional do aparelho psíquico, que o corpo devesse ser identificado. Mas, ao contrário, é ao ego, o polo do aparelho psíquico voltado para a realidade e para a percepção, que o corpo se vê associado.

"O ego é antes de tudo um ego corporal; ele não é apenas um ser de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície" (Freud, 1923/1991, p. 270). Se ele é um ser de superfície, é porque está encarregado da relação com a percepção e a realidade: Freud coloca o ego na periferia de sua tópica psíquica, mas o fato de ele o enxergar como a projeção de uma superfície nos leva a perguntar que superfície é essa. A do corpo, certamente, pois a possibilidade de uma projeção aponta para a distância entre o corpo biológico e o corpo psicanalítico, habitado pela pulsão e pela linguagem.

Ora, essa distância é o próprio motivo pelo qual o corpo psicanalítico encontra seu lugar não apenas em uma anatomia e em uma fisiologia objetivas, mas também em uma anatomia própria, singular. Tal anatomia se constrói a partir do cenário fantasmático de cada um. Está claro que encontramos nas manifestações objetivas do corpo biológico as ressonâncias desse outro corpo, portador de múltiplos sentidos e significações em função desse cenário fantasmático.E é isso que faz do corpo biológico um corpo-linguagem aberto à abordagem psicanalítica.

Simultaneamente ao enunciado sobre a corporalidade do ego, e na sequência de seu raciocínio, Freud (1923/1991) propõe uma analogia com "o homúnculo cerebral dos anatomistas" (p. 270), ou seja, com a representação cerebral do esquema corpóreo, para assim tornar visível a ideia de projeção de uma superfície. Observemos que, para circunscrever a ideia de ego, Freud utiliza uma metáfora especulativa. É Lacan (1949/1966) quem desenvolverá mais tarde essa abordagem do ego e do corpo, em seu famoso ensaio sobre o estágio do espelho. Nesse texto, ele considera a assunção da imagem especular como fundadora da instância do ego. Imagem, corpo e identidade se encontram igualmente correlacionados em Winnicott (1967/1974), para quem o surgimento do sentimento de identidade é consecutivo ao reconhecimento de si no rosto da mãe. Se em Freud a relação entre corpo e identidade foi colocada em evidência a partir do momento em que ele introduziu o narcisismo, quando ele diz que o ego é corporal, caracteriza-o como narcísico também, identificando o corpo com o si-mesmo.

Indo nessa direção, Assoun escreve:

Quando Freud diz que o ego é corporal precisamos entender mais ou menos o seguinte: o ego e o corpo são estruturados segundo a lógica homóloga das superfícies. Isso não significa dizer que o Ego é análogo ao Corpo, mas que a emergência da subjetividade se faz segundo essa lógica corpórea da projeção. O corpo é, portanto, o próprio, a primeira pessoa. (1993, p. 174)

Essas observações nos convidam a estender essa reflexão à maneira como esse corpo se torna um corpo próprio, possibilitando o acesso a primeira pessoa.

Com o segundo dualismo pulsional, o corpo emerge também como lugar de encontro de Eros e Tânatos. Esse encontro permitiu a Freud abordá-lo sob o ângulo de um corpo, por assim dizer, masoquista, baseando-se na ideia de um masoquismo originário. Os avanços freudianos dos últimos anos apontam ainda que é a dor, dando acesso ao conhecimento de nossos órgãos, que per-mite uma representação de nosso corpo em geral. Assim, Freud (1923/1991) assinala que "a maneira pela qual adquirimos um novo conhecimento de nossos órgãos por ocasião de doenças dolorosas talvez seja um protótipo da maneira pela qual, de forma geral, chegamos à representação de nosso próprio corpo" (p. 270). Sentir dor informaria o ego sobre a existência de um corpo constituído de órgãos, tornando-lhe possível a representação interna do próprio corpo.

Mais tarde, em 1926, no texto "Inibição, sintoma e angústia", Freud refere que, no início da vida, a ausência da mãe não representa para o bebê a ausência de um objeto, visto que ela ainda não é um objeto para ele. Não se trata tampouco da falta de um objeto de amor, visto que o amor ainda não existe. Existe apenas a necessidade e, nesse sentido, a ausência da mãe coloca o bebê em uma situação de perigo, na qual o que ele experimenta será qualificado por Freud como dor. Notem bem, Freud não qualifica o que o bebê experimenta como angústia, mas como dor!

Nesse momento Freud inscreve o outro, ou melhor, sua ausência, na origem da dor. Essa inscrição constitui uma contribuição essencialmente psicanalítica à abordagem, não somente do corpo, mas especificamente da dor, cujo caráter enigmático jamais deixou de ser apontado pela clínica médica. O que também permite compreender claramente que, afetado pela ausência, o corpo dói. Fato que tão bem descrevem alguns analisandos quando, diante de um sofrimento muito intenso, insistem em localizá-lo no próprio corpo: "Isso dói muito, há certas coisas que doem no corpo, sinto a dor aqui, no meu peito".

Se Fédida insiste que, após Freud, já não se pode mais dizer onde começa o corpo, deixando de lado toda e qualquer pretensão a uma localização tópica, no estilo de Bataille, é justamente com Freud que podemos começar arriscando que o corpo começa na dor.

 

O corpo e o outro

Ainda em 1926, Freud qualifica a ausência da mãe como uma situação traumática. Para o bebê, é a sobrevivência que está em jogo, e será apenas mais tarde que surgirá a necessidade do amor:

O ser da primeira infância não está de fato equipado para dominar psiquicamente as grandes quantidades de excitação que chegam do exterior ou do interior. Em uma certa época da vida, o interesse mais importante é, efetivamente, que as pessoas das quais dependemos não retirem sua terna solicitude. (Freud, 1926/1992, pp. 261-262)

Essas quantidades de excitação exterior e interior devem, então, passar pelo outro maternal para que possam ser administradas pelo bebê. Em uma linguagem freudiana, pode-se dizer que o outro maternal exerce aqui uma função de paraexcitação. Isso nos remete à maneira como esse outro administra as excitações externas e, sobretudo, as excitações internas, provenientes das forças pulsionais. Nesse sentido, seja em relação ao ego corporal como projeção de uma superfície ou em relação à força pulsional, o outro estaria sempre na origem da constituição do sujeito, um sujeito habitante de seu próprio corpo.

Então, pode-se afirmar que o outro é o polo investidor que transformará o corpo biológico em um corpo erógeno. Esse outro seria a condição para que o corpo se torne um corpo próprio, habitado pela pulsão e pela linguagem. Isso equivale a dizer que é o investimento libidinal no corpo da criança, realizado por esse outro maternal, que, ao torná-lo erógeno, lhe permite o acesso à simbolização. O movimento de transformação produzido por Freud na concepção do corpo toma aqui toda a sua medida. O corpo psicanalítico é, portanto, um corpo construído, construído pela alteridade.

A inovação freudiana foi precisamente ter podido demonstrar como esse corpo, que de saída identifica a nós mesmos e paradoxalmente não equivale imediatamente a um corpo próprio, vai sendo construído à custa de um laborioso trabalho resultante do encontro essencial com o outro. O corpo, colocado em evidência pela psicanálise, a saber, o corpo psicanalítico, resulta dos riscos do confronto entre a alteridade e a ausência.

A clínica psicanalítica mostra claramente que o acontecimento que toca o corpo, além de alimentar a rede de representações que servem de suporte para a angústia de castração, também remete, muitas vezes, ao caráter silencioso da pulsão de morte e aos efeitos mais ou menos duráveis e nefastos relacionados à desfusão pulsional. Ora, se em 1920 o trauma passa a ser definido como o resultado de uma desproporção entre a intensidade pulsional e as possibilidades de elaboração do aparelho psíquico, e se, mais tarde, em 1926, conforme vimos, a ausência da mãe constitui uma situação traumática, torna-se possível demonstrar que sem uma função materna de paraexcitação o aparelho psíquico fica à mercê da desfusão pulsional (Fernandes, 2006).

A ausência da mãe tem para o bebê um efeito traumático justamente por representar a ausência desse escudo protetor, dessa paraexcitação, que o protege também dele mesmo, ou seja, das sensações que vêm do interior de seu próprio corpo. Então, com o intuito de produzir aqui uma primeira precisão no nosso argumento, é novamente com Freud que poderíamos continuar dizendo ainda que o corpo começa no outro.

Além disso, a partir de 1920, o fato de a pulsão de morte ter sido descrita como a pulsão sem representação acentua uma forma de eficácia psíquica que se situa aquém da simbolização. Pode-se constatar que a introdução da pulsão de morte, assim como os avanços teóricos na compreensão do trauma, além de conferir à alteridade um papel estratégico no gerenciamento pulsional, abre todo um campo de possibilidades para pensar o irrepresentável no interior da metapsicologia.

Admitindo a possibilidade de que nem sempre o corpo biológico está vinculado a um sistema significante, abre-se igualmente a possibilidade de pensarmos o sintoma que afeta o corpo como uma descarga, como um excesso, que, atravessando o aparelho psíquico, não se organiza necessariamente a partir da lógica da representação. A meu ver, explorar as relações entre o corpo e o inconsciente implica não restringir nossas reflexões ao registro da representação, ampliando nossas possibilidades de reflexão para além da lógica do recalcamento (Fernandes, 2003).

Mesmo afirmando a utilidade da psicanálise no tratamento das neuroses, vimos que Freud jamais submete o corpo exclusivamente ao reinado da pura representação. Aliás, foi a tradição psicanalítica pós-freudiana que viu, durante muito tempo, a preocupação com a questão do corpo na psicanálise como uma espécie de heresia epistemológica, como um atentado contra a pureza da psicanálise.

Se as teorias pós-freudianas, remontando sempre à origem da descoberta de Freud aos sintomas corporais das histéricas, não excluem uma compreensão do corpo, de certa forma foi a clínica psicanalítica, fundamentada nessas mesmas teorias, que, paradoxalmente, excluiu durante um bom tempo aqueles pacientes que procuravam uma análise motivados, por exemplo, por uma queixa somática. Parece-me que essa exclusão se deu, de um lado, pela recusa de alguns analistas a aceitar em análise esses casos, e, de outro, por uma espécie de "surdez" dos mesmos a tudo aquilo que os convida a pensar diferentemente da lógica da neurose. Esse tipo de surdez às vezes acaba por obrigar o paciente a excluir, ele próprio, a psicanálise, simplesmente abandonando o processo analítico.

Para que toda essa construção teórica tenha algum interesse, de fato, é necessário refletir agora sobre os desdobramentos dessa leitura do texto de Freud na escuta analítica. Isto é, sobre as condições de escuta do analista, particularmente, diante da incidência do corpo no sofrimento contemporâneo.

 

O corpo e a escuta analítica

Em Estudos sobre a histeria, o material que Freud (1895/1996) utiliza para distinguir o doente orgânico, o hipocondríaco e o histérico, é o discurso, as particularidades discursivas desses pacientes. Ele chama a atenção, já nessa ocasião, para a especificidade de nosso instrumento de trabalho: é exatamente com a relação da palavra com o corpo que devemos nos ocupar. No entanto, o que a diversidade das formas do sofrimento contemporâneo nos ensina é que a expressão verbal e metafórica frequentemente utiliza o corpo como imagem, solicitando do analista um olhar e uma escuta capazes de figurar essa imagem e descrevê-la em palavra.

Muitas vezes faz-se necessário um verdadeiro trabalho de nominação/ligação, essa colocação em palavras que reenvia sempre a alguma outra, criando dessa forma uma cadeia associativa que visa ligar os elementos do discurso em um verdadeiro trabalho de construção de sentidos. Vários analisandos parecem necessitar que o analista os acompanhe na busca das palavras capazes de acolher os detalhes mais fortuitos da sua fala e colocá-los em relação com o que se passa no seu corpo, permitindo que um sistema simbólico possa ir lentamente se estabelecendo em torno de todo evento que solicita o corpo (Fernandes, 2014).

Tomando justamente a escuta do corpo do bebê realizada cotidianamente pela mãe como um modelo de escuta do corpo na situação analítica, pode-se enfatizar que é o Outro-analista que, à semelhança da alteridade materna, pode investir o corpo do paciente, acolhendo e nomeando as sensações desse corpo, transformando-o, assim, em um "corpo falado", aberto à abordagem psicanalítica. Sendo assim, é por meio da delicadeza da escuta, de uma leitura em filigrana das palavras, na sutileza da busca dos detalhes, dos gestos, do olhar, do silêncio, que o analista reencontrará as marcas das imagens internas do seu analisando.

A posição fundamental da alteridade na teoria freudiana do corpo abre justamente a possibilidade de avançarmos nossa reflexão a respeito da eficácia dos processos transferenciais na escuta analítica, particularmente, diante daquelas situações em que o corpo é convocado.

Ao se referir aos pacientes hipocondríacos, aqueles que justamente tomam o corpo como objeto singular de investimento,

P. Fédida escreve:

O paciente hipocondríaco dirige-se ao corpo do analista, ao mesmo tempo, como se este corpo pudesse receber os reflexos produzidos pela queixa somática, conservar esses reflexos como traços de inscrição (valor concedido por estes pacientes à presença vigilante e atenta do analista) e, ainda, como se este corpo pudesse, simultaneamente, reconstituir um sonho e um sono, que colocasse o paciente ao abrigo de seus tormentos. (1995, p. 132)

Sugiro, então, ampliar o alcance dessa formulação, pois a presença do corpo na clínica psicanalítica contemporânea vai muito além daquelas situações em que uma queixa somática é formulada. De fato, pude observar que, ao lado da queixa somática insistente de alguns pacientes, também encontrava aqueles que muito raramente faziam referência a algo do corpo durante suas sessões. Alguns chegavam mesmo a dar a impressão de que o corpo havia ficado "para fora" do espaço analítico, como se o corpo só existisse em negativo (Fernandes, 2002 & 2006).

Na colocação acima, Fédida expressa a preciosa ideia de que o que se passa na situação analítica, sobretudo, eu diria, em certos momentos de uma análise, dirige-se ao corpo do analista. Uma melhor compreensão dos processos transferenciais implica considerar seriamente que o analista escuta também com o corpo e, à semelhança da alteridade materna, acolhe em seu próprio corpo os efeitos do sofrimento do outro. Creio que considerar a especificidade da metodologia psicanalítica envolve levar isso a sério, garantindo, assim, ao trabalho de teorização sobre a clínica, a possibilidade de incluir as consequências de seu próprio instrumento metodológico.

Pois, em psicanálise, a construção teórica não pode ser compreendida apenas como uma mera formulação de um saber, mas como uma espécie de reedição, por meio do pensamento do analista, do trabalho psíquico que os processos inconscientes exigem tanto dele como de seu paciente. A matéria sobre a qual trabalha o analista, salienta P. Fédida (2000), "aquela de um sonho ou de uma fantasia - não é, de fato, somente uma produção do paciente, mas ela procede, no essencial, da capacidade alucinatória do analista na forma hipnoide de sua atenção (flutuante) assim como na vivacidade física das palavras da interpretação" (p. 7). Quer dizer, o trabalho de observação sutil que uma análise nos permite fazer não pode consistir unicamente na observação do funcionamento psíquico do analisando, mas também no funcionamento psíquico da dupla formada por analista e paciente, que, afetando-se mutuamente, constroem teorias sobre o funcionamento psíquico mais ou menos generalizáveis, mas dificilmente verificáveis.

Se Freud apresenta o trabalho analítico do paciente por meio das expressões "recordar", "repetir" e "elaborar", pode-se enfatizar que o trabalho do analista, parafraseando P. Fédida, consiste em receber, conservar e reconstituir. Sendo assim, talvez somente uma escuta capaz de reconstituir em sua delicadeza o clima onírico do sonho pode nos permitir receber e conservar, muitas vezes no próprio corpo, os traços de inscrição da dor do outro, e, assim, nos ajudar a compreender melhor a diversidade do funcionamento psíquico que se revela hoje, cada vez mais, através das formas corporais do sofrimento.

A partir daí, podemos retornar à nossa questão inicial - para a psicanálise, onde começa o corpo? A nossa argumentação, ao colocar em evidência a posição estratégica da alteridade na construção do corpo psicanalítico, assinala a relação transferencial como eficácia enigmática e, ao mesmo tempo, inegável na condução do processo analítico. Refletir sobre a especificidade das condições de escuta do analista implica considerar que, diante dos impasses que a clínica psicanalítica nos coloca no cotidiano, talvez somente uma escuta capaz de acolher a dimensão regressiva, própria dos processos transferenciais, como nos indica Fédida, possa nos permitir finalizar dizendo que, provavelmente, o corpo do qual se ocupa o psicanalista começa no sonho.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
MARIA HELENA FERNANDES
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Recebido 09.04.2016
Aceito 30.04.2016

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