CONTRAPONTO 2: TATUAGEM, MARCAS CORPORAIS

 

Uma pele-pergaminho: memória e publicação¹

 

Parchment-skin: memory and publication

 

 

Adriana Maria Nagalli de Oliveira

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, membro efetivo do GEPCampinas e representante regional da SBPSP em Piracicaba

Endereço para correspondência

 

 

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RESUMO

A autora reflete acerca do papel do corpo como ancoradouro e objeto de inscrição de um enredo traumático a ser publicado. Acompanhada pelas ideias de Freud e Bion, que são ampliadas com as aproximações utilizadas por Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão, experimento a incursão num universo que demanda subjetivação em um nível de linguagem das sensações representadas por tatuagens que ganham significado através de uma pele-pergaminho. Quando compartilho com o paciente a experiência emocional, na sala de análise, o sofrimento publicado passa a pertencer a um campo acessível à percepção e à digestão.

Palavras-chave: Trauma. Processo primário. Memória. Símbolos. Continente.

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SUMMARY

A meaningful psychoanalytical experience allows the author to think about the role played by the body both as an anchorage and an object of inscription of a traumatic event that is about to be published. Along with the ideas of Freud and Bion and broadening her gaze, with the help of Gabriel Garcia Marquez in One Hundred Years of Solitude, she experiments the entrance in a universe that demands subjectivation in a sensation language level, represented by tattoos that have their meanings revealed through a parchment-skin.

Keywords: Trauma. Primary process. Memory. Symbols. Continent.

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Tudo em minha casa tem existência.
Todas as coisas significo
Com os olhos ou com as mãos.
Minha casa tem silêncios
Que às vezes ouço.
Em meu corpo Tem silêncios maiores ainda
Que às vezes ouço. E faço poemas.
Faço poemas dos silêncios que ouço.

(Viviane Mosé)

Neste trabalho desenvolvo algumas reflexões acerca do corpo servindo como ancoradouro para a inscrição de um enredo traumático. Tais formulações são hipóteses observadas na experiência clínica de um jovem rapaz, arraigado à presença da morte.

 

Sem memória

Na entrada do caminho do pântano puseram um cartaz que dizia Macondo e outro maior na rua central que dizia Deus existe. Em todas as casas haviam escrito lembretes para memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tanta vigilância e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que acabava por ser menos prática, porém mais reconfortante. (García Márquez, 2010, p. 89)

Em Cem anos de solidadão, Gabriel García Márquez relata um interessante episódio. Os habitantes do mítico vilarejo Macondo sofreram um lapso significativo de memória. Tratava-se da insônia que se alastrava como uma peste, que afligia os moradores do povoado e cuja evolução era o esquecimento. Após o estado de excitada atividade e insônia, a memória dos membros da tribo se apagava. Primeiro as lembranças de infância, depois o nome e o sentido das coisas e das pessoas, e, num estado terminal, esqueciam-se por completo da consciência da própria existência, caindo em uma espécie de idiotice sem passado. Uma das tentativas de solucionar a perda de memória era a inscrição dos eventos, nas paredes, a fim de não esquecerem nomes e funções que as coisas tinham. Essa obra-prima de García Márquez conta a história fictícia dessa aldeia da América Latina, que também incumbe seus personagens a desvendar misteriosos pergaminhos que encerram a história dramática de uma família, e que serão decifrados apenas quando o último da estirpe estiver às portas da morte.

 

Venho para me despedir

Na sala de espera, encontro um rapaz bem franzino, pálido e escondido sob um boné, mangas longas, barba e cabelos compridos, com um semblante que denotava estar ali meio a contragosto, não manifestava traço de pensamento em seu olhar.

Diz, ao entrar na sala de atendimento: Foi insistência dos meus pais e da psiquiatra para voltar a fazer terapia. Minha mãe pode contar o que houve, não me lembro de nada. Já vou avisando que só estou de passagem. Quem quer são meus pais, mas essa história de contar sobre tudo que ocorreu é como estar diante dos médicos, não serve para nada, não evita nada, hoje é oi e tchau.

As palavras dele saíam com muita determinação. Quer dizer, sem me dar conta do que significava: "Parece que você veio para se despedir".

Os primeiros encontros com Lenny² eram desvitalizados e silenciosos, sem qualquer comunicação que tornasse evidente um elo intrapsíquico e interpessoal. As trocas afetivas e verbais que se iniciaram revelavam insuficientes recursos emocionais para elaborações. Sentíamos a presença de uma angústia esmagadora.

Quando ele saía, eu me perguntava o que era tão indizível. Alguma imensa onda de angústia deixara-o isolado de seu tempo, de seu eu e de seu espaço? Algo novo se construiria? Após inúmeras sessões, disse-me que uma experiência o colocara em contato com a morte, apenas isso.

Nessas idas e vindas, Lenny se apresentou. Abdicou do boné, passou a usar camisas mais leves, camisetas e bermudas, o que considero uma apresentação-revelação de sua liberdade adquirida aos poucos.

Notei inúmeras tatuagens em seus braços, cobertos de desenhos que versavam sobre a morte. Curiosamente, os caixões e caveiras desenhados em sua pele exibiam flores vermelhas, o sol e um céu azul, dentro de uma cova aberta com flores mortas ao redor. Contou-me que iniciara essas tatuagens após sua última cirurgia e apreciava comentar a forma como escolhia os desenhos e o motivo pelo qual haviam surgido. Disse-me que a tatuagem mais recente era a de uma caveira enrolada num ramo.

Comentou que se tatuar causava-lhe dor e prazer e lhe devolvia a sensação de estar vivo.

Retornou a tantas outras sessões, apresentando o que chamava de suas novas companheiras. Parecia estar encapsulado num nível mental de sensações e necessitado de uma mente e de um filtro para sua existência.

Disse que as tatuagens representavam dois temas: vida e morte. A morte já era conhecida, estava impregnada em seu corpo sob a forma de uma anestesia constante. Já a vida, experimentada nos cortes, compunha-se de imagens de sua própria criação. Dos escombros, caveiras e caixões, brotavam flores e sementes. Da mesma forma, a partir de imagens que lotam seu braço de caules secos e flores mortas, desenrolamos deduções, hipóteses e pensamentos espontâneos sobre a finitude.

Conversando sobre cada imagem, concebemos os rabiscos como uma ação, como uma imagem-ação ou uma imaginação criativa, para nos aproximar das angústias. Enquanto a vida, na sala de análise, acontece e desvela percepções e sentimentos, o caminho para estar na experiência emocional se inicia com a captura das imagens que publicam o que Lenny pode usar para falar em nome próprio e criar uma nova companhia para si, ele mesmo. Assim, Lenny vai em busca de sua história novamente, e me participa que, aos 18 anos, após o diagnóstico de tumor cerebral, passou a não se lembrar mais dos fatos. Mencionou que antes de sua última cirurgia, a mais radical, sofrera um apagão. Decidiu parar de comer, de falar e de sair. Não queria fazer mais nada além de, através de um site, tatuar-se. Apesar de suas noites e dias insones, animava-se, ao raiar do dia, a criar ou copiar um desenho para tatuar seu corpo. Sentia como pano de fundo que seu corpo estava "falindo" e seu sono só era possível por meio da indução. O escuro e o frio que o cercavam eram esquecidos mediante a dor dos cortes e o registro das imagens de uma experiência, a princípio, mortífera.

 

Elaborações

Depois de um longo período de silêncio, Lenny começou a con-tar sobre suas tatuagens e essa exploração encarregou-se de trazê-lo para nossa relação. Usando o corpo como tela, publicava sua situação traumática, em busca de elaboração. Enquanto escolhe os desenhos, continua sendo o autor de sua própria vida, deixando a morte para outra ocasião. É dono dela. Paradoxalmente, registra-a como se estivesse parado naquele tempo e espaço, um tempo de coma. Fascinado pelos desenhos em seu corpo, registra e conserva, como num pergaminho, a memória de parte de sua história.

Registrar na pele um sonho-sinal é compartilhar, publicar, tornar conhecido algo que pode ser recebido pelo analista, que se empenha em oferecer um sentido àquilo que conseguiu significar.

 

Um percurso teórico

As observações que até agora apresentei levam-me a supor que elas contêm enraizadas algumas hipóteses e considerações teóricas, encarnadas e introjetadas. Refletindo sobre as teorias, reconheço algumas ideias que servem como modelos para as discussões de minha experiência analítica com Lenny.

Freud (1990c) relaciona os traumas a um estado de desamparo provocado por um excesso de excitações com as quais o ego não é capaz de lidar. Nas "Conferências introdutórias", Freud diz: "Uma pessoa pode proteger-se de um perigo externo pela fuga; fugir de um perigo interno é um empreendimento difícil" (1990d, p. 107). Sendo assim, um trauma tem a força de penetrar na mente do indivíduo que, incapaz de contê-lo, reage sem condições de digestão, sem pensamento, sem experimentação e sem escape. Ao mesmo tempo, eclodem angústias impensáveis em meio a um profundo desamparo psíquico.

O princípio do prazer - processo primário - objetiva prazer e também evitar o desprazer. O princípio da realidade - processo secundário -, considerando a realidade, utiliza e desenvolve importantes funções da consciência: percepção, atenção e memória. Essas funções são utilizadas para a formação de pensamentos. De acordo com Freud (1990a), os dois princípios convivem, não sendo excludentes na atividade mental. É essa coexistência que pode proteger o ego de ficar empobrecido diante das inúmeras frustrações às quais estamos sujeitos. Além da consciência, que apreende a realidade, é a atenção que rastreia, busca e deposita, num sistema de notação (memória), os dados encontrados.

Bion acompanha algumas das concepções de Freud, considerando a natureza evolutiva dos pensamentos. Num tempo de dor e pavor, pacientes que sofreram severos abalos podem paralisar ideias e emoções, como se estivessem em stand by, com sua capacidade de pensar e de agir suspensa. Essa condição (ausência) não me parece ser uma barreira erguida contra o contato com o mundo externo ou uma dificuldade em expor pensamentos em palavras, mas um provável desmoronamento de grande parte da atividade mental e da subjetividade, que não nos convoca a interpretar fantasias inconscientes, mas nos disponibiliza a algo que ainda não foi construído sobre aquela experiência.

Supondo então que o corpo possa ser usado como veículo de expressão, a presença de inscrições (tatuagens) poderá revelar marcas, afetos, fantasias e desejos. O corpo, que agora pode "falar" por meio das tatuagens, representantes do próprio sujeito, encontrará, na presença viva do analista, a oportunidade para publicação. A tatuagem nasce como urgência de sobrevivência, de existência, e a realiza. Tal impacto estético, na superfície, inscreve e demarca, por meio de imagens-sensações, um território vivo com fronteiras dentro-fora que buscam uma ligação. Nesse sentido, a experiência corporal envolve processos complexos de investimentos, em várias direções, promovendo suas marcas psíquicas - sinais de si mesmo.

Segundo Bion (1994), o desenvolvimento do pensar depende da produção de sinais. Bion argumenta que o paciente teria, a princípio, que reunir elementos para formar os sinais que, ao serem agrupados, podem gerar pensamentos. Afirma ainda que "o escrever precedeu não só o falar, mas o pensar". Se o falar era incompreensível, significativo seria ouvir os sons como um assoviar sem melodia nem intenção. Assim, objetos são usados como sinais que possibilitam o pensar a respeito de objetos que não se encontravam presentes. Tais experiências, que envolvem paciente e analista em constante narrativa, geram um e outro.

O fato de haver um espaço mental que serve como continente para os pensamentos que podem vir a ser contidos e transformados capacita-nos a construir modelos, formar analogias, pensar pensamentos abstratos e desenvolver a capacidade figurativa. Essa relação particular que temos para crescer mentalmente cria uma espécie de expansão de condições de acesso a Verdade, portanto, a um alimento que promove recursos à saúde e ao sonho. Do impassível silêncio às marcas pensadas e relacionadas com o trauma, que ancoram no corpo e evocam emoções primitivas, o contato entre as mentes de um analista e de um analisando, em sintonia na dor, inaugura uma viagem rumo aos sentidos.

 

Considerações

Fédida escreveu: "Aquele, ao pintar uma árvore, não a representava, mas a tornava utilizável em uma nova realidade, através de sua sonoridade interior que nomeamos imagem" (citado por Barros, 1997, p. 1).

Conversar com alguém sobre o que de fato ilumina a percepção de si mesmo, suas fantasias e imaginações, favorece acordar para sonhar. É assim que nascemos e renascemos no encontro. Lenny parecia condenado à solidão por uma ausência de memória e pela falta de desejo de estar na vida. Seu retorno a ela, após significativa situação traumática, deu-se através do uso de uma expressão compactada de um conjunto de experiências emocionais registradas em seu corpo. Sua pele-pergaminho imprime tais experiências com uma permanência indelével, evocando emoções em linguagem própria. As imagens que vão sendo registradas apresentam-se como uma metáfora ou como um conhecimento virtual que representa o real. Essa linguagem lhe oferece domínio e sustentação para sua identidade, ferida pelas circunstâncias. É seu canal de comunicação, de publicação.

Nas configurações iniciais que apresentei, ao ilustrar o sofrimento psíquico de Lenny, o corpo entra em cena como elemento para incipientes elaborações. As tatuagens, registrando sua memória, converteram seu corpo em objeto de publicação, expondo sua verdade numa experiência emocional que podia ser compartilhada. Toda vida psíquica nasce graças ao auxílio de outra vida psíquica. Toda dor, num momento de impacto, limita as condições do pensar, dando lugar a um desabamento ilimitado e por vezes insuportável. O que restaura a percepção é a dor circunscrita num campo possível de acesso e digestão. A dor testemunha um corpo vivo que pode acordar a mente para a experiência e os afetos.

Termino minhas reflexões com uma passagem de García Márquez:

A cidade, também, é condenada pela solidão. Eventualmente abandonada por seus habitantes, Ma-condo se resume apenas a uma coisa: ao amontoado de memórias que nela reside. No momento em que Aureliano Babilônia compreende os manuscritos de Melquíades, toda a história da família se re-vela, inclusive a sua própria e ao mesmo tempo que ele a lê, a vivencia. (2010, p. 389)

 

REFERÊNCIAS

Barros, E. M. da R. (1997). O pictograma afetivo: das pulsões à arte de criar significados. Trabalho apresentado em Encontro Psicanalítico do Interior.         [ Links ]

Bion, W. R. (1994). Uma teoria do pensar. In Estudos psicanalíticos revisados (pp. 127-137). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962).         [ Links ]

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Nolan, C. (2001). Amnésia. São Paulo: Paris Filmes. (Filme original apresentado em 2000).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
ADRIANA MARIA NAGALLI DE OLIVEIRA
Rua Professor José Salles, 79
13403-856 - Piracicaba - SP
tel.: 19 3434-1679
amnagalli@gmail.com

Recebido 23.09.2016
Aceito 29.10.2016

 

 

1 Trabalho apresentado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e no Congresso Latino-americano de Psicanálise em Cartagena das Índias, Colômbia.
2 O nome escolhido, Lenny, faz referência ao personagem do filme Amnésia (Nolan, 2001). No roteiro, após um trauma, um homem perdeu a habilidade de memorizar qualquer acontecimento recente. Vivia cada instante como se fosse único. Sua memória não guardava coisa alguma por mais de uns poucos minutos. Tentou superar sua deficiência impondo-se uma disciplina sistemática, registrando todos os acontecimentos, anotando qualquer pequeno fato no próprio corpo, tatuando-o. Afinal, se o real lhe escapava, inventou um artifício que mantivesse e fixasse os fatos.