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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo July./Dec. 2017

 

EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA

 

O paradoxo do mesmo e do outro: análise de uma tirinha de Laerte

 

The paradox of the same and the other: analysis of Laerte's comic strip

 

 

Luiz Moreno Guimarães

Doutorando no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) e estudante de letras clássicas na mesma universidade (FFLCH-USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretende-se examinar uma tirinha de Laerte, que aborda o tema da repetição literal, evidenciando a singular posição da personagem. Para isso, propõe-se pensar a tira - em comparação com o filme Feitiço do tempo (1993) - como uma possível resposta a alguns dos problemas formulados tanto por Nietzsche, ao nomear o eterno retorno, como por Freud, ao analisar a compulsão de destino. De tal forma, o objetivo mais geral é contribuir para a investigação psicanalítica do destino, através de uma análise específica.

Palavras-chave: Tira. Destino. Eterno retorno. Repetição.


SUMMARY

We aim to examine one of Laerte's strips, which addresses the theme of literal repetition, highlighting the singular position of the character. For this, we propose to think of the strip - comparing to the film Groundhog Day (1993) - as a possible answer to some of the problems formulated by both Nietzsche in naming the eternal return and Freud in analyzing the destiny compulsion. In such a way that our more general purpose is to contribute to the psychoanalytic investigation of destiny, through a specific analysis.

Keywords: Comic strip. Destiny. Eternal return. Repetition.


 

 

não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino

(Leminski)

Quando um homem é apresentado à imagem de seu Destino, pode ser acometido por uma ânsia de evitá-lo. É o caso de Édipo -, que acaba, aliás, por agir exatamente em conformidade com o Oráculo. Porém, pode ocorrer de a reação ser oposta, uma adesão tão completa à fatalidade que chega a arrastá-lo para antes de seu tempo. Essa outra posição é tão complexa e prenhe de consequências quanto à do tyrannus de Tebas, e foi bem representada nesta tirinha de Laerte1:

 

 

O paradoxo do Mesmo

O ponto de partida da tirinha de Laerte é a descoberta de que a vida comporta uma inusitada repetição: "Lendo meu diário, um dia, vi como meus dias eram idênticos", fala o personagem. Dito assim, contudo, ainda que se destaque a particularidade da reincidência (a identidade dos dias), deixa-se de lado o aspecto terrível dessa revelação. Um dia meus dias me abandonaram: adiaram-se ou adiantaram-se, não sei... sei apenas que eles se foram, ou sequer existiram... e deixaram um único exemplar. Minha vida é a reedição incessante de um mesmo dia2. Inicia-se com essa arrepiante evidência: estou preso no idêntico.

Nietzsche chamou essa experiência de "o mais pesado dos pesos" (1882/1978, p. 193): o reconhecimento do eterno retorno. Note-se que o mais pesado dos pesos não é propriamente o viver, e sim o saber, que só se vive o eterno retorno - é o evidenciar em si que cria o fardo.

E logo de imediato sobrevém uma ideia medular. Esse reconhecimento é, antes de tudo, paradoxal: quem o realiza, como o personagem de Laerte, por um lado, sente a presença contínua de um outro, que o implica e é indiferente a sua intenção consciente; por outro lado, percebe que esse outro é um Mesmo, que se reedita dia após dia. Ou seja, numa face encontramos uma alteridade que o atravessa; noutra, uma alteridade que não se altera. O vislumbre inicial do eterno retorno é uma operação antitética que coloca em contato dois termos a princípio opostos: surpresa e repetição. Algo similar ao duplo sentido da expressão de novo, ora empregada como novidade ora como recorrência. O alter em mim atende sob o nome de Mesmo, e o Mesmo é a alteridade que cotidianamente me atravessa. O que há de mais surpreendente em minha vida é a imutável rotina. O mais pesado dos pesos, o mais farto dos fardos, é o paradoxo da revelação do Mesmo: terrorífica indistinção que agora distingo; idêntico que se me apresenta como alheio; uniformidade que me deforma; consubstanciação dos dias que me multiplica. Inaugura-se, assim, o seu apocalipse particular.

 

Questões iniciais

A preocupação nietzschiana, no exato momento em que introduz a ideia do eterno retorno em sua obra, recai sobre as consequências psíquicas que esse "pensamento abissal" poderia desencadear. A formulação parte de um demônio que se inclina sobre seu desamparo e diz:

Esta vida, assim como tu a vives agora e como tu a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira! (1882/1978, p. 193)

Ao que sobrevêm as indagações de Nietzsche: "Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: 'Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!'" (1882/1978, p. 193). Amaldiçoarias o demônio que te amaldiçoa? Ou o louvarias por permitir repetir os instantes descomunais e belos? A questão é grega por excelência: o δαίµων (daímon, demônio) que te revelou o eterno retorno é um εύδαίµων (eudaímon, bom demônio) ou um κακοδαίµων (kakodaímon, mau demônio)? É claro que o autor de Para além de bem e mal ultrapassará essa questão, mas é ela que surge em um primeiro momento. E destaca-se como não se questiona a existência do eterno retorno (este está dado), mas sim quais as consequências psíquicas de seu reconhecimento. Não à toa Nietzsche se autonomeava psicólogo.

Nesse ponto Freud teria algo a problematizar. A repetição - por si só - não estraga qualquer prazer que possa existir? "Nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos", escreve Goethe, ao que Freud (1930/2010, p. 31) comenta: "Mas isso pode ser um exagero"; o que talvez não fosse um exagero se acrescentasse uma palavra: nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos e idênticos. A felicidade - que é amante do contraste e inimiga do estado - se esvai diante do Mesmo, independentemente se o repetido é descomunal ou não. Como quando uma piada é ouvida inúmeras vezes - agrada quando nova, entedia ou enfurece quando gasta, e passado certo limite difícil de delimitar causa apatia: a graça não nasce da identidade, e o monótono converte tudo em seu igual. A repetição, adverte-nos Freud (1920), pode nos levar para além do cálculo econômico prazer/desprazer.

O problema é clínico - e é Nietzsche quem o formula. Quais são os efeitos psíquicos do saber sobre o eterno retorno? Uma vez instaurada a antitética revelação do Mesmo, como pode o homem se portar perante ela? Ou, tal como Aristóteles se refere à arte, como poderia ele se portar? E, uma vez confrontados com essas questões, é preciso ainda enfrentar esta: é possível atravessar essa experiência que nos atravessa?

Nossa aposta será buscar na (e com a) tirinha de Laerte uma resposta a essas preocupações clínicas de inspiração nietzschiana. Como esse indiscernível rapaz desenhado se posiciona e, portanto, responde ao problema abismal? O trabalho, assim, divide-se em (1) evidenciar a singularidade de um posicionamento ante a revelação do Mesmo, em comparação com posturas opostas; (2) inserir esse posicionamento num âmbito maior, em diálogo com algumas das questões formuladas por Nietzsche, ao nomear o eterno retorno, e por Freud, ao analisar a compulsão de destino; e (3) aludir a algumas consequências analíticas a partir do nosso percurso.

 

Feitiço do tempo

Comecemos por investigar os efeitos psíquicos do reconhecimento da repetição incessante e demoníaca. Numa pergunta: o que muda quando nada muda?

No filme Feitiço do tempo (Ramis, 1993) encontramos uma forte expressão do sofrimento de quem se reconhece capturado por essa forma de reedição. Phil Connors (interpretado por Bill Murray) é um repórter de televisão responsável por fazer as previsões meteorológicas (the weatherman) que cultiva uma engraçada e, ao mesmo tempo, odiosa superioridade em relação aos outros. A trama começa quando Connors é enviado a contragosto para a cidade de Punxsutawney, no interior do estado da Pensilvânia, para reportar a abertura do Dia da Marmota (Groundhog Day, 2 de fevereiro); sua intenção é fazer o trabalho e ir embora o mais rápido possível daquela atmosfera provinciana. Uma tempestade intensa, contudo, o impede de sair da cidade ao final daquele dia. Lá então dorme e, ao acordar, estranha a recorrência dos acontecimentos do dia anterior: a mesma música no radiorrelógio, a mesma sequência de encontros e falas, o mesmo festival... Nesse dia, tudo está igual, tintim por tintim, no dia seguinte, também. Logo percebe que está preso no tempo, que está condenado a reviver - talvez para sempre - os eventos daquele dia 2 de fevereiro. "I'm reliving the same day, over and over", diz Connors, "E se não houver amanhã? Hoje não houve".

O filme mantém com elegância o tom cômico, e é talvez justamente por isso que ele consiga transmitir com realismo a inversão brutal que ocorre na vida do protagonista: aquele que antes supunha viver em um fluxo contínuo de novidades, tendo apenas experiências esporádicas de repetição, agora sente sua vida como um contínuo déjà vu, sem nenhuma novidade episódica. Eis então que o homem do tempo percebe que seu problema é temporal, no duplo significado da palavra, como relativo ao tempo e como tempestade intensa: "Será frio, será cinza e irá durar o resto de sua vida", profetizando um inverno infernal para si mesmo.

Em um primeiro momento, o filme pode ser entendido como um grande catálogo das respostas advindas do encontro com o Mesmo3. São tantas e tão variadas as reações do personagem ante a recorrência do mesmo dia, que se cria o paradoxo da ampla diversidade no interior da repetição. Dá-se, porém, que essas condutas podem ser recolhidas em dois grupos que formam uma oposição.

Um conjunto de reações pode ser reunido sob a rubrica de uma passagem de Macbeth: "Se a sorte me quer rei, há de coroar-me/ Sem que eu me mexa" (Shakespeare, 1623/2009, p. 29); ou está exemplificado de forma vulgar - mas eloquente - em uma pergunta de Žižek: "Se o futuro já está de antemão decidido, por que eu simplesmente não passo o dia vendo pornografia e bebendo limonada?"4. Se eu estou preso, que eu viva então como um presidiário, desfrutando pequenos prazeres - afinal, minhas ações são impotentes diante dessa volta sem fim. Nesse grupo, inclui-se toda uma gama de não respostas de Phil Connors: dias inteiros deitados na cama, ou vendo televisão, ou apenas trancado em seu quarto sem fazer nada, ou comendo compulsivamente, assim por diante. Apesar de essa postura parecer uma resignação, há conflito em jogo: trata-se de uma paralisia confrontativa em relação ao Mesmo, é inércia contra inércia - em face da inércia do Mesmo, responde-se com a inércia do Eu. Se o Destino existe ou insiste, ele então que me arraste.

Outro conjunto de respostas, oposto a esse, pode ser definido pelo esforço angustiado de introduzir um elemento novo. Procurando furtar-se do círculo ininterrupto, Connors se esforça para incluir uma modificação, na esperança de que o amanhã se torne de fato um amanhã e não um hoje de novo - inicia-se assim uma luta direta contra o Mesmo. O que une esse conjunto de respostas é o objetivo de impedir que o Mesmo retorne; e isso vai desde pequenos gestos (quebrar um lápis e o deixar no criado-mudo ao lado da cama na expectativa de não o reencontrar inteiro novamente no amanhã-hoje), passando por tentativas mais ousadas (fazer-se preso na esperança de não acordar na mesma cama), chegando até o suicídio, que aparece como opção que, como todas as outras, fracassa: mata-se, mas novamente encontra-se no próximo-mesmo dia com a mesma música, tocada pelo mesmo despertador - que acorda, mas não desperta. O retorno do mesmo dia é tão absoluto que nem a morte o separa do Mesmo, sua situação é digna de um dos círculos do inferno de Dante. Nesse caso, suas ações mostram o desespero de quem atira para todos os lados tentando acertar o alvo da diferença.

 

Entre dois quadrinhos

É precisamente essa posição - de quem luta, com inércia ou com ações, contra a repetição - que o personagem da tira de Laerte não assume: quando se reconhece habitado pelo Mesmo, ele não entra em um trabalho frenético de modificá-lo, resguardando-se atrás de ações vãs em busca do resgate de sua suposta autonomia; mas também não se rende à inércia confrontativa, a essa via da prostração, numa luta silenciosa contra um suposto poder transcendente; ao contrário, tudo se passa como se ele soubesse que "o esplendor da manhã [ou do amanhã] não se abre com faca" (Barros, 2009, p. 7), à força, e que também não se abre com o fio da faca, com a inércia; e com uma criatividade chistosa, ele passa a escrever o porvir do Mesmo. "Passei a fazer notas de dias ainda por vir." A simplicidade e a beleza com que se deixa conduzir, em uma situação que para outros causaria apatia ou desespero, já revela por si só um ato de aceitação: eis que ele se torna aquilo que em si lhe é mais alheio. Seu contato com o Mesmo irá conduzi-lo a se experimentar como oráculo de si mesmo.

Não se trata de dizer que tudo já está escrito, portanto, nada pode ser mudado, nem de forçar a introdução de um elemento novo no Livro do Destino, mas de reconhecer que existe algo que precisa ser escrito/inscrito, por isso, ao trabalho. Não se trata de se entregar passivamente ao crônico nem de lutar para descronificá-lo, mas sim de assumi-lo. Esse ato sublime de aceitação está na passagem do primeiro para o segundo quadrinho, no entre-dois-quadrinhos - é ele que define a singularidade desse posicionamento e que desencadeia intensas consequências. Antes de tentarmos delimitá-las, vamos nos deter um pouco mais nas características dessa forma de repetição, vendo quais questões ela trouxe para Freud.

 

Compulsão de destino

É certo que Nietzsche não se referia ao retorno de um único dia, mas da vida inteira: "não há vida eterna; esta vida é eterna" (Marton, 1992, p. 219). Mas o essencial é que a paridade é tão absoluta, que a literalidade da reedição - seja a de um dia ou de uma vida - é tamanha que o conteúdo se torna desimportante.

O que vem para primeiro plano é a própria repetição, podendo variar o repetido. Na tirinha, os acontecimentos do dia jamais são mencionados - porque pouco importam: o essencial é que eles não mudam.

A ideia nietzschiana do eterno retorno, que, segundo Milan Kundera, "conseguiu dificultar a vida a não poucos filósofos" (2008, p. 9), parece também destinada a dificultar a vida dos psicanalistas. Freud a evoca na terceira parte de Além do princípio do prazer: inicialmente em meio à descrição de um dos quatro fatos clínicos que contribuem para a ruptura do pressuposto de que o aparelho psíquico sempre busca o ganho de prazer ou a evitação do desprazer5. Há pessoas em cujas vidas se repetem sempre os mesmos acontecimentos que lhes causam insistente desprazer: benfeitores que, após algum tempo, são rancorosamente abandonados e revivem o fado da ingratidão: homens que sempre são traídos pelos amigos; pessoas cujas relações amorosas reproduzem sempre o mesmo script, conduzindo ao mesmo fim; até a "história da mulher que se casou, três vezes seguidas, com homens que em pouco tempo adoeciam e requeriam os seus cuidados no leito de morte" (Freud, 1920/2011, p. 182). "Nelas dá-se a impressão de um destino que as persegue, de um traço demoníaco [dämonisch, δαίµων] em seu viver" (Freud, 1920/2011, p. 181). O termo usado por Freud, que se liga ao eterno retorno, é Schicksalzwang, que literalmente significa compulsão de destino, mas sua apresentação se associa de tal modo à descrição de um quadro clínico, que ficou conhecido como neurose de destino.

No entanto, como de costume na investigação freudiana, sua análise não se restringe a uma descrição de uma face clínica recorrente. Como destaca Pontalis (1970), boa parte dos estudos de Freud (tal como o sobre o narcisismo, o fetichismo ou o masoquismo), longe de procurar constituir nosografias específicas (ambição da psiquiatria), intenciona fornecer indicações globais do funcionamento do aparelho psíquico. "Eu me preocupo com o fato isolado", escreveu Freud em uma carta a Lou Andreas-Salomé, "e espero que dele jorre o universal" (1975, p. 44). Nesse caso, partindo da análise do fato isolado (da neurose de destino), Freud encontrará o jorro do universal na...

 

... repetição demoníaca

Tanto na tirinha de Laerte como no filme Feitiço do tempo, destaca-se uma forma distinta de repetição, cujo aspecto principal é a literalidade. Não se trata de uma atualização de uma cena com outros personagens, de uma reedição modificada da constelação; não há substituição ou deslocamento. Que forma de repetição é essa?

Uma passagem de Moisés e o monoteísmo nos ajuda a pensar esse ponto:

Pelas análises individuais, averiguamos que as impressões mais precoces, recebidas em uma época em que a criança tinha precária capacidade de linguagem, exteriorizam-se, em algum momento, em efeitos de caráter compulsivo, sem que se tenha delas uma recordação consciente. (1939/2006, p. 125)

É diferente da repetição edípica, em que se reeditam as vicissitudes singulares do complexo de Édipo; em que, por exemplo, o paciente volta a atuar sua posição no drama infantil, tomando o analista como par, no interior do cenário transferencial. É diferente também da repetição narcísica, em que se reeditam as particularidades da edificação do Eu, a especificidade da "nova ação psíquica" (Freud, 1914/2010, p. 18) que o fundou, bem como a imagem da criança maravilhosa (Leclaire, 1977), a herança narcísica que se transmite de pais para filhos. O que se repete na repetição pura são impressões precoces, que alcançam a criança incapaz de elaborá-las com a linguagem; são inscrições muito remotas, que não encontraram forma alguma de ligação; são "marcas mnêmicas ingovernáveis que às vezes se disfarçam de destino" (Marucco, 2007, p. 128)6. E essa reprodução é atravessada pela angústia, que é a maneira retroativa de ligar, de estar preparado para aquilo que aconteceu. A rigor, é essa forma de repetição que Freud destila como pano de fundo da compulsão de destino, e que caracteriza como demoníaca; chegando a criar a expressão compulsão demoníaca [dämonischen Zwanges] (1920/2011, p. 201).

Diferente das outras formas clínicas que destacamos (a narcísica e a edípica), na repetição demoníaca encontramos traços que estão para além de uma conjectura representational. E, por se tratar de inscrições no limiar da linguagem, perde-se a possibilidade de deslocamento e de condensação (presentes nas outras formas) - tais marcas mnêmicas não ligadas exteriorizam-se literalmente, algo similar ao sonho na neurose traumática, como se os anos ou as décadas não tivessem passado; daí André Green (2000) caracterizar essa forma como o assassinato do tempo. Jogado numa sincronia atemporal, com uma imensa dificuldade de nomear o que se está revivendo, diante da repetição demoníaca sente-se sem recursos. Nela o sujeito se encontra abandonado não pelos homens, mas pela "sagrada pureza da linguagem" (Sófocles, 2012, p. 78).

A partir daqui é possível um passo em direção ao jorro do universal. Assim como, de acordo com a teoria da sedução, Freud definiu a etiologia da neurose a partir de uma experiência de ordem sexual pré-sexual, temos na origem dessa forma de repetição um acontecimento psíquico pré-psíquico. Ao final de Introdução à psicanálise das neuroses de guerra, Freud menciona a existência de uma "neurose traumática elementar" (1919/2011, p. 388). Em toda neurose - e talvez em toda forma psíquica, em todo humano -, haveria algo como a repetição de um trauma elementar; trauma esse que, ao mesmo tempo, fundou o ser-Psique e restou como traço mnêmico a ser elaborado: o trauma de ter se tornado humano.

Diante daqueles que acreditam que a arte (da tirinha ou do filme) é só um exagero ou que se refugiam num diagnóstico alheio, o demônio evocado por Nietzsche se desdobraria em gargalhadas, e diria algo como: Tu lês tudo ao contrário: vê hipérbole num eufemismo - tua vida é um eco infinito de um ato de fundação que desconheces.

O jorro do universal da compulsão de destino pode levar a investigação psicanalítica a longínquos campos. Como inscrever no psiquismo aquilo que o fundou? Como realizar a elaboração da neurose traumática elementar? É notável como essas questões são tão abissais quanto aquelas que sobrevêm ante o reconhecimento do eterno retorno7.

 

Transformando destino em trabalho

Feito esse percurso por Freud, que visou apenas delinear algumas questões advindas da investigação da literalidade da repetição, é hora de voltarmos à análise da tirinha.

Insistimos que sua genialidade está justamente na passagem do primeiro para o segundo quadrinho. Nesse intervalo, o personagem realizou uma aceitação do Mesmo que o habita, mas não apenas isso: iniciou a transformação do Mesmo em trabalho. "Dava certo" tomar para si, como seu trabalho, aquilo que lhe é ao mesmo tempo mais estranho e mais recorrente em sua vida - deu certo. Tudo que vem depois surge como um desencadeamento necessário, evidenciando que de fato ele assumiu essa posição e se deixou levar por ela até as últimas consequências.

Mas que trabalho é esse? É um trabalho de escrita, de escrever-se, ou melhor, de escrever o si. E, ao transformar a repetição demoníaca em trabalho de escrita, ele se responsabiliza pela experiência do Mesmo, o que em seu caso significa antecipá-la. Assim, ele perverte - no sentido etimológico de virar completamente, pôr às avessas - o uso comum do diário: de registro dos acontecimentos novos do passado para o registro do idêntico do futuro. Lendo o Mesmo do passado decidi me tornar o Mesmo do futuro.

Convém dizer também que, onde há o transformar destino em trabalho, há uma pitada da teologia calvinista: "Os reformadores acreditavam que só podiam preservar a ideia super-humana de Deus identificando completamente com Seus caminhos, e não procurando justificá-los ou explicá-los pelos padrões humanos" (Hauser, 2007, p. 108). Também na tirinha o caminho é identificar-se completamente com seu único caminho.

 

Imagem mitológica, texto trágico

Há uma singular conjunção entre texto e imagem nessa tirinha de Laerte. Enquanto as frases nos apresentam o encadeamento dos pensamentos do personagem, os desenhos retratam a proliferação do trabalho de escrita. Por um lado, descobertas surpreendentes e vertiginosas; por outro, um trabalho repetitivo e enfadonho. O texto é um processo de revelação, repleto de peripécia e reconhecimento, aproximando-se, assim, da tragédia; como Édipo, de Sófocles, que, após intensa investigação, chega ao ponto de descobrir sua própria identidade. Já a imagem assume o caráter de uma típica punição da mitologia grega, como quem tem de refazer o mesmo trabalho todo dia, e-ternamente e sem ternura; como Sísifo, empurrando sempre a mesma roda morro acima, como as Danaides, reenchendo sempre o mesmo tonel, como Prometeu, reconstituindo seu fígado à noite para ser devorado no dia seguinte... Na tirinha, a multiplicação que sofre o personagem na imagem contrasta com a redução dos dias no texto: a imagem caminha para o infinito, o texto se dirige para o terminal.

 

Falta pouco

Transformar a repetição literal em trabalho, posicionando-se chistosamente diante do Destino, teve duas consequências. Primeiro, um magnífico descentramento temporal: "Hoje, já estou 17 anos à minha frente". Depois,"Falta pouco". Mas falta pouco para o quê? Para se chegar ao ponto limite do trabalho fundado na identificação com o Mesmo; para a escrita do dia que não será idêntico a todos os outros, para a descrição do dia de sua morte, da própria morte, antecipadamente. O dia em que não restará nenhum dia. A única certeza é que terei uma experiência incerta.

De tal forma que três surpresas acometem o leitor da tirinha. A primeira é o singular posicionamento desse personagem perante o Destino; a segunda é o descentramento temporal em que ele se encontra; e a terceira é o pressentimento de uma proximidade do que não pode ser escrito. Três grandes surpresas partindo de um trabalho simples e constante, como um homem que leva adiante uma especulação só para ver até onde ela pode conduzi-lo.

Ao final, a tirinha é alusiva, é como se dissesse que será a escrita do que não pode ser descrito que retirará o personagem da recorrência dos dias idênticos. O crescimento desenfreado da imagem não teria término a não ser por: "Falta pouco" - o confronto trágico introduz um ponto-final ao trabalho mitológico sem fim.

 

A ruptura pela mera continuidade

Vale ressaltar que a estrutura dessa tirinha de Laerte vai além da sequência comum das tirinhas em geral, nas quais primeiro se configura um contexto (aquilo que os comediantes chamam de setup) e depois, no último quadrinho, advém a quebra do sentimento induzido pelo contexto (o que os comediantes chamam de punchline). Essa ruptura é a fonte do riso. Algo que Freud já ha-via formulado em seu livro sobre os chistes e que é retomado em seu artigo de 1927: "a essência do humor consiste em que o indivíduo se poupa dos afetos que a situação ocasionaria e, com uma piada, afasta a possibilidade de tais expressões" (1927/2014, p. 324). Também nas tiras trata-se de poupar-se dos afetos induzidos, afastar-se de suas expressões, fraudar uma disposição. Assim, se a tragédia evoca determinados afetos (temor e piedade, como dizia Aristóteles) para depois purgar-se/purificar-se deles, o humor também os evoca, mas não para atravessá-los, e sim para esquivar-se deles. As tirinhas em geral operam esse desvio na passagem do penúltimo para o último quadrinho; na tirinha de Laerte, entretanto, ocorre uma antecipação: o punchline, a quebra de expectativa, ocorre já no segundo quadrinho, no entanto, segue-se adiante formando um novo setup, que é rompido alusiva e paradoxalmente pela mera continuidade. Há, com isso, duas rupturas nessa tirinha de Laerte: a primeira é humorística (o punchline do segundo quadrinho): desvia-se do afeto evocado; a segunda é trágica (a ruptura pela mera continuidade do quarto quadrinho): atravessa o afeto evocado. Esquematizando:

 

 

No Museu do Humor de Buenos Aires, encontram-se duas tirinhas - muito espirituosas - de Guillermo Mordillo, que podem nos ajudar a explicar esse ponto. Na verdade, trata-se de duas versões de uma mesma historieta. Um homem se encontra em uma ilha deserta e minúscula, fazendo repetidamente uma atividade entediante, esperando o tempo passar: jogando dardos em um alvo inclinado encostado em uma pedra (primeiro quadrinho). No horizonte se aproxima um barco com uma mulher dentro (segundo quadrinho); ela se aproxima ainda mais e percebemos que ela está cheia de vitalidade e de amor para compartilhar, uma linda mulher que corre de braços abertos em direção ao solitário jogador (terceiro quadrinho). Numa ruptura interessante (quarto quadrinho), o que ocorre é que, nos braços abertos da linda mulher que chega, o jogador de dardos encaixa seu alvo, agora não mais inclinado, e continua refazendo entusiasmado a sua atividade. Em uma segunda versão da mesma história, encontramos uma inversão dos personagens: é uma mulher que se encontra na ilha deserta, tricotando; chega um belo homem de braços abertos que corre em direção à solitária tecelã; e eis que ela usa os braços abertos do homem como suporte dos fios, para melhor tecer. São dois exemplos que deixam claro a estrutura usual das tirinhas e que ajudam a pensar a ruptura que advém de uma mera continuidade.

Aquele que chega (o novo) é usado por aquele que lá se en-contra (o antigo), para melhorar o desempenho da atividade que a princípio se mostrava repetitiva e entediante. A peripécia é clara: o que se mostrava como atividade solitária e secundária, que só fazia sentido na ausência do outro, revela-se, com sua chegada, a atividade por excelência. A alteridade é submergida em um circuito representacional prévio; e nós rimos do narcisismo dos personagens: "O narcisismo está onde se retira da alteridade a sua capacidade de alterar" (Guimarães & Endo, 2014, p. 445). A chegada do novo não modifica a repetição, ao contrário, incrementa-a; a saída do círculo sem fim há de advir de outra forma.

A ruptura aqui é a quebra da expectativa de ruptura. Tudo muda pelo fato de que nada muda; assim como nada muda quando tudo se altera. Na Poética (9:1), Aristóteles define a περιπέτεια [peripécia] como a reviravolta dos acontecimentos. A ruptura pela continuidade (ou, ainda, a peripécia negativa): é também uma reviravolta nos acontecimentos, mas causada pela ausência de um acontecimento no exato momento em que se espera uma reviravolta.

 

 

O Clandestino

A etimologia da palavra mesmo aponta para o termo latino metipsimus, formado pelo superlativo de ipse (-ípsimus) e a partícula de reforço met-. Para dar conta dessa composição, dessa espécie de redundância, que se perdeu em nosso mero mesmo, Lacan propõe: "mais em mim do que mim mesmo" (1986, p. 233).

"A minha fórmula para a grandeza do homem é o amor fati [amor ao fatum, amor ao destino]", propõe Nietzsche, "nada pretender ter de diferente, [...] nada por toda a eternidade. O necessário não é apenas para se suportar, menos ainda para se ocultar [...], mas para o amar" (1888/2010, p. 57). Ante o eterno retorno, o amor fati não o substitui pelo amor, como faz Phil Connors, ao final do filme, mas passa a amar o próprio destino. Sendo que o efeito dessa operação é a dessubjetivização: "Afirmar sem reservas o fatum equivale a aceitar que ele se afirme por meio de nós" (Marton, 1992, p. 219), equivale a ser porta-voz do círculo, tal como indicava Zaratustra.

A posição proposta pela tirinha de Laerte pode ser entendida como uma variante da fórmula nietzschiana: ambas partem do mesmo ponto - a saída do círculo sem fim é simplesmente habitá-lo. Inversão simples, mas com consequências monstruosas: o que o homem pode fazer ao reconhecer seu destino é ser um destino que se torna homem. O eu-tirinha também se torna o porta-voz do círculo, permitindo que o fatum se afirme através de si; mas há algo que o distingue da via do amor fati.

Perante o mais pesado dos pesos, o mais farto dos fardos, em face do Mesmo, da alteridade que não se altera, o personagem da tirinha de Laerte simplesmente não foge, não se resguarda atrás de uma luta (com inércia ou com ações) contra o pensamento abissal, contra a repetição demoníaca; ao contrário, com uma criatividade chistosa, ele se torna aquilo que em si lhe é mais alheio: assume o trabalho de escrita do porvir do Mesmo; trabalho árduo como uma punição mitológica sem fim, mas repleto de peripécias e reconhecimentos trágicos: imagem progressiva, infinitizadora (∞) - texto regressivo, terminal (0); eis que me fiz clandestino no interior do meu próprio destino; sua clandestinidade (e não o seu amor, como queria Nietzsche) permite que ele acelere o processo, que ele retire o tempo de seu eixo: sua aceitação do Mesmo o conduz à frente de si mesmo; 17 anos se passaram e falta pouco para o momento decisivo da escrita, é hora e vez de introduzir a morte na vida.

Aproxima-te de teu Mesmo e Nele encontrará o seu próximo. O Clandestino é uma pista para pensarmos na elaboração do trauma do devir-humano.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
LUIZ MORENO GUIMARÃES
Avenida Paulista, 807/714
01311-915 – São Paulo – SP
tel.: 11 97159-6180
luiz.moreno@usp.br

Recebido 11.08.2017
Aceito 12.09.2017

 

 

1 Agradeço a Laerte Coutinho pela autorização da publicação.
2 As frases em itálico, ao longo do artigo, são como se o "eu-lírico" da tira nos falasse e como se nós mesmos vivenciássemos essa experiência - afinal, de te fabula narratur [a fábula fala de ti].
3 Designamos como Mesmo a vivência do eterno retorno; essa experiência antitética que, de uma só vez, atravessa o homem enquanto outro e impõe o reconhecimento de ser refém da repetição. O Mesmo é a alteridade que não se altera.
4 Palestra não publicada, Calvinism is Christianity at its Purest, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ohNbDnlQp78.
5 Os quatro fatos clínicos que levam Freud a colocar em xeque a proeminência do princípio do prazer na organização da economia psíquica, na ordem apresentada, são: os sonhos das vítimas de neurose traumática; o impulso que levam as crianças a brincar; a conduta do paciente na transferência; e o Destino das pessoas.
6 Sobre essas diferentes formas de repetição, conferir Green (2000) e Marucco (2007).
7 Como observa Ignácio Assis Silva (1995, p. 25), a partir de uma colocação de François Peraldi: "Freud teria podido abster-se por muito tempo de ler Nietzsche precisamente porque Nietzsche tinha chegado às mesmas conclusões que ele, mas de uma maneira muito mais rápida e 'pelas vias da intuição', ao passo que Freud, para chegar aí, teria precisado de percorrer as trilhas 'áridas do encaminhamento científico'".

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