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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo July./Dec. 2017

 

EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA

 

As três imagens no lago

 

The three images on the lake

 

 

Thiago Pereira Majolo

Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e mestre em história social pela Universidade de São Paulo (USP). Membro da Comissão de Debates da revista Percurso

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O ensaio investiga três imagens que narciso encontra ao contemplar o lago e como elas se articulam para formar as noções de tempo e espaço psíquicos. Uso fragmentos clínicos com uma analisanda para compreender, na transferência, como essas três imagens dialogam, impondo perguntas importantes a que tentaremos responder. O ensaio é essencialmente sustentado pela teoria psicanalítica, mas procura na cultura, especialmente na literatura, forma de compreender as noções de temporalidades psíquicas com que nos deparamos na clínica.

Palavras-chave: Narciso. Tempo. Espaço. Psicanálise. Clínica.


SUMMARY

The essay investigate the three images the Narcissus find out on the lake and how they articulate themselves to shape notions of psychics time and space. I use clinical fragments experienced with a patient to comprehend how, in transference, those three images dialogue, setting on important questions we will try to respond. The essay is supported mainly by psychoanalysis theory, but search in the general knowledge, especially in literature, ways to comprehend notions of psychic temporalities faced in the clinic.

Keywords: Narcissus. Time. Space. Psychoanalysis. Clinic.


 

 

Minha canoa, sempre fixa: e a amarra atirada ao fundo desse olho d'água sem margens, - a que lama?
Arthur Rimbaud, Memória.

 

A primeira imagem

"Amanhã eu não fui", disse-me num sorriso, consciente da ironia de sua formulação. Mas algo daquela frase inteligente escapava à sua consciência, entregando-me à revelia outra parte sua, uma mergulhada nas trevas do "eu" da sentença, nas sombras do Eu, que brincava com a temporalidade.

Jogando os cabelos para trás, inclinou-se para frente e se levantou ao final da sessão. Ali, seu corpo reformulando a frase: o movimento pendular de passado-cabelo, futuro-tronco. Partiu, para voltar na próxima semana.

Estamos diante da imagem mais funda no lago, narciso primeiro que se mostra a todos; narciso que procuramos repetidamente no turbilhão que os dias provocam na superfície das águas. Imagem ilusória e verdadeira, aquele quinhão de alma a que devotamos nossa constituição. Aquele sem o qual não podemos dar os primeiros passos, tampouco restaurar o caminho quando as pernas vacilam.

Amanhã eu não fui: sustentação imaginária de uma escolha antecipada, tentativa de controle do futuro, espécie de drible temporal no afeto que se anunciava por demais angustiante no dia vindouro. Poderíamos pensar em uma espécie rara de defesa paraexcitatória, como um duplo Eu multiplicado e lançado ao futuro para proteger aquele gêmeo que chegará indeciso e frágil na encruzilhada. Prolongamento do "eu" na decisão tomada para que, nesse elástico temporal, haja mais tempo de elaborar e codificar os sentidos da trilha.

Da pedra gramatical lusitana, retiramos uma joia da língua brasileira, que serve de ferramenta às negociações narcísicas: o futuro do pretérito. Eu iria lega-nos perguntas: o que aconteceu que não foi? Por que ainda precisa sustentar a ideia de que poderia ter ido? O que, no pretérito, está impossibilitando o futuro?

Essas perguntas, entre outras, convocam os comércios narcísicos com o mundo e com o restante do tecido psíquico, põem a economia psíquica a circular, certamente incrementam a dinâmica interna e ativam pontos de intersecção entre as tópicas. O tempo, ou melhor, os "eus" nas conjunções do tempo promovem um trabalho imenso, que o sujeito evoca ao fazer formulações aparentemente simples. Ao comentar sobre esse tema, Silvia Alonso escreveu: "O presente é sempre reminiscente; o passado ao qual temos acesso é o fruto da ressignificação, que dá lugar não apenas ao surgimento de novas significações, mas também de mudanças no interior da tópica" (Alonso, 2011, p. 59).

Amanhã eu não fui distende o sujeito na linha do tempo, combinando o que o historiador Reinhart Koselleck chama de espaços de experiência e seus horizontes de expectativa num traçado difuso e sobredeterminado (Koselleck, 1979/2012). O presente das coisas passadas, o presente das coisas futuras, segundo a definição de memória de Santo Agostinho: o que está aberto de possibilidades no tempo, espaço em que se dá a construção da história (Agostinho, 398/2011).

Desenhada numa folha branca, essa configuração imaginária do tempo seria traçada como uma linha infinita, sem começo ou fim, um traço somente, que avança e recua para além da percepção possível. Qualquer pedaço que cortemos dessa linha é um todo completo, e esse todo infinito é o mesmo que qualquer pedaço, ele impossibilita o recorte, a condensação e o deslocamento porque é o todo, infinitamente divisível ou multiplicável em partes totalizantes em si mesmas. Assim, entranha-se no êxtase da pulsão de morte, nas configurações estáticas em que o tempo não passa. Parece o tempo de um haicai de Bashô: "Que calmaria. O canto da cigarra penetra na rocha" (Kato, 2012, p. 104).

Expressa na linguagem, essa configuração pontua as frases do sujeito com nunca, sempre, jamais, e com o presente do indicativo: isto é assim. Segue inalterável aos ventos da mudança. Daí a sensação oceânica e o inapelável pensamento mágico de controle da Fortuna e dos mais diversos acasos.

A ideia de Fortuna, deusa pré-cristã, transmite-nos a noção de impossível aos homens, aquilo que nos atravessa à revelia. Essa ideia é trabalhada em oposição ao acaso por Koselleck (1979/2012). No artigo, o autor traça um longo panorama da historiografia para mostrar como o conceito de acaso se infiltrou nas correntes historiográficas e acabou sendo colonizado por um uso racional de sua essência inapreensível. Um fato de puro acaso de um lado da história parece, de outro lado, um dado planejado. A diversidade de pontos de vista historiográficos acabou eliminando os espaços de acolher as coisas da Fortuna, aquelas cujo cálculo racional não alcança, como mortes, acidentes, entre outras. Não associo aqui Fortuna ao destino, às trajetórias imutáveis, mas à esfera do impossível que atravessa a todos e, mesmo assim, reivindica seu estatuto de história em cada narrativa pessoal e coletiva.

A tarefa de criar e recriar o mundo ocupa a soma da existência do narciso primeiro que, por toda a vida, anseia distender-se no tempo, encontrar-se na inabalável possibilidade de tudo, entabulado na decisão de não decidir. Essa imagem narcísica parte sempre do incriado, das pulsões, para se construir e reconstruir. Ela precisa manter acesas as brasas de Fênix, a tensão máxima. Está calcada na sexualidade infantil polimorfa, que é a casa de onde saiu. As pulsões, tendo como fonte o objeto fantasístico, e não indo de encontro a ele, sustentarão a tensão necessária para a manutenção da sexualidade infantil, fundamentada no inconsciente, lugar regido por tempos e espaços diversos pelos quais esse narciso vai costurando seus contornos. Como nos belos versos de Rimbaud: "Meu anseio é coisa ida/ Ele ocupou minha vida" (1995, p. 261).

Árduo trabalho clínico o de pontuar e pôr vírgulas, o de conjugar os verbos. É delicado conversar com a criança maravilhosa quando estamos em uma sala marcada pelo andar dos ponteiros do relógio e sem espelhos perfeitos. Delicado porque foi pela maravilha da criança maravilhosa que o bebê abdicou do autoerotismo e, de sua forma ilusória, caminhou em direção ao mundo. Como escreveu Leclaire: "A criança maravilhosa é uma representação inconsciente primordial, na qual se entrelaçam, mais densos que em qualquer outra, os anseios, nostalgias e esperanças de cada um" (Leclaire, 1977, p. 11).

Não é pouca a maravilha nem é de se jogar fora. É a ela que recorremos quando perigamos desmoronar ou quando ansiamos e tememos o futuro. O espelho que aprisiona é também o que liberta.

Essa primeira imagem no lago segue sua jornada como um viajante que parte e retorna com a mesma mochila. Não cabe à clínica tentar capturar ou destruir essa mochila, mas lhe abrir o zíper, olhar dentro e indagar sobre o que o viajante coletou no caminho; o que, em sua jornada, transformou a sua bagagem e sofreu as demandas do tempo. Destruir a bagagem é abolir a maravilha da criança maravilhosa, deixar o sujeito à mercê do terror e da impossibilidade de criação. Caberá à clínica propiciar uma negociação entre a primeira e a segunda imagem que o viajante encontra no seu reflexo do lago.

 

A segunda imagem

"Se eu me mudar de cidade, como faremos para continuar a análise?", perguntou-me perto do final do ano, considerando uma possível proposta de emprego. Meses após o amanhã eu não fui, ela nos colocava de encontro a um fim possível de sua análise. À sua consciência, eu poderia garantir a possibilidade de sessões virtuais. Faria se chegasse o momento definitivo. Mas ali, na sua pergunta, havia uma série de outras encadeadas, como luzes natalinas se acendendo em sequência. Perguntava-se sobre os fins todos que sua criança maravilhosa sofrera, as feridas reabertas e aquelas adivinhadas no porvir.

Na linha reta infinita, dois traços perpendiculares se desenhavam nas extremidades com a caneta da transitoriedade. Essa meditação existencial a relembrava das ausências anteriores, do sumiço de pessoas importantes, das impossibilidades diante de questões do mundo e de sua própria finitude. Reportava à imagem primeira uma segunda imagem, mais frágil e esburacada, atravessada pelo inexprimível das origens e dos fins.

"O outono. Nossa barca arvorada sobre as brumas imóveis se volta para o porto da miséria, a cidade imensa cujo céu se mancha em labareda e lodo", reflete Rimbaud, em "Adeus" (1998, p. 189). O diálogo entre as duas imagens: as brumas imóveis do tempo eterno e o porto da miséria onde o céu explode no final dos tempos. O outono avança. A desilusão perante a onipotência aflige com a mesma intensidade o bebê e o idoso; ambos, na mesma barca, sobre o mar da eternidade, enxergam seus narcisos cambaleantes, empurrados pelo avanço sem retorno do tempo, pela proximidade inapelável da tormenta.

A escolha narcísica de objeto não seria isso? Ignorando o outro, arrancar-lhe a energia vital escassa em si, tapar com pele alheia as feridas que insistem em ferir a própria pele. Narciso, hipnotizado pela imagem, ignora os arredores. É o mundo, a natureza, os outros, que lhe dão a notícia mais devastadora: a alteridade é um enigma, é uma impossibilidade, um salto de fé. A morte alheia é a única inscrita em nosso próprio enigma, nessa alteridade que nos habita. A morte alheia corta o narciso, como se dissesse, "essa morte é sua, esse tempo chegará".

A segunda imagem trabalha entre a eternidade oceânica da primeira e os movimentos pendulares do tempo que o consciente e a percepção capturam, como descreveu Freud, ao indagar sobre como o sujeito percebe a passagem do tempo, em seu famoso texto "O bloco mágico" (Freud, 1925/1945). Narciso deseja o eterno e é capturado pelo finito. Ulisses, voltando para casa após vinte anos, ansioso para reencontrar Penélope, suspira: "Quem me dera ser tão jovem quanto os meus sentimentos" (Homero, 2011, p. 389).

Fundada e entrecruzada pelos sentidos simbólicos que votamos à sua existência, essa imagem não é menos ilusória que a primeira. Uma destrona a outra de seu reinado, sucessivamente, articulando momentos de incrível potência na criação e recriação, com períodos de depressividade e fragilidade, em que o narciso recolhe seus investimentos todos para si, desagregando-se do mundo.

Se eu mudar de cidade, como faremos para continuar? O "se" coloca uma prerrogativa reflexiva - caso aconteça -, típica desse momento narcísico que caminha entre as possibilidades do mundo, testando seus contornos espaciais e temporais. Ela, a analisanda, perguntava-se, e também a mim, sobre o "continuar", sobre a extensão de nossos encontros, quando o que se apresentava parecia uma decisão intransponível: a proposta de emprego encontrava um sonho antigo difícil de abrir mão. Mas abandonar a cidade, os amigos, o relacionamento e também a análise era reviver duras penas passadas, batalhas em que seu narciso já tombara.

Entre duas realidades desejadas (ou duas indesejadas) narciso há que decidir sabendo que parte da decisão não cabe a ele. Ele praticará um truque de palavras e gestos entre as duas imagens, a multiplicidade infinita do tempo eterno e a fragmentada do tempo limitado. Talvez por isso, depois da pergunta, ela permaneceu sentada, irrompendo o tempo da sessão por alguns minutos, buscando em silêncio o tempo que escorria.

Não faria sentido uma análise que não pusesse em questão seu início e seu término, como se a supusesse infinita. Mesmo que uma mesma análise não termine no curso da vida do analisando, ou de seu analista, as questões primordiais de início e fim, daquilo que move o sujeito a essa procura e aquilo que o demove posteriormente, são essenciais para articular as próprias questões que essa segunda imagem narcísica colocará. Qualquer tipo de questão humana, de toda forma, tem início nos temas das origens e dos fins; não se põe em questão aquele que é eterno, pois a eternidade não imprime a necessidade de tomada de consciência e decisão.

Para não incorrer num universalismo totalizante, fiquemos apenas na cultura que nos lega a tradição judaico-cristã: o Gênesis e o Apocalipse; vida e morte; começos e fins. O tempo humano é marcado por extremidades. O além é insondável, como diz Isaías na Bíblia, usando as palavras divinas para contar de seu mistério aos homens: "Pois os meus pensamentos não são os pensamentos de vocês, nem os seus caminhos são os meus caminhos" (Isaías, 55, pp. 8-9). A conversa entre os dois narcisos, entre os dois tempos que nos marcam, está também expressa na obsessão de vida e morte do capitão Ahab à caça impossível de Moby Dick. Durante a caçada, o leitor contempla, com igual assombro, o mar e suas profundezas, o infinito azul que se estende por toda a extensão e para além da narrativa do livro.

A morte se insinua na porta dos consultórios nos finais de sessão, na possibilidade do adeus, nas flutuações da atenção do analista que, presente, também se ausenta do conteúdo e das palavras em busca da não palavra e das formas. As pulsões, tanto do analisando quanto do analista, na sua incansável busca por objetos, incorrem numa expedição para além da vida em busca de um Eu que já não está nem estará. O que será dessa substância que somos, dessa pergunta irrespondível, quando não houver mais quem perguntar? Como será possível uma força incontrolável cessar de pulsar?

Analista e analisando podem até sonhar um vínculo eterno, uma conversa que se prolonga pelos tempos, fora de contexto, como quando imaginamos na vida lá fora os analisandos vivendo a cada instante apenas e sempre aquelas experiências que nos contam, ou quando o analista é imaginado sentado dia e noite na mesma poltrona. Mas são as notícias do mundo, do relógio, dos espaços e dos contextos que nos remetem a um tempo que o sonhar não coloniza.

Na outra extremidade, narciso cruza as fronteiras de sua existência em uma jornada épica pelas origens. Como um tronco curvado, contemplando primeiramente suas raízes, depois os rizomas entrelaçados que se tocam debaixo da terra, seu olhar especular refaz a história daquilo que chama de herança. Ele cruza cidades, estados, países e oceanos para encontrar ascendentes; refaz as trilhas das pessoas que o encaminharam para a análise; narra trajetórias alheias pelo seu próprio ponto de vista, refazendo ou inventando sentidos para os acasos da Fortuna. Encantando-se com as coincidências e criando sentidos mágicos para as sincronicidades, narciso busca a si mesmo numa sala escura e sem espelhos; desencontra-se, horrorizado, teima novamente a buscar; renitente em sua jornada, quer desfazer o marco de seu nascimento, apagar a linha perpendicular de seu início; impõe-se uma angustiante travessia que, como toda forma de angústia, diz da sua intimidade mais singular. São momentos preciosos de análise, às beiras do precipício.

Contornando as bordas de seus limites, narciso ousa usar sua segunda imagem como referencial epicêntrico para se pensar para além de sua existência. Ao narrar histórias de sua genealogia, é ele sempre o eixo em torno do qual gravitam outros seres. Aquela senhora será sempre a sua avó; os amigos dela, os amigos da minha avó; o padre da paróquia de uma cidade do interior será o padre da igreja que minha avó frequentava,e assim por diante. É comum em pequenas comunidades e microambientes que uma senhora ganhe a função de avó de muitos, como quando dizem, Sabem a avó Carminha?, referindo-se a uma senhora cuja idade e certa disposição de espírito convocam muitas crianças e adultos sem nenhum grau de parentesco a conferirem-lhe a alcunha. Na expedição narcísica, essa senhora parece um vulto assombroso, espectro que lhe escapa.

Narciso tem dificuldades em pensar dessa forma ao narrar o mundo, principalmente com relação a figuras que escapam ao seu eixo. Parte sempre de seu epicentro para seguir o intrincado caminho que as raízes e os rizomas perpetuaram debaixo de seu tronco, assim como um turista em novas terras, voltando sempre ao mesmo ponto de referência para partir para outro. Ele busca caminhar para além de seu tempo como caminha no tempo que lhe é dado viver, dessa forma, dialoga com o tempo da sua terceira imagem.

 

A terceira imagem

Sexta-feira, 20h30: ela entra no consultório chorando, a mão nas costas a faz parecer uma idosa, apesar dos vinte e poucos anos. Está exausta, é final de ano, o trabalho está corroendo seus dias e suas horas. Seu narciso prefere não se olhar no espelho nas últimas semanas. A vaga no emprego, tão sonhada, tornou-se uma espécie de pesadelo. A mudança de cidade prossegue uma incógnita, o ano está acabando. "Ainda voltarei ao trabalho depois daqui."

O trabalho é longe e falta muito para concluir a entrega do dia. Pergunto se ela prefere ir a estar lá comigo, me preocupa que ela vare a madrugada. "Não, preciso descansar. Minhas costas estão doendo muito. Foi isso que eu sempre quis?" A dor nas costas diz do tempo de sua vida, das grades mais simples edipianas - seu pai acabou com a lombar de tanto trabalhar. Ela sabe disso, não precisei falar para que fizesse a associação. Levantei, ofereci meu apoio para os pés. Narciso, ferido, como a redescobrir no espelho da conversa que o corpo é formado por fragmentos de união ilusória e que a realidade é uma impossibilidade que nos atravessa em silêncio.

"Não sei se quero dizer nada. Diz você!". Dou um sorriso, pergunto o que ela quer saber. "Nada. Não sei... Conhece algum lugar que eu possa jantar ainda hoje?" Era a primeira vez que parecia perguntar efetivamente de mim, de meus gostos, de meus caminhos. Antes, adivinhava, intuía. De repente, uma alteridade apareceu, enigmática e indecifrável. Precisava escutar para se aproximar, não havia telepatia possível: uma conversa entre vivos, no tempo e nas possibilidades de limitadas existências. Conversas do cotidiano: o trabalho, a comida, os sonhos... a semana.

A linha do tempo se dobrou, arqueou-se unindo as extremidades e formou um círculo. Nas voltas desse círculo, narciso encontra sua terceira imagem. Está incrustrada na sazonalidade da vida, nas estações do ano, na sequência das semanas, na alternância do dia e da noite, em tudo aquilo que se repete no turbilhão rotineiro.

"Ainda voltarei ao trabalho depois": as repetições no tempo, em que Sísifo avista o mar eterno, e o tempo de sua existência rolados como pedras na montanha, sempre a serem empurradas novamente para cima. Esse é o tempo do possível e da realidade que os sonhos começam e terminam; nossa vaga experiência de vida, a trajetória escalonada nas horas.

Se, por um lado, a repetição pode dar a narciso uma sensação de imortalidade, por outro, sua consciência não lhe deixará ne-gar as marcas do tempo: a imagem da semana passada não é a mesma que a desta. Os sonhos, as vontades, as dores no corpo e a pinça no nervo das costas lhe garantem que as experiências sejam sempre inéditas, que a repetição circular do tempo seja um truque dos relógios e calendários porque, na sua singularidade, a roda que gira corrói sutilmente. Voltarei depois, mas sabe que não voltará: chegará novamente, mais velha, mais próxima da próxima madrugada, que a aproxima de uma aurora a menos.

A descoberta da alteridade na clínica é uma redescoberta da alteridade, feita há muito tempo por essa terceira imagem que narciso achou no lago: imagem fundada e sustentada pelo enigma inquietante de outros que o habitam, pela impossibilidade do autoengendramento e pela consciência do desamparo. Certa vez, um analisando, ao refletir mais uma vez sobre a possibilidade do suicídio, finalmente disse-me, chorando: "Não posso me matar, a minha vida não pertence somente a mim".

Esse é o diálogo da terceira imagem com as demais que narciso encontra no lago. As três se cotejam e põem-se a questionar. A aparente repetição circular do cotidiano interroga a verdadeira possibilidade de repetição num tempo que transcorre sobre uma linha. Na análise, as sessões também se sucedem, semana a semana, férias após férias, no trabalho sisífico do tempo que nos é dado. Parece eterno, posto que é repetição, mas é diferencial em cada subida e descida na montanha: o cansaço se acumulando, o ineditismo da paisagem no horizonte de cada amanhecer e cada crepúsculo, e tudo que nos mostra que a circularidade do tempo é uma roda dentada, marcando a passagem do caminho.

No decorrer do tempo da análise, com sorte e talento, o sujeito pode vir a constatar que o tempo é sempre inédito e que, juntamente com esse ineditismo, ele carrega uma bagagem. São narcisos que conversam. O que se repete é ele próprio ao longo das folhas de calendário que arrancamos. É o sujeito com a sua insistência pulsional em caminhos fixados dos sintomas ou desgarrados das compulsões que insistem em se repetir, diversificar-se, limitar-se e acabar.

Essa imagem narcísica, mais declarada aos espelhos do dia a dia, é também a que mais se mostra na clínica. Centrada na face consciente do Eu, acredita-se em pleno conhecimento de sua agenda. Amor e trabalho são suas pautas maiores. Mais precisamente, as pequenezas dos relacionamentos e as atribuições da labuta. Não estamos aqui no tempo das paixões e dos empreendimentos, mas no tempo atribulado das constâncias, da escolha dos móveis da casa, da batida dos relógios de ponto. O tempo das construções possíveis entre desligar o despertador e seu ajuste para a manhã seguinte. Na clínica, esse é um tempo marcado mais pelas sínteses do que pela análise, a busca de sentidos no sem sentido.

Penso, como Laplanche, que as sínteses em análise correspondem a um processo feito pelo próprio analisando, como um psicoterapeuta de si mesmo em ação. Aqui, a psicoterapia, na análise, trataria das construções de sentido feitas pelo analisando. É claro que as construções podem e muitas vezes devam vir do analista, mas me refiro aqui ao processo de síntese que o analisando levará a cabo, independentemente do analista, após cada desligamento promovido pela análise, como já acreditava Freud (Laplanche, 2015).

Essa repetição rotineira costuma ser tão egossintônica, que não espanta o narciso logo de cara. São as repetições sintomáticas que fragmentam seu tempo de perfeita circularidade e, desfigurando sua imagem, vão lhe chamar a atenção. Os atos falhos; as cadeias significantes que se acendem da percepção ao recalque quando uma palavra ou gesto o encontra de roldão; os sonhos desconexos; os desvarios; lembranças repentinas; o corpo que fala em sua língua estrangeira; desejos fora de contexto e toda forma de reminiscências que colam ao presente circular um passado que não passou, uma mensagem que insiste a ser traduzida, e que desestabilizam o deslizar suave da roda temporal.

Gira a roda desse tempo circular, mas num movimento assimétrico, capenga, como pneu murcho que a cada pouco reencontra a ferida. Narciso, nessa altura, depara-se com relances de seus outros tempos, que, escapados do recalque, deslizam pela ferida a se mostrar, querendo do analista algo, uma palavra, um gesto, que integre no Eu todas suas dissonâncias temporais em uma unidade perfeita e consciente. É um pedido legítimo, mas que jamais será atendido. Rapidamente, uma forma centrífuga repele a tentativa de integração, porque o inconsciente é um tempo perdido, que se mostra apenas em brilho fulguroso e fugidio no céu que contemplamos. Um relâmpago, nas palavras de Rimbaud: "O trabalho humano! Eis a explosão que de quando em quando aclara meu abismo" (1998, p. 185).

Uma discreta angústia escala o poço lentamente nesse tempo que circula. Vaga e passageira no decorrer dos dias, a moeda do desejo lançada ao fundo, e esquecida, tende a se realizar em datas notoriamente marcadas: aniversários de nascimento e morte, natais, viradas de ano, dia das mães ou dos pais. O presente das coisas passadas novamente encontra a face de narciso e o interroga com ou sem palavras, lembrando-lhe que o tempo passou, mas que algo ainda persiste. Esse algo, ele mesmo, explorador de outros tempos a vagar em reinos distantes. A marca das ausências e dos objetos que saíram da roda do tempo é a própria marca de suas relações com esses objetos, do estrangeiro que carreou para dentro de seus muros. A circularidade do tempo convoca narciso a traduzir a língua estranha com que fala esse invasor e a metabolizar seus gestos enigmáticos.

Sentada à minha frente, os pés para o alto, o choro seco marcado no rosto, ela agora acompanhava comigo o final da volta dos ponteiros nos aproximando do final da sessão, do ano, talvez da análise. Certezas e dúvidas entre nós, e silêncios. Quase 21h30 e ela ainda teria nova jornada de trabalho madrugada adentro. Aquele tempo passava ou sugeria um retorno? Retorno das coisas idas, retorno de coisas infinitas, retorno do que agora mesmo finda. Haveria mesmo um retorno? Retorno do que é inédito - seria possível?

 

REFERÊNCIAS

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Laplanche, J. (2015). Psicanálise e psicoterapia. In Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano, 2000-2006. Porto Alegre; São Paulo: Dublinense.         [ Links ]

Leclaire, S. (1977). Pierre-Marie ou sobre a Criança. In Mata-se uma criança: um estudo sobre o narcisismo primário e a pulsão de morte. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

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______. (1998). Prosa poética. Rio de Janeiro: Topbooks.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
THIAGO PEREIRA MAJOLO
Rua Itapeva, 202/63
01332-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 99969-4828
tmajolo@gmail.com

Recebido 06.04.2017
Aceito 13.05.2017

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