SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.40 issue64Penetráveis: art in the clinical practiceAesthetic associations as a representation of the mental world without words author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo July./Dec. 2017

 

EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA

 

Travessia e memória: considerações sobre o trabalho potências da fragilidade

 

Crossing and memory: considerations about the paper powers fragility

 

 

Raquel Plut Ajzenberg

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nos apropriamos aqui, na intenção de comentá-lo, do título de trabalho de Tatiana Grinfeld, que, por meio de sua defesa de tese, fez uma exposição e um videoarte que mostram o enfrentamento da doença que a acometeu. Revelam-se as potências de um corpo que sofreu abalos e passou por situações traumáticas. Destacam-se questões sobre potência, vida e morte, tempo, memórias, bem como a busca de representação psíquica para tais experiências.

Palavras-chave: Relação corpo-tempo. Relação arte-vida. Desdobramentos. Possibilidades de representação.


SUMMARY

We consider here in the intention to comment on the title of Tatiana Grinfeld work, wich through a video-art and on her defense thesis expose the coping that her body went trought. They reveal the powers of a body that has suffered traumatic events. It highlights questions about power, life and death, time, memories, as well as the search for psychic representation for such experiences.

Keywords: Relationship body-time. Relationship art-life. Developments. Possibilities of representation.


 

 

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: lata
Pode estar querendo dizer o incontível

Não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber O incabível

("Metáfora", Gilberto Gil)

Tatiana Grinfeld fez faculdade de psicologia e, já aos 19 anos, teve o diagnóstico de leucemia linfoide aguda (LLA). Conseguiu completar seus estudos, mesmo tendo passado por três tratamentos, entre eles, dois transplantes. Em 2014, concluiu sua dissertação de mestrado, intitulada Potências da fragilidade - Só um corpo vivo sobrevive, no Núcleo de Estudos da Subjetividade (Psicologia Clínica, PUC-SP), sob orientação da Profa. Dra. Suely B. Rolnik. Através de sua pesquisa de mestrado, Tatiana ampliou seu repertório, por meio de um intenso diálogo com outras formas de expressão, artísticas e conceituais. Realizou uma série de fotografias, bordados e instalações que resultaram, além da dissertação, numa exposição no Museu da Cultura da PUC-SP e num videoarte1.

O caráter deste trabalho, além de homenagear a artista, é dar voz à sua capacidade de realizar um testemunho da trajetória de vida e de estar totalmente envolta nisso, nos embates, no fio da navalha, vida e morte. Enfocamos, a seguir, a relação corpo/ tempo, arte/vida, e seus desdobramentos, bem como as possibilidades de representação de tais questões.

Sabemos que certos acontecimentos de nossas vidas podem se tornar catastróficos e ter inúmeras consequências, como nas doenças, porque permanecem fora do campo de representação: o horror e o irrepresentável são conceitos da psicanálise que se alicerçam na questão do desamparo como fundante do sujeito. A percepção da finitude, do imprevisível, o vazio. O horror é o impensável. Estar no fio da navalha - entre vida e morte − aciona um tipo de vivência característica da angústia do real. Estados-limites em que algumas fronteiras se dissolvem. "É preciso sobreviver a estes estados, criar novas cartografias." Em contrapartida, uma força imperiosa se faz necessária a fim de transformar e construir circuitos internos com o intuito de dominar tal intensidade.

Freud demonstrou que o trauma era o resultado da passagem de uma vivência na qual a intensidade de estímulo é desproporcional à possibilidade de contenção do aparelho psíquico, sem ser capaz de integrá-la mentalmente, sem elaboração.

O trauma se dá pelo transbordamento do estímulo, pela incapacidade de recepção de um evento que vai além dos limites. Algo sem forma, inundado pelo excesso. Encontra-se o sujeito na posição inevitável de desamparo. Urge daí a realização de um trabalho de ligação dessas forças irruptivas. Vale dizer, a constituição de um campo possível de nomeação e de sentido. O que tememos são os eventos que ameaçam nossos limites, extrema dor física ou dor psíquica, pois rompem com a noção de tempo e perfuram nossas possibilidades de existência. Assim, para nos reorganizar, procuramos testemunhos de nosso viver, como parte de uma história que pode ser contada.

Ao longo da obra freudiana, vemos como a função de escudo protetor ou de paraexcitações visam proteger o impacto e dar sentido às sensações advindas do interior do corpo. A realização de um trabalho de ligação daquelas forças irruptivas constitui uma nomeação dessas forças. Uma ligadura capaz de oferecer uma possível − imperiosa e trabalhosa − tarefa.

A utilização de todos os recursos acessíveis, que dão voz a esse testemunho narrativo, possibilita a passagem da dureza do real para um trabalho interno de sonhos. Com novas formas, imagens e palavras, tornam-se algo a mais.

Tatiana Grinfeld faz uma reversão do lugar passivo, diante de um real que se apresenta inexorável, para uma área de construção de rede de significados que permitem, assim, que ela não só resista ativamente, como também se recrie. A partir desse acontecimento e de suas consequências, buscou relacionar e refletir sobre a sua fragilidade e sobre a força de se manter viva e produzir para si modos novos de existência para enfrentar esse desafio.

Como ser um corpo criador ante o corpo em colapso?

Para Tatiana, a palavra de ordem era resistir, um corpo que necessita sobreviver. Resistir para sobreviver.

Assim como Nietzsche, Tatiana se pergunta: "em que se transforma o pensamento sob a pressão da doença?" (p. 46).

No decorrer do seu trabalho, a temática da sobrevivência e da memória se destaca e faz uma correlação com o ser sobrevivente que remete à vulnerabilidade e à impotência. Sensível a sua história pessoal, resgata na memória familiar pessoas que passaram por campos de concentração nazistas na Segunda Guerra Mundial.

Seus avós paternos e maternos vieram em condições adversas na imigração para o Brasil, antes do início das perseguições nazistas na Europa.

Ao relacionar suas experiências com os sobreviventes de guerra dos campos de concentração, identifica-se com aqueles que estiveram em vivências que ameaçam as fronteiras do eu, situações-limite. Um corpo frágil, colapsado, que busca sobrevivência.

Descreve a sensação de ser um corpo em fiapo. "Fiapo em que apenas músculos involuntários se movem" (p. 101). Porém, fio a fio, põe-se a fiar. Remete-nos às descrições feitas por Primo Levi ao narrar as experiências em campos de concentração. Situações inacreditáveis de puro horror e completa desumanidade.

Como se pode imaginar o inimaginável?

Primo Levi nos diz: custe o que custar, é preciso escrever, contar, registrar a história.

"Estava convencido de que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que se pode extrair valores fundamentais desse mundo particular que se descreve."

Tatiana resiste. Identifica-se com um barquinho que navega em águas revoltas e pode soçobrar a qualquer momento.

Como um sobrevivente, quer seguir adiante. Resistir-durar-viver. "Somos todos sobreviventes e resistentes de guerras de vida, de morte" (p. 73).

Uma profunda introspecção no mundo das vísceras, órgãos e veias precisava ser feita por conta da quimioterapia, das radiações e cirurgias. Visualizar o mapa do corpo e imaginar o que estava acontecendo em cada parte a levou a pensar como um cartógrafo, que busca mapear elementos para fazer uma possível composição. Se novas rotas fossem necessárias, inventaria novas maneiras de viver.

Como foi necessário fazer transplante, houve um estranhamento de si mesma, como ser híbrido mutante. Mas, não somos todos mutantes? Em diferentes eus, a cada situação e momento de vida? Diz: sou um "mischmasch", como se diz em iídiche (língua falada pelos judeus Ashquenazi, originários da Europa Central e Oriental) (p. 63).

O significado da palavra mischmasch é mistura, miscelânea. Tal como suas vivências paradoxais, nas quais coexistem elementos antagônicos, de fragilidade e potência, vida e morte. A mudança e o processo criativo vão se tornando outras coisas, ideias do híbrido, de fazer de sua vida "o mischmasch": novos estados em que se reinventa.

Somos uma miscelânea, uma constante mudança de estado. O corpo deve se remanejar sem cessar, como forma de dominar o impacto das forças intensas que essas experiências provocaram. As marcas inscritas se transformam e encontram expressão numa passagem do registro corporal para possibilidade de representações. A noção de tempo está gravada nas trocas do corpo, como cascas, e abre possibilidades para que outras camadas sejam expostas: movimento do corpo, memórias e resistências.

No dicionário Houaiss, um dos sinônimos da palavra sobreviver é escapar. Tatiana entende, que todo ser vivo é um sobrevivente, que a cada dia ganha um bônus extra de vida. Alguém que ganha um prazo a mais.

Vivemos "apesar de". Ao pensar sua fragilidade, ela nos remete ao constitutivo do humano em sua permanente busca, que vibra, pulsa, treme. Temos com ela a vivência da fragilidade, que é ouvir os sons desconexos, teias que se desmancham, estar por um triz.

Em suas palavras: "O corpo frágil, que se dissolve, se desintegra, se integra, que submerge e emerge é o corpo potente" (p. 86).

Situação-limite, que envolve fronteiras, pele, cercas, que pode ser invadida, vazada. No fundo, porém, entende ela que "no gueto estamos todos".

Nessa trajetória, pensamos o trauma que oscila entre o extremo de humanidade e desumanidade.A ponte de ligação feita com a percepção do desamparo e a busca da sobrevivência, assim como buscaram aqueles que viveram nos campos de concentração. (Alguns ominosamente chamados de Larger arbeit, campo de trabalho.)

O enfrentamento do desafio é a fonte de energia, de potência. Entendido esse processo, em sua visão, como o enfrentamento na resistência e desistência do corpo, no trituramento e esfarelamento das vísceras e dos pensamentos, na mixagem de tudo. Nessa triagem, a vida surge de outras formas. E isso pode ser uma fonte de energia.

Tatiana fala de garantir o vivo, encarna uma força de recusa, de obstinação, de seguir em frente, que movimenta territórios, que costura sem amarrar, que está permanentemente se modificando, que está no corpo, que está no todo em cada um."Talvez seja esta a única garantia em que eu acredito."

Fala também sobre como ter um desafio e desenhar alvos pode ajudar a nutrir o vivo e tornar-se um caminho para não definhar, não esvaecer. Assim, baseada em ideias de Nietzsche e Deleuze, encontra saúde no sofrimento: ser sensível ao sofrimento do corpo sem adoecer.

Tudo se move, se desloca e o que pensávamos que era contínuo ou linear já não é. [...] Tudo se move sem cessar, como sangue correndo nas veias e artérias pelo sistema circulatório, irrigando os órgãos e as vísceras, irrigando os pensamentos, movendo o corpo. (p. 115)

A relação espaço-tempo, dentro-fora, de limites, é constantemente redistribuída, desorientada, recriada. Um trabalho que dá forma e ligação às dores corporais e ao sofrimento psíquico no qual recebe, nomeia e reconstitui, com delicadeza, num clima onírico do trabalho de sonho.

Sua trajetória nos fornece um testemunho de um trabalho interno intenso. Sensações corporais, imagens, fantasias vão se somando em mischmach, numa intimidade na qual o corpo é a extensão da obra e a obra é uma extensão do corpo.

Além de seu comovente relato, é impactante acompanhá-la nesse processo de regular as intensidades afetivas e transformá-las em formas e sentidos. De como foi capaz de criar uma área de experiência e caminhos possíveis de elaboração. Assim, afetos não suportados, traumatizantes, desintegradores e mortíferos, puderam ser contidos e transformados. Um trabalho interno entre áreas de saúde e doença em que ela pôde transitar e compartilhar a experiência de si para o mundo.

 

REFERÊNCIAS

Bezerra Jr., R. & Plastino, C. A. (Orgs.). (2001). Corpo, afeto, linguagem: a questão do sentido hoje. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Mais além do princípio do prazer. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. XVIII). Imago: Rio de Janeiro. (Trabalho original publicada em 1920).         [ Links ]

______. (1976). Inibição, sintoma e angústia. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. XX). Imago: Rio de Janeiro. (Trabalho original publicada em 1925).         [ Links ]

Grinfeld, T. (2014). Potências da fragilidade - só um corpo vivo sobrevive. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

______. (2014). Potências da fragilidade. Recuperado em 26.07.2017, do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=jqWbQX034f8.         [ Links ]

Nestrovski, A. & Seligmann-Silva, M. (Orgs.). (2000). O mundo como catástrofe e representação. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
RAQUEL PLUT AJZENBERG
Rua Prof. João Mendes França, 45
005690-030 – São Paulo – SP
tel.: 11 3758-24-22
raquel.a@uol.com.br

Recebido 11.11.2016
Aceito 13.05.2017

 

 

1 O vídeo pode ser acessado pelo seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=jqWbQX034f8.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License