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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo An./June 2018
CRIATIVIDADE E OUTRAS PAUTAS
A estética da solidão1
The aesthetic of loneliness
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Membro efetivo e analista didata da SBPSP
RESUMO
Este artigo pretende discutir a "estética" da solidão, entendida como um "desarranjo na cultura". Quatro cenários são usados para ilustrar essa condição. No primeiro, discute-se a Perda do Paraíso, e como Adão e Eva se organizaram para superar a solidão. No segundo, acompanhamos a busca solitária de Édipo por sua própria identidade. No terceiro, trazemos ao palco a figura das crianças-soldados, geradas pelas lutas fratricidas surgidas após a independência das ex-colônias africanas, bem como as crianças mexicanas abandonadas na fronteira do EUA, na esperança de serem recolhidas pelo Serviço de Imigração. Finalmente, focamos o Homo Internauticus, aquele que só se interessa em promover solitariamente "um show a partir do Eu".
Palavras-chave: Estética. Solidão. Paraíso Perdido. Édipo. Crianças-soldados.
SUMMARY
This paper intends to discuss the "aesthetic" of loneliness, understood as a "cultural derangement". Four sceneries are pointed out to illustrate this condition. The first, discusses the Fall from Paradise, and how Adan and Eve arrange themselves to overcome loneliness. In the second, we follow Oedipus lonely search after his identity. In the third, we put in the stage the figure of the "soldier-children", born after the fratricidal struggles held after the independency of African ex-colonies and, also, those Mexican children that nowadays are abandoned in USA border, in the hope of being collected by the Immigration Service. Finally, we focus Homo Internauticus, the one that is only interested in the lonely promotion of a "Self show".
Keywords: Aesthetic. Loneliness. Paradise Lost. Oedipus. Soldier-children.
A escolha deste tema deve-se a suas óbvias implicações socioculturais, políticas, existenciais e psicanalíticas. Em recente viagem ao Japão, fui informado que um grande contingente de idosos, que vivem sozinhos contando com um respaldo do estado em caso de doenças, elegem os hospitais como ponto informal de encontro, de modo que, quando um dos habitués não comparece, os colegas consternados comentam: "Coitado, deve estar doente!". Eis-nos aqui diante de um "desarranjo na cultura" (Freud, 1930/1973, pp. 64 e 145), ou seja, de uma inversão de funções e/ou de valores.
Poderíamos situar o início de nossa história no instante mítico-religioso em que o ser humano, após transgredir as normas do Criador, foi expulso do Paraíso e abandonado à sua própria sorte, a uma solidão profana, desacompanhado do sagrado. Para minha sorte, tenho em mãos uma relíquia:
Paraíso Perdido,
Poema Heroico, de J. Milton,
traduzido em vulgar pelo padre José Amaro da
Silva, Presbítero Vimaranense,
Com o Paraíso Restaurado, poema do mesmo
Author;
E notas históricas, mithológicas, etc. de M. Racine.
Lisboa, na Typographia Rollandiana (1830).
Com licença da Mesa do Desembargo do Paço.
Vende-se na casa de Rolland, Rua Nova dos
Mártyres,
nº 10, abaixo do Theatro de S. Carlos.
A posse dessa preciosidade representa, em si, uma espécie de "paraíso restaurado", ou seja, a oportunidade para que nós, seres humanos solitários, debrucemo-nos sobre nossas origens mítico-religiosas.
Maravilhemo-nos, então, com algumas de suas passagens:
Eu canto a desobediência do primeiro homem, os funestos efeitos do fruto proibido, a perda de um Paraíso e o mal da morte triunfantes sobre a terra: até que um Deus feito homem, venha julgar as nações, e nos restabeleça a esta feliz morada. (Milton, 1830, pp. 4-5)
Que condição teria a mente do primeiro homem de apreender o significado do fruto proibido, da perda do Paraíso, do mal da morte e do poder de um Deus feito homem de restabelecer esses desarranjos? Se ele, solitariamente, deveria encarnar os defeitos e as virtudes de todos os homens, seus erros teriam de ser colocados no mesmo patamar que seus acertos, pois não seriam testemunháveis nem compartilháveis por mais ninguém.
Destituído Satanás (o adversário de Deus em hebraico) por sua inveja do Todo-Poderoso do lugar que ocupava no Mundo da Luz, passa a maquinar vaidosamente, no Mundo das Trevas, o comando solitário das hostes do mal. Ouçamos sua hipócrita sedução:
A Realeza da qual me vejo revestido, e o Cetro que empunho, me advertem que também devem sofrer os perigos do trono, quem goza da glória dele. [...] Por entre a própria destruição medonha, vou bus-car a libertação comum: ninguém participará comigo desta empresa. [...] Todos, então, inclinaram-se na sua presença com profunda submissão e o exaltaram como um Deus igual ao Altíssimo. (Milton, 1830, p. 65)
O princípio que subjaz a essa configuração é eterno: "Se a aliança com Deus fracassar, bata correndo na porta do Diabo". Esse é um princípio tão forte que o próprio Satanás foi o primeiro a utilizá-lo e, hoje em dia, continua orquestrando os genocídios, as fake news, as alianças políticas espúrias e as chacinas cotidianas.
É preciso notar que, ao criar o mundo com suas mazelas seculares, o Criador concebeu uma criatura genericamente pecadora, abstraindo-se de qualquer diferenciação e deixando a cargo dela a "construção" de uma alteridade que suavizasse e garantisse a sua sobrevivência2.
No Livro IV, Milton reproduz as lembranças de Eva, quando, sozinha no Éden, e envolta numa aura de autoengendramento, relata:
Achei-me suavemente deitada sobre uma alcatifa de verdura esmaltada de flores, à sombra de um arvoredo. Não sabia onde estava, quem era, don-de vinha [...]. Olhei a meu lado, para um tanque de água claro e liso que me parecia outro Céu. Ao inclinar-me avistei uma figura que se inclinava também para mim: olhei para ela e ela olhou para mim. Recuei sobressaltada e ela também recuou sobressaltada. (1830, p. 151)
Nesse momento, uma voz a tirou desse arrebatamento:
O que tu contemplas, linda criatura, és tu mesma, mas vem comigo, e eu te guiarei a um lugar onde não acharás sombra, mas um objeto real digno dos seus olhos. Aquele de quem és imagem, te chama com desejos os mais ativos: gozarás de sua amável sociedade e ele se unirá inseparavelmente contigo (1830, p. 151).
Eis-nos diante do Big Bang da alteridade: Adão surge diante de Eva como arauto de uma oportunidade de libertá-la de uma prisão solipsista, na qual seu único interlocutor era seu próprio eco ou sua própria imagem.
Mas, diante dessa inusitada aparição, Eva se atemoriza e é acalmada por ela:
Para, linda Eva. Que temes? Ajuntar-te a outro tu? Tu és a sua carne, os seus ossos. Para te dar o ser e a vida te dei a costela mais vizinha ao meu coração: Ao meu lado é que hás de achar o teu lugar natural [...]. Atende-me, querida parte de mim mesmo, e deixa-me reclamar a minha outra metade. (Milton, 1830, p. 151)
Já pressentimos aqui a semente maligna da vaidade satânica, de como "a parte de mim mesmo" se insinua como o elemento dominador interessado no próprio umbigo, ou como eu gosto de dizer, no próprio "umbego". De qualquer modo, é tarefa do humano administrar esta curiosa condição descrita pelo poeta e pintor Henri Michaux: "Sou habitado: falo com quem fui e aquele que fui fala comigo [...]. A gente não está sozinho na própria pele".
Eis um bom motivo para entendermos um dos mais frequentes "desarranjos da cultura", a assustadora taxa de divórcios, a dificuldade dos cônjuges de concluírem que antes de falar com o outro é preciso falarmos com nós mesmos, ou percebermos que a chave da felicidade é abrirmos mão de ter razão para podermos ser felizes.
John Milton (1608-74) publicou seu poema épico em X Cantos em 1667 e é considerado por muitos como o pai dos poetas românticos ingleses como Blake, Keats, Coleridge e Wordsworth, que chegaram intuitivamente aos segredos da alma humana antes da psicanálise. Ao tratar em seu poema da perda da luz eterna por parte de Lúcifer e depois, mediante sua sedução, do próprio gênero humano, Milton alude à sua própria cegueira, ao clamar: "Luz eterna, repara em mim a perda da luz criada". Mas, mergulhado na solidão dessa cegueira, pede a interseção da Musa Celestial:
A beleza da face humana, em que Deus imprimiu as feições da sua semelhança, já não me toca o coração. Repara em mim, Ó Luz Eterna, a perda da luz criada, esclarece o meu espírito em todas as suas faculdades, põe olhos em meu coração, arreda, e desvanece as trevas dele, para que eu descubra, e profira coisas, que os olhos mortais ainda não vi-ram. (Milton, 1830, pp. 97-98)
Acompanhado por essa visão interior, Milton forjou uma frase famosa, lonely but not alone, ou seja, ele podia estar sozinho, mas não se sentia solitário.
Coleridge (1772-1834) produziu a "Balada do Velho Marinheiro", que também poderia ser chamada de "Expiação do Marinheiro Solitário", que, após cometer um crime contra a natureza, matando fortuitamente um albatroz, ganha sabedoria graças à perda de sua inocência. Além de sua culpa arquetípica, sua solidão perpassa todo o poema:
Ah, sozinho, sozinho, inteiramente só
Num largo, largo mar!
E nunca nenhum santo se apiedou
De minh'alma a agoniar.
[...]
Era eu como quem vai, com medo e com temor,
Por deserto lugar
E, tendo olhado às pressas para trás, prossegue
Sem nunca mais olhar,
Porque bem sabe que um demônio assustador
Pisa em seu calcanhar.
[...]
Convidado nupcial! Esta alma esteve só,
Num largo, largo mar...
Era tão vasto e tão vazio, que o próprio Deus,
Lá não devia estar.(Coleridge, 1995, pp. 67-69)
Para completar esta moldura da estética da solidão, gostaria de trazer algumas citações banhadas por tinturas metapsicológicas, ou seja, que estabeleçam contrastes inesperados, reiterações perturbadoras ou choques cognitivos:
Gonçalves Dias (1823-1864 - autor de "Canção do exílio"): "É doce ao solitário, a voz de um anjo, na sua solidão".
May Sarton (1912-1995 - poetiza e novelista americana): "O isolamento é a pobreza do self; a calma solidão, a riqueza do self". (Esse sentimento foi descrito pela atriz Clarice Niskier, que, ao término de uma peça, contou seu desejo de "ficar só e em silêncio, essa música que soa sem tempo".)
Dag Hammarskjöld (1905-1961 - secretário-geral da ONU): "Reze para que tua solidão te esporeie para encontrar algo que faça valer a pena viver, e que seja magnânimo para que valha a pena morrer".
Cícero (106-43 A.C. - orador, ensaísta e estadista romano, assassinado a mando de Marco Antônio): "Nunca sede menos ocioso do que quando estiveres sem trabalhar nem menos solitário do que quando estiveres completamente só".
Berkeley (1685-1753 - filósofo idealista irlandês): "Esse est percipi" ("Ser é ser percebido").
Georg Büchner (1813-1837 - dramaturgo alemão, autor de Morte de Danton): "Nossas peles são grossas, estendemos as mãos um para o outro mas o esforço foi em vão, pois mal esfregamos um couro áspero: somos muito solitários".
Beckett (1906-1999) - em O inominável, o Eu aparece como tópico da vertigem: "Eu de quem nada sei", ou "Aliás já não sou eu"; o tema de Endgame é: Nec tecum, nec sine te (Não com você e não sem você), que é a síntese do dilema esquizoide; no conto "O calmante" surge uma frase dramática: "Todos os mortais que eu via estavam sós e como que afogados em si mesmos"; em seu diário ouvimos um apelo existencial: "Estou totalmente só... e sem propósito, só e patologicamente indolente, flácido, vacilante e consternado"; nos Texts for nothing, outro apelo: "Onde eu iria se eu pudesse ir, quem eu seria se eu pudesse ser, o que eu diria se eu tivesse voz: quem está dizendo isto: falando em meu nome?".
Lembremo-nos que, quase na mesma época, Winnicott e Bion descreveram cenários paradoxais ligados à necessidade humana de "entregar-se à solidão". Em seu artigo de 1958, "A capacidade para estar só", Winnicott concluiu que o ambiente sustentador do ego vai sendo gradualmente introjetado e integrado na personalidade da criança, dotando-a da capacidade de poder ficar sozinha na presença da mãe, e que ele considera praticamente sinônima de maturidade emocional.
Já Bion, no quarto capítulo de Elementos de psicanálise, afirma que "O sentimento de solidão parece engendrar um sentimento em quem está sendo investigado, de que ele está sendo abandonado e, no objeto investigador, de que ele está cortando sua ligação com a fonte ou base da qual ele depende para existir" (1963, pp. 15-16, tradução nossa). Isso gera sentimentos de insegurança, pois obriga o investigador a se "descolar (to detach) de sua herança mental animal primitiva" (1963, p. 16), e, portanto, de sua capacidade social individual como animal político ou grupal. A esta solidão intrínseca ao processo psicanalítico, Bion (1963) categoriza como sendo um elemento de psicanálise.
A solidão de Édipo
No início de Édipo Rei, de Sófocles (496-406 a.C.), apresentado em 430 a.C., em Atenas, o sacerdote dirige-se ao rei Édipo em nome da população aflita com a peste: "Não te igualamos certamente à divindade, [...] mas te julgamos o melhor dos homens, tanto nas fases de existência boa e plácida como nos tempos de incomum dificuldade em que somente os deuses podem socorrer-nos". Surge, já aqui, de forma explícita, a solidão do rei, implicitamente comparado à Divindade. Em sua resposta, sua solidão é posta em evidência: "Sofre cada um de vós a própria dor: minh'alma, todavia, chora ao mesmo tempo pela cidade, por mim mesmo e por vós" (1989, p. 22).
Informado por Apolo que a salvação de Tebas dependia da punição do assassino de Laio, que o antecedera, Édipo expressa ao Corifeu sua determinação em providenciá-la:
Hei de seguir, ainda que só, o rumo certo: o indício mais sutil será suficiente [...], ordeno a quem souber aqui, quem matou Laio, filho de Lábdaco, que me revele tudo [...] e, se ele convive comigo sem que eu saiba, invoco para mim também os mesmos males que minhas maldições acabam de atrair inapelavelmente para o celerado! (1989, p. 30)
Nesse momento, Édipo deixa extravasar a arrogância de resolver o mistério, temperada pela vaidade de cortar na própria carne caso fosse preciso. Vê-se, com isso, o quanto ele estava cego, pois não suspeitou, mesmo sendo conhecedor da predição do Oráculo de Delfos, que estava predestinado a matar um rei, seu próprio pai, e a se casar com uma rainha, sua própria mãe.
Na sequência, exortado pelo Corifeu e aconselhado por Creonte, Édipo convoca o adivinho Tirésias, para chegar ao assassino, além de fiar-se em suas palavras para atemorizá-lo, já que, diz ele: "Quem age sem receios não teme as palavras" (1989, p. 33), frase perigosa porque equilibra-se entre a audácia e a prepotência. Aos poucos, nota-se que Édipo, disfarçadamente, encobre sua solidão convocando intermediários para substituí-lo: primeiro enviou Creonte para consultar o Oráculo, agora convoca o cego Tirésias para revelar-lhe o assassino.
Encolerizando-se com a negativa de Tirésias em lhe revelar o que sabe, Édipo o acusa de ser o assassino, intuindo já o perigo que ele representa por ser portador da "impávida verdade", a qual, pressionada pelo desespero do jovem rei, acaba por explodir: "Pois ouve bem: és o assassino que procuras!" (1989, p. 37). Revoltado com essa acusação, Édipo desqualifica Tirésias e o cobre de imprecações, atacando em especial sua vidência: "Tua existência é uma noite interminável. Jamais conseguirás fazer-me mal nem aos demais que podem contemplar a luz" (1989, p. 38). Com essa sentença, Édipo, vaidosa e prepotentemente, despreza a luz interior geradora de insight que Milton invocara com seu ardor épico, reduzindo-o à imagem de um velho cego conduzido por um menino: não esqueçamos que na tragédia de Édipo tudo começa com um menino-bebê, abandonado no Monte Citeron à própria sorte.
Antes de retirar-se, porém, Tirésias lança uma profecia derradeira na condição de porta-voz de Lóxias, o Deus-Apolo, proferidor de sentenças obliquamente enigmáticas: "O homem que estás procurando [...] e que agora vê demais, ficará cego; ele que agora é rico, pedirá esmolas e arrastará seus passos em terra de exílio, [sabendo] que fecundou a esposa do próprio pai, depois de tê-lo assassinado" (1989, p. 42). Essa sentença evoca a lei do contrapasso, aquela usada por Dante para punir os pecadores com o próprio sofrimento que seus pecados causaram.
Após indispor-se com Tirésias e Creonte, Édipo é acudido por Jocasta, que procura convencê-lo da precariedade das predições oraculares. Mas, munindo-se dos detalhes do assassinato de Laio, começa a suspeitar de sua culpa e passa a reconstituir sua história. Evoca o bêbado que lançara o vitupério dele ser filho adotivo em Corinto e depois o Oráculo de Delfos que lhe vaticina a desgraça de assassinar o pai e casar-se com a mãe. Sentindo-se impotente opta pelo desterro para fugir solitariamente do destino. No entanto, à medida que a certeza de sua culpa vai se avolumando, Édipo começa a antever seu destino: "Não sou um miserável monstro de impureza? E terei de exilar-me e, em minha vida errante, não poderei jamais voltar a ver os meus nem pôr de novo os pés na minha pátria" (1989, p. 61).
A trama vai afunilando as evidências e, não por acaso, passa a depender de testemunhas solitárias: primeiro um criado que se evadira da cena do crime e que poderia dizer se o assassino era um ou vários; depois o mensageiro que vem informar a morte de Pólibo e acaba lhe revelando que ele não era seu verdadeiro pai, e que acaba confessando tê-lo encontrado sozinho num vale escuro e o encaminhado para adoção pelo casal real.
Numa bela passagem, Jocasta tenta acalmar Édipo quanto a seus receios de ainda vir a desposar Mérope, invocando um argumento que encarna a noção de inconsciente: "Não deves te amedrontar com o pensamento da união com tua mãe: muitos mortais em sonho já subiram ao leito materno". Édipo retruca: "não tenho meios de evitar este temor" (1989, p. 68), como dizendo que seu inconsciente é parte integrante de sua solidão.
Quanto mais Édipo se aproxima da verdade dilacerante, mais Jocasta vai repercutindo a advertência de Tirésias, até que, enfim, explicita seu conselho de forma cabal: "Ah! Infeliz! Nunca, jamais queira saber quem és!" (1989, p. 75). Esse ponto nevrálgico da busca da identidade, a qualquer preço, foi desenvolvido por Bion em vários contextos e também por Rancière (2016, pp. 30-31), ao destacar a estética de um Eu que se busca e se perde na dupla exterioridade sensível da matéria e da imagem.
Clement Rosset (2008, p. 44), em seu magnífico ensaio sobre a ilusão denominado O real e seu duplo, destaca que Édipo protagoniza o papel do Ego phanô, ou seja, do descobridor transmutado em descoberto, aquele que profere uma única verdade enquanto se pensa ouvir duas. A peça de Sófocles seria, então, uma tragédia da coincidência e não da ambiguidade, e, por isso, a infelicidade de Édipo é ser apenas ele mesmo e não dois, alguém com dupla origem, em Tebas e em Corinto.
O final da história todos nós sabemos: a perfuração dos próprios olhos por Édipo, o suicídio de Jocasta e o pequeno consolo que o infeliz obteve de Creonte, solicitando a presença das filhas depois de ter sentenciado para si o degredo eterno: "Lança-me fora desta terra bem depressa [Creonte], em um lugar onde jamais me seja dado falar a ser humano algum e ser ouvido" (1989, p. 92). Ou seja, o próprio Édipo antevia a solidão como a condenação extrema.
Creio que as configurações até aqui elencadas nos permitem formular que a essência da estética da solidão poderia ser resumida pela máxima "Ser é ser percebido pela visão interior", em contraste com "Ser é ser percebido", de Berkeley, em que se privilegia a visão exterior. Ou, então, numa versão metapsicológica, seria descolar-se de sua base genética e entregar-se a uma movimentação desenvolvimentista equilibrada: daí a metáfora de andar com as próprias pernas, malgrado os passos em falso.
Nos dilemas de Édipo quanto à sua identidade, podemos entrever distopias geradoras de "desarranjos na cultura". Imagine-se, por exemplo, se seu dilema, após casar-se com Jocasta, não fosse descobrir-se seu filho e assassino do pai, mas, sim, querer abandoná-la para juntar-se a um homem? Com esse pano de fundo, passaremos agora a configurações atuais.
A solidão das crianças-soldados3
A figura da criança-soldado, endêmica em várias regiões do mundo, surge com dramaticidade no mundo lusófono, particularmente em Angola e Moçambique, como fruto dos desastres psicossociais causados por 10 anos de guerras pela independência e 20 anos de guerras civis fratricidas.
Em Moçambique, por exemplo, em função do confronto entre a Frente de Libertação Nacional (Frelimo) e a Resistência Nacional de Moçambique (Renamo), logo após a independência, estima-se que o conflito custou quase um milhão de vidas (45% sendo crianças abaixo de 15 anos), sendo que 1,5 milhão de pessoas teriam se refugiado em países vizinhos.
Em 1988 a Unicef estimou que cerca de 250 mil crianças moçambicanas sofriam de traumas físicos ou psíquicos por terem sido sequestradas e obrigadas a se integrar a milícias, sendo usadas como espiãs, carregadoras de munições, soldados em missão de combate, escravas na produção de alimentos ou concubinas sexuais. Estupros violentos eram perpetrados, levando frequentemente as meninas à morte. Aos meninos, por seu turno, exigia-se muitas vezes que retornassem às suas aldeias com a incumbência de matar os próprios pais ou vizinhos, como expediente sacrificial para eliminar suas raízes éticas e culturais.
Em Angola, Martha Bragin (2010, pp. 233-239) relata o caso de um menino de 9 anos, Pedrito, que foi levado junto com outras crianças pelas forças rebeldes da Unita, para serem soldados. Elas passaram fome, foram torturadas e, caso tentassem fugir, outra criança era obrigada a atirar nela e todos os demais obrigados a beber seu sangue. Muitas crianças, é claro, morriam.
Aos 18 anos, após ser desmobilizado, passou a ter pesadelos recorrentes em que era ordenado a cavar um grande fosso, no qual deveria ficar confinado juntamente com as almas daqueles que tinha assassinado, de seus pais mortos e de vizinhos e professores que foram chacinados. A equipe de saúde do Christian Children's Fund (CCF) que o acolheu, julgou conveniente que ele fosse submetido a um tratamento simbólico tradicional por parte de um curandeiro, que o iniciou sentenciando ao sofredor uma frase solene: "Ele que mata, cura, e ele que cura, mata: tal é a natureza da vida". Transcendendo um significado popular das pulsões de vida e de morte, esse enunciado encerra com senso estético uma mensagem de solidariedade moral a alguém afogado na "banalidade do mal", esta famosa expressão de Hannah Arendt.
Ele comprou e matou uma galinha e uma cabra, cobrindo o jovem com o sangue dos animais. A seguir, os animais foram cozidos e a família convidada a se banquetear com eles. O jovem assassino coberto de sangue foi enrolado na pele da cabra, e publicamente reconhecido como "ensanguentado e ensanguentador", ao mesmo tempo que seu tratamento se tornou uma fonte de alimento para a comunidade. Isso simboliza que a pessoa que matou pode ser também a fonte de coisas boas, e que ambas as condições existem em todos nós.
Outro tipo de tratamento ancestral bastante interessante consiste na invocação do espírito dos antepassados. No caso,
O curandeiro convocou o espírito da mãe de Pedrito e descobriu que, como a maioria dos mortos, ela tinha vindo a saber que há violência na parte oculta do espírito humano. A despeito de sua violenta experiência, Pedrito tinha sido um bom filho à sua mãe, propiciando-lhe um enterro digno. As palavras que o curandeiro atribuiu à mãe tornaram-se um meio de trazer à consciência temores referentes a desejos proibidos. (p. 237)
A solidão do abandono
Há algumas décadas, lembro-me de passar na Rua D. Veridiana e observar, com curiosidade misteriosa, uma estrutura incrustada no muro da Santa Casa com uma janela giratória para receber crianças ali abandonadas pelos pais. Em geral, o discurso que sustentava esses atos enfatizava a expectativa de que alguém, ou alguma instituição, estaria melhor aparelhado para criá-los.
Um fenômeno semelhante vem ocorrendo atualmente na fronteira do México com os Estados Unidos, onde crianças são abandonadas à própria sorte com a intenção de serem recolhidas por órgãos do Eldorado Americano e, eventualmente, encaminhadas para parentes que ali se encontrem.
Transcreverei alguns trechos do ensaio "Por que você veio?", de Valéria Luiselli (2017, pp. 5-23), uma mexicana que em 2014 conseguiu o green card após um rosário de peripécias burocráticas, acabando por empregar-se como intérprete numa repartição do governo encarregada de preencher um questionário com as crianças recém-chegadas, que se iniciava com a indagação:
"Por que você veio para os Estados Unidos?"As respostas das crianças variam, mas quase sempre mencionam o reencontro com um pai, uma mãe ou um parente que emigrou antes delas para o país. Outras vezes, as respostas das crianças têm a ver não com a situação com que chegam, mas com aquela da qual tentam escapar: violência extrema, perseguição e opressão por parte de gangs de rua e quadrilhas criminosas, abuso mental e físico, trabalho forçado. A motivação dessas crianças não é tanto o sonho americano em abstrato, e sim a mais modesta, porém, urgente, aspiração a acordar do pesadelo em que muitas delas nasceram. (Luiselli, 2017, p. 6)
Mais de meio milhão de imigrantes mexicanos e centro-americanos embarcam anualmente para a fronteira em trens da morte apelidados de La Bestia, produzindo estatísticas aterradoras:
Estupros: 80% das mulheres e meninas que atravessam o território mexicano em direção à fronteira são estupradas no caminho. Os estupros são tão comuns que já são considerados fatos consumados, e a maioria das adolescentes e mulheres adultas toma precauções anticoncepcionais antes de começar a viagem.
Sequestros: em 2011, a Comissão Nacional dos Direitos Humanos do México publicou um relatório especial sobre casos de sequestros de migrantes que registra a arrepiante cifra de 11.333 vítimas de sequestros entre abril e setembro de 2010.
Mortes ou desaparecimentos: embora seja impossível conhecer o número real, algumas fontes estimam que desde 2006 desapareceram mais de 120 mil migrantes em sua passagem pelo México.
Esse ensaio é ilustrado com lindos retábulos de Daniel Vilchis, uma arte popular mexicana que mescla ex-votos com imagens do cotidiano, e que evoca a Via Crucis de Jesus. Num deles, vemos um muro tecnológico estampado com caveiras, cruzes, a bandeira mexicana e o alerta: "No Cruzes". Três figuras masculinas com mochilas às costas estão escalando o muro e, no chão desértico, vemos cactos estilizados. Pairando no ar, temos duas figuras: do lado mexicano, a Virgem de Guadalupe, do lado americano, um helicóptero vigilante, e, no subsolo, um dístico oratório:
Madre mia de Guadalupe te doy las gracias por permitir cruzar a mi esposo Antonio y a mis hijos Juaquim y Pedro con bien a su sueňo Americano sin que la migra los agarrara llegando a los E.U. y asi poder ganar unos Dolaritos para poder salir adelante aqui en Mexico y con lagrimas en los ojos te pido de todo corazon los protejas.
(Sra. Dionicia Lopez, 11 de outubro, 1998)
A autorreferência é, com certeza, uma condição que nasceu logo após o surgimento da consciência humana, participando dos estágios de consolidação do Eu, dos processos de socialização, de várias condições psicopatológicas e assim por diante. Um dado interessante descoberto pelos estudiosos é que a maior parte das imagens de mãos impressas em certos nichos das cavernas pré-históricas pertencia a um único indivíduo, levando-nos a concluir que um dos móveis presentes era, com certeza, o registro de uma marca pessoal: ou seja, já na pré-história, o homem não queria ser esquecido e deixado sozinho, podendo ser considerado um legítimo precursor do exibicionismo imperante nas atuais redes sociais.
Como vimos, esse princípio vem se mantendo ao longo da história, seja através das autorrepresentações, das autobiografias e dos marketings pessoais, tudo condensado no rutilante aforismo de Berkeley: "Ser é ser percebido!".
Há dez anos foi publicada uma excelente tese de doutorado, defendida por Paula Sibilia no Departamento de Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o sugestivo título "O show do Eu: a intimidade como espetáculo", cujo oitavo capítulo trata do "Eu personagem e o pânico da solidão" (o Eu, aliás, consta no título de todos os capítulos).
Nessa época, a revista Time elegeu o Eu como personalidade do ano, mas, agora sabemos, poderia ter arriscado elegê-lo como personalidade da década vindoura. Não tendo tempo para resumir a riqueza desse livro, optei por registrar alguns conceitos ou ideias surgidos na leitura do referido capítulo.
Comecemos com a constatação de que a personalidade do Homo Internauticus é, sobretudo,
Algo que se vê: uma subjetividade visível, uma forma de ser que se cinzela para ser mostrada. Por isso, estas personalidades são um tipo de construção de si alterdirigidas, orientadas para e pelos outros, em contraste com as subjetividades intradirigidas de outros contextos históricos (Sibilia, 2008 p. 234),
como, por exemplo, aquela construída dentro de um "quarto que seja seu", como proposto por Virginia Woolf.
Uma consequência desse cenário foi a instauração de um mercado de personalidades, uma bolsa de valores em que a imagem pessoal é a principal moeda de troca. O público que frequenta esse mercado, através de blogs, fotologs e videoclipes, somos eu, você e todos nós, uma espécie de tribo endogâmica que se autoalimenta.
Uma curiosa distorção estimulada pela omnifrequência do ciberespaço foi resumida por Paloma Vidal em seu blog: "O diário é uma representação dessa experiência estranha de não saber pensar sem falar", e que eu, Junqueira, denominei de pensorreia. Este impulso de ter que falar, e se exibir em tempo real, pretende substituir o trabalho silencioso e solitário que, classicamente, sempre fora essencial para pensar e para se autoconstruir. Estimulado por um poder mágico de divulgar suas ideias e a própria vida para o mundo, o homem pós-moderno vai proliferando novos comportamentos, como o de produzir lifies e projetá-los numa tela, compulsão que poderíamos chamar de projelitismo para enfatizar sua raiz proselitista.
A distorção maior, porém, é aquela vivida pelos "lobos solitários", aquelas mentes doentias que, para obter uma fama ou recompensa sobrenatural instantânea, não hesitam em ceifar vidas inocentes. O mau uso da cultura informática contamina a sedimentação das memórias e tradições que possam forjar aquelas conexões de significados que rompam o casulo da solidão. Em seu lugar, emerge, então, este Eu alterdirigido, epidérmico e mutante, comandado por um olhar escravizado a uma tela, ou seja, ao mundo exterior, e não mais um olhar que seja, esteticamente, a janela da alma.
REFERÊNCIAS
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Winnicott, D. W. (1975). La capacidad para estar a solas. In El proceso de maduración en el niño. Barcelona: Laia. [ Links ]
Endereço para correspondência:
LUIZ CARLOS UCH ÔA JUNQUEIRA FILHO
Rua Helena, 170/121
04552-050 São Paulo SP
tel.: 11 3842-3060
mr.junqueira@uol.com.br
Recebido 23.03.2018
Aceito 12.05.2018
1 Trabalho apresentado na mesa redonda "Estética e mal-estar na civilização", realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em 17.03.2018.
2 Esta indiferenciação bíblica e mesmo embriogenética, se pensarmos que durante um período da embriogênese as células se mantêm neutras, sem assumirem a diferenciação XY ou XX, há implicações positivas ou negativas. Lembremos, no primeiro caso, das vantagens das células-tronco e mesmo do caso de Tirésias, transformado em juiz para dirimir a disputa entre Zeus e Hera sobre quem teria maior prazer sexual, se o homem ou a mulher, por ter experimentado por sete anos a condição feminina. Como aspecto negativo, lembremos o caso atual do transgênero Tiffany, jogador de vôlei que migrou para o gênero feminino e que agora está batendo todos os recordes de pontuação na Liga Feminina, gerando protestos de jogadoras olímpicas e indagações aflitas ao Comitê Olímpico Internacional (COI).
3 Agradeço aos colegas Fernanda e Ney Marinho pelo gentil envio do número da revista Trieb, da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), dedicado aos esforços da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) para enfrentar os problemas de saúde mental surgidos nesses países após 30 anos de guerra (10 pela independência e 20 de guerras civis), com a ajuda da psicanálise. Os dados referentes à "criança-soldado" foram extraídos do trecho a ela dedicada (pp. 197-233).