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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo July/Dec. 2018
EM PAUTA EASY RIDER: SEM DESTINO
Contra o pai e a pátria: o "Uivo" libertário de Allen Ginsberg
Against the father and the fatherland: Allen Ginsberg and his libertarian "Howl"
Noemia Davidovich Fryszman
Professora titular de literatura inglesa e norte-americana da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora doutora de história da arte das Faculdades Integradas Rio Branco. Doutora em artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Mestre em letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Participante do grupo de estudos "Estética-Arte-Psicanálise" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
Este artigo se propõe a traçar um painel histórico, político, social e literário da geração beat, cuja obra se desenvolveu no período que compõe o fim da década de 1950 e as décadas de 1960/70 nos Estados Unidos. Os beats foram transgressores das regras sociais preestabelecidas e das normas que confinavam a criação da literatura e da poesia na época. O poema "Uivo", de Allen Ginsberg, foi escolhido para ilustrar o anseio de libertação do "Uivo" engasgado na garganta dos Estados Unidos e de soltura das amarras que cerceavam todos os tipos de diversidade.
Palavras-chave: Geração beat. Contracultura. Intolerância. Ginsberg.
SUMMARY
This article proposes to draw a panel of the beat generation, within its historical political, social and literary epoch, representing the period that composes the end of the 1950s and the decades of 1960/70 in the United States. The beats were transgressors of the pre-established social rules and of the norms that confined literature and poetry at the time. Allen Ginsberg's poem "Howl" was chose to illustrate the liberation of the choked "Howl" in the throat of United States of America, loosening the bonds that enslaved all kinds of diversity.
Keywords: Beat generation. Counterculture. Intolerance. Ginsberg.
Primeiros passos: o nascimento da geração beat nos Estados Unidos
Quando se analisa a geração beat, observa-se que suas criações literárias e seu inconformismo comportamental se fundem em uma simbiose que torna a separação impossível. Seus fundadores - Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs - e os que os seguiram depois - Gary Snyder, Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti, Neal Cassady (para citar os mais atuantes) - introjetaram na alma a sufocante realidade social e, para conseguir suportá-la, transformaram em poesia ou prosa poética suas transgressões sociais, os delírios causados por drogas alucinógenas, as paixões consideradas perversas, a prática de sexo desregrado e o não conformismo com o rumo que os Estados Unidos tinham tomado.
Eles foram arautos de mudanças, transgressores tanto da tradição literária quanto das normas preestabelecidas pela sociedade norte-americana da época (pós-Segunda Guerra Mundial), que vivenciava os conflitos da Guerra Fria, o estabelecimento da "Cortina de Ferro" e, posteriormente, a Guerra do Vietnã. Os beats apregoavam a existência de uma sociedade justa, a liberdade total nas manifestações do corpo e da mente e a humanização da cultura, que, para eles, havia sido estrangulada pela sociedade do lucro e do capital.
É uma geração que teve que enfrentar censura, internação em hospitais psiquiátricos, prisão, preconceitos (principalmente de ordem sexual, ao apregoar o sexo livre e sem barreiras), mas que nunca abandonou o sonho de transformar os Estados Unidos novamente em uma grande nação.
O epíteto beat generation (geração beat) é atribuído a Jack Kerouac que, em conversa com o escritor John Holmes, em 1948, sobre The lost generation (A geração perdida, que teve Hemingway como um de seus maiores expoentes, na década de 1920), teria declarado, ao tentar nomear a sua geração: "Ah, this is nothing but a beat generation!"1.
Holmes usou a expressão "This is a beat generation" (esta é uma geração "ferrada") em um dos seus artigos para o jornal The New York Times em 1950, popularizando a expressão para o grande público. No seu entendimento, "beat implica a sensação de ter sido usado, de estar cru, envolve uma espécie de nudez mental e, em última análise, de alma; um sentimento de ser reduzido ao alicerce da consciência"2 (Bartlett,1981, p. 3 - tradução nossa).
Ao lado dos beats, nome que designa os poetas e escritores do movimento, surgiram os beatniks, termo que se refere aos jovens pertencentes a uma subcultura associada à geração beat e seus futuros desdobramentos em hippies, punk rockers, oths e emos. Ainda como integrantes da contracultura, surgiram os hipsters, marginais consumidores de drogas ligados aos círculos do jazz. Na década de1950, quando o zen budismo começou a estabelecer raízes na cultura norte-americana, influenciando o pensamento místico de Ginsberg, Kerouac e Corso, o termo beat passou também a ser associado a "beatific" (beatífico) ou "beatitude" (beatitude) para expressar um estado de transcendência espiritual.
Quando Jack Kerouac escreveu sua obra mais representativa, On the toad (Pé na estrada), estabeleceu um marco de inovação na literatura norte-americana ao criar um recurso literário denominado por ele de "prosa espontânea", quase que um "fluxo de consciência", aliado à improvisação, em uma tentativa de unir a poesia ao ritmo alucinante do jazz. Beat, então, é usado também como referência ao "drumbeat" (batida rítmica do jazz).
A primeira acepção da palavra "beat" - de beaten, "derrotado", "com o espírito abatido" - retrata o sentimento dos norte-americanos após a Segunda Guerra Mundial, quando, passada a euforia da vitória, a bomba de Hiroshima começou a espalhar sua radiação maléfica na atmosfera dos Estados Unidos. O terror continuou quando as pessoas tomaram conhecimento dos horrores dos campos de concentração alemães e sentiram uma pesada "cortina de ferro" encobrir o país norte-americano.
Nos Estados Unidos, iniciava-se a época do macarthismo (1950-1954), assim denominada por ter o senador McCarthy instituído uma campanha contra o comunismo no país, que viria a se transformar em paranoia nacional. Centenas de pessoas suspeitas de apoiar o regime comunista foram perseguidas sem nenhum fundamento legal e incluídas arbitrariamente na "lista negra", destruindo-se assim a reputação de indivíduos, que ficavam desmoralizados, privados de seus empregos e de seus direitos civis. Os alvos prediletos eram os artistas, escritores e jornalistas, pelo alcance que eles tinham em formar a opinião pública. Nessa tarefa, McCarthy foi secretamente auxiliado por J. Edgar Hoover, diretor do fbi na época, que, por meio de práticas inconstitucionais, perseguia ferozmente pretensos comunistas e homossexuais.
Em 1952, Hoover informou ao presidente Dwight Eisenhower que Arthur H. Vandenberg Jr., nomeado secretário presidencial, era homossexual, obrigando-o a renunciar. Iniciava-se assim um padrão de perseguição a comunistas e homossexuais, transformada em histeria coletiva, que destruiu centenas de vidas e carreiras. Naquele ano, a homossexualidade foi classificada como um transtorno mental pela Associação Americana de Psiquiatria. No Senado, os republicanos enfaticamente apregoavam que a homossexualidade no governo era uma ameaça à segurança nacional e estabeleceram a relação comunismo-homossexualidade.
O macarthismo e o FBI de Hoover haviam espalhado "ovos de serpente" na cultura norte-americana, que perdurariam pelas décadas seguintes, ancorados em um espírito de puritanismo exacerbado, que emergiu na forma de uma devastadora e obsessiva condenação a toda publicação de livros considerados pornográficos, com a apreensão das obras das bibliotecas públicas e das universidades quando classificadas como indecentes ou "vermelhas" e a aplicação de uma censura implacável às artes e aos meios de comunicação.
Caminhando e cantando: os sons da poesia para salvar o mundo
Foi nesse contexto histórico que apareceu, especificamente em São Francisco, um grupo de jovens poetas e escritores que, não conseguindo publicar suas criações, recorreu à estratégia de lê-las em público. Estava inaugurada a geração beat. A ruptura com a tradição anterior da literatura anglo-americana foi corporificada não só pela criação de uma temática revolucionária, mas também pelo uso de uma linguagem poética transformadora, porém sem deixar de homenagear poetas transgressores de épocas passadas.
Um dos ídolos da geração beat era o poeta Walt Whitman (1819-1892), criador da figura do poeta "pé na estrada", que conclamou em sua poesia os norte-americanos a seguirem com ele pelas estradas ainda não desbravadas dos Estados Unidos:
A pé e tranquilo eu me encaminho para a estrada aberta,
Saudável, livre, o mundo diante de mim,
O longo atalho de terra me conduzindo para onde
eu escolher...............................................................................
Aqui a profunda lição de acolhida, sem preferência
ou recusa,
O negro com sua cabeça lanosa, o criminoso, o
combalido, o analfabeto não são recusados...............................................................................
Allons! A estrada está à nossa frente!
É segura - eu mesmo experimentei - meus próprios
pés a testaram bem - não se refreie!(fragmentos da poesia "Song of the open road") (Whitman, 2002, p. 346 - tradução livre da autora)3
Nesse poema, Whitman explora a expansão dos Estados Unidos para o Oeste e exorta os norte-americanos a segui-lo nessa travessia repleta de aventuras por estradas desconhecidas - metáfora de uma viagem interior em direção ao autoconhecimento. Certamente, os hippies encontraram em Walt Whitman um guia que os entusiasmava a pôr o pé na estrada e voltar à natureza, fugindo da sociedade norte-americana capitalista, materialista, preconceituosa e "selvagem".
Em sua poesia, Whitman explora todas as possibilidades de união entre corpos de homens e mulheres, afirmando que do contato físico provém a união espiritual. Em seus versos, há uma alusão velada à homossexualidade, o que não passou despercebido à tacanha sociedade dos Estados Unidos do século XIX, que simplesmente execrou sua obra, rotulando-a de indecente e perniciosa. As edições que ele conseguiu publicar, em geral, saíram com cortes. Em 1865, sob a acusação de escrever poemas indecentes, foi despedido de seu emprego no Departamento do Interior.
Walt Whitman foi um poeta transgressor em seu tempo, esquecido posteriormente, e cuja leitura foi proibida nas escolas, que alegavam serem suas criações fruto de uma mente degenerada, homossexual. Com a geração beat, ele vai aparecer redivivo, tanto pela temática do desbravamento da natureza quanto por sua ousadia ao fazer apologia à liberação dos prazeres sexuais na hipócrita sociedade do século XIX.
Travessia: Allen Ginsberg e a descoberta do verdadeiro self
Allen Ginsberg (1926-1997) nasceu em Newark, New Jersey, filho de Louis e Naomi Ginsberg, ambos imigrantes judeus russos com ideais esquerdistas. O poeta, um dos fundadores do movimento beat, foi figura de proa na sociedade da contracultura norte-americana na segunda metade da década de 1960.
Ele não apenas foi um prolífico poeta de vanguarda, mas também quebrou barreiras da literatura norte-americana com poemas como "Howl"("Uivo"), um uivo digno de acordar e sensibilizar os Estados Unidos para as atrocidades que a estavam corroendo, e de "Kaddish" (inspirado em uma oração judaica em memória dos mortos, no caso para homenagear sua mãe, Naomi).
Nas décadas de 1960/70, foi ativista participante dos protestos contra a Guerra do Vietnã, pronunciou-se abertamente a favor da liberdade de expressão, defendeu a liberação de drogas e advogou pelos direitos da comunidade gay nos Estados Unidos, destacando-se como a figura mais representativa da geração beat.
O poeta cursou a Columbia University, em Nova York, na década de 1940, e lá foram seus contemporâneos Jack Kerouac e William Burroughs, grupo que seria o núcleo formador do "beat movement". Um acontecimento fulcral em sua vida foi a mudança, em 1954, para São Francisco, cidade onde encontrou figuras representativas da contracultura norte-americana, como seu mentor William Carlos Williams, além de poetas e escritores que, querendo apresentar suas obras sem que fossem mutiladas pela censura, organizavam sessões de leituras poéticas abertas ao público.
Foi em uma dessas sessões, que aconteciam regularmente na Six Gallery, local anteriormente ocupado por uma oficina mecânica transformada em galeria de arte, que Allen relutantemente aceitou participar da leitura de poesias ao lado de cinco outros poetas. O convite partiu de Keneth Rexford, um dos idealizadores da "San Francisco Renaissance", nome atribuído aos escritores e artistas que emergiram na Bay Area de São Francisco, região da cultura alternativa no período logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Era o dia 7 de outubro de 1955 e teve início às 20h o evento que iria inaugurar uma nova era na poesia e na sociedade norte-americanas: Six Poets at Six (Seis Poetasna Six). A leitura poética começou com Philip Lamantia e seguiu com Philip Whalen e Michael Mclure, quando Kenneth Rexroth apresentou Allen Ginsberg, que iria declamar o poema "Uivo".
Já o primeiro verso - "I saw the best minds of my generation destroyed by madness"4 (Ginsberg, 1999, p. 79) - causou um forte impacto em uma audiência mesmerizada, como se algo devastador estivesse sendo lançado. Em cada verso declamado,
Allen desenvolveu um senso mais profundo de sua própria identidade do que jamais tivera antes [...] No processo de leitura do poema, ele descobriu que estava forjando uma nova identidade como um poeta público, compartilhando seus pensamentos e sentimentos privados com ouvintes ansiosos que o admiravam. O poema criou o poeta. (Raskin, 2004, p. 18 - tradução nossa)5
Na continuação da leitura, Kerouac se sentou ao lado do palco e, balançando uma jarra de vinho, gritava "go, go, go" no fim de cada verso e logo foi acompanhado pela plateia em transe. Criou-se uma conexão anímica entre o poeta e a plateia, um clima de encantamento nunca antes encontrado nas leituras da Six Gallery. Quando a declamação de "Uivo" chegou ao fim, a emoção de todos era incontida - os poetas, a audiência e o próprio Ginsberg estavam em lágrimas. O movimento beat estava lançado! Quando essa apresentação ocorreu, somente a primeira parte de "Uivo" estava escrita. Posteriormente, o público aplaudiu com a mesma intensidade as outras partes que foram acrescentadas.
Lawrence Ferlinghetti, diretor da livraria e editora City Lights, localizada na Bay Area, estava presente na plateia e, no dia seguinte, enviou um telegrama a Ginsberg perguntando quando receberia o manuscrito para publicá-lo. "Uivo" foi lançado em 1956 pela City Lights, porém, em 1957, Ferlinghetti sofreu um processo seguido de prisão, sob a acusação de haver divulgado material obsceno. O julgamento foi acompanhado com grande interesse pela cidade de São Francisco.
O juiz Clayton W. Horn, que presidiu o julgamento, destacou que não só a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos garantia plena liberdade de expressão, como também a Constituição da Califórnia assegurava que: "Todo cidadão pode falar livremente, escrever e publicar seus sentimentos sobre todos os assuntos" (Raskin, 2004, p. 222 - tradução nossa).6 O juiz liberou "Uivo", argumentando que o poema possuía "alguma importância social redentora". Por fim, ele prolatou sua sentença, proclamando Ferlinghetti inocente das acusações contra ele apresentadas. O julgamento, com a grande publicidade que recebeu, transformou Ginsberg em uma celebridade instantânea e constituiu um marco para a livre expressão sexual na literatura.
Ao analisar a obra de Ginsberg, percebe-se que sua poesia está imbricada em sua vida. Seu pai, Louis, era poeta e professor de literatura, e sua mãe, Naomi, que desempenhou um grande papel em sua vida, possuía sérios distúrbios psíquicos e passou a vida toda praticamente internada em hospitais psiquiátricos. As relações de Ginsberg com seu pai sempre foram conflituosas. Para ele, a poesia que Louis criava era muito tradicional, tecida com lírica ultrapassada, falta de imaginação e com rimas previsíveis. Esse não era, contudo, o principal ponto de discórdia. Ginsberg o temia, que, para ele, representava a figura de um pai castrador, que não aceitava sua homossexualidade e sua vida desregrada. Contudo, ao mesmo tempo, é possível vislumbrar, refletida em sua obra poética, uma relação de amor e ódio dirigida ao pai, principalmente em "Uivo", cujo substrato é um pedido patético da aceitação paterna.
Por apresentar comportamento psíquico alterado por alucinações, Ginsberg foi internado em 1949 no Psychiatric Institute of Columbia Presbyterian Hospital, onde permaneceria por oito meses, com a condição de continuar com um tratamento psiquiátrico externo. Sua internação em um hospital psiquiátrico fez com que ele conhecesse ainda melhor o ambiente dos internos nesse tipo de instituição, algo de que já tinha uma boa ideia devido à condição de sua mãe. Pode-se encontrar em sua obra ecos da crueza da vida nos hospitais psiquiátricos da época, onde muitos pacientes eram internados pelas famílias, que buscavam uma "cura" para sua homossexualidade.
Em 1953, Ginsberg iniciou uma terapia no Langley Porter Institute com o dr. Philip Hicks. Foi um ponto de inflexão em sua vida como homem e poeta. No decorrer do tratamento, de acordo com o poeta, ao tomar conhecimento das suas queixas quanto à ocupação que ele tinha naquele momento (trabalhava com pesquisa de mercado) e sobre sua vida em geral, o dr. Hicks perguntou: "O que você gostaria de fazer? O que você deseja realmente?". Ao que Ginsberg respondeu:
Doutor, penso que você não vai achar isso muito saudável e claro, mas eu realmente gostaria de parar de trabalhar para sempre - nunca trabalhar novamente, nunca fazer nada parecido com o tipo de trabalho que estou fazendo agora e não fazer nada a não ser escrever poesia e usufruir o lazer de passar dias ao ar livre e visitar museus e ver amigos. E eu gostaria de morar com alguém - mesmo [que] um homem - e continuar explorando relações nesse sentido. E cultivar minhas percepções, cultivar meus dons visionários. Somente uma existência literária e tranquila de um ermitão urbano.
O dr. Hicks, então, retrucou: "E por que você não faz isso?" (Breslin, 1977, p. 86 - tradução nossa).7
O conselho do dr. Hicks foi um marco em sua vida. Em várias entrevistas, Ginsberg, ampliando o alcance da conversa, atribuiu a ela o significado de uma grande ruptura com valores anteriores, como se o psicanalista, uma figura substituta do pai, tivesse dado a permissão tão ansiada para ele assumir seu verdadeiro self. Assim sendo, "Uivo" seria um grito de acusação não só contra as injustiças sociais, mas um urro voltado contra as amarras do seu interior, libertando-o de todos os seus demônios e fazendo com que ele pudesse assumir finalmente a condição de ser ele mesmo poeta, amante das drogas e homossexual.
Nesse processo, Ginsberg finalmente conseguiu unir vida e obra e criar poesia viva e contagiante. No poema "Uivo", ele faz apologia às drogas, da homossexualidade, à liberdade total de corpos e espíritos e denuncia a opressão, a exclusão social e a perseguição sofrida pelos que não se conformam com as regras da sociedade preestabelecida. No seu todo, encontram-se histórias abreviadas de pessoas presentes na vida de Ginsberg, que circulava ao lado de loucos, drogados, seres humanos marginalizados por não se conformarem com valores sexuais, sociais ou religiosos impostos pelo regime econômico norte-americano e imbuídos pelo capitalismo selvagem.
Destino: soltar o "Uivo" preso na garganta, fazendo-o ecoar por sobre os Estados Unidos
"Uivo", cujo título completo é "Uivo, para Carl Solomon", foi dividido originalmente em três partes. Posteriormente, foi acrescentado um rodapé poético. Em "Uivo", Ginsberg criou imagens chocantes, com lírica e ritmos ainda não explorados, possibilitando uma tessitura poética nunca concebida até então. Pode-se ver aqui não só uma libertação da conexão afetiva simbiótica com seu pai, mas também um distanciamento da poética paterna, por ele considerada medíocre. Em "Uivo", Ginsberg usa versos longos e livres, inspirados na poética de Walt Whitman, para dar voz aos excluídos e marginalizados pela sociedade, em uma liberdade artística correspondente ao desejo de libertação das amarras sociais.
"Uivo" incorpora em si, ao mesmo tempo, todas as angústias existenciais e a reestruturação poética promovida pela geração beat. Por isso a análise desse poema será tomada como exemplo para um melhor entendimento da contracultura norte-americana no fim da década de 1950 e nas décadas de 1960/70.
Já nas primeiras linhas, há uma antecipação do que "Uivo" nos revelará:
Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro, de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa, hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado na maquinaria da noite, que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando, sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades contempladas de jazz. (Ginsberg, 1956/1999, p. 79)
Vale lembrar que, na época, a homossexualidade era considerado crime nos Estados Unidos, onde ainda vigiam as Leis da Sodomia do século xvii, herdadas do período colonial, quando várias práticas sexuais eram tidas como desviantes. A homossexualidade foi considerada crime em todos os estados dos Estados Unidos até 1968, com penas que variavam de um longo período na prisão a trabalhos forçados. Aos poucos, depois de ferozes batalhas judiciais, as leis que criminalizavam o ato sexual entre pessoas do mesmo sexo foram sendo revogadas, mas somente em 2003 se deu sua extinção final. A voz de Ginsberg foi uma das mais atuantes na luta pela descriminalização da homossexualidade naquele país.
Na primeira parte de "Uivo", o poeta traz à vida pessoas que pertenciam à contracultura, todas outsiders, marginalizadas como ele por seguirem padrões que perturbavam a sociedade dos Estados Unidos. Ginsberg também invoca as cruezas que acometem os párias da cultura preestabelecida, criando uma visão sinistra dos excluídos do sistema, seja por seu pensamento político, por sua patologia mental, por seu apego às drogas ou por sua opção sexual.
O verso a seguir sintetiza o tema desenvolvido na primeira parte: "E morderam policiais no pescoço e berraram de prazer nos carros de presos por não terem cometido outro crime a não ser sua transação pederástica e tóxica"(Ginsberg, 1956/1999, p. 84).
Na segunda parte, aparece a figura sinistra de Moloch, divindade devoradora amalequita8para a qual eram feitos sacrifícios de crianças. Aqui, Moloch é usado metaforicamente para simbolizar o poder destruidor da sociedade capitalista dos Estados Unidos, à qual Ginsberg atribuía todos os males responsáveis pela escravização dos indivíduos:
Que esfinge de cimento e alumínio arrombou seus crânios e devorou seus cérebros e imaginação? Moloch! Solidão! Sujeira! Feldade! Latas de lixo e dólares inatingíveis! Crianças berrando sob as escadarias! Garotos soluçando nos exércitos! Velhos chorando nos parques! [...] Moloch, o pesado juiz dos homens! [...] Moloch cuja mente é pura maquinaria! Moloch cujo sangue é dinheiro corrente! (1956/1999, p. 93)
Para Ginsberg, Moloch é também a metáfora do pai castrador: "Moloch que penetrou cedo na minha alma! Moloch em quem sou uma consciência sem corpo! Moloch que me afugentou do meu êxtase natural!" (1956/1999, p. 94).
A terceira parte é inteiramente dedicada a Carl Solomon (1928-1993), numa homenagem tangente ao amigo que ele conheceu no Greystone Park Psychiatric Hospital em New Jersey, quando visitava a mãe, que lá estava internada. No poema, Ginsberg usa o refrão "eu estou com você em Rockland", trocando o nome do hospital em razão da sonoridade e das interpretações simbólicas da denominação escolhida, porque Rockland significa "terra de rochedos", remetendo a lugares áridos e estéreis:
Carl Solomon! Eu estou com você em Rockland
onde você está mais louco do que eu[...]
Eu estou com você em Rockland
onde somos grandes escritores na mesma abominável máquina de escrever.
(1956/1999, pp. 95-96)
O último verso é uma referência às cartas alucinadas que ambos escreviam quando estavam internados em institutos psiquiátricos. As críticas ao desumano tratamento dado aos pacientes dos hospitais psiquiátricos são cruamente expostas nos versos. Observe-se que, na época, as instituições psiquiátricas se propunham a curar a homossexualidade através de choques elétricos e lobotomia:
Eu estou com você em Rockland
onde com mais cinquenta eletrochoques sua alma nunca
mais retornará a seu corpo de volta da sua peregrinação
rumo a uma cruz no vazio.
(1956/1999, p. 96)
A nota de rodapé de "Uivo", acrescentada posteriormente, inicia-se com 15 exclamações de "Santo!", fazendo lembrar a litania dos lunáticos religiosos berrando nas ruas. Ginsberg sugere que, mesmo havendo miséria e exclusão no mundo, ainda será possível uma redenção, e essa salvação virá pelas mãos dos que semearam os valores da geração beat e dos excluídos imbuídos de santidade:
Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo!
Santo! Santo!
Santo! Santo! Santo! Santo! Santo! Santo!
(1956/1999, p. 98)
A tradução de santo em hebraico é kadosh, cujo primeiro sentido se refere à santidade de Deus, tal como aparece na liturgia hebraica. Isso pode parecer uma heresia por parte de Ginsberg, mas há um segundo sentido religioso que a palavra possui: "Ser deixado à parte do mundo para cumprir uma missão elevada".
Santo Peter santo Allen santo Solomon santo Lucien santo
Kerouac santo Huncke santo Burroughs santo Cassidy[...]
Santa a sobrenatural extrabrilhante inteligente bondade da alma.
(1956/1999, pp. 98-99)
A geração beat, destacando-se seu principal representante poético, Allen Ginsberg, recebeu como fardo um mundo cruel e preconceituoso, repleto de raiva e frustração, onde não havia lugar para a compaixão. No entanto ela lutou titanicamente para vencer a fatalidade que oprimia os Estados Unidos, construindo com seus versos um destino que marcou uma época, deixando um legado de compreensão e esperança para as futuras gerações.
REFERÊNCIAS
Bartlett, L. (1981). The beats: essays in criticism. Londres: McFarland. [ Links ]
Breslin, J. (1977). Allen Ginsberg: the origins of "Howl" and "Kaddish". The Iowa Review 8(2),82-108. [ Links ]
Ginsberg, A. (1999). Uivo, Kaddish e outros poemas (C. Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM. (Trabalho original publicado em 1956). [ Links ]
Raskin, J. (2004). American scream. Los Angeles: University of California Press. [ Links ]
Whitman, W. (2002). "Song of the Open Road". Recuperado em 2 jul. 2018, de Poem Hunter: https://www.poemhunter.com/poem/song-of-the-open-road-2/. [ Links ]
Endereço para correspondência:
NOEMIA DAVIDOVICH FRYSZMAN
Rua Ceará, 101
01243-010 - São Paulo-SP
noemia.david@outlook.com
Recebido 16.06.2018
Aceito 29.06.2018
1 "Isso não é nada além de uma geração derrotada" - tradução nossa.
2 "Beat" implies the feeling of having been used, of being raw. It involves a sort of nakedness of mind and, ultimately, of soul; a feeling of being reduced to the bedrock of consciousness.
3 A foot and light-hearted I take to the open road,
The long brown path before me leading
wherever I choose.
...........................................................
Here the profound lesson of reception,
nor preference nor denial,
The black with his woolly head, the
felon, the diseas'd, the illiterate person,
are not denied.
...........................................................
Allons! the road is before us!
It is safe - I have tried it - my own feet
have tried it well - be not detain'd!
4 "Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura"
5 "He developed a deeper sense of his own identity than he had ever had before... In the process of reading the poem, he found himself forging a new identity as a public poet sharing his private thoughts and feelings with eager, admiring listeners. The poem created the poet."
6 "Every citizen may freely speak, write, and publish his sentiments on all subjects"(Constitution of the United States, First Amendement).
7 "What would you like to do? What is your desire really?" I said: "Doctor I don't think you're going to find this very healthy and clear, but I really would like to stop working forever - never work again, never do anything like the kind of job I am doing now - and do nothing but write poetry and have leisure to spend the days outdoors and go to museums and see friends. And I'd like to keep living with someone - may be even a man - and explore relationships this way. And cultivate my perceptions, cultivate the visionary thing in me. Just a literary and quiet city-hermit existence". Then he said: "Well why don't you?"
8 Os amalequitas são citados na Bíblia como um povo inimigo dos hebreus.