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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo July/Dec. 2018

 

EM PAUTA EASY RIDER: SEM DESTINO

 

Transformações da posição do analista no setting: não estamos mais num só lugar - até onde poderemos chegar?1

 

Transformations on the analyst's position within the setting: we do not own a single place anymore - up to what extent are we able get?

 

 

Myrna Pia Favilli

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe discutir as transformações do analista no setting, a partir, principalmente, da noção de contratransferência. Propõe uma visão da relação analítica como o espaço onde ocorre uma dupla cena: a relação do paciente consigo mesmo (discurso interno) e a relação do paciente envolvendo as relações de objeto. Nessa linha de pensamento, a prática psicanalítica deve implicar um espaço de liberdade que possa fazer emergir a autonomia e criatividade próprias de cada indivíduo (originalidade egóica). Aponta o valor dessa posição dentro das análises de formação, o que poderá contribuir para novas evoluções da prática da psicanálise, sem que a identidade do analista se esfacele. Indaga da possibilidade desta originalidade egóica ser desenvolvida também no espaço externo dos Institutos de formação.

Palavras-chave: Transformação, Setting, Contratransferencia, Liberdade, Criatividade


SUMMARY

This article's goal is to discuss the analyst's transformations within the setting mainly from the countertransference notion. It proposes an outlook on the analytical relation as a space in which a double scene occurs: the patient's relationship with himself and in respect to object relations. According to this line of thought, the psychoanalytical practice should imply a space of freedom which enables each individual's creativity and autonomy to emerge (ego originality). It points out to this position's value within training analysis, which could contribute for new evolutions of the psychoanalytical practice in a way that the analyst's identity is not destroyed. It questions whether this ego originality could also be developed beyond training institutes.

Keywords: Transformation, Setting, Countertransference, Freedom, Creativity.


 

 

Parto do clima de penumbra evocado pela não saturação do título, que nos interroga de um lugar ambíguo. O que ele nos propõe? Tenho para mim que só posso pensá-lo a partir do lugar onde estou. E o lugar que ocupo é o de analista vivendo, dentro de um setting, uma história analítica. Houve transformações nessa história. Desde os primeiros contatos temerosos ao tentar conviver com outras mentes, desde a busca de um ponto de apoio para orientar essa jornada (encontrando-o, como é comum, na análise pessoal, nas teorias, nas supervisões) até o momento da liberdade de existir dentro de cada sessão como um universo em expansão vai acontecer, dentro de cada analista, o que poderíamos chamar de transformações das vivências transferenciais e contratransferenciais envolvidas.

Sabemos que essas teorias se diversificaram no decorrer da história da psicanálise, principalmente a noção de contratransferência, que diz respeito ao viver do analista dentro da sessão. Pode ser vista como um estorvo, algo que denuncia a "doença" do analista, seu ponto cego, seu reagir pessoal onde deveria existir uma tela neutra; ou ser vista como um elemento básico e necessário, a partir do qual o analista é capaz de entrar em contato com seu paciente e, pelo impacto que isso causa, orientar-se nos processos vigentes no seio de uma relação. A mente do analista seria como uma corda vibrada ao toque das angústias emergentes projetadas. Nesse momento, a neutralidade não se mantém. Como parceiro ativo de drama inaugurado pela transferência, o analista é jogado em um duplo trabalho: sentir e pensar, simultaneamente, para que seja possível, através do enfrentamento do sentimento vivido, abrigar dentro de si e devolver, mais articulada, toda a gama de emoções que o paciente não pode elaborar. É a capacidade de rêverie que entra em cena. Continente de dores arcaicas, ele deve poder descontaminar todo esse explosivo projetado. Deverá privilegiar, também, a qualidade de comunicação que esse evento entre duas mentes faz sobressair: a identificação projetiva não só como defesa, mas também como condição preliminar da possibilidade de pensar.

O analista, pois, sente o seu paciente, deixa-se viver pelo acúmulo de suas emoções, mas não pode apenas senti-lo. Deve saber guiar, dentro de si mesmo, esse sentimento e transformá-lo em um instrumento capaz de fazer ecoar um diálogo mais organizado, menos terrorífico, mais transmissível. Enfim, o analista deve poder pensar o seu paciente para que não ocorra ou um quadro confusional ou apenas uma empatia acolhedora. Essa, transformação equivale, a meu ver, à possibilidade de se construir, dentro da relação analítica, o aparato capaz de pensá-la pelos dois membros do par. É essa tarefa, própria da relação analítica, no espaço criado pela busca incessante de pensamento, que mantém toleráveis as dores, as desilusões, os lutos necessários à conquista do próprio mental.

Tudo isso é a história da psicanálise; é, fundamentalmente, a história da vida psíquica como ela a vê. É sempre a mesma velha trajetória dos primórdios do aparato mental até sua possível existência autônoma após a luta do que chamamos a necessidade de suplantar a ligação edípica. A evolução existe dentro da condição humana, dentro da relação analítica, dentro das teorias disponíveis, dentro da mente do analista e de seu paciente, apesar de todos os entraves para impedir sua realização e de, muitas vezes, parecer estagnada ou em retrogradação.

Assim sendo, nessa busca de uma autonomia mental, penso poder facilitá-la, dentro da relação analítica, se encarar essa relação como o lugar onde ocorre uma dupla cena:

a) uma relação horizontal, transferencial como é comumente conhecida, em que ocupo um lugar específico ditado pela fantasia do paciente;

b) uma relação do paciente consigo mesmo, espaço vertical, intrassubjetivo, em que minha presença assegura apenas o holding necessário para o mergulho dentro de si mesmo, o diálogo interior que não poderia acontecer se deixado à deriva pelas angústias persecutórias envolvidas.

É evidente para mim, neste momento, que a busca do mental incluída no diálogo interno do paciente é de importância fundamental no sentido de uma finalização que vai poder resolver, de um só golpe, o fim de uma transferência e o término de uma análise. Pode-se vislumbrar a importância desse fato se considerarmos as análises de formação, que visam o desenvolvimento de um novo analista.

O encontro de si mesmo, dentro de uma relação analítica, só é possível se for deixado, já dentro dela, um espaço de liberdade que o analista deve saber reconhecer para poder facilitar o trânsito interior das vivências de seu paciente. Afinal é esse encontro, é essa assunção de suas formas de funcionamento mental que vão permanecer, após as transformações vividas, quando da dissolução do vínculo transferencial.

Portanto é da percepção desse ponto de intersecção entre a projeção feita pelo paciente na figura do analista e o seu diálogo intrapsíquico que o analista vai gestar a interpretação capaz de evidenciar a forma de funcionamento mental existente naquele momento. Discernir qual o lugar que está ocupando na cena analítica será a tarefa fundamental: ora apenas um coadjuvante capaz de nomear ao paciente suas vivências, que na turbulência emocional ele mesmo não pode alcançar ora um coprotagonista depositário das projeções e capaz de elaborá-las. Temos em mente traduzir ao paciente ora a natureza dos sentimentos e das emoções, ora privilegiar a relação de objeto que isso promove. Em ambos os casos, possibilitar que sejam pensadas.

Assim sendo, a contratransferência vai dizer respeito não apenas a relações transferenciais com suas fantasias projetadas, mas também poder captar e conter a originalidade de cada mente na busca do contato consigo mesmo, com seu universo mental e corporal único. Trata-se, a meu ver, de respeito à condição humana, mesmo que saibamos o quão transtornada essa mente específica possa estar e o quanto lhe é difícil se aproximar de algo parecido com o que chamamos de ser humano.

Essa tarefa analítica não é fácil. É fácil ser falada, ser contada, ser escrita. Não é fácil vivê-la. Como em toda situação que envolve o conhecimento humano, é claro que o analista dela participa com os mesmos privilégios e dificuldades. Afinal, ele já foi paciente. Podemos perguntar, pois, que espaço de liberdade houve nas análises dos analistas? O quanto de sua originalidade foi respeitada podendo se transformar em prazer de existir, de pensar, de conhecer? Quantos podem dizer ter vivido apenas o luto de uma separação e não a catástrofe melancólica de uma perda de si mesmo? O quanto a sombra do objeto transferencial não caiu sobre o seu ego?

Será que podemos colocar, neste ponto, o sentimento de mal-estar e de afastamento que a psicanálise está vivendo? Será que os analistas se fixaram na força do objeto transferencial deixando de lado a busca da originalidade do sujeito? Se assim for, penso que as angústias ora vividas possam vir a ser benéficas. A essas perguntas que coloco não tenho respostas. Deixo-as como hipóteses e serem verificadas.

Mas tenho para mim que, se o analista se transforma no setting, o pressuposto é que alcançou um grau de autonomia na qual seria impossível permanecer estático, seria impossível ser apenas o representante submisso de uma teoria vigente, quer científica, quer pessoal. Navegar é preciso.

Mas, por outro lado, a indagação do tema proposto parece envolver um temor. O até onde poderemos chegar parece apontar o perigo de ultrapassagem, de adentrar territórios proibidos que faria explodir os parâmetros fixados. Enfim, como se houvesse o temor da perda de identidade. Mais ainda, a indagação que nos é colocada parece implicar até que ponto podemos mudar sem deixar de sermos os mesmos. Não se trata, em termos de teoria psicanalítica, de mudanças que implicam o confronto das teorias já articuladas; aí parece existir, desde algum tempo, certa acomodação de "ghettos" teóricos e que, fora alguns excessos preconceituosos, parecem conviver mais ou menos independentes um do outro. Estes já sofreram suas dores de originalidade, mas, estranhamente, se agradam com seguidores fiéis. A angústia fica por conta dos que exploram todas as articulações de pensamento possíveis, buscando a síntese capaz de re-iniciar o processo dialético.

Mas atualmente, mais do que a multiplicidade de propostas teóricas, o que se teme é que a identidade do analista se esfacele e, com ela, a prática psicanalítica. Portanto a proposta do até onde poderemos chegar tem um caráter paradoxal: mudar sem deixar de ser o mesmo. Parece uma proposta semelhante ao que cada paciente nos faz ao procurar sua análise: "Sou este ser aterrorizado diante de um sofrimento, mas também aterrorizado pela interrupção possível desse sofrimento, porque poderei não me reconhecer numa outra modalidade de mim". Estaríamos aqui, dentro do imaginário, no registro das mutações e não mais das transformações. Teríamos liberdade de ser mutantes? E mutantes e analistas? Há a necessidade de freios? Há realmente um lugar onde não poderemos chegar, como se isso implicasse a perda da psicanálise, como se a psicanálise não fosse, pelo seu caráter interior, o produto inalienável da experiência vivida?

Estamos falando, pois, da condição de possibilidade de uma transformação. Estamos falando da possibilidade de "originalidade", de "individualidade", do conceito mesmo de "identidade". Estamos, pois, dentro do momento trágico da percepção de si mesmo como um único dentro da pluralidade dos humanos. É o que, para mim, inaugura a coerência interna, o fazer-se a si mesmo, o fazer-se analista. Prática assustadora, contudo, se a pergunta colocada é, desde o início, o "até onde poderemos chegar".

Temos que supor, pois, que as mutações possíveis envolveriam o perigo de despersonalização psicótica. Estaríamos, então, falando de diferença sutil do significado das transformações e que implicariam, no seu limite, a diferenciação entre a individualidade criadora e a destruição mental, psicótica, do aparato incapaz de contê-la. Impossível decidir o destino de antemão. Vamos adentrar a área da confiabilidade em psicanálise.

Onde procurar? Se pensarmos em termos do conhecimento psicanalítico, seria cômodo supor que, após cem anos de psicanálise, houvesse uma situação de consenso. Sabemos que não é assim. O desenvolvimento do pensamento psicanalítico nem sempre é visto como recortes de contribuição para o esclarecimento do enigma colocado pela psique. Na maioria das vezes, cada articulação teórica se apropria do seu objeto de tal maneira que a teoria deixa de ser um discurso sobre o ser humano para se transformar nele mesmo, imaginando-o como um sistema sempre imutável, sem as brechas para uma nova concepção. Seria um momento semelhante à fantasia edípica onde a mente busca realizar a posse impossível, posto que as figuras parentais, com sua existência independente, vão se oferecer a outros encontros necessários, obrigando-a a uma renúncia estruturante.

A psique humana, tal como podemos ver nestes cem anos de teoria, se recusa a uma só explicação, a uma só posse. Os sistemas que a pensam se sucedem e esclarecem, de seu ponto de vista, algum aspecto do seu funcionamento. Poder acompanhá-los é o exercício de uma tolerância.

Vamos, pois, partir de um outro vértice. Vou propor o analista acompanhado apenas de seus cem anos de solidão, se assim quisermos chamar o momento da transformação, o momento de tornar-se continente de suas próprias antigas fantasias e vertê-las no idioma corrente de uma nova identidade mais abrangente. É fazer o luto; desligar os antigos fios e se abrir a novas experiências sem expectativas ilusórias. É, no meu entender, um salto qualitativo.

Deixo aqui, em aberto, para futuras reflexões o tempo que isto acarreta dentro de uma análise específica. Seria possível marcar, de antemão, um tempo real de análise para que a adesão ou não a esse salto qualitativo ocorra? Estaríamos contribuindo para uma nova transformação da prática psicanalítica ou desfigurando-a de sua contribuição específica? Afinal, o paciente pode ter a liberdade de querer permanecer em seu espaço já conhecido. Evitaríamos o tempo que parece interminável de longas análises? Seria uma violência ou um respeito a uma liberdade individual já adquirida? Afinal, ir para a frente e mergulhar numa outra modalidade de si mesmo pode requerer, do analisando, um longo tempo de despedida. O tempo de madureza é uma longa conquista. Seria mais útil deixá-lo a sós para sua elaboração? Seria esse o tempo articulado por Freud como aberturas para re-análises?

Portanto vir a ser analista vai implicar em apropriar-se, lentamente, não só do precipitado de seus conteúdos mentais, mas também do processo que torna isso possível. Figura condensada de toda sua história, posso ver o analista como o espaço virtual para qualquer transformação possível, estabelecendo-se, assim, sua condição de guia para as novas parcerias de análise. Penso que se assim não for cada passo analítico resvalaria, para o analista, não no cuidado necessário das mudanças possíveis, mas no terror sem nome do desconhecido avassalador.

Esse momento de vir a ser, do tornar-se, qualquer que seja o caráter que assuma para uma determinada psique, é lento e perigoso. Cada analisando o pressente e, ao mesmo tempo que o deseja, procura dele se afastar. É o momento de ser tudo o que foi vislumbrado através da palavra. E o compromisso que isso acarreta. É o momento em que a individualidade vai se revelar no fazer psíquico. É o salto psíquico.

Tudo isso pode perder seu caráter integrador e transformar-se numa fragmentação caso o analista não possa avalizar, por sua responsabilidade, este processo criativo. É o que norteia, a meu ver, a formação de analistas. É o que lhe dá sentido. Penso falar aqui da confiabilidade da psicanálise, da sua prática, da sua proposta de ser uma segunda chance ao destino dos estados psíquicos.

Muito se tem falado da validade da psicanálise, da coerência de suas premissas, de sua inserção nas correntes científicas até nas suas dúvidas entre ciência ou arte. Quero falar de algo mais simples; quero falar daquela corrente anímica que leva alguém a querer propor a outros um processo no qual ele colocou sua confiança. Algo como o desejo de continuação da espécie. Sem promessas ilusórias, sem fantasias; apenas porque viver também é preciso.

Vou falar, pois, da formação em psicanálise como uma filiação que acontece, tal como o é para a criança, como um fato predeterminado. Viver em um lugar, seguir este ou aquele curso profissional, encontrar esta ou outra corrente teórica ou este ou outro analista leva a pensar os primeiros momentos de encontro com a psicanálise semelhantes aos que Piera Aulagnier (1979) postula para a criança, que tem seu contato com o mundo realizado através da figura materna. É ela que estabelece o contrato dessa criança com o social, um pacto primitivo ao qual o bebê tem que se submeter, pois é o único, nesse momento, capaz de articulá-lo com o viver. E o bebê não teria outra alternativa a não ser confiar, caso pudesse se observar em seu desamparo. É o que Aulagnier (1979)chama de violência da interpretação, necessária nesse momento, pois se a mãe não se fizer de intérprete de relação com o mundo estaria instalado o caos, o vazio psíquico, a alienação mental.

Esse momento tende a se estratificar, e com o correr do tempo, se supusermos uma mãe suficientemente boa, esse núcleo vai se articular com novas visões do mundo - a figura paterna - pondo em movimento o destino de uma individuação através da problemática edípica e a sua consequente inserção no social. Caso isso não ocorresse estaríamos presos, eternamente, na fala do outro.

Em nossa analogia com a formação analítica, podemos supor que o analista, através de uma intensa e extensa busca de si mesmo, por meio de uma intensa e extensa convivência com o outro (análises, estudos teóricos diversificados, supervisões) possa, em determinado momento e como consequência de sua perseverança, ser o palco dessa transformação radical que o torna senhor de seu discurso e que se revela no que chamo de autenticidade egoica. Esse momento analítico onde algo foi encontrado, algo foi somado, algo foi perdido, algo foi re-arranjado, algo foi esclarecido corresponde a um novo nascimento e ao mesmo tempo uma adesão a uma sabedoria crepuscular. É a autenticidade autovalidada pela compreensão da dinâmica psíquica. É a isso que todo analista tende a cada análise iniciada; é a isto que, a meu ver, deve procurar conduzir seu paciente através dos infernos e paraísos fantasiados.

Coloco aqui também como problemática a ser desenvolvida, o quanto os institutos de psicanálise, responsáveis pela formação desses profissionais, serão capazes de abrigar as diversas e amplas correntes de pensamento, abrindo assim para seus candidatos o espaço de liberdade criativa nas suas escolhas. Muitas vezes, o que se vê são ataques quase cruéis aos esboços de elaboração autônoma, quer na linha teórica, quer no território clínico. O que deveria ser orientação e acompanhamento se transforma em proselitismo.

Penso, pois, no analista em cada nova análise assumida, penso na psicanálise, cem anos depois, refazendo suas realizações e suas promessas. Penso nos seres humanos no limiar de um milênio tentando vencer suas angústias de sempre e buscando sempre e desesperadamente um antídoto milagroso. Não há milagres. As transformações possíveis passarão, sempre, pelo encontro difícil com a originalidade egoica.

Acho que chego até onde posso chegar agora. Ancorada nesse porto, tenho como fundamental, na relação analítica, facilitar e participar desse acontecimento promovendo, pela escuta do diálogo interno do paciente, esse encontro pessoal. É assim que também entro em contato com as novas teorias psicanalíticas. Elas atestam a originalidade do pensamento em formar novos degraus de uma escada que irá levar a uma melhor compreensão do aparato psíquico. Mas sei que ele vai escapar, assim como outros objetos de conhecimento, de qualquer possibilidade de aprisionamento. A mente está aí para ser pensada; conhecemos os movimentos das peças, conhecemos algumas jogadas e suas variantes, mas a invariância do jogo permanece. É o jogo da vida. E a busca do seu conhecimento não pode ser detida, a não ser que voltássemos a temer, tal como no início de uma análise, que as transformações sejam realmente mortíferas. Talvez seja essa a fantasia a ser perdida, ou a doença a ser curada, ou a ignorância a ser esclarecida, enfim, ao que era id ser ego.

Falta perguntar ainda, para finalizar, o que tudo isso tem a ver com o milênio, com o homem, com as expectativas de novos enigmas colocados à psicanálise, que é o tema deste congresso.

Filiados ao fin-du-siècle passado, como viveremos este primeiro aniversário secular? Da riqueza de teorias nada precisamos temer. São inúmeros os eventos que põem em agitação o pensamento psicanalítico. A psicanálise existe e está podendo permanecer autêntica ao seu projeto de conhecimento da vida psíquica. Se frustração e culpa estão na base da criação da civilização, se a renúncia pulsional é necessária ao convívio interpessoal, é evidente que um saber que as explicite irá contribuir, cada vez mais, para entender suas manifestações. Esse saber já influiu nas correntes de pensamento deste século e encontra seu lugar nas teses de diferentes disciplinas.

Mas e a sua prática? A origem mesma desse saber? Haverá alguém que há de querer saber sobre isso? Como a psicanálise poderá sobreviver se a prática que instaura o novo "gênesis" se diluir e se desfizer? Como re-alimentar e aprofundar suas teorias? A psicanálise vive e está indissoluvelmente ligada ao desejo de novas filiações. A isso tendem os analistas tal como a espécie tende a desejar suas crias. Seria possível ser de outra maneira? Acredito que não. Mas gerar filhos de um saber internalizado não é tão simples. Vai estar em jogo a criatividade dos analistas em propor essa busca pessoal. E deixar viver, dentro de si, esse desejo pelo filho original, pelo outro individualizado, criador de si mesmo e de sua cultura.

Teria essa psique um espaço no mundo que se apresenta? A civilização de massas, a ditadura da mídia, a despersonalização das comunicações informatizadas deixarão existir alguém com vontade, apenas, de existir?

Essa resposta cada analista deve procurar dentro de si. Talvez haja um momento no qual a tarefa de ser analista implicará apenas na concordância consigo mesmo, sem que ninguém mais queira saber disso. Contudo é essa possibilidade mesma de vida interior que a testemunha como um saber frutífero. Não me parece que o ser humano vá desistir dessa conquista tão facilmente. Mesmo se um Big Brother automatizado dominar as escolhas, haverá sempre aquele único que redescobrirá o mundo. Os cientistas da década de 1950 assim romanceavam suas histórias, levados, talvez, a intuir o alcance de suas pesquisas e temer o futuro que poderiam acarretar. O existir, no futuro, vai depender da originalidade de todos nós. E essa é a tarefa da psicanálise. Que cada analista a inaugure dentro de si é a esperança que podemos manter. Se assim não for, é porque Tanatos terá vencido.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
MYRNA PIA FAVILLI
Rua João Moura, 647/41
05412-001 – São PauloSP
tel.: 11 852-3603
myrnapf@superig.com.br

Recebido 06.06.2018
Aceito 29.06.2018

 

 

1 Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de Psicanálise 32 (4): 835-843, 1998. Agradecemos à editora Marina Massi que gentilmente nos cedeu a autorização para esta reedição.

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