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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo July/Dec. 2020

 

EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE

 

Admirável "idioma" novo

 

I Brave new "language"

 

 

Alessandra Susie Quesado Nicoletti

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise São Paulo (SBPSP). Formada em rádio e televisão pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e formada em psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo trata da necessidade que o ser humano tem de vivenciar experiências ligadas à própria subjetividade. No texto, a autora utiliza personagens literários que atravessam processos de transformação através da leitura. Os livros mencionados neste artigo - Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, e a tetralogia napolitana de Elena Ferrante - foram escolhidos como exemplos porque seus personagens estão centrados no conflito entre o self e o outro. São histórias sobre a busca do valor do existir.

Palavras-chave: Literatura. Psicanálise. Idioma.


SUMMARY

This article deals with the need that human beings have to live experiences related to their own subjectivity. In the text, the author uses literary characters who go through processes of transformation through reading. The books mentioned in this article - Brave new world, by Aldous Huxley, Ray Bradbury's Fahrenheit 451 and Elena Ferrante's Neapolitan tetralogy - were chosen as examples because their characters are centered on the conflict between external and internal. Also, they are stories about the search for value in existing.

keywords: Literature. Psychoanalysis. Language.


 

 

Decidir quando é mais adequado controlar suas paixões e curvar-se ante a realidade ou tomar o partido delas e opor-se ao mundo externo constituía essência da sabedoria do viver. (Freud, 1926/2014, p. 149)

A temática da negociação entre o sujeito e o coletivo é recorrente na literatura. A questão de como constituir-se e, ao mesmo tempo, relacionar-se com o outro é, talvez, a base comum da alteridade, na ficção.

Em Admirável mundo novo, o mundo civilizado é apresentado como um local que tem como objetivo principal manter a estabilidade de seu sistema e de seus residentes. Bernard, um dos personagens principais, sente-se deslocado de seus pares e dos ideais de sua sociedade, assim como John, o selvagem, jovem de outra parte do mundo.

No romance Fahrenheit 451, Montag é um bombeiro encarregado da função de queimar livros, objetos considerados prejudiciais à manutenção do seu ambiente. O encontro com uma jovem diferente faz com que o personagem passe a estranhar as regras ao seu redor.

Por fim, a tetralogia napolitana acompanha a trajetória das amigas Lila e Lenu desde a infância até a velhice, buscando novos espaços no bairro em que nasceram.

 

O valor da vida

Quando John, o selvagem criado em Mal, país de Admirável mundo novo, recebeu de sua mãe um manual do "Outro Lado", sentiu que aquelas palavras - embora o tivessem auxiliado a aprender a ler - diziam pouco, quase nada, a respeito dele. Não falavam com o seu "idioma" interno. Foi quando recebeu um exemplar roído e desgastado das obras de William Shakespeare que sentiu se ligar a algo que experienciava:

ele abriu o livro ao acaso. As palavras estranhas redemoinharam em seu espírito, reboando como um trovão que falasse... mas ainda melhores que as fórmulas mágicas de Mitsima, porque era a ele que se dirigiam; (Huxley, 1932/2019, p. 182)

deve ser bobagem, porque passei os olhos por ele e me pareceu cheio de bobagens. Incivilizado. De qualquer modo, sempre servirá pra se exercitar a leitura. (Idem, ibidem, p. 182)

Algo semelhante ocorreu com Lenu e Lila, da tetralogia napolitana, de Elena Ferrante. Nascidas num ambiente e época em que as mulheres pareciam limitadas a poucos papéis, foi a partir da leitura de Mulherzinhas, de Louisa May Alcott, que a possibilidade de criar um destino tornou-se plausível. Aquele livro continha novas formas de poder. Lenu escreve que:

Assim que nos vimos proprietárias do livro, começamos a nos encontrar no pátio para lê-lo, em silêncio ou em voz alta. Durante meses o lemos, e tantas vezes que o livro ficou sujo, desconjuntado, perdeu a lombada, começou a desfiar, a desfazer-se em cadernos. Mas era o nosso livro, e o amamos muito. (Ferrante, 2015, p. 41)

Para o bombeiro Montag, de Fahrenheit 451, os livros representavam riscos, itens para exterminar. É através do contato com Clarisse - alguém semelhante e diferente - que ele passa a viver o prazer e o perigo de amar. Quando ela aponta que acha que não combina com Montag a função de queimar livros, o narrador nos conta que "ele sentiu o corpo dividir-se em duas metades, uma quente, a outra fria, esta macia, aquela dura, uma trêmula, a outra firme, uma oprimindo a outra" (Bradbury, 1953/2017, p.43).

Nessas histórias está posta a dualidade entre o eu e o coletivo. Os personagens criam - ou se sentem impedidos de criar - soluções para esta questão tão humana: qual é a negociação possível entre esses dois lados?

 

Adaptar ou transformar? Os dois

Os personagens desses livros - Bernard, John, Helmholtz, Lila, Lenu e Montag - nascem em ambientes nos quais se sentem inadequados. Alguns são rejeitados pelo mundo externo. Outros são incluídos pelo ambiente, mas, ainda assim, sentem um enorme desalinhamento com o que lhes é oferecido.

Surge o problema: quando uma pessoa é apresentada a objetos externos que não lhe interessam, o que resta é buscar as próprias soluções. Onde achá-las?

Para esses personagens fictícios, e para tantos outros, a literatura é uma opção. Seu caráter é atemporal. É possível ler em 2020 o texto de Aldous Huxley escrito em 1932 e sonhar com os mistérios do futuro. Ou ler Fahrenheit 451, publicado em 1953, e refletir sobre o valor da palavra. E, com Elena Ferrante, em 2011, na Itália, devanear sobre o que significa poder.

Com o ato de ler, os personagens chegaram próximos a um dos conceitos de Cristopher Bollas: o idioma como o cerne do self. Em A metapsicologia de Christopher Bollas, Sarah Nettleton explica o conceito de idioma criado pelo analista. Algo único como uma impressão digital, referente às nossas predisposições inatas sensoriais. Cada bebê reagirá a um determinado objeto de forma diferente porque cada corpo tem impressões sensoriais -audição, visão, paladar etc. - variadas.

Além disso, o compasso entre ambiente (mãe) - um espaço de apresentação e transformação - e bebê propicia outro fator importante: "Para alcançar a confiança básica, o bebê precisa sentir não só que seus impulsos instintivos - fome, paixão, agressão - são contidos, mas também que seu idioma, sua subjetividade única, é reconhecida e bem-vinda" (Nettleton, 2018, p. 41).

A autora também afirma que, para Bollas, "a experiência do paciente com a forma do analista enquanto presença pode (e algumas vezes não pode) ser transformacional em si mesma" e que "o que o analisando de fato leva consigo, no entanto, é um profundo senso de ser conhecido. Seu idioma foi intimamente recebido e apreciado" (Idem, ibidem, p. 44).

Para os personagens citados, a leitura retoma a experiência - ou falta - de ser reconhecido e reconhecer o outro. Com os livros, eles identificam pedaços de si e, ao encontrar objetos em que identificam experiências próprias, sua organização estrutural é fortalecida, assim como a tentativa de diálogo com o outro. De encontrar o admirável "idioma" novo.

Mas, talvez, seja importante pensar que a linguagem não permanece estática. Novas formas de dar corpo às sensações surgem no decorrer do tempo. O que acontece quando não se inclui novas palavras a um dicionário? Quando John se depara com a chance de construir uma nova história de amor, ele não consegue vivê-la por manter-se fixado, literal, nas palavras de Shakespeare. Acaba fadado a uma tragédia.

Já Lila e Lenu alternam entre os diferentes dialetos - de uma e da outra - e conseguem achar saídas para a criação do próprio idioma, embora - importante colocar - o custo seja a separação entre elas.

Nettleton destaca a importância que Christopher Bollas dava ao futuro, aos planos e às fantasias do porvir, no poder acreditar e pensar criativamente em soluções para a contínua barganha entre o próprio idioma, o ambiente imediato e a ancestralidade humana. A autora escreve que Bollas: "Destaca esse elemento de movimento prospectivo com uma distinção entre fado e destino" (Nettleton, 2018, p. 46).

No conceito de fado o indivíduo fica preso às ondas do passado e em repetições. No segundo, busca-se, mesmo que parcialmente, delinear um caminho e estéticas próprias. Faber, em Fahrenheit 451, fala:

Não se pode garantir coisas como essas! Afinal de contas, quando tivéssemos todos os livros de que precisássemos, ainda teríamos de encontrar o precipício mais alto para nos atirar. Mas o fato é que precisamos de uma pausa para tomar fôlego. Precisamos de conhecimento. E talvez em mil anos possamos escolher precipícios menores de onde saltar. (Bradbury, 1953/2017, p. 191).

Há uma procura, mesmo sem garantias, mesmo com riscos, do desejo e do futuro. Para os personagens citados, essa busca acontece por meio da combinação entre frases antigas e novas, em expressões próprias e, também, de outros autores.

Quem sabe o valor da vida resida nessas constantes conexões e desconexões, consigo mesmo e com o outro, expandindo e delimitando o próprio idioma. Não deixando cair no esquecimento porque uma palavra sem ação pode ficar tão esvaziada quanto uma ação sem pensamento. Passado, presente e futuro. O valor está em movimentar-se nesses diferentes tempos, para dentro e para fora.

 

Referências

Bradbury, R. (2017). Fahrenheit 451. São Paulo: Biblioteca Azul. (Trabalho original publicado em 1953)        [ Links ]

Ferrante, E. (2015). A amiga genial. São Paulo: Editora Biblioteca Azul.         [ Links ]

Freud, S. (2014). Inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma ilusão e outros textos. In S. Freud , Obras completas (P. C. de Souza, trad., v. 17). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1926)        [ Links ]

Huxley, A. (2019). Admirável mundo novo. São Paulo: Biblioteca Azul. (Trabalho original publicado em 1932)        [ Links ]

Nettleton, S. (2018). A metapsicologia de Christopher Bollas: uma introdução. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
ALESSANDRA SUSIE QUESADO NICOLETTI
Rua Sergipe, 441/22, Consolação
01243-001 - São Paulo/SP
Tel.: 11 3663.0322
alessandraqnicoletti@gmail.com

Recebido 30.07.2020
Aceito 14.08.2020

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