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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo July/Dec. 2020

 

EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE

 

Odradek, pequeno criminoso da linguagem: a forma e o valor poético da vida1

 

Odradek, little criminal of language: the form and poetic value of life

 

 

Richard de Oliveira

Doutorando no Programa de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Linha de pesquisa de fenômenos históricos específicos (arte)

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste ensaio, eu exploro a questão do valor da vida a partir do entrelaçamento entre formas de existência e literatura no conto de Franz Kafka "A preocupação de um pai de família". Para enquadrar a discussão, apresento uma introdução que a contextualiza no interior do diagnóstico da despolitização generalizada da vida na contemporaneidade e exploro a relação entre política e arte na composição de formas de vida dotadas de sentido e valor. Com tais problematizações em mente, analiso o conto de Kafka, focando o tema das relações entre formas de vida e linguagem despertadas pela leitura e alimentadas pelas análises consagradas sobre o conto e a obra do autor. Apoiado neste trabalho, viso oferecer um diagnóstico preciso da miséria da vida e da linguagem na nossa civilização e explorar frestas de liberdade e reinvenção para a vida fornecidas pela linguagem poética.

Palavras-chave: Literatura. Kafka. Modernidade. Poesia.


SUMMARY

In this essay, I address matters concerning the question of the value of life regarding the intertwining of literature and forms of existence in Franz Kafka's short story "The cares of a family man". As a frame to the discussion, I present an introduction that contextualizes it within the diagnosis of the generalized depoliticization of life in contemporary times, and explore the relationship between politics and art in the composition of life forms endowed with meaning and value. Having this problematization in mind, I analyze Kafka's short story, focusing on the theme of the relationships between life forms and language awakened by reading, and fed by consecrated analysis of the author's short story and lifework. Based on this particular short story, I aim to offer an accurate diagnosis of the misery of life and language in our civilization, and to explore how gaps of freedom and reinvention in life can be provided by poetic language.

keywords: Literature. Kafka. Modernity. Poetry.


 

 

Introdução

O tema do valor da vida, proposto por esta edição, parece-nos bem-vindo e urgente no momento presente, momento composto por riscos à vida que interrogam, de maneira inescapável, nossas formas de vida - entrelaçamento entre relações de trabalho, formas da linguagem e dinâmicas do desejo (Safatle, 2008) -, as quais se expressam nos agenciamentos coletivos, nos processos de subjetivação e em nossas representações identitárias.

Por um lado, temos assistido à ascensão de um novo fascismo no corpo social brasileiro, um modo de subjetivação e formação de coletividades que mescla aspectos do fascismo histórico - captura do impulso anti-institucional pela lógica do poder puro e irresponsável; culto à força e à violência; laços sociais estruturados a partir da lógica da paranoia; insensibilidade e ódio contra grupos vulneráveis (Safatle, 2018) -, da corrosão, promovida pelo avanço da lógica neoliberal, dos laços de solidariedade e dos horizontes comuns - a reificação crescente de todos os aspectos da vida, resultando no desamparo maníaco e ressentido que caracteriza a hiperindividualização neoliberal - e da legitimação pública de aspectos estruturais e extremamente problemáticos da sociedade brasileira, de origem colonial e escravista, tal como a naturalização das nossas abissais desigualdades econômica, étnico-racial e de gênero, assim como a naturalização dos dispositivos de distribuição focal da violência - física, psicológica e política - que asseguram a manutenção de tais estruturas econômicas, socioculturais e políticas.

Por outro lado, em meio a esse contexto, nos últimos meses, temos sido obrigados a nos haver com a pandemia da covid-19, que, ao mesmo tempo que ceifa diariamente milhares de vidas, transforma transversalmente nosso cotidiano e relações e ridiculariza a ideologia neoliberal que atribui a cada indivíduo, soberano em sua liberdade, a responsabilidade sobre a sua, e apenas a sua, existência. Na medida em que o contágio é um processo que demanda o reconhecimento da dependência profunda que temos uns dos outros, precisamos confiar a nossa sobrevivência à atitude cuidadosa e responsável de desconhecidos, no que concerne aos seus corpos, sua circulação e interação social.

Similar ao sintoma psicanalítico, que faz advir na novidade processos inconscientes historicamente constituídos, tanto a catástrofe natural do vírus quanto a atual catástrofe social do fascismo à brasileira, em sua novidade que demanda respostas urgentes, trazem à luz, em seus processuais espraiamentos no corpo social, nossas raízes profundas, valores e dinâmicas enraizados centenariamente, que estavam em larga medida invisibilizados e que compõem a miséria generalizada da nossa vida subjetiva e social.

Não é acidental que um dos motes do fascismo à brasileira seja a negação da pandemia, de sua existência e as decorrentes exigências de ação e reflexão. O que o fascismo tenta encobrir e reforçar - em sua mimese irônica, maníaca e artificial da identificação coletiva - a pandemia revela ao sol do meio-dia: a progressiva despolitização da vida à qual nos submetemos. Imersos em uma sociedade administrada (Adorno & Horkheimer, 1944/2006), nós aceitamos passivamente a terceirização para instâncias de dominação global, ligadas ao capitalismo tardio, de decisões fundamentais sobre o engendramento de nossas formas de vida, admitindo, assim, que sejamos, dia após dia, reduzidos a corpos dóceis e úteis, engendrados e submetidos a uma biopolítica calculada que nos confina à impotência e à solidão (Foucault, 2008; 1999). Essa inércia nos retira o protagonismo na análise, na crítica e na revolução da nossa existência. Não deixa de ser irônico que setores autointitulados progressistas tratem os grupos fascistas pelo substantivo coletivo de "gado", já que gado todos somos. E também não deixa de ser uma cruel ironia da história que tal despolitização seja reforçada pelo fascismo, processo social, e descortinada criticamente pela pandemia, cujo agente principal é de natureza puramente biológica.

O achatamento e o arrefecimento da dimensão política da vida na modernidade e na contemporaneidade tecem relações diretas com a morte, na medida em que retirar da vida sua dimensão política nada mais é que picar a morte, entendida como impotência absoluta, em infinitos pedaços, e alojá-la em cada instante da existência. Despolitizada, resta à vida a miserável condição de uma noção absoluta e abstrata, encarnada em imagens de vitórias biológicas e de felicidade e sucesso fúteis: viver mais, comer menos calorias, ser magro e saudável, ser psicologicamente equilibrado e socialmente afável, em suma, ser socialmente produtivo e politicamente inofensivo.

A dimensão política da vida tece relações intricadas com a dimensão poética, já que ambas se desdobram na mesma região de indeterminação e criação que tornam a vida humana uma aventura digna de ser vivida. Tecer tal relação implica em não tomar a arte como dócil e prazerosa anestesia das dores do viver - espaço no qual recorrentemente, em nossa cultura, a arte é colocada - e recuperar na arte o livre e perigoso jogo de disjunção das identidades, composição das diferenças e abertura para a imprevisível alteridade, esta que exige criação para dela ter experiência (Merleau-Ponty, 1964/2000).

Tais problemas não são estranhos à prática psicanalítica. A despeito de todas as suas modulações técnicas, teóricas e institucionais, é comum à psicanálise, como prática de escuta e promoção do bem dizer, um trabalho intersubjetivo que visa abordar os desejos, traumas, repetições e criações daquele que vive, possibilitando uma travessia que maneje e desative as mórbidas repetições que enclausuram a vida em temporalidades e relações empobrecidas e desgastadas, libertando, assim, a vida não de suas dores, mas de seus pactos com a morte que impedem que o impulso de reflexão criativa - por vezes, destrutiva e, sempre, crítica e poética - fecunde a existência. Em termos teóricos, trata-se de explorar os inescapáveis e diversos entrelaçamentos entre as pulsões de vida e de morte e promover um dizer que assuma os riscos de tais entrelaçamentos em vez de reprimi-los e controlá-los. Nesse aspecto, a prática psicanalítica é marcada por um trabalho artesanal de escuta que assume uma ética propriamente trágica, comprometida com uma verdade processual, verdade que poderíamos chamar de autenticidade, pela qual o ser se abre para seus próprios conflitos e incertezas mais fundamentais. Nesse sentido, política, arte e psicanálise se aliam em defesa de uma vida autêntica, dotada de valor de verdade, esta não tomada como questão epistemológica, mas como problemática, acima de tudo, ética (Foucault, 2011).

Encontramos tais reflexões críticas, assim como promessas poéticas, na interface entre vida e poesia na obra de Franz Kafka, e por ela escolhemos percorrer neste ensaio. Se a leitura de Kafka a partir do tema da vida permite muitas entradas, cabe primeiramente justificar a nossa escolha. Por um lado, a obra de Kafka pode ser vista como um retrato acurado da crise do sentido da vida humana na sociedade capitalista moderna. Os protocolos herméticos de Kafka são a expressão sensível da alienação humana em meio a uma sociedade regida por princípios absurdos e irreconhecíveis por aqueles que a produzem: a captura da produção da vida pelas regras da exploração econômica e das trocas mercantis; a captura do destino comunitário e do agir político pela tecnocracia burocrática. No século XX, essas duas alienações escalaram até patamares inéditos, tornando Kafka uma espécie de profeta.

Por outro lado, além de ser um retrato histórico fantasticamente realista, a obra de Kafka também pode ser usada para pensar questões ontológicas fundamentais. Acerca do tema da conciliação impossível, da impossibilidade do paraíso em um mundo no qual Deus e toda sorte de avatares - pais, juízes, funcionários, patrões - mostram-se corruptos e indignos, Kafka explora, na linha de seus escritos, a possibilidade de alguma redenção, de algum caminho que se abra para além desse espaço tóxico e asfixiante. Em torno desse exercício redentivo, gravitam, na obra de Kafka, os temas da metafísica do mundo, da comunicação, do amor e do tempo.

Entre essas duas entradas - a histórica e a ontológica/meta-física/teológica -, escolhemos uma terceira via. Se as dimensões anteriores da vida humana comparecem de forma pungente na obra de Kafka, vale lembrar que se trata de uma obra literária. Interrogado pela tragédia do homem moderno e pelo absurdo da existência, Kafka escolheu o campo da literatura e o ofício de escritor como terreno de investigação, criação e ascese. Foi na relação entre o homem e a linguagem que o escritor realizou sua articulação fundamental entre todas essas questões.

Como diz Merleau-Ponty, diferente do músico - cujo trabalho fica "aquém e além do mundo e do designável", preocupado com as "épuras do Ser, seu fluxo e seu refluxo, seu crescimento, suas explosões, seus turbilhões" - e também do pintor - cujo trabalho tem que se haver com a primeira e esquecida aparição do mundo e "nutre-se desse lençol de sentido bruto no qual o ativismo nada quer saber" -, ao escritor sempre se pede que tome posição, pois não pode declinar as responsabilidades do "homem que fala" (Merleau-Ponty, 1960/1980b, p. 86). A partir do momento em que o homem aprende uma língua, a linguagem, como um vírus, se apossa de um corpo material e sensível e, a partir de uma estranha simbiose com essa existência, passa a viver como um estranho e incômodo hospedeiro imaterial. Como um cavalo de Troia, oferecendo-se como presente do outro e da cultura, a linguagem, essa invenção imemorável, coloniza a existência humana e, a partir desse momento, o homem não pode mais deixar de responder aos apelos da História: seus sonhos e glórias, seus esquecimentos e injustiças. Nos acontecimentos da História, a colonização da linguagem torna, para cada homem, a "sua história", ao mesmo tempo que esta o transcende, como história de todos os seres falantes.

Essa tomada de posição em relação ao mundo, que se pede ao homem que fala, o escritor faz de uma forma paradoxal. Remetendo tal fazer à investigação da própria linguagem, o escritor interroga a si mesmo a partir dos movimentos desse estranho ser que, imaterial e inerte, anima toda a vida e seus sentidos. Nessa atividade de interrogação, a linguagem raramente se apresenta como um sistema lógico inerte, transparente e sem dobras. Antes, ela é um misterioso trabalho por fazer, chamado literatura.

 

 

O pai de família e Odradek: a miséria moderna e aventuras da linguagem poética

Justificada, então, essa via de entrada ao trabalho de Kafka - a relação entre o homem e a linguagem - e buscando focalizar as questões que propomos, escolhi um pequeno conto do autor, "A preocupação de um pai de família". Por meio desse conto, quero oferecer uma breve abordagem de questões estéticas e políticas, ambas existenciais, inspirado pela experiência da literatura e do ser escritor que vibram no conto.

Já no início do pequeno texto, a relação entre existência e linguagem é colocada de forma explícita e imediata. Odradek, além de uma criaturinha indecifrável, é uma palavra cujo sentido é perdido ou inexistente. Vale a pena colocar aqui a pequena história na íntegra:

Alguns dizem que a palavra Odradek deriva do eslavo e com base nisso procuram demonstrar a formação dela. Outros por sua vez entendem que deriva do alemão, tendo sido apenas influenciada pelo eslavo. Mas a incerteza das duas interpretações permite concluir, sem dúvida com justiça, que nenhuma delas procede, sobretudo porque não se pode descobrir através de nenhuma um sentido para a palavra.

Naturalmente ninguém se ocuparia de estudos como esses se de fato não existisse um ser que se chama Odradek. À primeira vista, ele tem o aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela e, com efeito, parece também revestido de fios; de qualquer modo devem ser só pedaços de linha rebentados, velhos, atados uns aos outros, além de emaranhados e de tipo e cor dos mais diversos. Não é, contudo, apenas um carretel, pois do cento da estrela sai uma varetinha, e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. Com a ajuda desta última vareta de um lado e de um dos raios da estrela do outro, o conjunto é capaz de permanecer em pé como se estivesse sobre duas pernas.

Alguém poderia ficar tentado a acreditar que essa construção teria havido anteriormente alguma forma útil e que agora ela está apenas quebrada. Mas não parece ser esse o caso; pelo menos não se encontra nenhum indício nesse sentido; em parte alguma podem ser vistas emendas ou rupturas assinalando algo dessa natureza; o todo na verdade se apresenta sem sentido, mas completo à sua maneira. Aliás, não é possível dizer nada mais preciso a esse respeito, já que Odradek é extraordinariamente móvel e não se deixa capturar.

Ele se detém alternadamente no sótão, na escadaria, nos corredores, no vestíbulo. Às vezes fica meses sem ser visto; com certeza mudou-se então para outras casas; depois, porém, volta infalivelmente à nossa casa. Às vezes, quando se sai pela porta e ele está inclinado sobre o corrimão logo embaixo, tem-se vontade de interpelá-lo. É natural que não se façam perguntas difíceis, mas, sim, que ele seja tratado - já que o seu minúsculo tamanho induz a isso - como uma criança. "Como você se chama?", pergunta-se a ele. "Odradek", ele responde. "E onde você mora?" "Domicílio incerto", diz e ri; mas é um riso como só se pode emitir sem pulmões. Soa talvez como o farfalhar de folhas caídas. Em geral com isso a conversa termina. Aliás, mesmo essas respostas nem sempre podem ser obtidas; muitas vezes ele se conserva mudo por muito tempo, como a madeira que parece ser.

Inutilmente eu me pergunto o que vai acontecer com ele. Será que pode morrer? Tudo o que morre teve antes uma espécie de meta, um tipo de atividade, e nela se desgastou; não é assim com Odradek. Será então que a seu tempo ele ainda irá rolar escada abaixo diante dos pés dos meus filhos e dos filhos dos meus filhos, arrastando atrás de si os fios do carretel? Evidentemente, ele não prejudica ninguém, mas a ideia de que ainda por cima ele deva me sobreviver me é quase dolorosa. (Kafka, 1918/1999, pp. 43-45)

Temos aqui tal cena: um homem aparentemente comum fala sobre uma criatura que habita a sua casa, criatura que possui todas as características de um mistério. Odradek é uma pequena esfinge, feita de fios e remendos gastos e inúteis, esfinge cujo enigma é a sua própria existência. Sem função, sem sentido, dotado de uma quase fala e uma quase risada, Odradek é quase nada. Ao estranhamento causado pela criatura, que é friamente narrada pelo homem comum, junta-se um segundo estranhamento, produzido por uma leitura rápida: por detrás da observação fria, algo na existência da criatura perturba gravemente o homem comum, experiência que dá nome ao texto. Ele tem que falar da criatura, mesmo que isso não faça sentido, e confessa que a existência da criaturinha, em especial sua permanência atemporal, fere-o, causa-lhe uma quase dor. Se, por ora, não podemos saber muito mais sobre a pequena criatura que ri uma risada enigmática, a análise da forma e do conteúdo da linguagem pode nos revelar quem é o narrador, o "pai de família" atribulado, e qual forma de vida esse personagem expressa.

Primeiramente, o pai de família é um homem cultivado. As discussões iniciais sobre o nome de Odradek, sobre suas origens do eslavo ou do alemão, a disposição do narrador em apresentar sua cultura livresca caracterizam-se estilisticamente como um marca de distinção burguesa. Pois, se culto, a cultura do pai de família é uma cultura acessória e instrumental, pois Odradek lhe interessa enquanto coisa-palavra apenas na medida em que a existência incômoda da criaturinha se impõe, incômodo que exige algum tipo de elaboração.

Dotado de uma cultura acessória e instrumental, o narrador é um homem friamente analítico, como aponta sua descrição impassível de Odradek. A frieza se soma à sua praticidade, pois a ausência de função de Odradek não apenas é uma característica inusitada, mas uma questão central e inquietante para o homem.

Por fim, além de uma civilidade culta, fria e prática, ao tratar Odradek como "uma criança", o narrador revela o sentimento de superioridade que alicerça todas as características anteriores do seu discurso. Como bem sublinha a análise de Roberto Schwarz (2008), o pai de família se apresenta, pelo conteúdo e forma do seu dizer, como perfeito exemplo do cidadão burguês. A técnica da descrição e a praticidade da comunicação, emolduradas em uma pretensa civilidade, organizam um discurso calculista que visa fagocitar em sua racionalidade instrumental toda e qualquer manifestação da vida. Todas as características que o pai de família percebe faltar a Odradek - sentido e função - são justamente as que possibilitariam à criaturinha ter algum valor de uso ou valor de troca e entrar no sistema de circulação das mercadorias.

A última característica que falta a Odradek, a mortalidade, é ponto central da preocupação do narrador e liga-se imediatamente à ausência de finalidade: "Tudo que morre terá tido, anteriormente, uma espécie de finalidade, uma espécie de atividade, na qual se desgastou". Se até esse momento Odradek é tratado apenas como um enigma, aqui a narrativa muda de caminho. Ao perceber que, sem poder ser incluída na lógica capitalista, a criaturinha não pode ser gasta e morta - ou seja, não é usável e descartável -, de súbito a existência de Odradek revela ao narrador a miséria da sua própria existência, ele mesmo um ser usável, mortal e descartável, vítima da mesma lógica com que ele organiza seu mundo. Tal percepção faz com que o narrador sinta como algo doloroso que a existência de Odradek supere a sua própria. Nas frestas veladas dessa dor apresentada de forma serena, Schwarz percebe que o pai de família é partidário do extermínio:

O pai de família não quer ser eterno; quer sobreviver a Odradek, quer, noutras palavras, que Odradek morra antes. Naturalmente é urbano demais para desejar a morte a um ser que não faz mal a ninguém, que é completo à sua maneira; mas a urbanidade não impede que a existência de um tal ser lhe doa. Respeitável por todos os títulos, o pai de família é partidário inconfessado da destruição. (2008, p. 28)

Nesse ponto, da retirada de uma constatação lancinante de um texto não menos afiado, temos o ápice da crítica sociocultural. Pois, além de apontar para a histórica dificuldade que a civilização ocidental tem de incorporar a diferença - fazendo com que a sua história seja a história da dominação (Horkheimer & Adorno, 1944/2006) -, Schwarz acena para a solidariedade entre o capitalismo e o fascismo. As contradições da sociedade capitalista e sua racionalidade instrumental criam um contexto de exploração social e alienação do homem, alienação que, por vezes, pode emprestar para si uma imagem de sereno progresso, a própria imagem civilizada do pai de família, mais evoluído do que a criaturinha sem sentido. No entanto, em momentos específicos de sua dialética, tais contradições iluminam o fato de que o capitalismo carrega em seu bojo uma lógica destrutiva e inumana, que rege um mundo em cujas leis os homens não se reconhecem e se coisificam, em um processo que produz ressentimento e violência, os quais, por sua vez, são capturados e retroalimentam tal maquinário sociopolítico. A progressiva produção de hegemonia de tal lógica pode escalar - e escalou - até o nível do genocídio.

Portanto a relação entre civilidade progressista burguesa e destrutividade fascista no conto de Kafka é a expressão sensível da tese frankfurtiana sobre a relação entre razão ocidental, capitalismo e fascismo, demonstrando que estes últimos dois termos são modulações e momentos específicos de uma mesma forma de vida. Tal articulação retira o fascismo de um lugar de suposta exterioridade e anormalidade em relação ao funcionamento regular das democracias representativas ocidentais, colocando-o justamente no âmago conflitivo das dinâmicas e tendências da sociedade moderna. Ao apontar pelo desejo de morte com que a consciência burguesa investe uma criatura inofensiva, cujo único "defeito" é ser inútil, Kafka mostra a fragilidade da lógica dessa consciência e a violência com a qual essa fragilidade pode ser velada e protegida. É no registro da linguagem que tais articulações se tornam cristalinas.

Vale ressaltar que, no texto de Kafka, a racionalidade instrumental, assim como a subjetividade ressentida é totalmente dependente de certa maneira de conceber a linguagem. Ao se deparar com Odradek, o narrador aciona a linguagem em duas dimensões, pretendendo "compreender" a criatura. Primeiramente, o pai de família aciona a linguagem como instrumento representativo. A palavra Odradek deve fornecer o significado da criatura, significado fixo que deve indicar as leis que governam as suas existência e função. Pois, para a racionalidade instrumental, as coisas só existem na medida da sua adequação a uma representação lógica e a uma função produtiva, revelando a solidariedade entre aspectos do iluminismo e do capitalismo, em especial entre a representação e a mercadoria.

Por outro lado, a linguagem é tomada como instrumento de avaliação e julgamento - demonstrando uma subjetividade ressentida e policial. Nesse sentido, a linguagem seria um instrumento de captura que visa extrair um saber sobre as coisas -conhecer sua finalidade -, para finalmente dominá-las e julgá-las dignas ou não de existência. Aqui percebemos, mais uma vez e na espessura da linguagem, a relação entre o pai de família e o assassinato. Pois, querendo enquadrar o pequeno Odradek em suas próprias categorias, o narrador tenta se assenhorar da linguagem como um instrumento funcional e redutor da pluralidade e da ambiguidade típicas do campo do sentido. Despoetizada sua linguagem, perdida a felicidade no seu uso criativo, a subjetividade do narrador expressa apenas o ressentimento e sua compulsão judicial. Resumindo: por meio da explicitação da linguagem que usa o pai de família, Kafka demonstra a pertinente solidariedade entre crise social, crise da subjetividade e crise da linguagem.

No entanto o pequeno Odradek resiste bravamente ao enquadramento. Sua residência é "indeterminada", o que já faz alusão à condição de pequeno criminoso, que, ao responder assim o inquérito, revela ludicamente o caráter policialesco das divagações do pai de família. Residência indeterminada, função indeterminada, origem indeterminada, o pequeno bandido se evade a qualquer enquadramento da linguagem utilitária e controladora. Nega-se a ser fichado, ou seja, a ter o significado da sua existência fixado de uma vez por todas. Possui a residência indeterminada dos vadios, sendo que Odradek é o vadio supremo, pois ele vadia no campo da significação, aqui e ali rindo sua "risada sem pulmões". Mas o que seria essa vida expressiva, porém sem órgãos, paradoxalmente concreta e imaterial? Essa existência insondável e ao mesmo tempo irrecusável, que aparece de repente, transgressivamente, sem pedir licença, em qualquer vão de escada ou porta da vida cotidiana, essa vida estranhamente inumana é a própria linguagem poética.

Como propõe Haroldo de Campos (1997, p. 137), Odradek é uma espécie de desaconselheirozinho, um pequeno desaconselha-dor, um minidesaconselheiro; em combate silencioso, porém ferrenho com a linguagem ilusoriamente segura e prática, a linguagem poética, de que Odradek é porta-voz, é um desencaminho, uma abertura arriscada e criativa, que destrói as ilusões do sentido fixo e abre para os delírios da linguagem. Odradek, em sua feliz existência sem sentido útil, desaconselha os mares calmos e decadentes daquele que ama a segurança das significações, sintoma de conformismo e fraqueza moral; ele, como mau conselheiro, ajuda a errar, ou seja, a começar uma errância, um caminho ainda não trilhado.

Em sua imprevisibilidade constitutiva, em seu devir criativo expressado pela sua ilimitada plasticidade, a linguagem poética é um ser "extraordinariamente móvel e impossível de ser pego". Exposta essa dimensão transgressiva e perigosa da linguagem poética, poderíamos, em seguida, perguntarmo-nos sobre a sua natureza. Aportaria essa linguagem especial de outro mundo, do mundo divino, tal como acreditavam os gregos acerca da inspiração poética? Odradek, pelo contrário, não é feito de nenhum material especial. Como todos os personagens de Kafka e sua própria literatura, Odradek não apenas é feito de materiais cotidianos, mas - o que é mais importante - é descrito por uma linguagem calma, protocolar e cotidiana de cartório.

Odradek é feito de remendos gastos, inúteis e de todas as cores; elementos vulgares e cotidianos, que, por obra de uma estranha força, insistem em existir e ter um nome. A sua existência é marcada por uma inutilidade que, sem que se saiba se por acidente, ainda assim é resultado de uma ascese: no seu corpo, não resta qualquer significação mundana.

Ascese por acidente, não por exercício. Não existe possibilidade de exercício visando qualquer objetivo quando "o verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada no alto, mas logo acima do chão. Parece mais destinada a tropeçar do que para ser trilhada" (Kafka, 2011, p. 189). Trata-se de um exercício de desistência, um esquecimento de si. É o esquecimento que opera a redenção (Benjamin, 1985), e Odradek esqueceu que devia servir para alguma coisa e ter um significado. Os trapos que formam Odradek são justamente os significantes inúteis da linguagem poética. Não são significantes que se diferem de quaisquer outros do mundo natural e da fala cotidiana, não vêm de nenhuma instância divina; a sua diferença é justamente não servirem para nada, não serem nada e, salvos do uso utilitário, poderem ser reorganizados de forma livre e expressar puramente a linguagem em seu movimento de criação. Sobre esse "nada" em Kafka, escreve Benjamin:

Mas esse nada é muito próximo daquele "nada" taoista que nos permite utilizar "alguma coisa". É em busca desse "nada" que Kafka formula o desejo de "fabricar uma mesa com uma perícia exata e escrupulosa, e ao mesmo tempo não fazer nada, de tal maneira que, em vez de dizerem: o martelo não é nada para ele, as pessoas dissessem: o martelo é para ele um verdadeiro martelo e ao mesmo tempo não é nada, e com isso o martelo se tornaria ainda mais audacioso, mais decidido, e se quiser, mais louco". (1995, p. 162)

O papel dos gestos no mundo de Kafka se liga a esse "nada" em dois pontos: a impossibilidade de significação plena e a radical dimensão performativa do ser. O gesto kafkaniano de seus personagens, em sua expressividade hiperbólica, torna artificial qualquer aferição de significado ao ato. No espaço da linguagem literária, tal gesto representa, na aparência, o automatismo da linguagem burocrática desprovida de humanidade, mas, em essência, representa o mundo da linguagem reduzido ao puro jogo dos significantes, à pura vida alegre da linguagem. Um paradoxo intransponível: no centro do calvário da existência que habita a linguagem crua e sem sentido, existe "algo da vida ativa de hoje, com suas pequenas alegrias, incompreensíveis mas reais, e que ninguém pode extinguir" (Kafka, 1924/1977, p. 25). Os personagens felizes de Kafka, que Benjamin aponta estarem fora da família e da forma definitiva que a lei paterna confere, também são transitórios, mensageiros, incompreensíveis, inapreensíveis, felizes justamente por serem seres vivos libertos do peso da identidade; palavras livres do peso da significação.

É do teatro, presente em inúmeras alusões em seus escritos, que Kafka empresta uma concepção criativa, artificiosa, frágil e transitória da linguagem. Em contos como "O caçador Graco (Kafka, 1931/2002)), o mundo é descrito de forma objetiva, os minuciosos detalhes são relatados como uma serenidade de um arquivista. Nenhum evento é dotado de coloração afetiva ou julgamento subjetivo, nenhum detalhe é realçado mais que os outros. Espanto, amor, ódio e ternura abandonaram as praias onde desembarca o caçador - assim como abandonaram o mundo de Kafka. Mesmo a divisão entre a vida e a morte é apagada no mundo estático de Graco/Kafka. Pode-se ver nesse cenário teatral, portanto artificial e imóvel, um retrato kafkaniano de nosso mundo, onde a burocratização da vida e a queda dos altos valores nos tornaram uma civilização de mortos-vivos; os gestos e falas insondáveis dos personagens, costurados por uma escrita fria e impassível, podem ser vistos como a racionalidade calculista e burocrática que inventaria os acontecimentos sem se comover, sem expressar qualquer rastro de compaixão.

De fato, essa interpretação não é totalmente equivocada, já que foi nos elementos do seu próprio mundo que Kafka colheu as palavras de sua literatura, seus "fiapos, restos remendados ou simplesmente embaraçados de fio gasto, da mais diversa cor e espécie" (Schwarz, 2008, p. 22). Não se entregando à ilusão de outro mundo e ao mesmo tempo não abrindo mão do compromisso da linguagem com o mundo social que ela habita, o escritor trabalhou de tal forma no mundo asfixiante da família burguesa, dos escritórios, dos tribunais e da culpa religiosa que, a partir desse mesmo mundo, polindo de forma expressionista seus signos, encontrou a escondida possibilidade da explosão lírica. É o caso da descrição protocolar de Odradek, que é insidiosamente contagiada pelo delírio poético que anima o pequeno criminoso. Segundo Haroldo de Campos:

No tecido seco da linguagem administrativa de Kafka incrustam-se metáforas (ou antes, símiles de tipo dantesco) de forte apelo sensorial ("risadas como só sem pulmões se produz"; "soa como cochicho de folhas caídas", "mudo como a madeira que parece ser"). Isto, para mim, equivale à introdução de uma contradição segunda (a primeira ocorria entre a realidade da linguagem, verdade formal, processual, e a realidade exterior, tratada segundo critérios pessoais do autor, mantida sempre em um nível de verossimilhança residual); esta se passa agora dentro da "linguagem de papel" assumida, linguagem de notação expositiva de tipo "arrazoado", na qual se abrem assim súbitas clareiras de uma hiperpoesia (por força de contraste), se libera um gesto poético descontrolado que está para esse jargão de vade-mécum forense - massa contida de clichês contidos e aderentes - como as "safiras na lama" dos versos de Eliot. (1997, p. 135)

Na análise de Haroldo de Campos, confunde-se Odradek com a própria obra de Kafka, literatura escrita em um alemão mais regulamentado do que regular. Nada que venha de uma pureza de outro mundo. Diferente dos românticos e de alguns modernistas, Kafka não foi buscar qualquer resposta para a decadência vital e moral do Ocidente em algum outro mundo idealizado. Em Kafka, tais iniciativas carecem de sentido, são falsas soluções para um falso problema. A salvação não se vislumbra em outro mundo idealizado - seja o Paraíso, o Oriente, o Inconsciente, o Divino -, mas na imagem do nosso mundo, este mesmo, só que em uma manhã um pouco mais clara, em um rápido acesso de bom humor de Deus. Escreve o autor:

Não é necessário que você saia de casa. Fique junto à sua mesa e escute. Nem mesmo escute, só espere. Nem mesmo espere, totalmente em silêncio e sozinho. O mundo irá se oferecer a você para o próprio desmascaramento, não poderá fazer outra coisa, extasiado irá se contorcer aos seus pés. (Kafka, 2011, p. 208)

Assim, sem esperança de que o sentido da salvação esteja em outro lugar, Kafka escava a linguagem, joga com as palavras de forma a reordenar e rejuntar as coisas, não visando, nesse processo, criar novidades, mas para libertar as coisas de si mesmas.

Nesse ponto, podemos vislumbrar com clareza que a redenção em Kafka não é uma redenção divina, mas poética. É a partir da reconfiguração do mundo existente, da coleta paciente de suas ruínas, da paciente observação da menor coisa - Benjamin diz que Kafka exerce a atenção "forma natural da prece" (Benjamin, 1985, p. 161) -, que surge, de forma inesperada, não uma nova ordem ou outro espaço, mas uma nova relação com a linguagem, com o mundo, com alteridade.

 

Conclusão

A redenção poética presente na existência de Odradek abre para uma dimensão muitas vezes soterrada de nossa existência cotidiana. Ao iluminarmos essa criatura-palavra pelos entrelaçamentos autorreflexivos entre a palavra e o ser criados pela pena de Kafka, podemos acessar a presença de uma vontade poética muito específica que anima a vida em momentos luminares, embora ambíguos. Trata-se desses momentos em que, por uma mistura de exercício e acidente, percebemos em nós mesmo uma alteridade atuante que se aloja em um vazio e procura alargá-lo. Vazio que não é um deserto árido de ausência de sentido, mas justamente criado pela corrosão constante dos significados e formas e pela escavação até um espaço de uma reserva de sentido, um espaço lacunar, silencioso e estético (Foucault, 2014, pp. 215-216).

Nesse espaço, a nossa existência, livre das muitas camadas de significação, pode experimentar, de forma oblíqua e precária, suas liberdade e indeterminação trágicas, tal como se observam "os movimentos de um animal desconhecido" do qual não se compreende a lei que "o anima e governa" (Merleau-Ponty, 1943/1980a, p. 316). Acolher tais movimentos exige certa ética da curiosidade, uma abertura arriscada para forças heterogêneas que nos compõem. Ou seja, trata-se de criar uma forma de vida que aceite ser habitada pelos deslocamentos bruscos e inusitados da linguagem poética. Uma vida poética é aquela que não se deixa limitar pelos significados e identidades, mas desliza por eles, usando os signos e acontecimentos como apoio e ponto de partida, como material bruto, dado pela contingência, que deve ser incessantemente trabalhado pelo cinzel do pensamento e da sensibilidade. Penso que tal reflexão é urgente nos tempos sombrios atuais, governados pela lógica do ressentimento, do medo e da violência, afetos tristes que, embora surjam agora a céu aberto, habitam de longa data o Eu moderno, tal como revela, entre outras, a experiência psicanalítica. Afetos que engendram a forma de vida hegemônica que compõe a máquina social do capitalismo, mas só se desabrocham plenamente no calor gelado da morte que alimenta o fascismo.

 

Referências

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Correspondência:
RICHARD DE OLIVEIRA
Travessa da Rua Mogi Mirim, 15, Bela Vista
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richard.oliveira@usp.br

Recebido 26.08.2020
Aceito 14.09.2020

 

 

1 Este artigo é um desdobramento de reflexões pessoais formuladas durante as aulas sobre Kafka da professora Sylvia Leser de Mello, para quem deixo meus profundos agradecimentos e o reconhecimento da sua imensa generosidade, aquela que semeia as verdadeiras influências intelectuais.

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