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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo July/Dec. 2020
EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE
The transitory as a destination
Isabel Castello Branco Lima
Psicanalista e doutora em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
RESUMO
Em "Nada e a nossa condição", Guimarães Rosa encontra na expressão "fazer de conta", enunciada pelo protagonista, uma prodigiosa forma de construção de sentido que revela o caráter transitório do humano, na sua tensão de inerente transcendência. É precisamente em torno desse fazer que organizamos nossa leitura do conto, buscando fontes de articulação e inspiração no "destinador transcendente" de Luiz Tatit, na "antropologia rosiana" de Benedito Nunes, feita de "homens inacabados", no personagem diante do nada da existência humana de Cristiane S. de Azevedo, bem como no conceito de criatividade de D. W. Winnicott e na concepção de transitoriedade explorada por S. Freud.
Palavras-chave: Transitório. Criatividade. Transcendência. Destino. Morte.
SUMMARY
In "Nothing and our condition", Guimarães Rosa finds in the expression "just pretend" (fazer de conta), uttered by the protagonist, a prodigious form of construction of meaning that reveals the transitory character of the human being, in its tension of inherent transcendence. It is precisely around this doing (pretending) that the reading of the story is organized, finding sources of articulation and inspiration in Luiz Tatit's "transcendent recipient", Benedito Nune's "Rosian anthropology" made of "unfinished men", in Cristiane S. de Azevedo's character before the nothingness of human existence, as well as in D. W. Winnicott's concept of creativity and the conception of transience explored by S. Freud.
keywords: Transitory. Creativity. Transcendence. Destiny. Death.
Plenamente: vivendo-o de dentro dele;
habitá-lo, na agulha de cada instante,
em cada agulha instante: e habitar nele
tudo o que o habitar cede ao habitante.
(João Cabral de Melo Neto)
"Nada e a nossa condição" é um dos contos de Guimarães Rosa que integram Primeiras estórias. Como o próprio título suscita, trata-se da condição humana, no cerne de sua mais radical determinação. Nele conhecemos Tio Man'Antônio, "individido e esquivo na conversa", a respeito de quem "muita real coisa ninguém sabia". A ficção rosiana "Nada e a nossa condição" não consiste exceção, logra amalgamar, com rara beleza, poesia, religião e filosofia. Nela convergem, como assinala Benedito Nunes,
determinadas linhas do pensamento filosófico grego da Antiguidade, como as platônica e neoplatônica - amplificadas às doutrinas orientais (bramânica, budista, taoista) - e de acento místico ou transcendente, juntamente com a singular filosofia heideggeriana, de manifesto pendor poético. (Nunes, 2006, p. 240).
Essa confluência encontra expressão, por exemplo, no tema da viagem, presente em toda a obra de Guimarães Rosa. Os personagens rosianos viajam, sua condição é "andeja". Com Tio Man'Antônio não é diferente: "vinha, constante, serra acima, a retornar viagem, galgando caminhos fragosos". Contemplava as "infernas grotas, abismáticas, profundíssimas" como se, "votivo", ofertasse o melhor de si. E "chegava, após íngremes horas e encostas".
E então Tia Liduína, sua mulher, morreu. Assim, "quase de repente, no entrecorte de um suspiro sem ai e uma ave-maria interrupta". Esse acontecimento é definitivo. Tio Man'Antônio estava só. Olhou pelas janelas e "passou a paisagem pela vista" e, em outro lance, como a pedir ajuda, considerou "a paisagem pelas costas" e viu as sombras das grotas e a prodigiosa montanha.
Não carecia de nada. Estava todo ali, "sem contradição ou resistência" e não o "conheceriam através de figuras". Ele "refez sua maciez; e era uma outra espécie, decorosa, de pessoa, de olhos empalidecidamente azuis. Mas fino, inenganador, o rosto, cinzento moreno". As filhas, embora não entendessem o que se passava, de certa forma suspeitavam. Felícia, a mais jovem, perguntou a ele: "Pai, a vida é feita só de traiçoeiros altos-e-baixos? Não haverá, para a gente, algum tempo de felicidade, de verdadeira segurança?". E Tio Man'Antônio então, "com todo o cuidado, no devagar da resposta" diz: "Faz de conta, minha filha... Faz de conta...".
Interessado no estatuto do "destinador transcendente" em "Nada e a nossa condição", Luiz Tatit (2010) realiza uma profícua análise desse conto, da qual indicaremos apenas alguns traços. Em sua leitura, a morte de Tia Liduína, apresentada como uma ruptura na vida de Tio Man'Antônio, promove no âmbito do sujeito e do destinador, respectivamente, uma perda irreparável e um impulso para a continuidade. Esse ímpeto encontraria tradução, segundo ele, na "forma espacial sintáxica da abertura", quando Tio Man'Antônio, logo após a morte de sua esposa, manda abrir todas as portas e janelas da casa. Esse movimento dá o ritmo e a direção ao longo do conto. Assim, "a continuidade depende do fechamento para atingir a abertura e da falta para atingir o preenchimento" (Tatit, 2010, p. 27). Quando Tio Man'Antônio olha pelas janelas, ele compreende a imobilidade de tudo. Nada ali lhe traria ajuda para a "continuidade de sua existência".
Como destinador, Tio Man'Antônio "relaciona-se de igual para igual com as funções transcendentes inscritas na paisagem" (Tatit, 2010, p. 28). Ao retornar viagem, ele contemplava os cimos e as infernas grotas. "Tanto contemplava-as, feito se, a elas, algo, algum modo, de si, votivo, o melhor, ofertasse: esperança e expiação, sacrifícios, esforços - à flor." No dia da morte de Tia Liduína, o fazendeiro apela a essas forças transcendentes para que o auxiliem: "Ajudavam-no, de volta, agora que delas precisava?". Essa forma de apelo do destinador resulta de um pacto mantido, ao mesmo tempo, com "deus (figuração do próprio destinador comprometido com o futuro do sujeito) e com o diabo (figuração do antissujeito). Dessa perspectiva bastante ampla, está garantida a transitividade entre esses extremos, sem a fixação em nenhum deles" (Tatit, 2010, p. 28). No entanto, apesar dessa bela arquitetura entrevista em sua análise, será no fazer, inscrito pela primeira vez na resposta de Tio Man'Antônio a sua filha Felicia, que, segundo Tatit, a reflexão teórica de Guimarães Rosa se torna admirável. Nesse ponto, Rosa teria encontrado a possibilidade de figurar uma narrativa "que representa um fazer, uma transformação ou um processo transitivo" (Tatit, 2010, p. 29). É precisamente para esse "fazer", que anuncia transformação ou transitividade, que nos voltamos.
De outra perspectiva, esse "fazer de conta", na leitura de Cristiane Azevedo, significa "reinventar o real". Nesse sentido, a experiência radical frente ao nada - a anulação de tudo -leva o personagem Tio Man'Antônio a "nadificar ou reinventar o real" (Azevedo, 2002, p. 1). Essa sua singular experiência tem lugar diante da morte, concretização do caráter finito e absolutamente transitório da existência. O contato com essa dimensão move o fazendeiro Tio Man'Antônio a reinventar o real. Em uma palavra, transcender. Assim, o "faz de conta", sugerido a Felicia, excede as margens do sim e do não e "se instaura em uma terceira margem, a margem da transcendência: o nada" (Azevedo, 2002, p. 2). A ruptura na vida, instaurada pela morte da esposa querida, lançaria o protagonista na experiência de um fazer que se quer indiscriminado do ser, em um projeto, como formularia depois, de "se crer e obrar". E com o sofrimento imaginou, como na bela poesia de João Cabral de Melo Neto, "habitar o tempo", "vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo; no instante finíssimo em que ocorre" (Melo Neto, 1962-1965/1994, p. 365). Tornou-se ele mesmo o transitório, aquele que cumpre seu traçado transitivo no mundo.
É assim que ele, contemplador dos cimos e das abismáticas e profundíssimas grotas, lançou-se dia após dia nesse obrar no mundo e em si mesmo. E com ele também "seus pés-no-chão muito camaradas". Ele "matinava impelindo-os, arrastando-os, de industriação, à dobrada dobadoura, a derrubarem mato e cortar árvores, no que era uma reformação". Enquanto a tudo se dedicava, transforma seu entorno e a si mesmo. Depois de tudo pronto, as filhas "se contristaram". E Francisquinha, a filha preferida, pergunta aflita: "Se não seria aquilo arrefecido sentimento, pecar contra a saudade?". Ao que ele responde, "com quieto estar mirando-a", ainda que "alheio, alhures": "Nem tanto, filha... Nem tanto...". E Tio Man'Antônio mostrava orgulhoso toda a reformação. Como a dizer tratar-se do exato contrário: "Mostrou-lhes: lá os campos em desdobra - o que limpo, livre, se estendia, em quadro largo sem sombrios, aberta a paisagem - o descampado airoso e verde, ao mais verde grau, os capins naquela vivacidade". Ficaram no lugar, consagradas, a vistosa sapucaia, a sambaíba sertaneja, a barriguda rósea e a "paineira purpúrea-quase-rubra, magnificantes, respectivas". Todas as que Tia Liduína escolhera amar.
No ano seguinte, propôs celebrarem o dia de Tia Liduína com uma festa. As filhas concordaram, "elas estavam crescidas e esclarecidas". Vieram moços, primos e elas noivaram e casaram. Sim, agora ele estava sozinho, mas não triste. E eis que o "transitoriante" Tio Man'Antônio remexeu o "feito e acabado" mais uma vez. Aos poucos, ele doou e distribuiu suas terras entre seus "muitos, descalços servos, pretos, brancos, mulatos, pardos, leguelhés pre-quetés, enxadeiros, vaqueiros e camaradas". Conservara para si apenas a "antiga, forme e enorme casa". A mesma em que, no dia em que Tia Liduína morreu, ele correu a abrir janelas e portas, entrando em todos os cômodos, em busca de abrigo. A mesma casa "de onde o tamanho do mundo se fazia maior, transclaro, sempre com um fundo de engano, em seus ocultos fundamentos. Nada. Talvez não. Fazia de conta nada ter; fazia-se a si mesmo, de conta". Não compreendia os que se faziam donos e eles não o compreendiam e, seguramente, não o amavam. Ele, de graça, os administrava, "queria que progredissem e não se perdessem". Serviam-no, mas, "decerto milenar e animalmente, o odiavam".
E nesse fazer Tio Man'Antônio se afastava "dele a ele e nele" e deu o indeciso passo, o que não se pode seguir em ideia. Morreu. E assim, "como se por um furo de agulha um fio", fez de conta e se converteu no "Destinado". Ele mesmo, aquele que habitara o transitório, "tornara-se agente de sua transitoriedade" (Martins, 2008). "Neste ponto, acharam-no, na rede, no quarto menor, sozinho de amigo ou amor - transitoriador - príncipe e só, criatura do mundo." Cristiane Azevedo encontra em sua análise de "Nada e a nossa condição" um belo modo de se referir a essa passagem: "Ele, o transitório, o transitoriante, o transitoriador, cumpriu destino 'votivo'. Ele que 'de transparência em transparência' movia-se 'conforme a si mesmo', na sua radical singularidade, fez de conta. Mas não é essa a nossa condição?" (2002, p. 4). Ou, dito com outras palavras: ser diante do nada da existência no encalço do destino?
O inacabamento do personagem nos aproxima de outro dos grandes traços da ficção de Guimarães Rosa: o caráter religioso de sua antropologia. Como escreve Benedito Nunes, o homem, na literatura de Rosa, "é um ser inacabado" (2006, p. 242). Ele precisa buscar formas de aprimorar sua sensibilidade como caminho de ligação com a vida e também como possibilidade de elevação. É nesse quadro que se compreende a busca do protagonista, sua renúncia aos bens materiais em prol de um projeto. Em Guimarães Rosa, a inteligência é de pouca serventia, ela é impotente contra o mal. Outro traço sublinhado por Nunes nessa antropologia é o valor conferido à intuição e ao papel, a um só tempo, depurador e liberador do sofrimento, tributário de sua vinculação à filosofia bergsoniana. O "personagente" de Guimarães Rosa, Tio Man'Antônio, "mais que personagem e menos que protagonista" (Rónai, 1996/2005, p. 25), se compõe desses traços caros à antropologia rosiana. É um ser inacabado. Ao intuir o secreto da vida, ele encontra um fazer, cuja natureza gera valor. Entrega um tanto de si ao mundo e nessa entrega reside também a transformação de si e do mundo. "Parecia-lhe como se o mundo-no-mundo lhe estivesse ordenando ou implorando, necessitado, um pouco dele mesmo, a seminar-se? Ou - a si - ia buscar-se, no futuro, nas asas da montanha."
É certo que, em lugar de uma interpretação unívoca, o conto de Guimarães Rosa, aliás, a sua narrativa como um todo, parece oferecer-se a uma multiplicidade de leituras que, de modo algum, o esgotam. Traço que se aplica às obras de todos os grandes escritores. Mas, no caso de Guimarães Rosa, muitas vezes nos defrontamos com enigmas de difícil decifração. Segundo a sugestão espirituosa de Paulo Rónai, nas narrativas que compõem as Primeiras estórias, das quais "Nada e a nossa condição faz parte", há elementos que se oferecem apenas à compreensão do dialetologista, outros acessíveis apenas ao filósofo e outros ainda que somente ao psicanalista é dado ler. Nesse sentido, "nenhum leitor entenderá a obra na íntegra" (Rónai, 1966/2005, p. 45). Do seu ponto de vista, Guimarães Rosa não visava esse entendimento especializado. Segundo ele, o leitor médio será capaz de colher material suficiente para "ceder ao encantamento".
Assim, entre as múltiplas possibilidades de leitura do conto de Guimarães Rosa, e muito longe de pretender esgotá-las com breves apontamentos, destacamos ainda aspectos que guardam ressonância com temas caros à psicanálise, como, por exemplo, as noções de transitoriedade e criatividade. Ambos foram assuntos investigados por Freud e outros psicanalistas depois dele. Sobre o tema da transitoriedade, remetemo-nos a um pequeno e belo texto de S. Freud, dedicado ao seu exame na interface com o luto. Entre as colaborações sobre a criatividade, ressaltamos os trabalhos do psicanalista inglês D. W. Winnicott, para quem a criatividade tem significativa importância e cujo sentido parece ir ao encontro do tipo de experiência vivida pelo personagem de Guimarães Rosa.
Acompanhemos um pouco o desenvolvimento do conceito de criatividade no pensamento de Winnicott. Em primeiro lugar, sua investigação sobre o tema busca estabelecer um "vínculo entre o viver criativo e o viver propriamente dito". (1971a/1975, p. 100). Desse ponto de vista, ter uma existência criativa é uma necessidade universal, e ela não diz respeito a talento especial algum. A criatividade, nesse sentido específico, é a capacidade derivada da experiência onipotente de criar o objeto encontrado - substância da ilusão, propiciada pelos cuidados da mãe suficientemente boa nos primeiros meses de vida do bebê. Essa capacidade se mantém ao longo da vida. Como escreve Elsa Dias: "o sentimento de que o mundo foi criado pessoalmente, e pode continuar a ser criado, não desaparece" (2011, p. 58).
Dado seu peculiar começo e o caráter do existir, todo ser humano está sujeito "à tensão de relacionar realidade interna e externa" (Winnicott, 1971a/1975, pp. 28-29). A tensão inerente a esse perpétuo "trânsito" encontra alívio no que Winnicott designa como "espaço intermediário", propiciado pela permanência do "ambiente emocional externo e de elementos específicos no ambiente físico, tais como o objeto ou objetos transicionais" (p. 29), essenciais à aventura que tem seu começo na mais tenra infância. Essa área de experimentação, designada como intermediária, é conservada ao longo da vida e é possível encontrá-la na intensidade da experiência própria "às artes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico criador" (p. 30), em suma, na "experiência cultural". Nesse sentido, a experiência cultural pode ser pensada como o fio que ata o homem à vida, ao sentido singular de sua própria existência. É dessa perspectiva que o espaço potencial ou intermediário (e com ele o brincar e a vida cultural) é identificado como o "lugar em que vivemos".
O protagonista de Guimarães Rosa, como vimos, instala-se em um projeto pessoal, que se desenha a partir do contato com a morte. É como se, no momento da perda, ele se apossasse da dimensão criativa da existência, no sentido a ela designado por Winnicott. Ele parece dizer: crie o lugar onde há "algum tempo de felicidade" e "verdadeira segurança", esse só pode existir no viver que contempla o exercício da capacidade de criar, no "lugar onde vivemos": "Faz de conta, minha filha... Faz de conta". Esse fazer converte-se em seu também, sempre. "'Faça-se de conta' - ordenou em hora, mansozinho. Um projeto de se crer e obrar, ele levantava. Um, que começaram." Um projeto de ser ao obrar no mundo e em si mesmo. É assim que o transitoriante Tio Man'Antônio "mais causas, no mundo e em si, ele à esperança, em sua circunvisão, condenado, descobria".
Nesse sentido, seu mergulho no fazer não está descolado do ser e, por isso mesmo, não se confunde com a mania. É, ao contrário, fruto de sua capacidade inventiva. Assim, o fazer de Tio Man'Antônio é gestado por um projeto que o envolve como pessoa e, dessa perspectiva, é possível ler sua experiência como uma experiência cultural. Ao assumir a radicalidade da transitoriedade de tudo o que existe, ele cria e transforma o mundo à sua volta e, nesse movimento, também a ele mesmo. A morte, assim concebida, não deixa rastro de tristeza. É como se ele extraísse a capacidade de criar da própria transitoriedade da vida; o fazer de conta, antevisto no plano da transitividade, sela seu destino: tornando-se ele mesmo transitório, transitoriante e, por fim, transitoriador, ou seja, o "agente da sua própria transitoriedade" (Martins, 2008, p. 497). Ele transmuta a morte em vida, transcendendo a perda. Com isso, formula um projeto que se perfaz no desprendimento, a um só tempo, material e emocional. E assim se movia Tio Man'Antônio, "conforme a si mesmo: de transparência em transparência".
Tivesse ele se agarrado à dimensão da perda e talvez se assemelhasse aos interlocutores de Freud em seu texto sobre a tran-sitoriedade, que começa pela descrição de uma conversa que ele teve com um amigo taciturno e um jovem poeta a respeito do caráter transitório do belo. Ambos aportam um valor negativo a tudo o que é belo em razão de sua inerente transitoriedade. Para Freud, ao contrário, "valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo" (Freud, 1916/2010, p. 249). De seu ponto de vista, essa limitação emprestaria ainda maior encanto ao belo, aumentando sua "preciosidade". Na origem da excessiva preocupação, do amigo e do jovem poeta, com a fragilidade de tudo o que é belo e a exigência de sua imortalidade, Freud vê a existência de um "gosto antecipado do luto pela ruína", que essas duas sensíveis pessoas teriam experimentado e, dado que "a psique recua instintivamente diante de tudo o que é doloroso, sentiram seu gosto pela beleza prejudicado pelo pensamento de sua transitoriedade" (p. 250).
Tio Man'Antônio não recua diante do que é doloroso. Não só aceita o transitório da vida em si mesmo, como faz dele uma afirmação. Talvez a experiência da perda de sua esposa o tenha incitado a descobrir, na finitude da vida, a preciosidade contida em tudo o que é marcado pelo transitório. É provavelmente nesse registro que Tia Liduína torna-se "fina música e imagem".
Assim como, mais tarde, ao deixarem a casa paterna, suas três filhas se tornam "indivisas partes de uma canção". Depois delas, "seus muitos, sequazes homens" tornam-se "exigidas partes de um texto, sem decifração". E ele fez de conta, Tio Man'Antônio cumpre inteiramente seu desígnio e se encaminha, "senhor, para a terra, gleba tumular". De posse de si e sozinho, mas não triste, ele se foi. Durante o velório, um incêndio reduz a casa, seu único bem, e também seu corpo a cinzas. E, assim, ele cumpre seu destino. "Ele - que como que no Destinado se convertera - Man'Antônio, meu tio." Como escreve Freud (1916/2010, p. 249), "a beleza independe de duração absoluta".
Acompanhemos um pouco mais o texto de Freud que, de certo modo, tornou-se o disparador de nossa leitura do conto de Guimarães Rosa. A transitoriedade, segundo Freud, não pode perturbar a alegria e fruição do belo. Assim, em lugar de impedir sua fruição, a brevidade acrescentaria ainda mais encanto a tudo o que é belo. Isso se passa, por exemplo, em relação à beleza da natureza, à beleza efêmera do rosto e corpo humanos no decorrer da vida, à beleza e perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual. Seu valor é "determinado somente por seu significado para a nossa vida emocional". Nesse sentido, segundo a bela imagem de Freud, "se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não nos parecerá menos formosa por isso" (Freud, 1916/2010, p. 249).
Esse texto foi publicado em 1916, portanto, durante a Primeira Guerra Mundial. No entanto encontramos nele um Freud afirmativo, acreditando na possibilidade e na capacidade humana de reconstrução. E isso apesar de ciente de toda a destruição provocada pela guerra. Como ele escreve, por onde a guerra passou, ela destruiu a beleza de paisagens, obras de arte, o orgulho por realizações culturais, o respeito por tantos artistas e pensadores, a esperança de superação das diferenças entre povos e raças, maculou a própria ideia de imparcialidade da ciência, desnudou nossa vida instintiva e expôs demônios julgados exorcizados, tornou o país novamente pequeno e o mundo mais distante. Em poucas palavras, expôs a fragilidade e precariedade de tudo o que se prezava como portador de valor.
Nesse quadro, a libido se agarra ao pouco que resta. E, assim, fortalecem-se valores como o amor à pátria e o individualismo cego, pois a experiência da fragilidade e precariedade dos bens perdidos pode levar à renúncia de tudo o que não se demonstrou perene. No entanto, uma vez consumado o luto, a libido se encontrará novamente livre para encontrar novos objetos: "Superado o luto, perceberemos que nossa elevada estima dos bens culturais não sofreu com a descoberta de sua precariedade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes" (Freud, 1916/210, p. 252).
Essa ideia de que a transitoriedade acrescenta encanto ao belo também está presente em uma das raras entrevistas concedidas por Freud, intitulada o "Valor da vida" (Viereck, 2010). Ela foi realizada em 1926 por um jornalista norte-americano e teve lugar em uma casa de verão nos Alpes austríacos. Nela, Freud declara que viver implica uma negociação com o mundo: "Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo", diz ele. Ainda nessa mesma entrevista, quando interrogado sobre o destino de seu nome no mundo e sobre o que sentia ao saber que ele o sobreviveria, Freud responde: "Estou muito mais interessado neste botão [de flor] do que no que possa me acontecer depois que estiver morto". E, quando questionado a respeito dessa resposta e seu suposto caráter pessimista, ele declara: "Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida". A entrevista é interessante não só pela sua raridade, mas também pelo fato de ser concedida em um momento em que Freud, então com 70 anos completos, e já criador reconhecido da psicanálise, se volta, entre outros temas, para a beleza e a transitoriedade. O tom da entrevista é de quase uma despedida. Ela aborda assuntos como a mortalidade, ou, talvez, também a imortalidade do criador da psicanálise e do que consiste para ele o valor da vida.
Nossa leitura do conto de Guimarães Rosa privilegiou o momento em que, como diz Luiz Tatit, a narrativa rosiana encontra sua mais prodigiosa forma de construção de sentido, "aquela que representa um fazer, uma transformação ou um processo transitivo, independentemente das razões ou dos investimentos discursivos" (Tatit, 2010, p. 29). Foi em torno precisamente desse fazer, ao qual Rónai atribui um traço de mania - observação, aliás, da qual guardamos distância por dela discordarmos -, que pretendemos ter situado nossa aproximação da narrativa. Encontramos assim no "destinador transcendente" de Tatit, na "antropologia rosiana" de Benedito Nunes, feita de "homens inacabados", no personagem diante do nada da existência humana de Cristiane Azevedo, bem como no conceito de criatividade de Winnicott e na concepção de transitoriedade explorada por Freud fontes de articulação e inspiração de nossa interpretação de "Nada e a nossa condição", mais especificamente dessa espécie de fazer ao qual Guimarães Rosa nos remete e que seu personagem, movendo-se como a si mesmo, de transparência em transparência, consegue nos arrebatar.
Referências
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Correspondência:
ISABEL CASTELLO BRANCO LIMA
Al. Joaquim Eugênio de Lima, 881/703, Jardim Paulista
01403-001 - São Paulo/SP
Tel.: 11 99911.7312
belcastellobranco@yahoo.com.br
Recebido 02.06.2020
Aceito 15.06.2020