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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.37 no.70 Belo Horizonte June 2015

 

ARTIGO

 

Enfim, Freud!... Freud no seu tempo e no nosso

 

ROUDINESCO, E. Freud en son temps et dans le nôtre. Paris: Seuil, sept. 2014.

 

 

Michel Rotfus
Tradução: Bernardo Maranhão
Revisão da tradução: Carlos Antônio Andrade Mello

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto de Michel Rotfus analisa o livro de Elisabeth Roudinesco – Freud no seu tempo e no nosso – evidenciado sua novidade radical, resultado de suas escolhas historiográficas e de sua escrita romanesca. Essa biografia histórica propõe uma narrativa que faz do texto uma biografia-romance-epopeia, tão cativante quanto luminosa.

Palavras-chave: Biografia de Freud, História da psicanálise, Historiografia, Roudinesco.


ABSTRACT

This text by Michel Rotfus analyses Elisabeth Roudinesco’s book, Freud dans son temps et dans le nôtre, highlighting its radical newness, which results from its historiographic choices and its novelistic writing. This historic biography proposes a narrative that turns it into a biography-romance-epic, both riveting and luminous.

Keywords: Freud’s biography, History of psychoanalysis, Historiography, Roudinesco.


 

 

“O campo da biografia deve igualmente se tornar o nosso”, Freud

Freud no seu tempo e no nosso, o último livro de Elisabeth Roudinesco, foi publicado em 11 de setembro de 2014.

Isso não seria cultivar o paradoxo e ofender aquele que ela denomina em seu livro Herr Professor,1 com uma afeição marcada por uma familiaridade insolente e amistosa, visto que é bem conhecida a hostilidade dele às biografias?

[...] [E]le sempre tinha um certo deleite com a ideia de que seus futuros biógrafos pudessem se atrapalhar. Também destruiu cartas que Wilhelm Fliess lhe enviara. Mais tarde, em 1936, tentará em vão persuadir sua cara Princesa – Marie Bonaparte – de não conservar as dele que ela adquirira de um marchand (ROUDINESCO, 2015, p. 83).

Não é Freud quem escreve a seu amigo Arnold Zweig, mesmo quando este completa oitenta anos: “Quem se torna biógrafo se restringe a mentir, dissimular, embelezar e até esconder sua própria falta de compreensão”?

No entanto, ele não hesita em se contradizer e refutar a si mesmo. Não é ele seu próprio biógrafo em dois ensaios de um lirismo exaltado, um de 1915, A história do movimento psicanalítico, o outro de 1925, Um estudo autobiográfico, consagrado a uma apresentação do autor por ele mesmo, na qual ele alimenta o mito do autoengendramento da psicanálise por seu próprio inventor? Nesses dois textos, escritos na tradição do romance de formação, ele dá a imagem de um fundador de uma ciência nova, sem passado, sem companheiros de gestação e de percurso, nascida de uma imaculada concepção a partir de seu cérebro, inventor genial e solitário, e combatendo seus dissidentes.

Quando anuncia para Jung seu projeto de estender suas investigações ao campo da arte e, em particular, a Leonardo da Vinci, Freud escreve:

O domínio da biografia deve igualmente se tornar o nosso. Desde meu retorno, tenho tido uma só ideia. O enigma do caráter de Leonardo da Vinci se tornou de súbito transparente para mim. Seria esse, portanto, um primeiro passo na biografia (ROUDINESCO, 2014, p. 203).

Esse interesse pela biografia continua presente até seus últimos dias, quando ele escreve esse verdadeiro “romance histórico” (ROUDINESCO, 2014, p. 476-479), Moisés e o monoteísmo. Ademais, ligado por laços de amizade a William Bullitt, diplomata e conselheiro do presidente Woodrow Wilson a partir de 1930, escreve junto com ele uma biografia do presidente americano.

Desde sempre, ele sonhava escrever uma verdadeira psicobiografia que seria muito diferente, por seu estilo, do ensaio literário que consagrara a Leonardo da Vinci (ROUDINESCO, 2014, p. 477).

O livro só vem a ser publicado, em inglês, em 1967.

Em 1924, Fritz Wittels, um dos primeiros discípulos e membro da “Sociedade psicológica da quarta-feira”, publica a primeira biografia de Freud. Bastante irritado por conta desse livro e do retrato feroz que Wittels faz dele, apresentando-o como um tirano, Freud envia ao autor a lista das numerosas inexatidões e das retificações a efetuar. “[...] [M]aneira de provar que, em todas as circunstâncias, ele se preocupava com a exatidão dos fatos”, sublinha Elisabeth Roudinesco (ROUDINESCO; PLON, 2006, p. 1120).

A autora, aliás, após uma recente apresentação de seu próprio livro,2 comentou, rindo: “Ele teria feito o mesmo comigo e enviado a lista dos meus erros, pedindo para retificá-los”.

 

Uma biografia necessária...

Essa biografia de Freud foi aclamada por toda a imprensa como um evento de destaque na temporada literária. Recebeu o Prix Décembre e o Prix des prix. Do jornal Le Monde ao Libération, do JDD ao Sud-Ouest, do Point ao Nouvel Observateur e a Image du monde, passando por Art-Press e Tetû et les Inrocks, não há um jornal, uma revista, que não a tenha tratado elogiosamente. O mesmo se verifica no exterior: estão em curso traduções para o inglês, o espanhol, o português, o alemão, o japonês, o lituano, o croata, o albanês e o chinês (e ela será na China a primeira biografia de Freud).

A vida de Freud já foi examinada e analisada tantas e tantas vezes que é de se perguntar o que ainda é possível escrever a seu respeito que não seja mera repetição. E, contudo, ainda há o que dizer.

Essa nova biografia se impunha: o inventário encontrado no prefácio e na bibliografia final o demonstra. Após a de Fritz Wittels (1999)3 e a de Jones (2006), monumental, criticada em seguida pelos trabalhos de Ellenberger (2001), a última biografia histórica até então era a de Peter Gay, publicada em 1988 e traduzida para o francês em 1991.

A biografia de Ernest Jones, monumental obra-prima, rigorosa em sua documentação, dominou durante décadas. Desempenhou o papel de uma história oficial, que dava uma imagem respeitável e imaculada de Freud. Já a de Peter Gay fazia de Freud um erudito inglês da época vitoriana, essencialmente darwiniano e racionalista, sem relação com Viena nem com a Europa central. Sobre esses trabalhos, vieram se superpor numerosas publicações, pintando retratos de Freud bem diversos, variáveis ao gosto das escolas, kleinianas, lacanianas, pós-freudianas, culturalistas, etc. Além disso, “Freud e...” se puseram a prosperar: Freud e o judaísmo, Freud e os Estados Unidos, Freud e os charutos, Freud e a cocaína... declinando os diversos aspectos de sua vida, de seus pacientes, de seu convívio social e de suas obras. Sobre tantas camadas interpretativas, desenvolveram-se, do outro lado do Atlântico, os ataques dos Freud-bashing (os destruidores de Freud) e, na França, os de seus aproveitadores – os autores do Livro negro da psicanálise e, em seguida aquele, caricatural, do texto-bomba de Michel Onfray –, que encenaram as lendas sombrias de um Freud detestável, falsificador e mentiroso, incestuoso, ávido e avaro, admirador de Mussolini, pactuário com os nazistas e assassino de suas irmãs...4

Essas lendas e esses rumores, misturados a toda sorte de elementos biográficos em todo caso estabelecidos, formaram uma imagem embaralhada, na qual

[...] é bem difícil para nós saber quem era Freud verdadeiramente, tamanho o excesso de comentários, fantasias, lendas e rumores, que terminou por encobrir o que foi o destino paradoxal desse pensador (ROUDINESCO, 2014, p. 11).

Era necessária uma nova biografia, que preenchesse as lacunas, retificasse as aproximações e desse um basta às lendas e aos rumores, tomados a tal ponto como verdadeiros que são ainda hoje objeto do comentário de especialistas.

Novas publicações da imensa correspondência de Freud, mas também a abertura, enfim, dos arquivos da Library of Congress, em Washington, para livre consulta dos historiadores,5 trouxeram novos esclarecimentos e facilitaram essa empreitada.

Elisabeth Roudinesco diz6 ter sentido a necessidade de escrever essa biografia, que não tem por finalidade responder aos ataques contra Freud ou fazer oposição a uma anti-hagiografia, mas que depende de uma lógica interna: após ter trabalhado tanto sobre a história da psicanálise, impunha-se a ela dedicar-se à de seu fundador. Vinte e um anos de um trabalho aprofundado com seu seminário7 sobre a história da psicanálise e os diversos aspectos da vida e da obra de Freud, seu dicionário da psicanálise, sua história da psicanálise na França, cujo terceiro volume é inteiramente consagrado a Lacan, seus livros e suas intervenções diversas, notadamente no campo sociopolítico, sempre sob o ângulo histórico e à luz dos conceitos psicanalíticos e da obra de Freud, seus numerosos prefácios, suas intervenções cada vez mais afirmadas sobre a legitimidade de um conhecimento histórico da psicanálise e de seus protagonistas, tudo isso formava, como que escavado, o lugar ausente desse livro Freud, que ela precisaria um dia preencher.

 

…e uma interpretação assumida...

O Freud de Elisabeth Roudinesco é um homem complexo e meio paradoxal.

Seguindo a perspectiva aberta por Max Schur, que “[...] corrige a versão jonesiana dando uma imagem mais vienense do mestre”, que aparece sob o aspecto de um sábio ambivalente, atormentado pela morte; seguindo também os trabalhos dos historiadores americanos e ingleses sobre a Viena fim de século, como Carl Schorske e William Johnston, ela mostra um Freud habitado nesse fim do século XIX

[...] pelas aspirações de uma geração de intelectuais vienenses, assombrados por temas como a judeidade, a sexualidade, o declínio do patriarcado, a feminização da sociedade e por uma vontade compartilhada de explorar as fontes profundas da psique humana (ROUDINESCO; PLON. 2006, p. 457-458).

Descobre-se um Freud profundamente inovador, emancipador no que concerne à sexualidade, às mulheres, aos homossexuais e, ao mesmo tempo, politicamente conservador sobre o modelo da monarquia constitucional. Um Freud que mostra o papel essencial da sexualidade no âmago da psique mas que renuncia a uma vida sexual depois de dez anos de casamento. Atrelado também a uma cultura clássica, leitor dos autores da Antiguidade, de Goethe, a quem ele admira acima de todos, e de Shakespeare. Leitor apaixonado – sua biblioteca tem mais de seis mil volumes, e, entre eles, os que tratam de arqueologia são bem mais numerosos do que as obras de psicologia ou de psiquiatria –, ele não se interessa pela modernidade, pelas obras de seus contemporâneos, apesar de amigos dele: Stephan Zweig e Thomas Mann, de quem ele leu José e seus irmãos, mas não A montanha mágica. Ele ignorará igualmente os autores surrealistas (que tanto devem a ele) e Proust, bem como a música e a pintura de seu tempo.

Em consonância com Jacques Derrida, Elisabeth Roudinesco mostra um Freud dividido entre seu engajamento racionalista, herdeiro do Iluminismo, e seu interesse pelo lado escuro da humanidade, pelo irracional e pelo oculto (ROUDINESCO, 2014, p. 288-291), refreado em seus ardores por Jones e Eitington, os quais quereriam preservar a psicanálise de novas resistências em seu caminho.

A psicanálise então [...] se assemelha a uma aventura da racionalidade moderna para deglutir e rejeitar ao mesmo tempo o corpo estranho chamado Telepatia, assimilá-lo e vomitá-lo sem poder se resumir nem a um nem a outro [...] (DERRIDA, 1981 citado por ROUDINESCO, 2014, p. 291).

O Freud de Roudinesco se identifica com o combate entre Fausto e Mefisto, entre Jacó e o Anjo.

[...] [E]le assume muito cedo a missão de fazer existir o que o discurso da razão procurava mascarar: a parte sombria da humanidade, o que há nela de diabólico, em resumo, o recalcado, o sexo interdito, a estranheza, o irracional (ROUDINESCO, 2014, p. 48).

Ela compartilha, assim, essa ideia de Thomas Mann, nesse

[...] retrato brilhante que faz dele um desilusionista, herdeiro de Nietzsche e de Schopenhauer, capaz de explorar todas as formas do irracional, e de transformar o romantismo em uma ciência (ROUDINESCO, 2014, p. 422).8

Ele sabe se fazer cercar por discípulos, um exército de paladinos animados pelo mesmo ideal de uma revolução das consciências e do íntimo, e nutrir as mais vivas amizades. Ele transforma a maioria dessas amizades em seu contrário, fazendo do amigo um inimigo, excetuadas, em todo caso, suas amizades femininas, as quais ele conserva intactas, como aquela com sua Princesa Marie Bonaparte ou com Lou Andreas-Salomé.

Freud era regido por uma espécie de teoria dos substitutos: durante o verão de 1871, adolescente de quinze anos, apaixona-se por Gisela Fluss. Ele explica a seu amigo e confidente de então:

[...] parece-me que transferi para a filha, sob uma forma de amizade, o respeito que a mãe me inspira [...]. Sou cheio de admiração por essa mulher a quem nenhum dos filhos se iguala de fato (ROUDINESCO, 2014, p. 32).

Do mesmo modo, quando se apaixona por Martha, “[...] convencido em um instante de que ela seria para ele a mulher de toda uma vida” (ROUDINESCO, 2014, p. 50), vê na mãe dela a indispensável inimiga – que se adéqua bem ao papel –, e, na irmã Minna, a indispensável substituta, com quem nutre uma relação de intensa amizade. Em Paris, conhece Jeanne Charcot, filha do Mestre que, felizmente, era feia. Afinal, ele admirava tanto o pai que, se já não estivesse apaixonado por Martha, seu destino teria sido mudado (ROUDINESCO, 2014, p. 65). Assim foi durante toda a sua vida. Cada amor, cada amizade necessitava de um duplo.

Ele quis fundar uma ciência nova, contudo seu lance de gênio foi nos arrancar da banalidade do cotidiano e de nossas pequenas ou grandes neuroses, para nos elevar às dimensões trágicas desse príncipe de Tebas – glorioso e depois banido, tão hábil na arte de resolver os enigmas como o censurava Tirésias por essa habilidade e tão cego sobre o enigma de sua própria vida – ou às desse Príncipe da Dinamarca atormentado e melancólico.

Em nome de seu ideal científico, ele criticou a filosofia com a mais extrema severidade e, no entanto, aceitou a homenagem que lhe prestou Thomas Mann e que fazia dele um filho de Nietzsche e de Schopenhauer, um

[...] pioneiro de um humanismo do futuro. [...] A ciência jamais fez a menor descoberta que não tenha sido orientada pela filosofia (ROUDINESCO, 2014, p. 463-464).

Ele queria fundar uma ciência e abriu um continente novo no qual o todo do humano podia se pensar.

 

Freud e São Luís

Conforme Elisabeth Roudinesco explica para si mesma, foi com referência ao livro de Jacques Le Goff, São Luís (1966),9 que a ideia de seu Freud germinou.

Uma longa discussão amistosa sustentou sua decisão, quando ele lhe contou seu desejo de saber como vivia Freud e quem era o homem Freud. “Jacques Le Goff me havia dito: tenho vontade de saber como vivia Freud”.10

É assim que, para nossa felicidade, entramos na intimidade de Freud. Assim, nos primeiros anos do século XX,

[...] Freud exibia uma barba cuidadosamente escanhoada a cada dia por seu barbeiro. Ligeiramente encurvado quando caminhava rapidamente em suas vestimentas um pouco largas, mas sóbrias e elegantes. [...] Ele falava a língua alemã com um sotaque vienense e voz clara e grave [...]. De grande erudição e excepcional inteligência, Freud lia e falava perfeitamente o inglês, o francês, o italiano, o espanhol; escrevia o alemão em letras góticas, conhecia o grego, o latim, o hebraico, o iídiche [...]. Ele era o produto puro dessa cultura vienense, verdadeira Babel das suntuosas sonoridades europeias. Nem glutão nem gourmet, ele não recusava, entretanto, alguns prazeres da mesa. Ele detestava comer codorna e couve-flor, não apreciava os refinamentos da gastronomia francesa, mas tinha um gosto pronunciado pelas pequenas alcachofras italianas, a carne cozida, os assados com cebolas (ROUDINESCO, 2014, p. 130).

Quis o destino que Jacques Le Goff, falecido seis meses antes da publicação do livro, não conhecesse, desse filho de um judeu vindo da Galícia oriental e negociante de lãs, o apego aos deslocamentos em coche até a casa de suas pacientes, a quem ele beijava a mão, nem seu gosto pelas pequenas alcachofras italianas.

Jacques Le Goff, desde o início de seu livro, define o lugar particular da biografia, então um gênero pouco apreciado pelos expoentes do pensamento histórico contemporâneo. Ele vê nesse lugar “[...] um observatório privilegiado para refletir sobre as convenções e as ambições do ofício de historiador”. Se a abordagem de um indivíduo em toda a sua complexidade requer um profundo trabalho de pesquisa e de crítica das fontes, o caso de São Luís lhe oferece um campo de experimentação excepcional.11

O espírito da época, isto é, a evolução e as transformações dos trabalhos dos historiadores, terminou por lhe dar razão. Seu São Luís é publicado em 1996. Ora, desde 1985, começa a ser publicada nas Éditions du Seuil a belíssima História da vida privada, em cinco volumes, sob a direção de Philppe Ariès, em colaboração com Georges Duby.12 O primeiro volume, De César e Augusto a Carlos Magno é dirigido por Paul Veyne. Michelle Perrot, que, dirigindo o quarto volume, Da Revolução à Grande Guerra, recorda em sua introdução que a vida privada necessita de abordagens particulares que os métodos clássicos da história econômica e social não alcançam.

[...] [A]s sugestões advindas das análises detalhadas da micro-história foram eficazes como aquela da sociologia cultural. A tudo isso nós devemos muito; mas ainda mais, talvez, à reflexão feminista conduzida nesses últimos anos sobre o público e o privado, a constituição das esferas, as relações entre esferas, as relações dos sexos na família e na sociedade.

Assim, biografia e vida privada se tornaram objetos históricos que, no campo acadêmico da historiografia, tornado ele mesmo um campo “pulverizado”, adquiriram inteira legitimidade.

Eis por que é preciso compreender o Freud de Elisabeth Roudinesco como uma “biografia histórica”, e não como o simples relato de uma vida.

Eis por que essa biografia histórica de Freud, escrita por uma historiadora da psicanálise, foi acolhida com o maior interesse pelos historiadores.13

Todavia, diferentemente de Jacques Le Goff, que procurava alcançar o indivíduo numa época em que essa noção estava ainda em construção, Elisabeth Roudinesco nos franqueia a intimidade de Freud, que era ele mesmo um explorador do íntimo. E a exploração conduzida por Roudinesco enfrenta, como fizera Le Goff, uma dificuldade considerável: a da imensa multiplicidade das fontes que ela soube integrar.

Outra grande diferença é que, se o livro de Le Goff, “[...] não pretende ser nem ‘A França de São Luís’, nem ‘São Luís em seu tempo’, mas sim a pesquisa, modesta e ambiciosa, tenaz e constantemente recomeçada, do homem, do indivíduo, de seu ‘eu’ em seu mistério e sua complexidade”, o Freud de Elisabeth Roudinesco opta deliberadamente por lançar uma luz histórica sobre o homem e sua obra a partir de seu tempo, iluminando o nosso.

Isso se dá a tal ponto que sua introdução termina com essa declaração de princípios por meio da qual a historiadora se coloca a distância de toda leitura freudiana da vida de Freud:

Freud sempre pensou que o que ele descobria no inconsciente antecipava o que aconteceria aos homens na realidade. Eu escolhi inverter essa proposição e mostrar que o que Freud acreditou descobrir era, no fundo, tão somente o fruto de uma sociedade, de um ambiente familiar e de uma situação política cuja significação ele magistralmente interpretava para fazer dela uma produção do inconsciente (ROUDINESCO, 2014, p. 12).

 

Historiografia

A biografia de Freud escrita por Roudinesco, assim como anteriormente seu livro História da psicanálise na França, inscreve-se em um campo marcados por fortes tensões e por polêmicas violentas.

Para compreender o que está jogo nessa escrita, é preciso situá-la novamente, ainda que em breves linhas, precisando alguns de seus aspectos.

Elisabeth Roudinesco retoma e leva adiante o percurso aberto por Henri Ellenberger,14 fundador da história do inconsciente e da historiografia crítica de Freud. Sua crítica se exerce particularmente sobre a história escrita por Jones, a qual há muito tempo se tornou referência. Ellenberger adota uma concepção historiográfica muito próxima daquela da Escola dos Anais na França: sua abordagem de Freud se faz do ponto de vista da longa duração, mostrando uma dicotomia entre a história da teorização da noção de inconsciente e a de sua utilização terapêutica. A primeira começa com a intuição dos filósofos da Antiguidade, prossegue com os grandes místicos e depois com pensadores como Schopenhauer e Nietzsche e com os trabalhos da psicologia experimental de Helmholtz e Fechner. A segunda se origina na arte do feiticeiro e do xamã, passa pelos processos terapêuticos centrados no doente nos quais emergem as forças inconscientes, e vem até a psiquiatria dinâmica.

Os livros de Ellenberger foram recebidos com o maior interesse em várias partes do mundo, exceto na França: os psiquiatras lhe deram boa acolhida, mas essa abordagem do inconsciente pautada na longa duração não foi compreendida nem aceita pela comunidade psicanalítica.

Ao mesmo tempo, Elisabeth Roudinesco procura desenvolver um percurso marcado pelos trabalhos de Georges Canguilhem e de Michel Foucault, que mostram, cada um a sua maneira, que a história do saber se constitui por meio de rupturas. Enquanto para Ellenberger a história é continuísta, e não há diferenças importantes entre Janet, Freud e Jung, para Roudinesco, pelo contrário, existe um corte freudiano. Freud se apoiou sobre todo o saber clínico de sua época, mas a invenção que lhe é específica consiste em não se ater apenas a esse saber, e não simplesmente pôr em ação novas práticas terapêuticas, mas em vincular tudo isso, ao mesmo tempo, as figuras universais que ele encontra na tragédia antiga, a fim de inscrever esse material em uma problemática universalista da condição humana, e a um dispositivo conceitual que ele elaborou à custa de um incessante trabalho de questionamento e elaboração que constitui sua metapsicologia, tendo em seu âmago sua teoria das pulsões e de seus conflitos.

Assim, essa biografia histórica articula três dimensões que lhe são constitutivas: a da história da vida íntima, a de uma história escandida por rupturas e por fundações de novos campos de saber, e a da narrativa. Afinal, o ofício de historiador implica também a sua escrita.

 

Narrativa

Não fosse o risco de pôr mais lenha da fogueira dos espíritos lamentosos – como aqueles que, após a atribuição do prêmio Décembre, não temem o ridículo ao declarar que o fato de esse livro ter recebido um prêmio literário é a prova de que ele não pode pretender ser um trabalho de historiador – seria o caso de dizer que esse livro está escrito como um romance e é lido como tal. Ele proporciona um prazer contínuo e renovado, sem ceder em nada na exigência de rigor imposta pelo trabalho do historiador.

A fim de não perturbar o fio da narração, o livro se organiza em dois níveis distintos, complementares. O importante aparato crítico se encontra distribuído nas notas de rodapé e nos textos do fim do livro: bibliografia, lista dos pacientes de Freud, árvore genealógica, índice dos nomes próprios.

O relato da biografia de Freud é alimentado por múltiplas minibiografias dos amigos, dos discípulos e dos pacientes, as quais se desdobram em microbiografias dos membros de sua família, como esses cristais cuja estrutura de conjunto se repete na dos cristais que a compõem.

Esse livro é uma biografia-romance, uma biografia-epopeia em que Freud aparece como um fundador de império, como um novo Cristóvão Colombo descobridor de continente, inventando, se enganando, retificando e de novo se enganando, prosseguindo em sua rota, confiante, dividido sempre entre seu ideal científico de homem do Iluminismo e seus interesses pelas zonas obscuras da alma. Esse livro nos conduz na travessia de dois séculos, desde o nascimento de Jacob Kallamon Freud, pai de Sigmund, em 1815, até os dias de hoje. Desde as primeiras intuições de Freud, suas primeiras elaborações, até suas obras magistrais, seus combates, sua viagem à América, suas viagens apaixonadas à Itália, para onde se inclinava seu coração, até sua confrontação com a derrocada das potências centrais e com o nazismo, até seu exílio final na Inglaterra.

O começo do livro segue um estilo balzaquiano ou stendhaliano, situando os personagens em seu contexto histórico. No início de La Chartreuse de Parme,15 é preciso uma longa digressão sobre a situação militar e política depois da vitória das tropas napoleônicas, sobre as reviravoltas então ocorridas, para que apareça o marquês Del Dongo, reacionário empedernido, partisan da Áustria, compelido a acolher os soldados franceses vencedores, cujo tenente é Robert, para que enfim nasça Fabrício.

O primeiro capítulo do Freud de Roudinesco (2014, p. 15-18) começa no mesmo estilo:

Na metade do século XIX, a aspiração dos povos europeus a dispor de si mesmos inflamava os espíritos [...]. O ano 1848 inaugura uma virada. Primavera dos povos e das revoluções, primavera do liberalismo e do socialismo, aurora do comunismo. [...] Nesse mundo europeu em plena mutação, os judeus também aspiravam a um ideal de emancipação [...].

Depois de quatro páginas de descrição do contexto histórico, aparece o pai de Sigmund Freud:

É nesse mundo em plena efervescência, marcado por uma urbanização e uma germanização progressiva dos judeus habsburgos, que nasce Jacob Kallamon Freud, em Trysmenitz, vila (shtetl) da Galícia oriental, a 18 de dezembro de 1815, seis meses após a derrota das tropa napoleônicas em Waterloo (ROUDINESCO, 2014, p. 15-18).

Para além desse prólogo stendhaliano, o texto assumirá o tom lírico da epopeia para narrar, como num leitmotiv, os diferentes momentos e repercussões da aventura dessa descoberta, dessa revolução do íntimo, na qual Freud se identifica simultaneamente com a figura de Hannibal e com a do ousado navegador Cristóvão Colombo, que parte a fim de abrir nova rota marítima para as Índias e descobre um continente.

Ele adquire os tons sombrios e carregados do Sturm und Drang16 para mostrar um Freud semelhante a Jacó em luta com o Anjo durante toda uma noite, saindo ferido mas invicto, ou semelhante a Fausto se confrontando com Mefisto.

Detrás do tom da epopeia e do romantismo das Luzes, desenvolve-se, num baixo contínuo, um tom completamente diverso, que é o de uma amizade terna por Herr Professor. Esse tom é parte de uma atitude fundamental que propicia um benefício epistemológico certeiro. Trata-se de poder sustentar um olhar crítico, de mostrar os erros de Freud, tanto os que ele supera quanto aqueles nos quais ele se obstina, sem que isso ganhe um viés acusatório.

Detrás desses três tons ressoa, se apuramos o ouvido, a música de beleza lancinante e melancólica do adágio do Quinteto de cordas para dois violoncelos em dó maior, D.956, de Schubert, que Elisabeth Roudinesco transformou em leitmotiv musical do filme sobre Freud produzido por ela em 1997 para a televisão.17

 

Trabalho dos historiadores e persistência das lendas

Jacques Le Goff constata a persistência das ideias prontas, dos mitos e das lendas,18 apesar do trabalho dos historiadores. Embora já há quase um século grandes historiadores como Marc Bloch ou Georges Duby tenham mostrado que a Idade Média não foi um período de trevas, continua-se a martelar o tema da “barbárie da Idade Média”. Essa ideia é veiculada inclusive por especialistas. Dado que a religião era então determinante, faz-se do período um momento obscuro da história humana, enquanto sabemos que a Idade Média, durante a qual foram construídas as catedrais, foi um período brilhante de criação e, é preciso ousar dizê-lo, de progresso.

Contudo, quando se trata dos personagens que nos fascinam, não nos satisfazemos com a realidade quando esta se encontra estabelecida, e preferimos continuar a imaginá-la e a alimentar lendas. É assim com Napoleão, de quem se sabe com certeza que ele morreu de câncer em 1821, e não envenenado com arsênico como pretenderam alguns.

É assim também com Freud.

Ele não foi cocainômano durante toda a sua vida. Se consumiu cocaína (ROUDINESCO, 2014, p. 56) de maneira imoderada por volta de 1886, ele parou quando se torna pai.

Rebekka, a segunda esposa de Jacob, seu pai, não se suicidou (ROUDINESCO, 2014, p. 22).

Lacan inventa que ele teria declarado a Jung no barco que se aproximava de Nova Iorque “Eles não sabem que nós estamos lhes trazendo a peste!” (ROUDINESCO, 2014, p. 94, nota 2).

Contrariamente ao rumor propagado por Jung e que deu lugar a dezenas de ensaios, artigos e romances, ele não foi amante de sua cunhada Minna, nem de nenhuma outra mulher. Ele não a engravidou nem a fez abortar com a idade de... cinquenta e oito anos (ROUDINESCO, 2014, p. 196 e 297).

Ele não era ganancioso (ROUDINESCO, 2014, p. 327-328). Mantinha suas contas de maneira rigorosa, pois precisava sustentar uma família extensa, ajudando ainda a seus filhos, como ajudou Lou Andreas-Salomé e mesmo o movimento psicanalítico, ao qual destinou integralmente a soma que recebeu por sua biografia de Wilson.

A pulsão de morte e o interesse de Freud por ela, bem como o livro Além do princípio do prazer, não se originaram de seu desespero na morte de Sophie, sua filha querida. Ele já trabalhava sobre o tema já havia muito.

Ele não foi admirador de Mussolini (ROUDINESCO, 2014, p. 445).

No dia de sua partida de Viena rumo ao exílio, ele assinou uma declaração obrigatória na qual reconhecia ter sido tratado corretamente pelos funcionários do Partido, mas não acrescentou de próprio punho essa frase, que é certamente de um humor bem freudiano: “Posso cordialmente recomendar a Gestapo a todos” (ROUDINESCO, 2014, p. 503). Em todo caso, uma vez acomodado em Londres, recebendo um amigo vienense, ele o saudou com um Heil Hitler, “[...] como se consentisse enfim em pronunciar, através dessa piada lúgubre, o nome abominável do destruidor de sua obra” (ROUDINESCO, 2014, p. 506).

Houve também lendas fabricadas por Jones. Breuer, o amigo cuidado e reverenciado, foi transformado num personagem detestável e ridículo. Assim, a gravidez nervosa de Anna O. foi uma de suas invenções e

[...] se transformou, em 1953, num verdadeiro romance das origens da psicanálise, colocando às turras o ‘temeroso’ Breuer e o ‘valente’ Freud (ROUDINESCO, 2014, p. 93-94).

Houve ainda outras lendas que o próprio Freud forjara: a de sua invenção que ele retirou toda pronta de seu cérebro genial, como Minerva da coxa de Júpiter, lenda do autoengendramento da psicanálise por ele mesmo, simultânea à de seu isolamento, de sua solidão de pensador revolucionário e incompreendido. Ou aquela que ele chamará, um pouco rapidamente, de sua “autoanálise” (ROUDINESCO, 2014, p. 83-84,122 e 154-155).

 

Adeus. …tu, o amigo mais precioso, o mestre adorado

Na última página do epílogo, Elisabeth Roudinesco escreve essa homenagem póstuma a esse amigo, que ela jamais encontrou enquanto vivo e de quem ela compartilha e nos faz compartilhar a intimidade. Ela evoca a visita que faz às cinzas dele no crematório de Golders Green.

[Ele] perturbava sempre a consciência ocidental, com seus mitos, suas dinastias de príncipes, sua travessia dos sonhos, suas histórias de hordas selvagens, de Gradiva em marcha, de abutre encontrado em Leonardo, de assassinato do pai e de Moisés perdendo suas Tábuas da Lei.

Eu o imaginava brandindo sua bengala contra os antissemitas, vestindo sua camisa mais bonita para visitar a Acrópole, descobrindo Roma como um amante inebriado de felicidade, fustigando os imbecis, falando de improviso aos americanos estupefatos, reinando em seu lar imemorial em meio a seus objetos, seus chow-chows vermelhos, seus discípulos, suas mulheres, seus pacientes loucos, esperando Hitler de pé firme sem chegar a pronunciar seu nome, e eu diria que, por muito tempo ainda, ele continuaria sendo o grande pensador de seu tempo e do nosso (ROUDINESCO, 2014, p. 530).

Os rostos, os nomes e as homenagens sem mesclam e se superpõem. Um texto remete em eco a um outro com o qual ele entra em ressonância. Destaca-se a seguinte homenagem a Jacques Derrida no instante de sua morte, que seria preciso ler aqui por inteiro:

[...] [C]oncluo esse livro homenageando Jacques Derrida, que foi um amigo durante vinte anos. Último sobrevivente dessa geração,19 ele foi o último a morrer, mas também o único a ter dito adeus à maioria dos que formavam essa geração, e ainda a muitos outros, num livro20 ao qual eu gostaria de acrescentar uma espécie de pós-escrito, a fim de fazer minha homenagem ao que existe de imortal na amizade, ao que há de mais forte no fato de evocar o passado para melhor olhar o futuro: aprender a pensar em prol do amanhã, aprender a viver, compreender de que será feito o amanhã (ROUDINESCO, 2014, p. 253-254).

No final de seu livro, para dizer a Freud o adeus que se lhe diz no momento da morte, ela se apaga para dar a palavra a dois dos amigos mais próximos. No cemitério de Golders Green, onde as cinzas de Freud foram depositadas, Jones tomou a palavra em inglês:

Se há um homem de quem se possa dizer que domou a morte e que sobreviveu a ela apesar do rei das Trevas, que a ele não infundia nenhum temor, então esse homem tem o nome de Freud.

Depois dele, Stephan Zweig pronunciou em alemão uma esplêndida oração fúnebre:

Agradecemos por todos os mundos que nos abriste e que agora percorremos sós, sem guia, para sempre fiéis, venerando tua memória, Sigmund Freud, tu o amigo mais precioso, o mestre adorado [...] (ROUDINESCO, 2014, p. 514).

Roudinesco se apaga como se apagou no final de sua homenagem a Jacques Derrida, a fim de deixar a última palavra para o último sobrevivente dos quatro mosqueteiros – ela oferece a obra a seu amigo.

[...] [N]o instante da última passagem sobre a qual se conclui a trilogia, ele pronuncia algumas palavras cabalísticas que antes representaram tantas coisas sobre a terra e que ninguém, exceto esse que morria, compreendia ainda: Athos, Porthos, até a vista – Aramis, para sempre, adeus! (DUMAS, 1991, p. 850).

Surpreendente inversão da lógica das despedidas. D’Artagnan, depois de sua morte e depois de um antes desconhecido dos viventes, depois de um tempo imemorial anterior a sua morte, diz até a vista aos amigos mortos e adeus para sempre ao amigo que não morre, “[...] ao amigo que é condenado a viver eternamente, sabendo que nenhum amigo, jamais, irá lhe dizer adeus” (ROUDINESCO, 2005, p. 271.)

 

Aos “amigos da psicanálise”

Em seu livro de diálogo com Jacques Derrida,21 Elisabeth Roudinesco recorda a belíssima ideia de Sándor Ferenczi, que queria fundar uma sociedade dos amigos da psicanálise, reunindo escritores, artistas, filósofos, juristas interessados pela psicanálise (FREUD; FERENCZI, 2000). Inspirado pelo grupo de intelectuais dos quais Freud era rodeado com a Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, fundada no início do século, Ferenczi pensava que a psicanálise não devia de modo algum ser a propriedade de uma corporação de praticantes. Derrida subscreve essa ideia e ama essa expressão “amigo da psicanálise”, que

[...] expressa a liberdade de uma aliança, um engajamento sem estatuto institucional. O amigo guarda a reserva ou o recuo necessário à crítica, à discussão, ao questionamento recíproco, por vezes o mais radical. Mas, assim como a amizade, esse engajamento da própria existência, o engajamento no âmago da experiência, da experiência de pensamento e da experiência pura e simplesmente, supõe uma aprovação irreversível, o ‘sim’ atribuído à existência, ou ao evento, não somente de alguma coisa (a psicanálise), mas daqueles e daquelas cujo desejo pensante terá marcado a origem e a história. Terá também pago o preço.

Numa palavra, esse ‘sim’ da amizade supõe a certeza de que a psicanálise permanece como um evento histórico inapagável, a certeza de que é uma coisa boa, que deve ser amada, sustentada, [...] [espaço] em que se cultivam as questões mais graves [...].22

Pode-se dizer incontestavelmente que o Freud de Elisabeth Roudinesco teria seu lugar assegurado nessa sociedade dos amigos da psicanálise.

Contudo, para ser um “amigo”, é preciso ainda ser reconhecido e acolhido como tal por aqueles que se consideram os fiadores, frequentemente os administradores e mesmo os guardiães da herança de Freud. Eles vigiam zelosamente a fronteira que delimita os lugares onde a psicanálise é praticada, dita, ensinada e tomada como objeto de reflexão.

Os tempos mudaram, e hoje não há mais espaços como a revista Confrontations, criada e promovida por René Major, ou como os Entretiens de Castries, impulsionados por Henri Rey-Flaud, espaços onde jovens e não tão jovens se encontravam porque lá, inventivamente, havia encontro e debate, interesse pelo caráter problemático das relações entre a psicanálise e seu direito, entre a teoria e a prática, entre a necessidade do saber e sua inscrição institucional, entre o espaço público da psicanálise e a originalidade absoluta de seu espaço “secreto”.

Os tempos mudaram. Constata-se uma dobra fria, frequentemente sectária, do mundo psicanalítico sobre si mesmo, administrando a prova de sua incapacidade de escrever a própria história senão de maneira caótica, fragmentada, parcial, repleta de omissões, intencionais ou não, de rumores e lendas, e muito frequentemente se confunde a história com sua interpretação, pretendendo que somente pode prevalecer um conhecimento psicanalítico da psicanálise.

Assiste-se, pois, a uma disjunção cada vez mais pronunciada entre o conhecimento histórico da psicanálise que se constrói exteriormente a ela e os trabalhos psicanalíticos que se restringem aos domínios da clínica, da teoria e da articulação entre os dois. Elisabeth Roudinesco (2015, p. 89-90) retraça essa história mostrando como o método histórico e o método psicanalítico entram em contradição. Um reconstrói a verdade objetiva, com o risco de se deixar levar pela sedução do arquivo, pela obediência cega à sua positividade. O outro investiga aquilo que, desde o inconsciente, perturba uma subjetividade, partindo de um modelo psicopatológico do psiquismo humano, um modelo ameaçado pela evitação e pela denegação do valor da verdade do arquivo,23 inteiramente voltado à interpretação e aos seus riscos de excesso.

A autora mostra como essa disjunção operou no estudo dos “casos” clínicos e como depois ela se agravou a ponto de um verdadeiro divórcio após a querela dos arquivos entre 1990 e 2000, e como essa luta “terminou com uma incontestável derrota dos clínicos que não podem mais controlar os trabalhos dos historiadores” (ROUDINESCO, 2015, p. 90). Eles precisarão aceitar que sua disciplina tenha se tornado um objeto de estudo como qualquer outro, sem ter de exigir preliminarmente que o historiador tenha passado pelo divã do analista sob o princípio da análise didática.

Hoje, com o desaparecimento da psiquiatria dinâmica, substituída por uma abordagem química e comportamental do tratamento das perturbações psíquicas, e com o quase desaparecimento da psicanálise do domínio da medicina hospitalar, a escalada em potência do comportamentalismo e dos TCC, a psicanálise vê seus territórios e sua audiência se restringirem.

Essa perda se mede, em particular, pela transformação do domínio editorial: outrora radiante, a literatura psicanalítica não conhece mais do que tiragens limitadas em editoras especializadas.

Inversamente, as obras dos historiadores estão em plena expansão e encontram um sucesso crescente.

Nunca Freud foi tão estudado como hoje. Sua obra, passada ao domínio público em 2010, é cada vez mais lida, comentada, atacada, valorizada, reatualizada fora do meio psicanalítico. [...] Desejamos que um dia os clínicos e os historiadores possam enfim dialogar (ROUDINESCO, 2015, p. 90).

O acolhimento quase unânime a essa biografia histórica não se deve apenas ao interesse dedicado hoje à história, mas também àquele, sempre atual, dedicado a Freud. Eis porque não é falso pensar que, a exemplo de Diderot, que queria que se se apressasse em tornar a filosofia popular,24 essa biografia, ao nos esclarecer com essa força, essa inteligência e essa amizade, sobre o que foi a vida e a obra de Freud em seu tempo, e ao destacar a maneira como ele nos fala hoje, em nosso tempo, não pode senão contribuir para tornar ainda mais populares Freud e sua herança, fiel nisso, em tempos incertos, ao espírito do Iluminismo que o animava. E contribuir para multiplicar os “amigos da psicanálise”.

 

Referências

DERRIDA, J. Chaque fois unique, la fin du monde. Paris: Galilée, 2003.         [ Links ]

DERRIDA, J. Télépathie (1981). Psyché. Invention de l’autre. Paris: Galilée, 1980.         [ Links ]

DUMAS, A. Le vicomte de Bragelonne (1802-1870), v. II. Paris: Laffont, 1991. (Collection Bouquins).         [ Links ]

ELLENBERGER, H. F. Histoire de l’inconscient. Paris: Fayard,? 2001. (Prefácio de Roudinesco),         [ Links ]

FREUD, S.; FERENCZI, S. Correspondance, 1920-1933, les années douloureuses. v. 3, Calmann-Lévy, 2000.         [ Links ]

GAY, P. Freud, une vie (1988). Paris: Fayard, 1991.         [ Links ]

JONES, E. La vie et l’œuvre de Sigmund Freud. 3 v. Paris: PUF-Quadridge reed. 2006.         [ Links ]

LE GOFF, J. Saint Louis. Paris: Gallimard, 1996.         [ Links ]

MANN, T. Freud dans l’histoire de la pensée moderne (1929). Paris: Aubier-Flammarion, 1970.         [ Links ]

ROUDINESCO, E. Cahiers de l’Herne: Freud. Paris: Editions de l’Herne, 2015.         [ Links ]

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dictionnaire de psychanalyse. Paris: Fayard, 2006.         [ Links ]

WITTELS, F. Freud et la femme-enfant. Les mémoires de Fritz Wittels, suivi de: Sigmund Freud - l’’homme, la doctrine, l’école. Paris: PUF, 1999. (Col. Bibliothèque de la Psychoanalyse).         [ Links ]

Recebido em: 14/06/2015
Aprovado em: 07/07/2015

 

 

Sobre o Autor

Michel Rotfus
Professor de filosofia.
Ensinou filosofia no Liceu Internacional de Paris.
Administrador da Société Internationale d’Histoire de la Psychiatrie et de la Psychanalyse (SIHPP). http://www.sihpp.sitew.com/#Historique.
Colaborador de revistas como Psychologie clinique e Revue du Cercle Bernard Lazare.
Membro do comitê de redação da revista Le droit de vivre, da Liga Internacional Contra o Racismo e o Antissemitismo.
E- mail: michel.rotfus@orange.fr

 

 

1 “Depois de múltiplos aborrecimentos administrativos e sem ter jamais lecionado, já que optara pela carreira de médico municipal, Freud obtém enfim, em fevereiro de 1902, a nomeação tão desejada de professor extraordinário, o que significava que seus trabalhos começavam a ser reconhecidos. A partir de então, ele será Herr Professor” (ROUDINESCO, 2014, p. 123).
2 “Les rendez-vous de la Barge”, péniche-café, em 3 dez. 2014.
3 WITTELS, F. Freud et la femme-enfant. Les mémoires de Fritz Wittels, suivi de: Sigmund Freud - l’homme, la doctrine, l’école. Paris: PUF, 1999. (Col. Bibliothèque de la Psychoanalyse).
4 Ver meu artigo que mostra o caráter escandaloso e derrisório de livro de Goce Smilevski, La liste de Freud: http://blogs.mediapart.fr/blog/michelrotfus/071013/goce-smilevski-la-liste-de-freud-poetiser-auschwitz-dit-il.
5 Kurt Eissler consagrou sua vida à constituição dos arquivos da LoC. Contudo, ele pôs em prática uma política de retenção desastrosa, que favoreceu uma historiografia tornada quintal do legitimismo psicanalítico e, além disso, como sublinhou Peter Gay, “[...] a defesa do segredo [...] só pôde favorecer a proliferação dos rumores mais extravagantes” (ROUDINESCO; PLON, 2006, p. 457-458).
6 Noite de apresentação do seu livro, em 12 fev. 2015, no Espace des Femmes Antoinette Fouque, 35 rue Jacob, Paris.
7 Seminário em que ela continua seu ensino na École Normale Supérieure da Rue d’Ulm.
8 Ela se refere a MANN, T. Freud dans l’histoire de la pensée moderne (1929). Paris: Aubier-Flammarion, 1970. p. 107-149.
9 Para a edição brasileira, ver: LE GOFF, J. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 1999. (N.T.).
10 Journal du Dimanche, 14 sept. 2014. Entrevista concedida a Marie-Laure Delorme.
11 Um artigo publicado em 1981, na revista L’histoire, n. 40, intitulado Saint Louis a-t-il existé? havia inaugurado uma série de estudos e de publicações.
12 Publicados em “L’univers historique”, os cinco volumes foram reeditados em livro de bolso na coleção Point histoire em 1999, mas sem a rica iconografia da primeira edição.
13 Foi assim que Elisabeth Roudinesco foi convidada aos Rendez-vous de l’Histoire havidos em Blois3 de 9-12 oct. 2014. http://www.rdv-histoire.com.
14 Elisabeth Roudinesco é a responsável pela obra de Ellenberger na França, tendo assegurado a publicação de seus dois principais livros, Histoire de la découverte de l’Inconscient (Fayard, 1994) e Médecines de l’âme. Histoire de la folie, Essais d’histoire de la folie et des guérisons psychiques (Fayard, 1995), os quais ela prefaciou.
15 Na edição brasileira, STENDHAL: A cartuxa de Parma. São Paulo: Difel, 1961. (N.T.).
16 O Sturm und Drang (tormenta e ímpeto) foi um movimento literário romântico alemão da segunda metade do século XVIII. Seus principais expoentes foram Goethe e Schiller. (N.T.).
17 Sigmund Freud. L’invention de la psychanalyse, em colaboração com Élisabeth Kapnist, 1997. France 3 / ARTE.
18 Entrevista concedida ao Figaro.fr e publicada em 16 out. 2008.
19 O livro de Roudinesco, Philosophes dans la tempête (Fayard, 2005), é uma homenagem aos filósofos dessa geração com dos quais ela compartilhou os caminhos, o pensamento e, em alguns casos, a amizade.
20 DERRIDA, 2003.
21 DERRIDA, J.; ROUDINESCO, E. De quoi demain… Dialogue. Fayard et Galilée, 2001, cap. 9.
22 De quoi demain… Dialogue, p. 271.
23 Remeto o leitor curioso ao último número dos Cahiers de l’Herne consagrado a Freud e publicado em 2015. Freud en son temps et dans le nôtre, 2014, p. 50. Verifica-se nesse volume a negação da história que faz com que uma das autoras, e não das menores, faça de Freud um psiquiatra (sic) neto de um rabino (sic).
24 “Apressemo-nos em tornar a filosofia popular”, afirma Diderot em 1753, em Pensées sur l’interprétation de la nature. G. F. 2005.

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