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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.38 no.71 Belo Horizonte June 2016

 

CLÍNICA PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA

 

O sujeito contemporâneo, o mundo virtual e a psicanálise1

 

The contemporary subject, the virtual world and psychoanalysis

 

 

Marília Brandão Lemos de Morais Kallas

ICírculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tomando o mundo virtual como uma janela ou vitrine para evidenciar as transformações no modus vivendi do sujeito contemporâneo, a autora aborda, à luz da psicanálise, as novas formas de mal-estar desse sujeito, tendo como pano de fundo as mudanças relativas à temporalidade, à espacialidade, ao pensamento e à linguagem. E traz a necessidade de se fazer uma releitura da clínica psicanalítica através dos conceitos da pulsão de morte, do trauma e da angústia.

Palavras-chave: Sujeito contemporâneo, Mundo virtual, Mal-estar, Novos sintomas, Temporalidade, Espacialidade, Pensamento, Linguagem, Pulsão de morte, Trauma, Angústia.


ABSTRACT

In considering the virtual world as a window or show case in which transformations of the contemporary subject’s “modus Vivendi” can be witnessed, the author approaches the subject’s new forms of discontent from a psychoanalytic point of view, having, as a back drop, changes relative to temporality, spatiality, thinking and language. The author emphasizes the importance of rereading psychoanalytic clinical work through the lenses of the concepts of the death drive, trauma and anxiety.

Keywords: Contemporary subject, Virtual world, Discontent, New symptoms, temporality, Spatiality, Thinking, Language, Death drive, Trauma, Anxiety.


 

 

Vivemos num mundo das transformações socioculturais, políticas, econômicas, morais e científicas ocorridas na sociedade e estamos presenciando uma mutação histórica nos modos de ser e estar no mundo. Transformações que vêm se engendrando há algumas décadas e que, “não por acaso” (SIBILIA, 2014), culminaram no desenvolvimento das novas tecnologias que refletem o modo de ser do indivíduo e ao mesmo tempo, provocam mais mudanças. A subjetividade do homem contemporâneo é influenciada por essa nova realidade.

O conceito de intimidade, de espaço público e privado mudou. Antes, protegidos pelo entre paredes de nosso quarto, líamos, escrevíamos nossos diários, nossos poemas e os trancávamos no espaço mais protegido do olhar alheio, como uma preciosidade que só a nós pertencia. O espaço privado era bem diferenciado do espaço público.

Hoje escrevemos os diários em blogs, expomos nossa intimidade no Facebook, exibimos imagens das situações mais banais no Instagram, montamos um espetáculo de nós mesmos e buscamos o olhar do outro e sua aprovação por meio de curtidas. A intimidade tem se deixado infiltrar pelas redes.

Uma vitrine ou janela para evidenciar as mudanças do modus vivendi contemporâneo seria o mundo virtual, propiciado pelas novas tecnologias digitais e pela internet. Contemporaneidade aqui se refere à pós-modernidade ou modernidade tardia, ou hipermodernidade, termo preferido por Lash (1983) para se referir às últimas décadas do século XX e ao século XXI.

Estamos diante de uma tela de computador o tempo todo, em comunicação simultânea com outras pessoas através dos smartphones, em redes digitais que se infiltraram pelos muros e que mudaram as referências espaciais para sempre. O espaço se amplificou. Os celulares se incorporaram às nossas mãos e ao nosso cotidiano. Temos necessidade de nos mantermos conectados e ligados. Cada vez mais é preciso se tornar visível e estar on-line.

As pessoas postam em redes sociais o que consideram o melhor de si, assim como são capazes de expressar, em perfis falsos ou não, o lado mais preconceituoso e agressivo de seu ser. E hoje também é cada vez mais comum a exposição pública da morte nas redes sociais.

Aos poucos, o véu que escondia a dor da perda e o luto passou a ser falado, compartilhado e exposto em fotografias e memoriais on-line. O sofrimento também é curtido através da internet.

O ciberespaço propicia que pessoas anônimas postem e compartilhem seus pensamentos, suas ideias, músicas, dotes artísticos, vídeos que se tornam virais, que autores publiquem seus livros, o que seria impossível ou muito difícil há alguns anos atrás e que desconhecidos tenham visibilidade e se tornem celebridades em um curto espaço de tempo, revelando talentos.

Os laços sociais foram marcados e revolucionados pelas novas tecnologias. Sem querer emitir juízos de valor, mas apenas constatando, através da leitura de trabalhos a respeito (YOUNG, 2011), podemos dizer que a internet é um meio estimulante, psicoativo, que opera com um alto grau de imprevisibilidade e novidade.

Protegidos pelo anonimato ou pela percepção de ser anônimo, os usuários se arriscam mais e ousam procurar e vivenciar fantasias on-line, a que não se permitiriam presencialmente, fantasias que são bem aceitas no ciberespaço.

As pessoas se sentem mais desinibidas e são capazes de experimentar situações em que não se arriscariam na vida real. Há também menor percepção de responsabilidade devido a essa sensação de anonimato e privacidade.

Existe também um estado de imersão e dissociação de consciência, que envolve sensações variadas como a perda da noção de tempo, esquecimento de frações de tempo, estar num estado de consciência alterado semelhante a um transe, encarnar, ou melhor, vivenciar uma outra persona diferente do seu Eu, sentir uma linha tênue que separa uma realidade virtual de uma real.

A internet cria um espaço intermediário entre a realidade (do outro lado do computador existe uma pessoa real) e a imaginação (pessoa que eu crio e idealizo conforme meus desejos).

Na internet acontece uma ausência de adiamento de gratificações, o que a torna uma experiência quase mágica de ter um pensamento, um desejo, uma curiosidade e simplesmente dar um clique e ver aquilo transformado em realidade.

A possibilidade de instantaneamente acessar qualquer coisa e obter gratificações para impulsos sexuais, jogos, curiosidades intelectuais, de comunicação ou de consumo torna a internet irresistível.

O limiar a ser atravessado entre o impulso e o desejo até a ação (o que é visto, baixado, jogado ou comprado on-line) é muito reduzido, o tempo entre escolher e clicar é muito curto e a gratificação é imediata.

A necessidade de esperar e/ou modular nosso desejo está ausente quando usamos a net. Aí reside um de seus maiores perigos, o que pode transformar o seu uso em abusivo ou viciante. Hoje já se fala em dependência de internet como uma entidade clínica a ser abordada de modo semelhante a outros tipos de dependência (GREENFIELD, 2011).

O ciberespaço se presta também como enfrentamento de situações de medo e inibições para pessoas tímidas e adolescentes se arriscarem através dela. Afinal aqui se pode errar e ter outra chance. E caso haja algum aborrecimento inesperado, é só deletar o outro ou desligar o computador. Ela nos dá uma sensação (imaginária) de estar no controle da situação. Serve também como evasão, escape das vidas rotineiras e fuga de sentimentos de angústia e tristeza.

Novos relacionamentos se formam no mundo virtual e estão intimamente imbricados com a vida real. As pessoas se conectam sexual e afetivamente no ciberespaço e a vida on-line e off-line se misturam definitivamente.

No mundo virtual há quebras de hierarquias, que definem os limites claros e os papéis nos relacionamentos no mundo real. Lá, na virtualidade, todos partem em condições de igualdade. É um espaço democrático.

Como pode ser acessada 24 horas por dia de qualquer lugar em que se esteja – do trabalho, da escola, de casa, da rua – associada a aparelhos móveis e conexões de alta velocidade, o baixo custo e o fácil acesso tornam os indivíduos uma parte da internet em si. Nós de uma vasta rede impessoal.

Não há fronteiras nos conteúdos da internet. Nas outras formas de mídia como jornais, TV ou livros e revistas há sempre marcadores do tempo com início e fim claros. Na internet jamais terminamos alguma coisa, sempre existe outro link, outro site, outra imagem a ser vista, outra música a ser baixada.

A internet hoje é o maior repositório de informações jamais visto na civilização humana. Essa possibilidade interminável de conteúdo, informações incompletas, essa atenção flutuante, essa alteração de consciência tudo isso é altamente estimulante.

Hoje a internet e as novas tecnologias digitais tornaram possível o ingresso em um universo paralelo onde, além das redes sociais, comunidades, salas de bate-papo, jogos on-line, existem os MUDs (Multi users domains), que são mundos virtuais sitiados, por exemplo, o Second Life, mundo virtual paralelo, que introduz o indivíduo num espaço em que, através de um avatar, ele pode viver aspectos múltiplos de sua identidade ou representar papéis distantes da sua noção de Eu.

Nesses mundos, os residentes fazem amizades, se apaixonam, criam comunidades, vão à igreja, a concertos, compram e vendem bens virtuais. As possibilidades são incontáveis e disponíveis numa tela de computador.

O antropólogo Tom Boellstorff (2008) no seu livro Coming of Age in Second Life, onde traz a antropologia para os universos paralelos, diz:

A cultura em Second Life é profundamente humana. Não é apenas que os mundos virtuais emprestam suposições da vida real; mundos virtuais nos mostram como, debaixo de nossos próprios narizes, nossa vida “real” tem sido virtual desde o começo (BOELLSTORFF, 2008 apud OTERO; FUKS, 2012).

Isso evidencia alguns aspectos em que os seres humanos sempre foram virtuais e que mundos virtuais em sua rica complexidade se constroem sob a aptidão humana para a cultura.

Então nos perguntamos como é a subjetividade deste novo sujeito que está se formando com as recentes tecnologias digitais e com as transformações socioculturais, políticas, econômicas, morais, científicas deste novo mundo e de como a psicanálise, criada por Freud na modernidade, se depara com estas transformações e com as novas formas de mal estar e sofrimento deste sujeito do século XXI.

Se uma das características do inconsciente, segundo Freud, é ser estruturado segundo as leis do processo primário, onde passado, presente e futuro encontram-se enlaçados pelo fio condutor do desejo e se para Lacan o sujeito do inconsciente é “aquilo que representa um significante para outro significante”, como fica a questão da temporalidade na psicanálise quando vamos falar da contemporaneidade?

Em Psicologia de grupo e a análise do ego Freud ([1921] 1996) afirma que, a experiência subjetiva, objeto privilegiado da experiência psicanalítica, implica a referência do sujeito ao outro e à linguagem, à sua determinação simbólica. Na esfera coletiva, a vida social apresenta unidades cada vez mais amplas, submissas às mesmas leis que marcam o indivíduo.

Não existe separação entre psicologia individual e coletiva e para a psicanálise indivíduo e sociedade estão intimamente imbricados. O inconsciente não está no registro do indivíduo, mas para além do mesmo, incluindo o campo histórico e social (BIRMAN, 04 jun. 2014).

Antes disso, no Projeto para uma psicologia científica, Freud ([1950/1895] 1985) descreve a experiência de satisfação e a experiência de dor, em que o bebê humano desamparado necessita do outro, o ser humano experimentado para sobreviver, e que desde o princípio a criança está nas mãos do outro, o outro estrangeiro (Nebenmensch) que ouve o seu grito e a atende.

Freud identificou esse outro como uma dobradiça entre o sujeito individual e o sujeito coletivo. E Lacan, ao retomar esses conceitos, introduziu os termos “sujeito” e “Outro”.

Em Função e campo da fala e da linguagem, Lacan ([1953] 1998) diz que o inconsciente é transindividual e designou a transindividualidade como uma propriedade primordial do inconsciente.

Freud reservou aos psicanalistas o dever de agregar à prática clínica do um a um a função de críticos da cultura que testemunham. Tão importante é essa função que Lacan, nesse mesmo ensaio, adverte:

Que antes renuncie a isso [à clínica psicanalítica], portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas, quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico. Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas (LACAN, [1953] 1998, p. 322).

Vamos, pois, falar de contemporaneidade. O mundo perdeu a referência simbólica do pai. Vivemos numa sociedade de risco, onde as figuras paterna e do soberano já não protegem mais. Ninguém conta mais com proteção do Estado, e o homem tem que aprender a viver de forma desamparada e a correr riscos.

Saímos de uma relação de verticalidade para uma horizontalidade em rede. A sociedade pós-moderna é caracterizada por fragmentação, falta de unificação e simbolização, que deixaram as pessoas entregues às suas próprias intensidades, sem controle, entregues a excessos de excitações corpóreas sem encontrar mediadores simbólicos que delas deem conta, excitações que as ultrapassam e são descarregadas no corpo ou na ação.

Na modernidade, acreditávamos no futuro: era só agir no presente e esperar que no futuro os nossos sonhos fossem alcançados.

No mundo de hoje nos deparamos com os inúmeros caminhos, com a desorientação, com as incertezas. As referências se esvaem num eterno presente. Já não existe mais o ‘a longo prazo’.

No contexto atual o sujeito se relaciona com o tempo através da chamada presentificação, ou seja, ele se encontra em suspensão temporal. Essa temporalidade pode ser compreendida através do discurso literal, que se trata de uma narrativa descritiva em que uma cena não considera uma anterior nem remete a uma posterior. Não acontece uma continuidade temporal. As palavras têm um único sentido, e essa fala não é carregada de ambiguidade nem de enigmas (BIRMAN, 2014,You Tube).

Segundo Birman (2001), a subjetividade no início da modernidade era pautada pela noção de interioridade. Hoje essa noção cedeu lugar à exterioridade e ao autocentramento, quando o olhar do outro é tomado ‘ao pé da letra’.

O mal-estar é constitutivo da psicanálise. E de acordo com Birman (2014), na contemporaneidade ele se inscreve positivamente em três registros psíquicos: o do corpo, o da ação e o das intensidades. Esses três registros podem aparecer combinados ou não, em um mesmo indivíduo.

Por outro lado, outros registros antropológicos tendem a ser negativados na descrição desse mal-estar contemporâneo, que são as categorias do pensamento e da linguagem que se tornaram empobrecidas, enquanto assumiam anteriormente, há poucas décadas, uma posição privilegiada.

O corpo é o grande cenário onde o mal-estar se expressa. A saúde se transformou no nosso bem maior e é em função do corpo que se vive. O estresse é a palavra-chave do nosso tempo. Assim como o pânico e as manifestações psicossomáticas.

Em relação à ação, formas ostensivas de agressividade, violência e criminalidade se impõem, assim como as ações fracassadas, que são as chamadas compulsões, por drogas, comida, consumo, sexo, jogos, internet. A compulsão é uma modalidade do agir, que se caracteriza pela repetição, pois, sendo uma ação fracassada, o alvo nunca é alcançado.

O terceiro registro do mal-estar na contemporaneidade se daria no campo das intensidades. As individualidades do mundo atual estariam marcadas pelo excesso que as impulsiona à ação. Caso não se descarreguem pela ação, serão invadidas pelo excesso que as inundará de angústia.

O excesso se extravasa no psiquismo como humor e pathos, antes de se deslocar para o campo das ações. O excesso é sempre a irrupção de algo que escapa ao controle e à regulação da vontade. Percebemos, então, a presença da angústia do real e da sua consequência, o efeito traumático.

A subjetividade fica ante algo que a ultrapassa e do qual não pode dar conta. Deslocamo-nos do registro das intensidades para a ação e as ações coarctadas, que são as compulsões. Em relação aos sentimentos, as distimias e depressões se impõem.

Os registros do pensamento e da linguagem estão empobrecidos na experiência contemporânea. Se o mal-estar contemporâneo se produz nos registros do corpo, da ação e das intensidades, isso revela uma suspensão da ordem do pensamento.

A incidência dos excessos sobre tais registros do psiquismo produz um curto-circuito do pensamento, que não pode funcionar fluentemente, que se paralisa pela própria impotência e pelo vazio que passa a ocupar o psiquismo (BIRMAN, 2014).

No mal-estar atual, o modelo conflitual de subjetividade, que aparece no texto freudiano como conflito, desejo e interdito, tende ao desaparecimento. Isso porque é através do pensamento que se superaria o mal-estar produzido pelo conflito psíquico.

As pessoas hoje se queixam de algo que as incomoda no corpo e não fazem disso uma questão. As intensidades as esvaziam de palavras. Na ausência de implicação subjetiva, de indagação, de questionamento, o registro do pensamento se mostra pela sua ausência e suspensão (BIRMAN, 2014).

Disso decorre um empobrecimento da linguagem, que perde o seu poder metafórico, sendo entremeada cada vez mais por imagens. O discurso assume uma direção horizontal, sem os cortes que poderiam lançá-lo na verticalidade. A linguagem e o discurso assumem uma aparência metonímica e não mais metafórica, se sustentando apenas em um dos eixos da linguagem.

A presença da metonímia na ordem discursiva mostra a presença de um discurso sem rumo, sem ser capaz de cortes significativos que o lancem na ordem da metáfora. Assim, o desejo tende a uma descarga de ação imediata não se constituindo como lugar de tensão e polo de conflitos, como acontecia na modernidade. Embora isso ocorra com pessoas escolarizadas, que mantém um bom domínio da língua, a linguagem perde seu valor simbólico.

Essa ausência de cortes metafóricos no discurso metonímico demonstra a espacialidade da experiência, que não alcança uma sequência temporal, na medida em que o desejo a vau, se esvazia no aqui e agora, na pontualidade da descarga, impedindo uma temporalização da experiência (BIRMAN, 2014).

A linguagem, ainda segundo Birman (2014), se transforma perdendo cada vez mais suas marcas simbólicas e se esvaziando na sua dimensão de poiesis, de criação, cedendo lugar às imagens. A linguagem instrumental passa a dominar progressivamente o psiquismo e apresenta dificuldades de regular as intensidades e os excessos. E as imagens capturam o desejo subtraindo-lhe o sentido.

Nessa situação, as pessoas apresentam um discurso por imagens, uma narrativa que nos remete ao tempo presentificado, aquela cena falada se apresenta no instante em que é descrita, não tem um enredo, um passado, não se associa a nenhum pensamento ou ideia. A linguagem literal domina a cena psíquica e não pode mais regular as intensidades e os excessos.

Quando nos referimos à organização psíquica, existem diferentes modalidades de temporalidade: a noção de posteridade, presente na primeira tópica freudiana e a presentificação, apresentada a partir do trauma e da pulsão de morte, de (FREUD, [1920] 1996).

Nesse contexto, percebemos que a preponderância da literalidade da clínica atual não torna a psicanálise ultrapassada, mas traz a necessidade de se fazer uma releitura da clínica a partir do trauma, do choque traumático, da angústia e da pulsão de morte. A prevalência da narrativa literal na clínica não coaduna com o modelo de subjetividade embasado no conflito psíquico, mas combina com o contexto da atualidade (MONTES, 2012).

Em Freud podemos dizer que o texto Além do princípio do prazer, de 1920 inaugura um tempo imóvel, presentificado através da compulsão à repetição e do choque traumático. A dualidade pulsional – com a pulsão de vida, agregadora, e a pulsão de morte, desagregadora – traz a novidade que o fator traumático rompe com a percepção temporal e instaura um tempo único que somente se repete.

O sujeito é invadido por uma quantidade insuportável de energia que rompe as barreiras de proteção psíquicas, intensidade que não será transcrita para a ordem psíquica da representação.

A dificuldade dos pacientes atuais de associar livremente leva alguns analistas a dizer que os pacientes têm dificuldades de representar. O texto do paciente não flui, não entra em um fluxo temporal; é parado, restringe-se ao presente.

Os chamados “novos sintomas”, diferentes dos sintomas freudianos clássicos, se mostrariam mais avessos a interpretações e menos susceptíveis de se dialetizar. O sintoma clássico é uma expressão disfarçada do desejo.

Os novos sintomas seriam uma expressão mais direta das pulsões. Os sintomas ditos contemporâneos estariam relacionados a esse empobrecimento da capacidade de simbolização e de associação por parte do sujeito, remetido ao tempo presentificado da compulsão e à narrativa literal do esvaziamento subjetivo, justificados pelo contexto social em que vivemos (MONTES, 2012).

Torna-se necessário escutar a literalidade da palavra e do corpo dos sujeitos que nos procuram. Sabemos que o psiquismo está além do campo representacional. Ele inclui os signos de percepção, as impressões sensíveis, como nos diz Freud na carta 52 a Fliess, e a memória corporal.

Nesse sentido, a transferência envolve a repetição de impressões traumáticas. Se a escuta do analista estiver apenas a privilegiar o conflito psíquico e o recalque, não será possível perceber aquilo que se repete.

Temos que estar abertos também a outro tipo de escuta que inclui o corpo, o gesto, o tom de voz, o olhar, além das palavras. A narrativa literal envolve esses registros e já pressupõe um primeiro momento de simbolização (MONTES, 2012).

A palavra hoje se presta menos ao deciframento de enigmas- e – muito mais – ao ciframento do gozo (FORBES, 2013) a marcar o indizível com a letra, a palavra-ato, à semelhança da palavra poética que toca o indizível e produz efeitos simbólicos.

“Dai palavras à dor: a tristeza quando não fala, murmura no coração que não suporta mais até que o quebra”, diz Sheakspeare em Macbeth.

E além de possibilitar o encontro de uma nova palavra para o mal-estar do sujeito, a clínica psicanalítica busca mais. Busca a consequência da palavra: que o analisando se responsabilize pelo seu dito.

Pensar e discutir as novas formas de mal-estar do sujeito na contemporaneidade contribui para referendar o lugar da psicanálise no mundo de hoje. Precisamos dirigir nosso olhar para a cultura e para o que ela produz, compreendendo cada sujeito como único e a clínica psicanalítica enlaçada nessa cultura.

Nesse contexto podemos dizer que o sujeito freudiano está, com sua marca singular, sempre referido a seu tempo e que continua contemporâneo. Afinal a psicanálise se ocupa de um sujeito constituído a partir de uma relação com o outro, imerso na cultura.

Nós, a nossa geração de sujeitos forjados pela modernidade e com o privilégio de viver no século XXI, este período de metamorfoses socioculturais, políticas, econômicas, morais, científicas, temos o dever de continuar a construção da obra inacabada da psicanálise na torre de Babel das diversas línguas: os saberes contemporâneos. Tal qual em Barcelona a catedral inacabada da Sagrada Família, de Gaudí, segue inexorável, a erguer pelos ares, pedra sobre pedra, o estilo inconfundível de seu criador.

Tudo que foi dito aqui contou com a nossa intenção maior de formular perguntas, e não apenas de procurar respostas. E aponta para a incompletude da construção de nosso saber, no seu encontro sempre faltoso com o Real.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E-mail: mariliabrandao@uol.com.br

Recebido em: 01/12/2015
Aprovado em: 11/03/2016

 

Sobre a autora

Marília Brandão Lemos de Morais Kallas
Psiquiatra. Psicanalista. Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
Autora do livro Psicanálise e contemporaneidade (São Paulo: Editora 24 horas, 2010), publicado também em espanhol pelo Editorial Croquis, Buenos Aires, 2011.

 

 

1 Texto apresentado na Plenária da XXXIII Jornada de Psicanálise do CPMG Psicanálise e contemporaneidade: o mundo virtual em questão, em 03 out. 2015.

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