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Psicologia Clínica
Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.21 no.2 Rio de Janeiro 2009
SEÇÃO LIVRE
Transmissão cultural entre pais e filhos: uma das chaves do processo de imigração
Cultural transmission between parents and their children: one of the keys for the immigration process
Ivy DaureI; Odile Reveyrand-CoulonII
IDoutora em Psicologia Clínica e Professora visitante na Universidade de Bordeaux.
IIProfessora Titular na Universidade de Bordeaux
RESUMO
Este artigo apresenta resultados parciais da pesquisa sobre a transmissão cultural na construção das identidades do imigrante e de seus descendentes. Nove famílias de origem brasileira, portuguesa e italiana participaram deste trabalho em encontros individuais e familiares, mediados por entrevistas estruturadas e semiestruturadas, para verificar de que maneira a cultura de origem dos pais integra o cotidiano dos filhos na França, analisando-se o impacto desta transmissão cultural na construção identitária. Os resultados evidenciam que os filhos de imigrantes vivem a situação de dupla cultura como valor a preservar e se inscrevem mais facilmente na vida do país de imigração, quando a cultura de origem está presente no cotidiano de sua educação em paralelo com a do país de acolhimento.
Palavras-chave: transmissão; pais; filhos; imigração; cultura.
ABSTRACT
This paper presents partial results of a doctoral research on cultural transmission and the construction of identity of immigrants and their descendents. Nine families of Brazilian, Portuguese and Italian origin participated in this study, through individual and family meetings mediated by structured and semi-structured interviews, aiming to verify how parental culture of origin influences children's daily lifestyle in a foreign country and to analyze the impact of cultural transmission on the construction of identity among children of immigrants. Results show that children of immigrants appraise their "double-culture" situation as a value to preserve and integrate more easily to the country of immigration when the culture of origin is present in their day-to-day and parallel to that of the host country.
Keywords: transmission; parents; children; immigration, culture.
INTRODUÇÃO
O movimento imigratório existe desde que os homens se organizaram em grupos e, mais tarde, em sociedade. Desse modo, a alternativa da imigração faz parte da construção de um grupo social.
Atualmente, a sociedade ocidental se depara com uma pluralidade cultural cada vez mais forte. O fenômeno migratório e as suas consequências são descritos pela sociologia e pela antropologia, tornando-se tema incontornável nos estudos e nas pesquisas na área da psicologia clínica, cada vez mais submersa na problemática da população de origem multicultural.
Autores como Maltone e Lafage (1993) e Fontaine (2002) falam da imigração como a decorrência de um desejo de progressão social e econômico. Entretanto, a liberdade de partir que o imigrante exerce quando vai morar em outro país não significa que a experiência de deixar a pátria não seja dolorosa. Isso porque o imigrante abandona o mundo conhecido e de códigos previsíveis, que ele domina, pelo mundo do desconhecido, do não controlável, que é o país de acolhimento.
Zohra Guerraoui (2001) comenta que esta ruptura implica uma fragilização das representações e das referências usuais do sujeito, posto que tudo o que até então era "natural" na sua maneira de perceber e agir no mundo deixa de sê-lo, e o sujeito perde em segurança, ganhando em vulnerabilidade.
A interação entre sujeito e cultura contribui para a construção da personalidade; neste sentido, a personalidade é influenciada pelo meio sociocultural no qual o sujeito evolui, pois esta se configura no resultado das trocas entre o mundo coletivo e o universo particular de cada um.
As pessoas que não viveram um deslocamento migratório experimentam a família, a escola e as diversas instituições socioculturais de seu próprio país como lugares de transmissão e de preservação das tradições. Contudo, para os imigrantes e seus descendentes, a família passa a ser, no melhor dos casos, a unidade representativa das particularidades sociais e das tradições do país de origem, além de único espaço de transmissão cultural.
Em geral, um movimento circular de alimentação e de retroalimentação se produz naturalmente entre o sistema familiar e o sistema sociocultural. Todavia, para as famílias imigrantes, os mitos, os rituais, as regras e normas que encontram fora da pátria não são necessariamente as mesmas que as do país de adoção.
Assim, não existe reforço dos comportamentos familiares por parte da sociedade de adoção, que pode comunicar mensagens diversas, inclusive contraditórias, aos sujeitos em relação àquelas enviadas pela família, provocando a fragilização e o desequilíbrio do sistema, o que pode ser nefasto para os filhos de imigrantes, para seus pais e para a relação entre eles.
A espiral de contradições entre a cultura do país de origem e a do país de adoção obriga a família a construir uma série de estratégias de adaptação que serve para reduzir tensões, além de moderar os conflitos e a desorganização provocados pelas diferenças culturais; poderíamos considerar tais estratégias como mecanismos de defesa contra a assimilação.
Na concepção de Guerraoui e Troadec (2000), a assimilação está relacionada à aculturação: "A assimilação necessita uma desculturação, ou seja, um 'esquecimento' de seus próprios traços culturais originais, 'anulação' de todas as diferenças com relação ao outro para alcançar uma grande semelhança desejada ou imposta" (Guerraoui & Troadec, 2000: 16; tradução nossa).
Guerraoui (2001)1 entende que o exercício dessas estratégias é bastante doloroso, complexo, conflitivo e repleto de oscilações intra e interpessoais. O autor destaca quatro principais respostas do sujeito face ao impasse multirreferencial no qual se encontra:
- O sistema pode se fechar, pois o exterior é percebido como perigoso. Idealização do país de origem.
- O sistema pode optar pela dissociação total entre a sua imagem e a representação do país de origem. A cultura de origem é rejeitada em detrimento de uma supervalorização da cultura do país de adoção.
- A família dissocia o comportamento dos seus membros: no espaço público, utiliza os códigos da sociedade de adoção, mas emprega os códigos do país de origem na esfera privada.
- O grupo familiar compõe: guarda alguns valores da sociedade de origem e substitui outros pelos da sociedade de adoção.
Do nosso ponto de vista, a última resposta é a que testemunha melhor a elasticidade e a articulação mais apropriada entre o novo e o antigo, uma vez que assume também a continuidade entre as duas culturas, as duas origens da família, correspondendo à noção de integração.
Integração no sentido que lhe é atribuído por Camilleri e Vinsonneau (1996), como a "posição correlativa a todas as combinações culturais das quais o sujeito estima ter eliminado as tensões devidas à diferença com relação à sociedade de instalação sem abandonar suas antigas referências" (Camilleri & Vinsonneau, 1996: 55; tradução nossa).
A transmissão entre pais e filhos exerce papel fundamental na negociação entre esses dois universos culturais durante a construção de um espaço comum por parte do sujeito, onde ele possa circular, adicionando as duas realidades culturais.
Neste sentido, a compreensão da maneira como cada membro do sistema familiar vai assumir seu papel e suas funções com relação à história da imigração, o modo de interação possível entre pais imigrantes e filhos nascidos no país de adoção, parece-nos indispensável na análise do fenômeno migratório e do impacto deste evento na construção identitária do sujeito que realiza a viagem em direção a um país de adoção, tal como na de seus descendentes.
A IMIGRAÇÃO
Apoiamo-nos na compreensão de Grinberg e Grinberg (1986), que descrevem o movimento migratório em três etapas:
- A decisão de imigrar, com o anúncio da viagem aos familiares e aos amigos, os projetos associados à imigração e a tonalidade emocional em torno da imigração.
- A viagem imigratória em termos de passagem entre os dois mundos, as emoções da viagem e os eventuais encontros e descobertas.
- A chegada no país de adoção, as emoções despertadas nesses primeiros momentos, as perspectivas, as dificuldades que se apresentam e o contato com os nativos.
Cada uma destas etapas tem valor simbólico importante e se caracteriza em manifestações emocionais e comportamentais variadas, que expressam as tensões provocadas pela imigração e pelo sentimento de "não pertencimento", ou seja, o imigrante sente que não faz mais parte do mundo que deixou para trás, mas ainda não pertence ao mundo que está por descobrir.
Em virtude disso, a imigração pode, em alguns casos, provocar certa fragilização identitária do imigrante, porém, em outros, promover o efeito contrário, funcionando como evento que revaloriza o sujeito da imigração e reforça positivamente sua imagem.
Na maioria dos casos que pudemos encontrar durante esta pesquisa, o projeto de partir de seu próprio país é motivado e justificado pelas dificuldades financeiras encontradas no país de origem ou pelo desejo de melhorar as condições de vida de sua família. É possível que esteja associado também à sede de conhecimento ou à busca de novos horizontes, por certa curiosidade voltada a outras culturas, outros países.
A perspectiva migratória, em casos como os citados acima, responde a uma necessidade interna de mudança, à procura de um mundo novo, que vai encontrar sua justificativa intelectual em necessidades socialmente aceitáveis, ou seja, no desejo de progressão econômica ou intelectual.
O apoio familiar e social é bastante importante durante o período de tomada de decisão. As pessoas que vivem em torno do futuro imigrante irão valorizar ou desqualificar a alternativa da imigração durante toda a preparação da viagem. Desse modo, o tom emocional da partida exerce impacto significativo sobre a atitude do imigrante com relação tanto ao país de origem quanto ao de adoção.
Acrescenta-se a esta leitura a modalidade de viagem migratória, se é temporária ou definitiva, com duração determinada ou indeterminada, desejada ou forçada. Os elementos que descrevemos concernentes às modalidades da imigração irão imprimir-se como dados emocionais e concretos na viagem em direção ao país de adoção, constituindo o projeto migratório e colorindo a trajetória para longe do país de origem.
É comum que a viagem migratória deixe lembranças na memória do viajante, as quais se transformarão, mais tarde, no discurso do imigrante como sinal anunciador do sucesso ou não dessa experiência.
A chegada ao novo país marca o início das interações com a nova cultura e com a população. Esta é, sem dúvida, a etapa mais longa da migração e, para algumas pessoas, nunca acabará, ou seja, o sentimento de estar sempre em contato com o estrangeiro, com o estranho, com o que não é familiar pode durar toda uma vida no país de adoção. De qualquer modo, a imigração exige a adaptação constante do imigrante, a negociação frequente entre a cultura de origem e aquela na qual se evolui.
Quando o imigrante consegue, aos poucos, encontrar equilíbrio no país de imigração através do trabalho, de um local de habitação e de um grupo de amigos, ele aprende a viver no país de adoção e compreende mais facilmente seus códigos linguísticos e sociais. Contudo, enquanto não se sente em segurança no tocante à valorização e ao reconhecimento da sua cultura de origem pela população do país de adoção, reduzirá sua imersão social ao mínimo possível.
Para que o imigrante se mostre flexível em termos da sua identidade cultural com vistas a apreender os novos códigos da sociedade de adoção, é preciso que se encontrem sinais positivos nas três fases do movimento migratório - preparação da partida, viagem e chegada - de modo a fornecer a segurança necessária ao ego para favorecer o contato do sujeito com o mundo externo em posição de abertura e não de desconfiança.
Por sua vez, as representações sociais da sociedade de acolhimento com relação ao imigrante e seu país de origem vão orientar o olhar e a atitude dos nativos e das instituições públicas e sociais. De seu lado, o imigrante, bastante receptivo às mensagens que recebe do país de acolhimento, no caso de se sentir bem visto e aceito, vai se sentir mais estimulado a investir na nova cultura. Sabatier, Malewska e Tanon (2002) enfatizam que:
No interior dos indivíduos e da sociedade, a identidade resulta, ao mesmo tempo, de uma tomada de consciência de sua própria individualidade como também de seu pertencimento a categorias sociais com as quais o indivíduo partilha pontos em comum, distinguindo-se de outros grupos sociais (Sabatier, Malewska & Tanon, 2002: 16; tradução nossa).
TER FILHOS NO PAÍS DE IMIGRAÇÃO
A relação entre pais imigrantes e filhos nascidos no país de adoção se desenvolve em contexto particular, no qual cada geração se inscreve em um universo cultural que a outra não domina: os pais são representantes da cultura do país de origem e os filhos, da cultura do novo país.
É possível que as referências culturais específicas a cada geração venham a constituir elemento favorável à troca de experiências, o que pode fazer com que o sentimento de duplo pertencimento se torne a característica familiar que reforça as relações. Todavia, a impossibilidade de circulação das experiências de cada geração pode significar o isolamento de cada uma, como se a passagem de uma cultura a outra não fosse viável.
Por si só, a relação entre pais e filhos é empreendimento complexo, carregado de variáveis particulares a cada história e influenciado pela capacidade de percepção de cada um, mas, quando se trata do modelo familiar multicultural, o desafio se torna ainda mais difícil.
A fragilidade que a condição da imigração pode gerar para os pais e, em vários casos, a falta de apoio da família de origem com relação ao reforço do modelo cultural inicial são situações que os pais podem vivenciar como falha educativa de sua parte.
Os pais se sentem culpados da impossibilidade do exercício da transmissão cultural para seus filhos, enquanto que os últimos podem experimentar um sentimento de vazio, como se estivesse faltando alguma coisa, sentindo um desconforto, um mal-estar identitário. Não é difícil imaginar que, neste contexto, a relação entre pais e filhos se tornaria laboriosa.
O filho de imigrante está sem dúvida inscrito na sua família de origem, pelo que acontece uma transmissão consciente ou inconsciente da história familiar. Lebivici (1989) afirma que um "mandato transgeneracional" deve ser executado pelo descendente em função do seu lugar na família e das expectativas dos seus pais, que inserem a criança no contexto familiar antes mesmo de ela ter nascido.
Neste sentido, para a maioria dos pais imigrantes, dar-se conta da distância entre seus filhos e seus pais, bem como entre os primeiros e a sua cultura de origem, pode significar uma grande decepção e uma ferida narcísica capaz de atacar o projeto de continuidade familiar e de reconhecimento que o imigrante almeja no que concerne a seus próprios pais.
Por sua vez, os filhos, que vivem em duplo sistema de pertencimento, são implicados em um conflito de lealdade entre os dois modelos culturais: o intrínseco, relacionado à interiorização da cultura de origem, e o extrínseco, relativo à integração da cultura do país de adoção. Quanto mais estes dois sistemas se opõem, mais o sujeito se encontra em dificuldade para se posicionar e encontrar o equilíbrio psíquico que tome em conta as duas realidades culturais. É como se uma escolha impossível se tornasse iminente.
A má gestão desses conflitos de lealdade pode provocar, além de dificuldades pessoais, problemas relacionais nos grupos intrafamiliar e extrafamiliar. Assim, um eventual trabalho terapêutico poderia se inscrever no sentido de ajudar o sujeito a melhor negociar entre as duas lealdades culturais, sem fazer referência unicamente às lealdades extrínsecas, mas tomando em conta as lealdades intrínsecas.
Neste sentido, favorecer a transmissão da cultura de origem sem que este movimento implique necessariamente a desvalorização da cultura do país de adoção parece-nos um procedimento de inclusão, que comunica ao sujeito que ele se constrói em um modelo de adição e não de subtração; por conseguinte, seu projeto deve ser o de articular a própria vida em torno das duas culturas e não o de escolher uma delas. Realiza, assim, que o duplo pertencimento faz parte da sua identidade.
CONTAR HISTÓRIAS, UM VETOR DA TRANSMISSÃO
O sujeito é um ser de história e Gautier (1999) afirma, neste sentido, que: "Toda situação de lembrança, de solicitação do passado, transporta o germe da possibilidade da construção de uma história que pode ser contada, uma história que pode se tornar coerente, sensata e transmissível" (Gautier, 1999: 44; tradução nossa).
Falar de si é movimento presente de maneira constante na vida de um sujeito; quando alguém fala necessariamente de si - ação narcísica, segundo Kaës (1998) - exerce um modo de garantir a própria existência, da maneira como o outro o considera. Neste sentido, falar de si é quase redundância, pois o sujeito que fala faz necessariamente referência a si; assim ele se constrói, assim ele transmite.
Tais afirmações são ainda mais válidas quando o sujeito está em situação de imigração: lembrar, falar de si e transmitir é a maneira de manter, de revigorar uma parte de si, de sua história, de sua cultura. A esse respeito, Choron-Baix (2002) comenta:
Para os imigrantes, as lembranças e as referências frequentes do passado não são unicamente um remédio para a saudade. Elas são também uma maneira de legar para os seus descendentes valores que eles consideram como importantes, e que eles gostariam de perpetuar. Na imigração lembrança e transmissão se conjugam juntos (Choron-Baix, 2002: 62; tradução nossa).
Pelo exposto, falar de si é também uma maneira de estimular as relações entre as gerações, em especial quando o contato cotidiano com os ascendentes e outros contemporâneos da família se torna difícil por causa da imigração. Existe, assim, a responsabilidade de falar da imigração, do país de origem, da família que ficou, para que a geração nascida no país de adoção possa se considerar e ser considerada como membro do grupo familiar.
Acreditamos que, para fazer referência ao passado, para contar sua história migratória, o sujeito precisa se distanciar um pouco deste evento, do mesmo modo que esta experiência deve ter passado por um processo de elaboração e de reconstrução.
Nos casos em que a experiência de imigração é vivida como trauma, os temas em torno da família que ficou no país de origem, da primeira cultura da imigração, são comumente desviados, em razão do peso emocional que representam. Evitar semelhantes questões é a maneira de o imigrante se proteger da dor que provocam.
Trata-se de um movimento de defesa bastante compreensível, que provoca efeitos sobre aqueles filhos de imigrantes que se encontram em uma família na qual as origens e as raízes precisam ser mantidas em segredo ou devem ser caladas. As consequências disso seriam a fragilidade identitária, uma certa instabilidade, o sentimento flutuante de pertencimento ao grupo familiar, dificuldades escolares e dificuldades na integração das regras da sociedade de adoção.
Ao contrário, no tocante aos benefícios desse desvelamento, Tisseron (2002) precisa que:
[...] quando se trata de famílias imigrantes, onde as condições de imigração e o período que precede a viagem migratória fazem parte do discurso e que existem fotografias que testemunham. Enfim, famílias em que nenhum evento vivido - direta ou indiretamente - pelas crianças se torna tema proibido. Este trabalho de assimilação psíquica das experiências do mundo familiar se prolonga naturalmente em direção de um trabalho de assimilação psíquica das experiências do mundo escolar (Tisseron, 2002: 9; tradução nossa).
Reforçando o sentimento de pertencimento e de construção identitária dos indivíduos, a transmissão através da linguagem oral constitui um dos principais meios de assegurar a continuidade e a coesão do grupo familiar. A transmissão é movimento espontâneo na relação entre os membros de uma família, mas é essencial que se estimule, oriente e cultive a sua expressão.
Os principais objetivos desta pesquisa, do ponto de vista clínico, são: verificar de que maneira a cultura de origem dos pais faz parte do cotidiano dos filhos em um país estrangeiro e analisar o impacto desta transmissão cultural na construção identitária dos filhos de imigrantes.
MÉTODO
PARTICIPANTES
Participaram deste trabalho, realizado na França2, 9 famílias: 4 de origem brasileira, 3 de origem italiana e 2 de origem portuguesa. No momento do estudo, nenhuma delas tinha solicitado ajuda terapêutica.
Vários elementos orientaram nossa escolha de famílias de origens socioculturais diversas. O primeiro é que os imigrantes destas três nacionalidades se confundem facilmente com a população francesa, não causando distúrbios de ordem pública ou jurídica e, neste sentido, inspiram poucos trabalhos de pesquisa.
Além disto, parecia-nos importante que os participantes deste estudo tivessem a liberdade de se exprimir na língua do país de acolhimento e/ou na língua de origem. Neste caso, tal objetivo tornou-se possível porque o pesquisador tem fluência nos três idiomas.
Finalmente, mas não menos importante, pesou em nossa decisão a proximidade cultural entre estes países, todos de cultura latina, fortemente influenciados pelo cristianismo, com relações histórico-políticas significativas entre eles.
As famílias que participaram das entrevistas eram compostas de casais em que os dois vinham do mesmo país e ambos imigraram em idade adulta, enquanto seus filhos nasceram no país de adoção e tinham, no mínimo, sete anos.
Essas famílias foram contatadas de maneira informal por intermédio de associações culturais.
FONTE DE DADOS E PROCEDIMENTO
O trabalho se construiu inicialmente com base na nossa experiência clínica, a qual nos mobilizou e alimentou a curiosidade em termos da organização relacional das famílias multiculturais. Neste sentido, nossa sensibilidade e as observações clínicas do discurso de famílias em terapia também integram nossa fonte de dados, mesmo que de maneira indireta.
As entrevistas eram abertas, acompanhadas de um questionamento não estruturado, que se construía durante as entrevistas. Foram realizados encontros individuais com cada um dos pais e com, pelo menos, um dos filhos; depois de transcorridos três meses, fez-se um encontro familiar. Todas as reuniões foram registradas.
Durante os encontros individuais, a construção de um genograma familiar foi proposto e realizado com cada membro da família.
Uma análise qualitativa, inspirada na leitura sistêmica de compreensão das modalidades de relação e de comunicação intra e intergerações, foi feita com base nas entrevistas e no genograma, enquanto a análise quantitativa foi efetuada com a ajuda de Tropes, um programa de análise do discurso.
RESULTADOS3
Foram realizadas análises de cada família através da articulação entre o discurso dos pais e dos filhos, além de análise comparativa entre famílias de mesma origem e famílias de origem diferente.
Não foram observadas diferenças significativas entre as famílias em termos da nacionalidade, mesmo se as famílias brasileiras exprimiram com mais frequência sentimentos positivos de reconhecimento com relação às representações sociais da sociedade francesa do que as outras.
Nosso trabalho se inscreve na perspectiva de compreensão das dinâmicas de transmissão cultural entre gerações, tendo como hipótese principal - que foi validada - a transmissão cultural como elemento facilitador no processo de construção positiva do duplo pertencimento.
Uma vez que os filhos de imigrantes vivem em dois universos culturais como territórios conhecidos dentro dos quais podem evoluir, utilizando a bagagem cultural que parece mais pertinente para cada situação da vida cotidiana, pudemos observar que este movimento é facilitado pela transmissão.
Nas famílias em que os pais falam da história migratória e das suas histórias pessoais no país de origem, as crianças podem mais facilmente circular entre as duas culturas, sentindo-se enraizadas e em segurança para evoluir na sociedade de acolhimento.
Ainda que a imigração tenha conotação dolorosa, este fenômeno não se resume só a perdas. Na maioria das famílias que encontramos foi possível observar que a imigração pode ser positivada e valorizada como riqueza suplementar para os filhos de imigrantes, do mesmo modo que como argumento de autonomização e de progressão para a geração que fez a viagem migratória.
Viver o seu duplo pertencimento como vantagem parece estar diretamente relacionado com a transmissão da história da imigração. Serge Tisseron (2002) explica que não transmitir é impossível; no entanto, os resultados do nosso trabalho nos levam a pensar que a diferença situa-se na "intenção" de transmitir, no desejo dos pais de perpetuarem a história familiar.
Naquelas famílias em que os pais exprimem claramente a importância da transmissão é que os filhos podem sentir o duplo pertencimento como vantagem, pois reconhecem as duas culturas como fazendo parte deles.
Em certas famílias, poderíamos estabelecer uma relação direta entre as dificuldades encontradas no país de adoção e a imigração como imposição por questões financeiras, uma obrigação da qual não puderam escapar. Tiveram que abandonar sua família, seu país, sua cultura e sua língua. Neste sentido, os elementos que construíram a sua história da migração são o abandono, a perda e a separação, parecendo-lhes tudo isto irreparável. Tais sentimentos dão o tom emocional da viagem migratória, que assume a forma de exílio.
O sujeito que se sente obrigado a partir sem jamais ter projetado esta ideia vive tal viagem como um traumatismo que mobiliza as defesas do Ego; em virtude disso, essas pessoas podem não querer falar da história da imigração na tentativa de se distanciarem das lembranças dolorosas, ao passo que algumas dentre elas tentam investir completamente no país de adoção.
Nestes casos, a geração nascida no país de adoção pode se sentir, ela também, obrigada a abandonar a ideia de conhecer melhor a história familiar e a cultura de origem dos pais, sem poder esquecer as suas raízes. Uma negociação positiva do duplo pertencimento se torna pouco provável nesta situação.
Por sua vez, a supervalorização da cultura de origem em detrimento da cultura do país de adoção, observada em algumas das famílias estudadas, faz com que a vida no novo país se transforme em um parênteses entre a viagem de partida e o retorno idealizado ao país de origem. Nestes casos, o passado e o futuro se transformam em energia para suportar o presente.
Entretanto foi raro observar isoladamente uma destas alternativas nas famílias que encontramos. Verificamos, sobretudo, um movimento de oscilação entre estas duas posições e outras posturas intermediárias.
Finalmente, é a história de cada imigração e de cada família, das relações entre a família e a sociedade de acolhimento, que vai orientar a possibilidade de transmissão cultural e, consequentemente, a de expressão do duplo pertencimento cultural entre os membros de um sistema.
Nas famílias multiculturais em que os universos culturais são isolados, os papéis dos membros do sistema se tornam rígidos e a família encontra dificuldades na evolução no sentido do bem-estar de cada um. Esta disfunção familiar pode levar alguns membros do sistema a comportamentos desviantes ou a descompensações psicopatológicas.
Importa relembrar que as famílias participantes desta pesquisa não estavam em terapia; talvez possamos imaginar que a disposição deles para este trabalho seja um indicador da capacidade do sistema em fazer circular livremente a história da imigração. Mesmo neste contexto pudemos observar que viver o duplo pertencimento não é empreendimento fácil para as pessoas que fizeram parte do nosso estudo.
É verdade que nossas entrevistas foram oportunidades de descobertas e de trocas em torno da imigração, dos sentimentos de cada um e de certa reconstrução da história da imigração. Estes momentos fortes, carregados de emoção e de lembrança, representam a ocasião de interação entre as gerações e a de reler a história da família de outra maneira com a ajuda de uma pessoa exterior ao sistema, neste caso, o pesquisador.
Não estávamos em contexto terapêutico durante a realização deste trabalho e o objetivo ao longo das entrevistas era fazer emergir a história familiar da imigração, favorecendo a palavra de cada um sobre o seu ponto de vista e as suas emoções em torno da história da imigração, para que, em um segundo tempo, a reconstituição familiar da história fosse possível. Todavia, é verdade que pensamos que estes encontros puderam ajudar algumas famílias a olhar de outra maneira a sua história e a falar dela com certo orgulho. Neste sentido, contar a história da migração possui para nós uma virtude terapêutica, sobretudo em situação de terapia familiar.
DISCUSSÃO
A proposição de avaliar o impacto da imigração nas famílias de origem portuguesa, brasileira e italiana em duas gerações estruturou-se em torno da questão da transmissão, tendo o discurso como suporte principal.
A imigração é um evento no ciclo de vida das famílias que redefine os projetos e reorienta as energias do imigrante no sentido da descoberta e da construção. Ter filhos no país de adoção questiona o sujeito sobre suas origens e sua família. A transmissão se torna uma ferramenta para continuar a construção, sem esquecer a história, as raízes e o pertencimento a uma família.
As instâncias sociais, o universo médico-social, as escolas, os grupos de compatriotas e a família que ficou no país de origem devem se constituir em unidades que favoreçam a transmissão e a criação de um espaço intermediário dentro e fora da família, de modo que a expressão do duplo pertencimento seja possível.
Este estudo nos ensinou muito sobre o funcionamento familiar e as alternativas individuais e familiares colocadas em obra pelo sistema para gerenciar a crise provocada pela imigração em curto, médio e longo prazo.
Neste sentido, pensamos que é importante reconhecer uma particularidade clínica, e um reconhecimento desta na compreensão do sofrimento e na leitura dos sintomas que apresentam as famílias que são atravessadas por uma história de imigração. Isto sem esquecer que cada família é única e que, em nossa proposta, não há lugar para protocolos fechados sobre como agir com relação a esta ou aquela população.
Nosso projeto é o de sensibilizar o terapeuta sistêmico a fazer uma leitura da questão imigratória como organizador potencial das relações familiares e atrair sua atenção para a questão do contexto de duplo pertencimento na aparição dos sintomas, para que respostas terapêuticas originais possam ser construídas em acordo com a realidade das famílias.
Pensamos que nosso trabalho, na qualidade de terapeutas sistêmicos, poderia ajudar as pessoas de origem multicultural a melhor negociarem os desafios socioculturais nos quais podem se encontrar e favorecer certa elasticidade entre os dois universos culturais nas respostas à vida cotidiana.
Enfatizamos que somente alguns aspectos desta pesquisa foram analisados neste artigo, explorando-se, em próximo trabalho, uma parte teórica destinada à construção de um modelo téorico-clínico de terapia. Entretanto, as questões aqui desenvolvidas refletem um quinhão significativo dos resultados do trabalho de pesquisa realizado com famílias de origem estrangeira.
Não descartamos, contudo, que uma extrapolação desta leitura no universo francês possa encontrar ressonância, guardadas as devidas proporções, nas análises das imigrações e migrações no Brasil. Uma pesquisa com este objetivo poderia alimentar nossa reflexão e desenvolver a leitura sistêmica do trabalho com esta população.
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NOTAS
1 Guerraoui faz esta análise em termos de indivíduo, mas tomamos a liberdade de utilizar esta leitura no sentido da família, analogia que foi validada pelo autor.
2 Sob a responsabilidade do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento, da Universidade de Bordeaux 2, durante Tese de Doutorado.
3 Somente uma parte dos resultados será apresentada de maneira descritiva, método menos tradicional, mas, certamente, mais adaptado ao formato deste artigo. Os resultados integrais podem ser consultados em Daure (2006).
Recebido em 03 de abril de 2009
Aceito para publicação em 27 de agosto de 2009