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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.21 no.2 Rio de Janeiro  2009

 

RESENHAS

 

Uma história de amor à psicanálise

 

A love story of psychoanalysis

 

 

Sandra Edler

Mestre e doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Membro psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID)

 

 

RESENHA DE:

Zalcberg, M. (2008). Amor paixão feminina. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Campus/Elsevier, 203 páginas.

Trazendo em sua abertura a epígrafe de Nietzsche - a mesma palavra amor significa coisas diferentes para o homem e para a mulher -, o novo livro de Malvine Zalcberg apresenta, já em suas primeiras linhas, o amor, essa dessimetria incurável, fonte de inesgotáveis conflitos que alimentam a história humana. A partir do tema como idéia central, Malvine vai expondo, ao longo de diferentes épocas, a história da cultura amorosa, a nomeação desse fenômeno inventado na primeira metade do século XII na França e sua difusão pela Europa, atravessando a sociedade medieval, o renascimento, para introduzir-se na civilização ocidental. Observa Malvine, "a invenção da erótica amorosa do século XII cria um novo espaço para as mulheres ao se tornarem alvo de homenagens por parte dos cavalheiros adotando normas mais civilizadas, entre as quais o cultivo da arte da cortesia" (Zalcberg, 2008: 3). Até então o lugar reservado às mulheres era o lugar da sombra, do silêncio, um não-lugar.

Com o advento da cultura igualitária a mulher ascendeu social e politicamente, mantendo, no entanto, sua diferença no que diz respeito às exigências amorosas. Sendo assim, a autora formula a questão: o que explicaria a permanência do culto do feminino ao amor quando as mulheres não mais recorrem a ele necessariamente como polo de identidade social? Para elaborar esta indagação Malvine recorre a uma série de referências desde a poesia, a literatura, a cultura bíblica e a cinematográfica, mesclando-as, integrando-as aos conhecimentos de teoria psicanalítica e à clínica, não medindo esforços para transmitir o que, em suas palavras, é o propósito deste trabalho: "ressaltar a importância do amor para uma mulher na própria constituição de sua subjetividade e a sua repercussão nas parcerias amorosas que vier a estabelecer com um homem" (Zalcberg, 2008: 7).

Com essas palavras Malvine dirige-se ao leitor convidando-o a acompanhá-la numa aventura: seguir com ela ao recôndito do coração feminino para obter uma apreensão maior do enigmático fenômeno do amor.

 

NÃO HÁ HOMEM IGUAL AO MEU PAI

Antes mesmo de debruçar-se à cabeceira das histéricas, Freud ouviu de Josef Breuer, conceituado médico vienense, o relato do tratamento de Anna O., realizado sob hipnose entre 1880 e 1882. A história clínica de Anna, sua divisão interna e as manifestações dessa subjetividade dramaticamente partida afetaram Freud, então às voltas com sua viagem a Paris onde faria estágio com Charcot. Para os dois médicos, Anna O., como nos diz Malvine, "havia adoecido da doença mortal de seu pai, por amor a este" (Zalcberg, 2008: 2). Ainda que Anna O. seja um exemplo extremo e a histeria tenha mudado muito sua forma de apresentação desde o fim do século XIX até os nossos dias, permanece verdadeira a questão do amor da histérica por seu pai.

O relato clínico de Anna O. - Malvine nos conta - não mais abandona os pensamentos de Freud. O método de tratamento pela via da catarse, a "cura pela palavra", a rememoração, embora não configurem ainda o método psicanalítico, foram sem dúvida seus inspiradores. Em torno dos enigmas da histeria Freud abre o caminho para alinhavar esse novo saber que mudará o conhecimento humano, o inconsciente, a psicanálise. Anna O. e seus sintomas deixam clara a idéia de que a dimensão consciente não é única nem soberana e a apreensão do psiquismo precisa levar em conta a dimensão inconsciente. Além disso, o aspecto inconsciente, por algum motivo recalcado, constitui-se o fundamento da neurose. Por outro lado, como observa Malvine, "a neurose histérica, de certa forma uma manifestação do feminino, abre a via real do inconsciente" (Zalcberg, 2008: 5). Antes de Breuer e Freud não havia ocorrido à ciência interrogar um querer-dizer do sintoma.

Mas, mesmo entre os dois pesquisadores debruçados sobre o mesmo caso, houve divergências. Se ambos concordavam tratar-se de uma neurose histérica, só Freud reconhece, em seu fundamento, um componente sexual. Breuer, possivelmente envolvido com a jovem paciente, deixa o caso e afasta-se de Viena buscando uma reconciliação conjugal. Freud, no entanto, havia mordido a isca e, na volta de Paris, procura Breuer desejoso de aprofundar o estudo dos mecanismos psíquicos envolvidos nos quadros histéricos. Dessa parceria surge o livro Estudos sobre a histeria (Freud, [1893-1895] 1969), por muitos considerada a obra inaugural da psicanálise. E curiosamente teve sua descoberta enredada aos mistérios do amor, o amor de uma filha por seu pai que levou-a a adoecer e, depois, a transferência desse amor para seu médico a ponto de fantasiar uma gravidez. Nas palavras de Malvine, "o que chamamos histeria, a histeria feminina, é quando o parceiro na vida amorosa continua sendo o pai" (Zalcberg, 2008: 14).

Caberá à psicanálise, ciência humana nascida no alvorecer do século XX, elucidar os enigmas do amor ou, ainda, na questão proposta por Malvine: "por que o amor é uma paixão do sujeito capaz de o fazer soçobrar a ponto de adoecê-lo e que a mulher, mais do que o homem, é suscetível de sofrê-la" (Zalcberg, 2008: 8).

Para aproximar-se do tema central de seu livro a autora traça um percurso distinguindo o amor, o desejo, o gozo e a fantasia, tendo como pano-de-fundo a teoria freudiana e um amplo estudo em direção às contribuições de Lacan para situar-se na clínica do amor feminino.

 

OS AMORES LOUCOS OU NÃO TÃO LOUCOS ASSIM

Para Malvine, "o amor e o que ele representa na subjetividade da mulher, pode dominar a cena psíquica feminina" (Zalcberg, 2008: 129). Pode transformar-se na demanda maior, no anseio insistente que a mulher dirige ao parceiro no sentido de ser mais e mais amada, ser a única... As diversas modalidades de fracasso do amor, seja pelo abandono, a infidelidade suposta ou descoberta ou, ainda, o declínio do interesse amoroso por parte do parceiro afetam profundamente a vida das mulheres: são as mulheres que em maior frequência enlouquecem com e por amor.

Para estudar o amor em sua dimensão ampliada no contexto da subjetividade feminina, Malvine segue o fio condutor da própria história da psicanálise, passando pela contribuição freudiana, chegando depois a Lacan e demonstrando como cada um veio a se envolver com a questão da mulher e sua sexualidade: Freud pela via da histeria que inaugurou seu trabalho e Lacan pela da erotomania.

Seguindo os passos do mestre francês, Malvine vai explorar o campo do gozo feminino. Lacan, sabemos, desenvolveu o conceito de gozo ao longo de mais de 20 anos de percurso, tendo como principais inspiradores Hegel e Freud. Este conceito vai ganhando expressão e, nos últimos trabalhos, vai se articulando com os demais conceitos inclusive o próprio sintoma. Para ampliar sua reflexão nossa autora pergunta: "quais são então as incidências deste novo campo que se descortinou na psicanálise que é o do gozo feminino em sua vertente de excesso na subjetividade das mulheres em nossa época?".

A questão do gozo colocada em debate sob os imperativos da contemporaneidade traz consigo novas contradições. Quais os limites entre o público e o privado, existe ainda um espaço que possa ser chamado de íntimo? Malvine observa que "algo como um direito ao gozo sexual se acrescenta aos direitos do sujeito moderno homem ou mulher" (Zalcberg, 2008: 147).

A crescente liberação feminina levou, assim, a mulher a legitimar o uso do próprio corpo para a satisfação de seu gozo. À mulher de hoje é perfeitamente possível convidar um homem a satisfazê-la sexualmente e a cultura dá respaldo a essa prática. No entanto, no comentário da autora, "há de se considerar que essa nova versão da satisfação sexual se articula diretamente com o gozo sexual feminino, o suplementar, para o qual a mulher tem de encontrar um limite" (Zalcberg, 2008: 147). Tendo por vezes muita dificuldade em estabelecer este limite, o gozo pode passar de um estado de êxtase para uma devastação.

 

UM EXCESSO DE GOZO

A ascensão social das mulheres e sua vertiginosa autonomia em termos familiares, profissionais e econômicos podem, muitas vezes, mascarar uma outra realidade: a grande aspiração de encontrar o homem de suas vidas. Essa aspiração permanece inalterada como acontecia muitas décadas atrás. Nas palavras de Malvine, "as mulheres fazem mais facilmente do amor uma causa, quando ele falta, pois que ele está em crise hoje, elas ficam sem causa" (Zalcberg, 2008: 151).

Desta maneira, Malvine traz ao debate - dialogando com o sociólogo Zygmunt Bauman e a psicanalista Paola Francesconi - as condições das novas parcerias ou a total ausência delas no precário e líquido laço amoroso da contemporaneidade. Para a mulher pode ser desastrosa a perda do amor de um companheiro a ponto de deixá-la perdida de si. O parceiro se converte no principal alvo de sua busca de reconhecimento. Confrontada com a falta de um significante para seu sexo, a mulher encontra no "ser fálico" a identificação possível para o seu ser feminino. O gozo feminino não lhe garante sua inscrição. São as palavras de amor do ser amado - aqui Malvine cita D. Laurent - que permitem a esse gozo da mulher encontrar um lugar e não ficar à deriva. E não será essa falta que conduz a mulher em busca do enlace? Não será ela a responsável pelo incessante movimento na direção do encontro com o qual a mulher tece seu destino?

O livro de Malvine Zalcberg vem preencher uma lacuna na literatura psicanalítica, e sua contribuição, refletindo o pensamento de Freud, Lacan e autores contemporâneos, traz considerações de grande relevância ao debate sobre a sexualidade feminina e a peculiar forma de amar de uma mulher. Reflete, além disso, o percurso maduro da autora e pesquisadora, o esforço na direção um tema de grande complexidade e, principalmente, testemunha seu profundo amor à psicanálise, tecido em prosa e verso!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Freud, S. (1893-1895). Estudos sobre a histeria. Obras completas, ESB, v. II. Rio de Janeiro: Imago, 1969.         [ Links ]

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