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Psicologia Clínica
Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.30 no.2 Rio de Janeiro May./Aug. 2018
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n02A01
SEÇÃO TEMÁTICA: CLÍNICA DO SOCIAL
Encontros e desencontros entre Laplanche e Lacan: abordagens psicanalíticas das questões sociais
Agreements and disagreements between Laplanche and Lacan: psychoanalytic approaches to social issues
Encuentros y desencuentros entre Laplanche y Lacan: enfoques psicoanalíticos de las cuestiones sociales
Cassandra Pereira FrançaI; Cristiana de Amorim MazziniII
IProfessora Associada do Departamento de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil
IIMestre em Estudos Psicanalíticos pelo Departamento de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil
RESUMO
Algumas críticas enunciadas por Laplanche em 1960, no Colóquio de Bonneval, relacionadas ao "inconsciente estruturado como linguagem" pareciam ser, a princípio, apenas um desdobramento do pensamento de Lacan. No entanto, suas implicações acabaram estendendo-se à corrente estruturalista como um todo, trazendo uma capilaridade teórica ao debate que acabou por afastar, definitivamente, a produção desses autores. Apesar de as denúncias do caráter conservador da psicanálise por parte dos movimentos feministas e LGBT não fazerem referência direta ao pensamento de Laplanche, é possível esboçar um alinhamento comum. Judith Butler acrescenta ao debate sua visão do quanto o poder participa da construção das subjetividades, impossibilitando separar poder e gênero. A literatura sobre o assunto nos leva a concluir que, apesar de o ensino de Lacan, após algumas reformulações que levaram em conta a crítica ao estruturalismo, ter oferecido ferramentas para pensar as questões contemporâneas de maneira menos estanque, ainda existem importantes autores fazendo um uso teórico viciado que, por ter como consequência a legitimação de posições conservadoras e opressoras, pede um reposicionamento.
Palavras-chave: estruturalismo; gênero; movimentos sociais; contemporaneidade.
ABSTRACT
The critique regarding the "unconscious structured as language" presented by Laplanche at the Bonneval Colloquium, in 1960, seemed at first to be only a by-product of Lacan's theory. However, later on, such critique was extended to structuralism itself, highlighting a debate that was responsible for the breakup between these authors. In spite of not referring to Laplanche's ideas directly, we sustain that LGBT and feminist movements have a common point with Laplanche's critique of structuralism. Judith Butler contributes to this discussion by pointing out the importance of power for subjective construction, making it impossible to set apart gender from power. Therefore, literature about this subject leads us to conclude that, even if Lacan has offered tools to conceive of contemporary issues in a more flexible way, after taking some of the critiques about structuralism into consideration, there still are authors who employ his theory in order to uphold oppressive stances, which demands a reassessment.
Keywords: structuralism; gender; social movements; contemporaneity.
RESUMEN
Algunas críticas enunciadas por Laplanche en 1960, en el Coloquio de Bonneval, relacionadas al "inconsciente estructurado como lenguaje" parecían ser, en principio, apenas un desdoblamiento del pensamiento de Lacan. Sin embargo, sus implicaciones acabaron extendiéndose a la corriente estructuralista como un todo, trayendo una capilaridad teórica al debate que acabó por alejar, definitivamente, la producción de esos autores. A pesar de que las denuncias del carácter conservador del psicoanálisis, por parte de los movimientos feministas y LGBT, no hacen referencia directa al pensamiento de Laplanche, es posible bosquejar una alineación común. Judith Butler añade al debate su visión de cuánto el poder participa de la construcción de las subjetividades, impidiendo que se separe poder y género. La literatura sobre el asunto nos lleva a concluir que, a pesar de la enseñanza de Lacan, tras algunas reformulaciones que tuvieron en cuenta la crítica al estructuralismo, haber ofrecido herramientas para pensar las cuestiones contemporáneas de manera menos estancada, aún existen importantes autores haciendo un uso teórico viciado para legitimar posiciones conservadoras y opresoras, que piden un reposicionamiento.
Palabras clave: estructuralismo; género; movimientos sociales; contemporaneidad.
Introdução
A teoria psicanalítica, fundada por Freud ainda no século XIX, foi reconhecida como uma grande corrente de pensamento somente no século XX. Ao longo desse tempo, muito aconteceu na história da psicanálise. Alguns autores ganharam relevância enquanto Freud ainda era vivo e, de certa maneira, detinha o poder de dar o crivo em relação às teorizações psicanalíticas que emergiam. Outros, como Lacan, não tiveram a oportunidade de dialogar diretamente com o fundador, mas, ainda assim, propuseram apropriações teóricas cuja capilaridade mantém o pensamento psicanalítico ainda bastante efervescente nos dias atuais. Jean Laplanche também foi um desses autores. Ele iniciou seu tratamento analítico com Lacan no fim dos anos 40 e, desde então, entabulou um estreito diálogo com suas ideias. Seguindo os conselhos de Lacan, iniciou sua formação médica enquanto dava continuação à sua formação como analista, que foi fortemente influenciada pelo pensamento lacaniano.
A consolidação da formação de Laplanche, entretanto, acabou fazendo com que ele discordasse de alguns pontos forjados por Lacan. Essa discordância foi apresentada inicialmente no Colóquio de Bonneval, em 1960, na conferência "O inconsciente, um estudo psicanalítico", escrita por Leclaire e Laplanche (1961/1992). Uma das seções dessa apresentação, intitulada "O inconsciente é a condição da linguagem, interdependência dos sistemas pré-consciente e inconsciente", escrita por Laplanche, acabou delineando um capítulo da história da psicanálise, uma vez que opiniões consideradas por Laplanche apenas um desdobramento do pensamento de Lacan acabaram sendo responsáveis por um embate que acabaria por culminar no rompimento entre eles, uma vez que seus pontos de vista não mais puderam ser conciliados.
Naquela ocasião, Laplanche afirmou (1961/1992), baseando-se em Freud, que se acaso nossa linguagem fosse regida pelos incessantes deslocamentos e condensações característicos do processo primário, seríamos todos regidos por um funcionamento psicótico. Portanto, o funcionamento seguido por nossa linguagem era o do processo secundário, que, ao impor certa restrição ao livre escoamento da energia pulsional, acabava retirando-a do reino exclusivo do processo primário. Para explicar tal inversão, Laplanche supôs a existência inicial de um momento mítico, quando haveria uma apropriação gradativa da linguagem pela criança, que apenas se inseriria no universo linguístico após conseguir apreendê-lo. Essa suposição, entretanto, gerou o seguinte impasse: se todos os significantes se definissem pela relação com os demais, dando origem ao conjunto do sistema significante, não poderia haver nenhum significante que se definisse fora de sua posição no sistema. Um bom exemplo dado por Laplanche para entender o impasse em questão é o da captura do significado das palavras no dicionário, que sempre é estabelecido em relação a outros significantes. Se o significado de um significante é dado em relação a outro, como seria possível capturar algum significado nesse deslizamento incessante que impossibilita qualquer estabilização?
Na tentativa de solucionar o problema, Laplanche recorreu ao conceito dos "pontos de capitonagem" forjado por Lacan (1958/1999), que estabelece a existência de pontos nos quais a cadeia significante é fixada ao significado. Nesse momento, acreditando dar uma exemplificação ao conceito lacaniano, ele novamente usa o dicionário: a apreensão do significado de um termo por meio da consulta ao dicionário só é possível porque existe algo que impede a transformação de um significante em outro por meio do deslizamento. Aquilo que impede uma palavra de deslizar incessantemente é a posição de um determinado significante em relação aos outros no sistema, ou seja, o fato de um único significante comportar várias significações.
É possível inferir que a maneira como as formulações foram apresentadas em Bonneval não pretendiam ser nada além do desdobramento desses "pontos de capitonagem". Ora, se a exata apreensão da fixação de um significante a um significado é impossível, Laplanche leva a compreensão dos "pontos de capitonagem" às últimas consequências, descrevendo um momento mítico, que corresponderia à construção dos diques que contêm o livre funcionamento do processo primário, no qual a fixação do significante ao significado acontece. Com o intuito de auxiliar a compreensão da origem desses "pontos de capitonagem", Laplanche lança mão da fórmula da metáfora de Lacan, considerando que, ao implicar a conservação do termo inicial, ela oferece elementos para elucidar o processo da construção desses diques. Ao contrário da maneira como estamos habituados a ver a fórmula da metáfora de Lacan, Laplanche (1961/1992, p. 249-250) mantém os termos que são simplificados para demonstrar a presença do significado latente:
Legenda
S - significante
s - significado
S' - novo significante
A descrição da fórmula nos termos do esquema II indica que aquilo que foi aparentemente simplificado não desapareceu, mas encontra-se abaixo da barra que separa o significante do significado. A concepção do esquema dessa forma, portanto, permite entender que, na operação da metáfora, quando um termo é deslocado para outro, ele não desaparece, mas permanece como conteúdo latente.
A compreensão do efeito metafórico, dessa maneira, exige que a simplificação de S não seja considerada uma mera supressão. Para Laplanche (1961/1992), os recursos poéticos da metáfora se dão justamente pela permanência de algo do significado, em forma de significante latente. Isso significa que o sentido metafórico da frase "seus olhos são como amêndoas", por exemplo, só pode ser apreendido na medida em que a ideia do significado da amêndoa não for perdida.
Para ilustrar sua argumentação, Laplanche lança mão de uma das primeiras formas de simbolização utilizadas pela criança para dominar tanto a presença quanto a ausência da mãe, o fort-da. No entanto, sua atenção se volta para o momento anterior à brincadeira, em que a oposição entre o par de fonemas opostos (A-O) ainda não pode ser percebida. Esse momento mítico, então, é caracterizado por um "mesmo movimento que produz a separação do céu e da terra e sua nomeação" (Laplanche, 1961/1992, p. 247), no qual a percepção das relações de oposição se dá na medida em que a criança se insere no campo da linguagem. Ou seja, a percepção do par de opostos presença/ausência enquanto tal, acontece num movimento simultâneo, no qual a percepção da existência de A se dá em oposição a O. Esse será o primeiro nível de simbolização, e que lançará sobre o psiquismo em vias de constituição uma malha de oposições significantes. Nesse tempo, há apenas a introdução da pura diferença, que no gesto do "fort-da" seria representada pela barra da cama entre a criança e o carretel. Um segundo nível de simbolização seria o que Lacan chamou de metáfora. A criação do inconsciente estaria inserida neste segundo nível, como resultado do recalque originário que introduz uma hiância entre significante e significado, um lastro que nunca será reencontrado, a não ser no mundo do esquizofrênico. É essa segunda etapa que põe um fim à incessante oscilação entre pares de opostos (tais como + e -, A e O, claro e escuro), podendo ser considerada a ancoragem no mundo simbólico.
Ainda que seja possível perceber a tentativa de Laplanche de complementar a teoria lacaniana sem necessariamente discordar da formulação dos pontos de capitonagem, as formulações proferidas por Laplanche em Bonneval acabaram sendo refutadas por Lacan. Embora tais críticas não tenham sido aceitas, Lacan se viu obrigado a responder às importantes questões colocadas em Bonneval, que evidenciavam como sua teoria corria o risco de colocar a psicanálise num puro nominalismo, distante de qualquer materialidade. Embora Lacan não tenha acompanhado Laplanche em seu caminho teórico, Leite (2001) nos conta que tanto o texto "Posição do Inconsciente", escrito por Lacan em 1964, quanto o conceito de "letra", forjado anos mais tarde, apresentam reformulações importantes, que tentam dar conta das críticas recebidas até então.
A tentativa de conciliação com as ideias lacanianas pode ser percebida na manobra teórica que Laplanche (1961/1992) faz para afirmar que o estatuto ontológico do inconsciente como linguagem, tal como defendia Lacan, implica não concebê-la apenas como linguagem verbal. Dessa maneira, ele argumenta que os elementos do imaginário tomados pelo inconsciente não se transformam em linguagem verbal - a existência deles continua a ser composta por imagens que, além de não remeterem a nada que não a si mesmas, não apresentam distinção alguma entre significante e significado. Embora o inconsciente seja composto por essas imagens, o imaginário visual também deve ser considerado como linguagem, ou seja, o imaginário visual pode ser elevado ao estatuto de significante. Essa formulação ilustra o quanto Laplanche tentava conciliar as suas ideias com a formulação lacaniana de que o inconsciente é estruturado como linguagem.
Depois de Bonneval…
Embora a exposição do posicionamento de Laplanche em Bonneval não explicitasse uma discordância irreversível de Lacan, a consolidação dessas ideias acabaria sendo responsável pelo rompimento entre os dois, pois Laplanche não recuaria diante de seu ponto de vista de que a existência do inconsciente é imprescindível para a aquisição da linguagem. Se em Bonneval ele estava totalmente inserido dentro do pensamento lacaniano, um rumo teórico próprio foi tomado a partir de então. Talvez seja possível afirmar que a apresentação de 1960 já demonstrava uma discordância que vislumbrava algumas limitações de um pensamento que vem sendo bastante problematizado, qual seja, o estruturalista. Assim, é possível inferir que o embrião de uma crítica ao estruturalismo já estava presente nas discordâncias de Laplanche, mesmo quando esse pensamento ainda fervilhava na França.
Em 1981, na conferência "O estruturalismo: sim ou não?", no México, Laplanche fez um balanço da influência do movimento estruturalista na psicanálise, examinando-o para além de sua relação com o pensamento lacaniano. Ao questionar o puro formalismo e entender que a inserção do estruturalismo linguístico no campo da ciência é possibilitada pela definição do significado a partir da posição do termo na cadeia significante, Laplanche indaga se a noção de valor relacionada à posição dentro da estrutura é uma posição ontológica ou é apenas um postulado metodológico. Para exemplificar seu questionamento, ele compara o conceito de valor na linguística e no marxismo. Para Marx, o fato de o valor de troca ser o único que pode ser tratado pela ciência não implica o desaparecimento do valor de uso. É preciso perguntar, então, se a redução do sentido à estrutura, feita pela linguística estruturalista, é parte da tentativa de tratamento científico da linguagem ou se implica o desaparecimento do "valor de uso" do termo. Para Laplanche, tudo indica que o valor de uso acaba desaparecendo.
Para sustentar sua argumentação, Laplanche recorre à definição freudiana de que os sonhos são a via régia para o inconsciente, postulada em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/2006). Considerando que, embora o acesso aos sonhos seja possível apenas pelo relato do sonhador, pois eles, em si, não são compostos de palavras, Laplanche (1961/1992) afirma que o inconsciente estruturado como uma linguagem, tal como postulado por Lacan, contradiz a concepção freudiana de um inconsciente formado por imagens, representações de coisa. Se, num primeiro momento, Laplanche tentou encobrir a contradição do pensamento lacaniano por ele apontada, ao elevar as representações de coisa ao estatuto de significantes em Bonneval, a consolidação de seu pensamento, na conferência de 1981, consolida seu ponto de vista divergente de Lacan. Diante disso, Laplanche reafirma seu posicionamento e passa a defender que a modificação na grafia da fórmula da metáfora não é apenas outra forma de representar a mesma coisa, ela é essencial para que seu ponto de vista seja defendido.
Outros desencontros teóricos
Reconhecendo que o estruturalismo psicanalítico encontra respaldo em algumas formulações freudianas, Laplanche (1981) examina quais elementos resistem à corrente estruturalista e quais se rendem a ela, tanto no que se refere ao Complexo de Castração, quanto ao Complexo de Édipo. Para isso, ele põe em pauta a discussão sobre a transmissão da lei e sua relação com o estruturalismo, encontrada no debate sobre as origens do Superego.
A formulação freudiana clássica postula que o Superego é herdeiro do Complexo de Édipo, uma vez que a aceitação da interdição do incesto irá promover a interiorização da lei paterna pela criança. Para Laplanche, a generalização dessa proibição, presente na constituição do Superego, acaba por adquirir um caráter estruturalista, na medida em que apresenta a função de um enunciado, um dito paterno da ordem da linguagem. Se é possível pensar a constituição do Superego a partir do viés do estruturalismo, Laplanche aponta como a própria psicanálise pode lançar mão de outras maneiras de compreender o funcionamento das instâncias superegoicas: Melanie Klein (apud Laplanche, 1981, p. 15-34), por exemplo, na contramão do que os estruturalistas acreditam, defende que a constituição do Superego é bem anterior ao Complexo de Édipo, e que ele é uma instância mais inquisidora e déspota do que propriamente legisladora.
Tomando essas duas vertentes, Laplanche se pergunta se haveria dois superegos ou se a concepção de algum deles estaria equivocada. Sem escolher nenhuma das duas opções, ele apenas aponta que a concepção estruturalista não é a única, pois o próprio Freud, que teve contato com as ideias kleinianas, não se atreveu a refutar o que ela defendia, uma vez que seu embasamento clínico parecia ser bastante significativo. Partindo do argumento basal de que a presença de ambiguidades (que não podem ser negligenciadas) na teoria psicanalítica colocam, de fato, em xeque o pensamento puramente estrutural, Laplanche cita uma outra ambiguidade teórica presente na situação edipiana, tomada a partir da estrutura de um triângulo que exige que o menino seja como o pai (no sentido de identificar-se com ele), ao mesmo tempo em que proíbe que ele se comporte como o pai em relação à mãe. Se a formulação clássica descreve o menino se identificando ao rival por causa de seu amor pela mãe, Laplanche (1981) aponta como a clínica mostra que a rivalidade com o pai é secundária no processo identificatório, já que o amor por ele desempenha um papel mais importante para a identificação. Assim, a relação amorosa entre pai e filho aponta como a forte influência dos pares afetivos filho/mãe e filho/pai acarreta a impossibilidade de tomar a questão somente pelo ponto de vista triangular. Assim, é possível verificar como o próprio complexo de Édipo descortina algo que escapa ao funcionamento estrutural.
Se, como vimos, as bases para uma concepção estrutural encontram suas raízes no próprio Freud, as releituras estruturalistas, quando não problematizadas, continuam servindo de embasamento para posturas conservadoras, que acabam sendo responsáveis por posturas opressoras.
O estruturalismo, sim ou não?
Não existiria som se não houvesse o silêncio
Não haveria luz se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim
Dia e noite Não e sim
(Lulu Santos / Nelson Motta)
O fato de a corrente estruturalista estar em alta na época do Colóquio de Bonneval não impediu que Laplanche já conseguisse vislumbrar os limites do alcance de pressupostos que, naquela época, apresentavam-se como muito revolucionários. O transcorrer dos anos, entretanto, indicou que Laplanche não foi o único a apontar pontos de fragilidade da corrente estruturalista, uma vez que um movimento crítico em relação a ele foi ganhando força, levando-o a se perguntar se uma simbolização para além da estrutura seria possível. O próprio título do artigo em que ele discute tais questões, "O estruturalismo, sim ou não?", já apresenta a armadilha, uma vez que qualquer resposta a esta pergunta implicaria uma solução binária. Em sua opinião, a pergunta que seria mais pertinente deveria oferecer possibilidades múltiplas de resposta, sem serem restritas a um a "sim" ou "não". Sem esgotar o debate, o autor encerra a conferência com o seguinte questionamento: "No mundo contemporâneo existem lugares, ainda que pontuais, para uma simbolização aberta? Seria presunçoso supor, ou pelo menos desejar, que a psicanálise seja um desses lugares?" (Laplanche, 1981, p. 34 - tradução nossa).
Desejar que a psicanálise carregue a possibilidade de simbolizações abertas parece um dever presente na teoria psicanalítica desde as suas origens, mas será que a teoria psicanalítica tem mantido o caráter subversivo que marcou algumas de suas mais importantes postulações? O que fazer para continuar o compromisso de teorizar a partir de pressupostos que estejam em consonância com as rupturas de pensamento que se fizerem necessárias para compreendermos melhor o mundo em que vivemos? Será que alguns pressupostos da teoria psicanalítica de base estruturalista não acabaram contribuindo para processos de exclusão de sujeitos cuja sexualidade não corresponde aos discursos normativos? Se a teoria postula processos de subjetivação baseados na correspondência entre o par de opostos castrado/não castrado e mulher/homem, podemos indagar se ela não contribuiu (e continua a contribuir) para conservar a lógica binária que ainda rege a sexualidade? Como a psicanálise pode se desenvolver, teoricamente, para reinventar, por analogia, os versos da epígrafe: "não existiria som se não houvesse o silêncio"?
A reivindicação de Laplanche de uma psicanálise que aceite melhor aquilo que escapa ao funcionamento estrutural coincide com as críticas apontadas pelo movimento feminista e pelo movimento LGBT, pois este também reivindica tanto a quebra da compreensão do mundo por meio de pares de opostos, quanto a exigência da análise de fenômenos sociais a partir de sua historicidade (em detrimento de uma estruturação predeterminada). Há, portanto, um ponto de entrecruzamento entre o pensamento de Laplanche e esses movimentos, cujo vértice comum acaba sendo o pensamento estruturalista.
Uma outra autora que também se alinha a essas críticas ao estruturalismo como um todo é a filósofa Judith Butler, que, desde a publicação de Problemas de Gênero (1990/2003), se consolidou como referência contemporânea nos estudos sobre gênero, sexualidade, identidade e poder. Neste livro, ela aponta como o movimento feminista cometeu um erro ao unificar as mulheres em um só grupo, como se todas elas tivessem os mesmos interesses. Para ela, esse ponto de vista corrobora uma visão binária do mundo, uma vez que a reunião dos interesses de todas as mulheres em um único grupo implica uma limitação de possibilidades, uma vez que um sujeito só pode ser identificado como homem ou mulher, excluindo qualquer outra possibilidade de identificação.
No artigo "Subversões do desejo: sobre gênero e subjetividade em Judith Butler", de 2007, Arán e Júnior apontam como Butler acredita que há "uma certa ortodoxia" da teoria psicanalítica, representada principalmente pelos seguidores de Lacan, que, ao defenderem a centralidade dos complexos de Édipo e de castração nos processos de subjetivação, acabam por reduzi-los a oposições binárias. Para a filósofa estadunidense, essa ortodoxia fica a serviço de relações de poder baseadas numa universalidade fundamentada em referentes transcendentes, a-históricos. Essa transcendência, por sua vez, está embasada numa concepção de subjetividade cujo fundamento é sustentado por um ponto de vista estrutural, que desconsidera a multiplicidade da diferença e as contingências sócio-históricas da subjetivação.
Butler indica que a concepção psicanalítica do Simbólico fundada no estruturalismo entende que a diversidade de expressão de gênero e de objeto sexual escapam da estrutura, dando margem a que as sexualidades não normativas acabem sendo colocadas no campo da abjeção. Para ela, isso indica como essa corrente de pensamento não está atenta às transformações históricas do tempo no qual ela se insere.
As formulações de Catherine Millot (1983/1992) acerca dos transexuais, que incluem a transexualidade no campo das psicoses, exemplificam esse tipo de posicionamento:
Lacan dá a essa carência [do Nome-do-Pai] o nome de forclusão, o que significa que o pai não tem existência simbólica para o sujeito, que nada, ao nível dos significantes dos quais dispõe o sujeito, vem representá-lo. Esta forclusão comporta uma quantidade de consequências, algumas das quais estão em relação estreita com a posição transexual. (Millot, 1983/1992, p. 30)
Um outro exemplo da exclusão desencadeada por esse tipo de posicionamento pode ser encontrado na centralidade do complexo de castração, que é atribuída aos processos de subjetivação. Tal centralidade exclui o órgão sexual feminino da teoria e, com isso, põe as mulheres numa posição de inferioridade.
"Mas o falo, na teoria lacaniana, não corresponde ao pênis", alguns poderão argumentar. Ora, para uma teoria baseada na relevância do significante, é ingênuo negar a intrínseca relação estabelecida pela linguagem entre falo e pênis. Isso, certamente, tem implicações na forma como a importância do falo é tomada para os processos de subjetivação.
Outro desdobramento dos pressupostos psicanalíticos estruturalistas que acabam por colocar as mulheres numa posição hierárquica inferior localiza-se na concepção que define os processos de subjetivação a partir da separação entre a criança e a mãe: a concepção da mulher como uma espécie de elemento da natureza que impede o acesso da criança à cultura, tomada ao pé da letra, acaba implicando a exclusão da mulher do universo cultural, uma vez que, para ser inserida na cultura, a criança precisaria se destacar da mãe, pela intervenção do pai.
Poder e gênero estão imbricados
Butler (1990/2003) é enfática ao afirmar que não acredita na possibilidade de separação entre poder e gênero. Baseando-se no pensamento de Michel Foucault, ela aponta como o poder não pode ser simplesmente uma forma de oprimir ou dominar, já que ele próprio participa da construção das subjetividades. Assim, sob esse ponto de vista, as relações de poder devem ser tomadas como algo que regula a formação dos indivíduos, ao mesmo tempo que os assujeita. De acordo com a perspectiva foucaultiana, o poder não é um fenômeno de dominação de um indivíduo sobre os outros; ele funciona em rede e produz o indivíduo. Desta maneira, as relações de poder acabam produzindo discursos que ficam instituídos como norma, estabelecendo uma regulação que reconhece certas práticas como legítimas e outras como abjetas. O enquadramento de certas práticas no campo da abjeção, por sua vez, acarreta processos de exclusão.
Os efeitos do poder sobre a constituição dos sujeitos são levados às últimas consequências por Butler, na medida em que ela acredita que as regulações de gênero apresentam uma especificidade que lhes confere uma posição privilegiada. Se considerarmos que as identidades que conhecemos como possíveis são a masculina e a feminina, é possível pensar que o gênero é tomado como uma norma que classifica os sujeitos como homens e mulheres, ao mesmo tempo em que estabelece uma hierarquia entre eles, com base numa espécie de heterossexualidade compulsória. A descoberta do sexo do bebê na ultrassonografia é um bom exemplo para essa questão. Após a descoberta de um pênis ou uma vagina no corpo do bebê, os pais passam a masculinizar ou feminilizar a criança, inserindo-a no universo da linguagem que se fundamenta na determinação de seu sexo. Assim, vemos que "O ato de nomear é, ao mesmo tempo, a repetição de uma norma e o estabelecimento de uma fronteira" (Arán & Júnior, 2007, p. 134). Se, por um lado, seria realmente bastante estranho que diante da ultrassonografia de uma menina alguém afirmasse "é uma lésbica", por outro, também é preciso apontar que tal estranheza implica a presunção de uma heterossexualidade compulsória.
Essa argumentação indica como a nomeação implica, simultaneamente, a dominação e a coerção, conjunção essa que constrói a realidade da percepção dos corpos de maneira bem específica. O gênero, afirma Butler (1990/2003), é uma identidade que vai sendo construída ao longo do tempo por meio da repetição de gestos, estilos e movimentos. Os atributos de gênero precisam ser reiteradamente performados para que a identidade de homem ou de mulher seja mantida. Dessa maneira, a regulação do sexo, seja ele masculino ou feminino, é fictícia, uma vez que ela precisa ser constantemente repetida para que a identidade se aproxime do ideal atribuído ao gênero pela cultura. Se há uma reiterada necessidade da repetição de atos para a manutenção do gênero, aponta Butler, pode-se presumir a existência de certa instabilidade nas normas, indicando a possibilidade de espaço para que uma repetição diferencial se produza. Diante disso, alinhamos essa argumentação com a proposta de Freud em "Recordar, repetir e elaborar" (1914/2006), indicando que a repetição pode produzir uma elaboração que abra caminho para uma desconstrução. No caso ora discutido, a desconstrução do gênero deslocaria a legitimidade normativa binária que ele apresenta.
Ao entender que o gênero pode ser considerado ao mesmo tempo uma norma e uma fonte de resistência, Butler, mais uma vez, aproxima-se do pensamento de Foucault, que descreve a influência exercida pelo poder na constituição das subjetividades. Para ele, a própria engrenagem do poder apresenta uma força de resistência com grande potencial de transformação. Isso implica a existência de uma "insubmissão" constitutiva do poder, que pode ser usada para a inversão das relações já estabelecidas. Dessa maneira, o gênero, tomado como norma estabelecida por um jogo de forças imerso em relações de poder, tal como proposto por Butler, também carrega em si mesmo um potencial de transformação. É a repetição de atos performativos masculinos e femininos que traz em si a possibilidade de uma repetição que seja diferencial.
Riscos classificatórios radicais
Butler (1990/2003) aponta que a adoção de expressões como "transgêneros", "cross-gender" e "gender blending" pode ser interpretada de duas maneiras diferentes. A primeira delas é uma interpretação estrutural que defende a manutenção do binarismo e da hierarquia, pois ela considera que tais expressões denominam um desvio. Diferentemente dessa concepção, uma outra forma de interpretação para o uso de tais expressões pode ser oferecida, por meio de uma perspectiva histórica e contingente, que propõe a subversão desse tipo de normatividade. De acordo com este ponto de vista, essas expressões sublinham como repetições diferenciais já estão em operação em nossa cultura.
A normatividade à qual Butler faz referência tem forte influência na teoria psicanalítica, principalmente no que diz respeito a uma categoria de Simbólico que vem sendo muito usada no debate sobre a política. Baseados nessa categoria, alguns psicanalistas de inspiração lacaniana defendem o gênero como uma construção a-histórica, fixa e predeterminada. O debate ocorrido na França em 1999 para a aprovação do "Pacto Civil de Solidariedade" é um exemplo bastante ilustrativo desse tipo de posicionamento. Na ocasião, a psicanálise foi convocada a participar da discussão sobre noções como filiação, diferença sexual, parentesco, e, como desdobramento dessas questões, o casamento homossexual. Esse debate, entretanto, não girou em torno de elementos biológicos ou psicológicos, mas utilizou a preservação da ordem simbólica que, conforme nos contam Arán e Júnior (2007), foi defendida como argumento central contra a união entre homossexuais. De acordo com esse ponto de vista, a liberação do casamento gay provocaria o apagamento da tríade heterossexualidade-casamento-filiação, implicando o esfacelamento da diferença sexual no simbólico e a consequente destruição daquilo que assegura a sociabilidade.
A argumentação defendida no debate baseava-se numa afirmação polêmica que discorria sobre a estreita relação entre pensamento e classificação. Segundo o ponto de vista defendido, nenhuma sociedade poderia admitir o parentesco homossexual porque o casamento gay prejudicaria nosso sistema de classificação, já que a discriminação fundamental teria sua base na diferença dos sexos. Tal perspectiva, portanto, estabelece um sistema classificatório baseado na diferença sexual, organizando o pensamento por meio de uma tríade na qual a homossexualidade não se encaixa.
Amarrações da concepção lacaniana do Simbólico
Outro ponto da teoria psicanalítica que se alinha a esta crítica relaciona-se com a primazia do masculino, encontrada desde Freud com sua concepção acerca do complexo de castração. Por mais que o fundador da psicanálise tenha admitido uma relação entre o complexo de castração e outras experiências de separação, como o desmame, a perda das fezes e até mesmo do nascimento, a castração ocupa uma posição privilegiada, pois encarna a função da "lei" e institui a ordem humana. Baseando-se nesses pressupostos, a teoria lacaniana construiu uma concepção de simbólico na qual a castração determina a estrutura subjetiva e é responsável pela inserção do sujeito na cultura. Arán e Júnior (2007) apontam que aqueles que defendem a centralidade do complexo de castração acabam travestindo a "primazia do falo" freudiana de "simbólico". Se esse "travestimento", por um lado, parece didático para o entendimento da diferença sexual, ele contém implicações que devem ser sublinhadas, como por exemplo a de não problematizar a centralidade da primazia do masculino nos processos de subjetivação. Essa noção de simbólico, aponta Butler, acaba engessando a psicanálise no campo da heteronormatividade. Assim, ela indica a necessidade de a teoria psicanalítica encontrar outras formas de concepção dessa diferença, pois somente assim as sexualidades não normativas podem ser incluídas no seu escopo.
Arán e Júnior (2007), corroborando o ponto de vista butleriano, apontam que, embora as representações girem em torno da castração tanto para os homens como para as mulheres, isso não faz com que ela seja a natureza do processo de simbolização. Segundo os autores, o conceito do Nome-do-Pai de Lacan naturaliza a castração como responsável pela simbolização, pois parece ser imune a qualquer mudança histórica.
Os autores enfatizam como o modelo usado pela psicanálise para estruturar a diferença entre os sexos foi construído com base num momento histórico no qual a prevalência do masculino sobre o feminino imperava e a homossexualidade era completamente excluída. Em relação a esse momento histórico, os autores afirmam que:
Levar em conta a historicidade do sexual não é apenas uma questão ética e política, mas, sobretudo, uma questão teórica da maior importância. Se existe um território sexual "fora" ou "excluído" do simbólico, em relação ao qual o próprio simbólico se constitui, é fundamental reconhecer como as contingências históricas e políticas podem promover neste mesmo território deslocamentos subjetivos, ampliando as possibilidades existenciais. (Arán & Júnior, 2007, p. 142)
Em diálogo com as proposições butlerianas, os autores apontam como a imposição de uma matriz heterossexual, decorrente da fixidez da norma estruturalista, acaba transformando aquilo que não se enquadra no esquema binário em algo impossível de ser simbolizado. Assim, a compreensão da lei como algo que está além dos indivíduos e das práticas culturais e históricas faz com que o simbólico seja entendido como algo estanque. Dentro desse contexto, qualquer inadequação à norma implica psicose ou perversão, colocando, assim, qualquer escolha sexual dissonante no campo das aberrações. Quando concebido de maneira estanque, o conceito de simbólico se configura como obstáculo às tentativas de reconfiguração social.
Diante disso, os autores sublinham como essa concepção está imbricada com as relações de poder, que definem o que é, ou não é, aceitável em nossa sociedade. Assim, a flexibilização dessas normas torna-se imprescindível para que outras formas de construção de gênero possam ser retiradas do campo da abjeção. Se as normas e as relações de poder são socialmente construídas, elas estão sujeitas a variações e, portanto, o simbólico não pode ser estanque e determinador dos sujeitos - ele deve advir como resultado da sedimentação das práticas sociais.
Paralelas entre a crítica laplanchiana e os movimentos sociais
Diante das críticas feitas pelos movimentos feminista e LGBT à psicanálise lacaniana, é possível entender a relevância da crítica laplanchiana. O embate teórico iniciado em Bonneval relaciona-se a questões que vão muito além de pormenores conceituais, pois suas implicações desembocam na sustentação de pontos de vista que, "em nome da teoria psicanalítica", apresentam posturas sectárias. Laplanche também questiona essa concepção do simbólico ao defender a concretude das mensagens implantadas no corpo da criança no momento da sedução originária. Para ele, ainda que o tratamento simbólico dessas mensagens enigmáticas faça parte do processo que dará origem ao inconsciente, a influência do outro na constituição do inconsciente não se dá somente pela via do discurso, uma vez que a sedução originária inclui a linguagem não verbal. Em seu livro A Tina: A transcendência da transferência (1987/1993), o autor problematiza a referência ao "simbólico" e à "Lei" como algo que paira além dos indivíduos. Ao defender que a regra que funciona para uns pode não funcionar para outros, Laplanche embasa seu argumento em defesa da flexibilização das normas nas palavras do próprio Freud, que, embora se refiram à questão da técnica, também podem nos ajudar a pensar sobre as normas acerca do gênero:
No que se segue, esforçar-me-ei por reunir, para uso de psicanalistas militantes, algumas regras para o início do tratamento. Entre elas estão algumas que podem parecer pormenores insignificantes, como na verdade são. Sua justificativa é serem simplesmente regras de "recomendações" e não reivindicar qualquer aceitação incondicional para elas. A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica; e ocasionam que um curso de ação que, via de regra, é justificado possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, enquanto outro, que é habitualmente errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim desejado. Estas circunstâncias, contudo, não nos impedem de estabelecer para o médico um procedimento que, em média, é eficaz. (Freud, 1913/2006, p. 139)
Assim podemos defender que as críticas laplanchianas ao estruturalismo estão em consonância com as demandas que os movimentos LGBT fazem à psicanálise. Na esteira dessa flexibilização das normas, Arán e Júnior (2007) também questionam a "aceitação incondicional", para usarmos as palavras de Freud, da concepção estanque da relação entre sexo e escolha de objeto sexual. Eles apontam que as proibições contra o incesto, que introduzem o sujeito no universo da cultura, não têm como produto final apenas "homens com pênis heterossexuais" e "mulheres com vagina heterossexuais". Elas também produzem deslocamentos, tais como a homossexualidade e a transexualidade, modelos em dissonância com padrões normativos de sexuação. Uma mulher pode encontrar em outra mulher um resíduo da fantasia dirigida a seu pai, assim como um homem pode substituir o desejo pela sua mãe por um outro homem, dando vazão a uma confluência de desejos tanto heterossexuais como homossexuais. Diante disso, a reivindicação é de uma flexibilização nas normas que objetive incluir as sexualidades LGBT e as mulheres, permitindo sua inserção no campo da simbolização e possibilitando o surgimento de novas formas de sociabilidade. "Daí a necessidade de continuarmos a repensar os parâmetros a partir dos quais abordamos o desejo, a sexualidade e as subjetividades no mundo contemporâneo" (Arán & Júnior, 2007, p. 145).
Enfim… é preciso reformular…
Ora, diante de tais considerações, fica difícil compreender como o pensamento psicanalítico, cujo impacto sempre esteve relacionado ao seu potencial subversivo, tanto pela descoberta da sexualidade infantil perverso-polimorfa quanto pela postulação da infinita variabilidade do objeto sexual, vem se aliando a posturas conservadoras em um âmbito que lhe é tão caro: o da sexualidade. Assim, a necessidade de reconsideração de alguns de seus pressupostos torna-se imprescindível para que sujeitos neuróticos não sejam aprisionados sob o rótulo de psicóticos unicamente devido à sua "sexualidade dissonante". Ora, não seria "dissonante" uma boa definição para a sexualidade desvelada pelo próprio Freud, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2006)?
Sabemos que muitos afirmarão que as críticas aqui apresentadas estão ultrapassadas, desde que Lacan, em 1964, escreveu o texto "Posição do Inconsciente", reposicionando-se em relação ao estruturalismo a partir das críticas proferidas em Bonneval. Sabemos, também, que muitos dirão que, tal como Freud, Lacan reformulou seus pontos de vista ao longo de sua obra. Mas algumas situações indicam que a reiteração da crítica ainda se faz necessária1, pois, por mais que o ensino de Lacan tenha oferecido ferramentas para pensar as questões contemporâneas de maneira menos estanque, existem muitos autores fazendo um uso viciado de sua teoria para legitimar posições que, além de conservadoras, acabam contribuindo para a opressão daqueles cuja sexualidade é dissonante das normas vigentes, como pudemos ver em algumas ponderações de Catherine Millot que rotulam os transexuais de psicóticos com base na lógica estrutural lacaniana.
Ainda que Lacan tenha reestruturado sua teoria e que isso dê margem para se pensar as novas configurações da sociedade de maneira menos fixa, ainda convivemos com pontos de vista que, em nome de Lacan, defendem um estruturalismo que desconsidera o "Real" das mudanças que marcam o nosso tempo em nome da defesa de uma concepção estanque do Simbólico.
Nosso percurso argumentativo nos leva a concluir, portanto, que nossas críticas ao estruturalismo lacaniano relacionam-se mais com a manutenção de um ponto de vista que não considera as reformulações feitas por Lacan ao longo de sua obra. Se, por um lado, é possível afirmar que a crítica aqui apontada está ultrapassada, uma vez que Lacan reposicionou seu pensamento diante das críticas ao estruturalismo, ela se torna muito atual quando autores contemporâneos legitimam práticas sociais a partir de um Lacan desatualizado. Se existem teóricos que retiram da teoria lacaniana algum embasamento para a manutenção de uma ordem que é arbitrária e causa sofrimento, acreditamos que a crítica de Laplanche precisa ser reiterada.
Enquanto teoria construída dentro de uma determinada sociedade, a psicanálise não está imune às representações sociais e às relações de poder vigentes na sociedade na qual se desenvolveu. Por isso, não é surpreendente que a teoria psicanalítica tenha corroborado alguns pontos de vista sectários vigentes na sociedade em que ela foi construída. Isso, entretanto, não torna desnecessário o questionamento dos valores hegemônicos que causam sofrimento aos sujeitos que são excluídos. Seguindo a trilha de Freud, que reformulou suas ideias inúmeras vezes na tentativa de abranger aquilo que a regra falhava em explicar, acreditamos que tanto a flexibilização da concepção de Simbólico como a flexibilização das normas no processo de subjetivação são necessárias, pois as reivindicações sociais contemporâneas redefinem nossos posicionamentos, indicando o caminho que a psicanálise deve percorrer para estar em consonância com os dilemas da sociedade na qual ela é produzida e para a qual ela é instrumento de intervenção.
Referências
Arán, M.; Júnior, C. P. (2007). Subversões do desejo: sobre gênero e subjetividade em Judith Butler. Cadernos Pagu, 28, p. 129-147. [ Links ]
Butler, J. (2003). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade (trad. R. Aguiar). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. (original publicado em 1990). [ Links ]
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Recebido em 12 de outubro de 2016
Aceito para publicação em 06 de dezembro de 2017
1 Uma análise pormenorizada dos desdobramentos da crítica laplanchiana no pensamento de Lacan é encontrada no texto "O inconsciente está estruturado como uma linguagem", de Márcio Peter de Souza Leite (2001).