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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.2 Rio de Janeiro May./Aug. 2018

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n02A02 

SEÇÃO TEMÁTICA: CLÍNICA DO SOCIAL

 

Esquizofrenia, clínica e saúde mental na psicologia sócio-histórica e na psicanálise

 

Schizophrenia, clinic and mental health in socio-historical psychology and in psychoanalysis

 

Esquizofrenia, clínica y salud mental en la psicología sociohistórica y la psicoanálisis

 

 

Fabiano Chagas RabêloI; Reginaldo Rodrigues DiasII; Gustavo de Oliveira CarvalhoIII; Karla Patrícia Holanda MartinsIV

IProfessor do curso de psicologia da UFPI (Universidade Federal do Piauí), Parnaíba, PI, Brasil
IIProfessor do curso de psicologia da UFPI, Parnaíba, PI, Brasil
IIIPsicólogo formado pela UFPI, PI, Brasil
IVProfessora nos cursos de graduação e pós-graduação em psicologia da UFC (Universidade Federal do Ceará), Fortaleza, CE, Brasil

 

 


RESUMO

A partir da leitura de Vygotsky e seus comentadores, discutem-se as proximidades e distanciamentos entre a psicologia sócio-histórica e a psicanálise no que tange à clínica da esquizofrenia. Há nos dois casos a valorização dos fenômenos de linguagem e a abertura para um projeto clínico não médico, que se estabelece sob diferentes perspectivas na interlocução com a psicopatologia clássica. Na psicologia sócio-histórica, a ênfase recai nos aspectos cognitivos e na consciência; na psicanálise, nos conteúdos inconscientes e na sexualidade. Interroga-se a materialização dessas ideias nas práticas dos psicólogos nas políticas de saúde mental. Há, por parte de alguns psicólogos da perspectiva sócio-histórica, uma ênfase nos aspectos macro da psicogênese, o que leva à valorização de intervenções que têm por objetivo imediato a promoção da cidadania, a consolidação da rede de cuidados e a mudança de cultura sobre a doença mental. Na psicanálise, essas metas estão presentes, porém matizadas pela consideração das especificidades dos laços sociais de cada sujeito. Salienta-se que, apesar das diferenças, o desenvolvimento dialógico de um trabalho clínico a partir dessas abordagens pode favorecer os objetivos da reforma psiquiátrica.

Palavras-chave: esquizofrenia; clínica; abordagem sócio-histórica; psicanálise; atenção psicossocial.


ABSTRACT

From a reading of Vygotsky and his commentators, we discuss the convergences and departures between socio-historical psychology and psychoanalysis regarding the clinic of schizophrenia. In both cases, it is possible to perceive an emphasis on language phenomena and an opportunity for a non-medical clinical project, which is established from different perspectives in the exchange with classical psychopathology. In the socio-historical perspective, the emphasis is on cognitive aspects and consciousness; in psychoanalysis, in unconscious contents and sexuality. We question the materialization of these ideas in the practices of psychologists in mental health policy. The socio-historical psychologists emphasize the macro aspects of psychogenesis, which leads to an emphasis on interventions that immediately aim at promoting citizenship, strengthening the care network and changing the mindset about mental illness. In psychoanalysis, these goals are nuanced by taking into account the particulars of each person's social bonds. It is pointed out that, despite the differences, the dialogical development of a clinical work based on the aforementioned approaches may further the goals of psychiatric reform.

Keywords: schizophrenia; clinic; socio-historical; psychoanalysis; psychosocial attention.


RESUMEN

A partir de la lectura de Vygotsky y sus comentadores, se discuten las aproximaciones y distanciamientos entre la psicología socio-histórica y el psicoanálisis en lo que se refiere a la clínica de las esquizofrenias. Se constata en los dos casos la valorización de la lenguaje y la apertura a un proyecto clínico no médico en la interlocución con la psicopatología clásica. En la psicología socio-histórica, el énfasis incide en los aspectos cognitivos y en la conciencia; en el psicoanálisis, en los contenidos inconscientes y en la sexualidad. Se interroga la materialización de esas ideas en las prácticas de psicólogos en la salud mental. Se constata actualmente por parte de la psicología socio-histórica el énfasis en aspectos macro de la psicogénesis y una laguna sobre los aspectos clínicos. Esto favorece las intervenciones que objetivan inmediatamente la promoción de la ciudadanía, la consolidación de la red de cuidados y el cambio de cultura sobre la enfermedad mental. En el psicoanálisis, la aplicación de estas metas son mediados por la consideración a las especificidades de los lazos sociales de los sujetos. Se subraya que, a pesar de las diferencias, el desarrollo dialógico de un trabajo clínico puede favorecer la reforma psiquiátrica.

Palabras clave: esquizofrenia; clínica; socio-histórica; psicoanálisis; atención psicosocial.


 

 

Introdução

No âmbito da psicologia, é possível encontrar várias concepções acerca do que constitui a clínica, assim como as práticas e saberes que nela estão inclusos (Aguiar, 2001). Constata-se daí diferentes referenciais metodológicos e teóricos aos quais os psicólogos que atuam nesse campo se referem para se posicionar e intervir diante das demandas de sofrimento que lhes são endereçadas. Como consequência, surge a necessidade de interrogar tais referenciais a fim de explicitar seus fundamentos e implicações éticas (L. C. M. Figueiredo, 1991).

As práticas psicológicas, por sua vez, encontram na clínica das psicoses um campo que desvela intensas dificuldades, principalmente no que concerne à comunicação e ao estabelecimento de vínculos com os pacientes (Mendes, 2005). Tal fato constitui um desafio, especialmente, no Brasil, para os profissionais que atuam nos equipamentos públicos de saúde mental, onde o referencial psicossocial enfatiza a promoção da inclusão de doentes mentais graves por meio da estratégia da clínica ampliada (Amarante, 2007; Campos, 2002; Oliveira, 2010).

É pertinente esclarecer que o modelo psicossocial não prescreve nenhuma linha metodológica específica. Ao invés disso, incentiva a construção de um ambiente de trabalho multidisciplinar, plural, permeado por contribuições de diferentes áreas. Nele, coloca-se como prioridade o respeito à singularidade e à cidadania, assim como a viabilização de formas de tratamento mais humanizadas que substituam o modelo asilar no contexto de um dado território de atuação (Guerra & Souza, 2006; Mendes, 2005; Tenório, 2002).

Tendo isso em vista, este estudo contrapõe duas correntes em destaque na atualidade que orientam as práticas psicológicas no campo da saúde mental no Brasil, a psicanálise e a psicologia sócio-histórica (Alberti, 2006; A. C. Figueiredo, 2005; Guerra, 2004; Kyrillos Neto, 2009; Zurba, 2011), com o intuito de explicitar o modo como cada uma problematiza a clínica das psicoses. Por se tratar de uma temática pouco evidenciada pela literatura científica disponível, a ênfase deste artigo recai no resgate das contribuições de Vygotsky e no mapeamento das formas de assimilação de seu legado nas práticas com psicóticos no campo das políticas de saúde mental. A psicanálise desempenha o papel de contraponto que permite evidenciar a especificidade e pressupostos do pensamento do autor russo. De forma análoga, entende-se que as considerações de Vygotsky ajudam a esclarecer as idiossincrasias e nuances metodológicas da abordagem psicanalítica das psicoses.

É importante esclarecer alguns limites que foram assumidos neste trabalho. Embora este recorte se restrinja às contribuições de Vygotsky e de seus comentadores, deve-se admitir que ele não representa o único expoente da psicologia sócio-histórica de relevância a se debruçar sobre a temática aqui tratada (Rey, 2012). Além disso, deve-se considerar algumas advertências que os autores que se dedicam ao estudo de seus textos recomendam. Primeiro, sua obra ainda não foi totalmente catalogada e divulgada. Soma-se a isso o caráter inacabado de seu projeto de investigação, em decorrência de sua morte precoce. Por fim, há as críticas acerca da qualidade e precisão das versões disponíveis ao público brasileiro (Prestes & Tunes, 2012).

Inicialmente faz-se uma panorâmica da discussão sobre a esquizofrenia em Vygotsky. Em seguida, são arroladas as contribuições de outros autores vinculados ao referencial sócio-histórico que se apoiam no seu ensino. Na discussão, é apresentada de forma sintética a concepção psicanalítica sobre essa temática, considerando suas semelhanças e discordâncias com a psicologia sócio-histórica. Ao final, discute-se como as práticas alicerçadas nesses dois referenciais implementam as propostas de inclusão e clínica ampliada.

 

Metodologia

Optou-se por utilizar as terminologias psicose, loucura e esquizofrenia como palavras-chave. A partir daí, realizou-se uma varredura nas Obras escogidas de Vygotsky, da editora Visor, inicialmente em uma versão digitalizada. Nessa busca, não foi encontrada nenhuma menção aos dois primeiros termos, ao passo que a palavra esquizofrenia surge com relativa frequência (Vygotsky, 1931/1997, 1934/1994, 1960/1994, 1982/1991). Os textos nos quais essa palavra está presente foram tomados como objeto de comentário. Além deles, foi incluído um capítulo intitulado Thought in schizophrenia, presente na coletânea organizada por Valsiner e Van der Veer (Vygotsky, 1931/1994), que não consta na edição da Visor. Para os demais autores da teoria sócio-histórica, realizou-se uma pesquisa nas plataformas PePSIC, BVS Saúde e no portal de periódicos da CAPES com os termos esquizofrenia OR psicose OR loucura AND Vygotsky, considerando-se apenas os artigos publicados em revistas indexadas.

Avaliou-se necessário demarcar as variações de significados que as palavras-chave supracitadas assumem, de modo a não tomar erroneamente expressões homônimas como equivalentes conceituais, uma vez que o sentido desses termos pode sofrer alterações significativas em função do contexto e do referencial teórico. Assim, a discussão encetada por Vygotsky restringe-se ao que na obra de Freud (1914/1997, 1915/1997) representa um tipo clínico das psicoses, a esquizofrenia. Além disso, alguns autores da psicologia sócio-histórica, baseados em Vygotsky, utilizam o termo loucura (Ratner, 1995) no sentido de crises disruptivas, o que, por sua vez, ultrapassa a concepção psicanalítica da psicose (Dunker, 2005), haja vista que na psicanálise é perfeitamente possível falar de uma loucura neurótica.

Para proceder com a discussão de forma sistemática, optou-se por situar um território em comum a partir do qual foi possível contrapor as concepções da psicanálise e da psicologia sócio-histórica acerca das psicoses. Foram encontrados três eixos compartilhados pelas duas abordagens: a pesquisa clínica, a valorização da linguagem e o debate com a psicopatologia clássica. Comentaremos brevemente cada um deles.

Diante das diferentes acepções que a palavra clínica assume no campo da psicologia, optou-se por tomar como referência as contribuições trazidas por Sauret e Dunker. Assim, para o primeiro (Sauret, 2003), a clínica não é redutível a um procedimento terapêutico. Trata-se antes de uma atitude de investigação frente ao real. O clínico é aquele que se esmera em criar uma resposta para uma questão que surge de uma insuficiência ou falha no saber que um dado sofrimento aponta. Para Dunker (2002), o segundo autor a que nos referimos, a clínica é caracterizada como uma "trajetória de escuta, desocultamento, destinação e crítica da subjetividade" (p. 33). Como tal, o autor afirma que ela não deve ser tomada como sinônimo de uma determinada prática disciplinar, seja ela liberal ou institucional. Em outro livro, Dunker (2011), a partir de uma leitura de Foucault (1977), enriquece essa definição. Para ele, a clínica é uma experiência discursiva sustentada por quatro elementos: etiologia, semiologia, diagnóstico e intervenção. Tais componentes, por sua vez, devem estar referidos a uma mesma causalidade material e articulados em uma relação de covariância. Pode-se afirmar daí que tanto na psicanálise como na psicologia sócio-histórica a causalidade material que garante a homogeneidade do discurso clínico remonta à linguagem. Por fim, a interlocução com a psicopatologia descritiva (Berrios, 2012) do final do século XIX e início do XX também pode ser apontada como um elemento que se sobressai nas duas abordagens citadas.

 

Resultados

A leitura dos textos de Vygotsky que versam sobre a esquizofrenia demonstra que, apesar de pouco evidenciada por seus comentadores, essa temática não constitui um elemento pontual e isolado em sua obra. Trata-se de uma exigência vinculada a um projeto epistêmico e metodológico mais amplo. Para ele, o estudo da esquizofrenia auxilia na construção de um entendimento mais acurado das leis que regem a constituição do psiquismo humano (Vygotsky, 1931/1997). Por isso, Vygotsky assume o desafio de adequar o seu projeto de reformulação crítica da psicologia às especificidades das manifestações psíquicas dos esquizofrênicos. Com esse intuito, ele parte do comentário às contribuições de seus contemporâneos para formular uma síntese parcial, de onde é possível depreender um esboço de teoria (Vygotsky, 1931/1994). Segundo Lima e Carvalho (2013), a grande maioria dos textos de Vygotsky sobre a esquizofrenia está localizada no período final de sua vida, durante a década de 1930, quando o interesse pelos aspectos ontogenéticos do desenvolvimento e seus distúrbios estão mais evidenciados.

De início, chama atenção em Vygotsky (1931/1997, 1931/1994) a suspensão - intencional e explícita, diga-se de passagem, pois não se trata de erro ou negligência - de definir uma etiologia para a esquizofrenia. Sabe-se que, desde o início da clínica médica, a etiologia das psicoses traz consigo significativas dificuldades, uma vez que ela exige a formulação de uma relação causal complexa, na qual elementos heterogêneos interagem, transformando-se mutuamente (Foucault, 1991). Sobre esse ponto, Dunker e Kyrillos Neto (2011) chamam atenção para o risco do reducionismo - o biológico, sobretudo -, que acompanha a história da psicopatologia. Tendo isso em vista, é possível afirmar que a suspensão do projeto de estabelecer uma determinação etiológica precisa para a esquizofrenia em Vygotsky resulta de uma atitude de cautela. É provável que ele estivesse ciente da insuficiência das informações ao seu dispor para demonstrar de forma conclusiva a participação preponderante de uma causalidade social na gênese das psicoses. Ainda assim, o autor defende de forma incisiva a sinergia entre os processos intrapsíquicos e sociais, refutando a ideia, bastante popular entre os psiquiatras, de que prevalece na esquizofrenia uma matriz causal endógena (Vygotsky, 1982/1991). Conclui-se então que essa reserva de Vygotsky difere substancialmente daquela que é encontrada atualmente nos manuais diagnósticos, que se apresentam como a-teóricos e a-históricos, mas que advogam abertamente a favor de uma modalidade bioquímica de intervenção (Calazans & Lustoza, 2008).

Isso fica evidente quando Vygotsky (1931/1997) afirma que a esquizofrenia constitui um conceito diagnóstico psicológico e não médico, uma vez que sua unidade nosológica fundamenta-se na descrição e agrupamento de alterações patológicas da personalidade e da visão de mundo. Desse modo, ainda que identifique a influência de um componente orgânico na gênese da doença, Vygotsky (1931/1994) defende que é necessário estudar os fenômenos relacionados a essa afecção do ponto de vista psicológico. Por isso, propõe analisar as alterações cognitivas dos esquizofrênicos a partir de duas linhas de trabalhos que se entrelaçam e se retroalimentam: a revisão de seus próprios construtos teóricos e o debate com autores da psicopatologia.

Para tornar mais claro o fio condutor dessa discussão, é preciso contextualizar algumas ideias com as quais Vygotsky dialoga. Segundo Quinet (2006), durante o final do século XIX e o começo do XX, predominou a concepção e a terminologia de Kraepelin - dementia praecox - para o que hoje se reconhece como esquizofrenia. Para o psiquiatra alemão, os fenômenos relacionados a esse quadro clínico eram interpretados como o resultado de um processo similar ao que acometia as pessoas mais velhas que padecem de perdas progressivas da memória. Essa concepção só foi retificada com Bleuler, que propôs uma nova descrição e nomenclatura. Doravante, a esquizofrenia passa a ser percebida como efeito da soma de um conjunto de alterações psíquicas: do pensamento, julgamento, afeto, das relações sociais, além de uma cisão da personalidade e do eu. Vygotsky busca, portanto, integrar essa explicação de Bleuler à sua teoria do psiquismo humano.

Não é demais ressaltar que tanto Kraepelin como Bleuler se apoiam numa matriz causal fisiológica. Para Vygotsky e Freud, no entanto, tal premissa não é sustentável, uma vez que ambos se mostram céticos quanto à existência de uma relação linear e contínua entre o somático e o psíquico (Freud, 1915/1997, 1925/1999; Vygotsky 1982/1991). Ambos, sem excluir a influência dos fatores biológicos (Andrade & Smolka, 2012; Toassa, 2012), enfatizam os efeitos da fala e do social na determinação dos fenômenos psíquicos.

Desse modo, as alterações psíquicas na esquizofrenia - alucinações auditivas, delírios, sensações corporais etc. - são explicadas por Vygotsky (1931/1997) como um retrocesso das aquisições cognitivas consolidadas na fase de transição para a idade adulta - a adolescência -, ao passo que outras aptidões são preservadas, de forma integral ou parcial. A partir daí, argumenta que a esquizofrenia não deve ser tomada como um caos sem sentido, mas como um passo lógico para trás, fato que pode ser verificado por meio da investigação das mudanças nas formas de organização do pensamento e da linguagem no curso da doença. Propõe então que nos esquizofrênicos o pensamento abstrato conceitual generalizante - a principal aquisição cognitiva da fase de transição - retroage em direção ao pensamento ordenado por complexos.

O termo complexo (Roudinesco & Plon, 1998; Laplanche & Pontalis, 1973) é empregado no sentido utilizado por Jung, que foi colaborador tanto de Bleuler como de Freud. Isto é, como um bloco de ideias e imagens unidas por uma forte carga de afeto. Nos complexos, uma representação fortemente investida vem ocupar o lugar de centro gravitacional e de influência ao redor do qual outras representações orbitam. Para Vygotsky (1931/1997), os complexos são uma modalidade de pensamento geneticamente menos desenvolvida, mais refratária às mediações simbólicas.

A partir dessas hipóteses mais fundamentais, Vygotsky dialoga com autores de sua época, ressaltando a necessidade de se contemplar tanto os aspectos genéticos e funcionais do pensamento como as suas estruturas de linguagem, morfológicas e sintáticas. Para ele, essas dimensões do estudo da esquizofrenia comparecem dissociadas na pesquisa psicopatológica, o que representa um obstáculo para a construção de um entendimento global e abrangente do problema. Apesar disso, afirma que Freud e Jung foram aqueles que mais avançaram nessa seara (Vygotsky, 1931/1997; 1931/1994). Por isso, os dois são os seus interlocutores mais próximos nesse debate.

Entende-se que a perspectiva genética busca dar conta da lógica que rege as mudanças na organização do pensamento e da linguagem no curso do desenvolvimento. A funcional, por sua vez, se preocupa com a capacidade de uma dada pessoa responder e se adaptar a determinadas tarefas e situações (Figueiredo & Santi, 2010). Já as investigações morfológicas e sintáticas buscam esclarecer as idiossincrasias da intricada relação entre pensamento e linguagem, destacando as suas diferentes formas de organização, assim como a variedade e a qualidade dos conteúdos simbólicos que lhe servem de fundamento (Todorov, 2012).

Tendo em vista a integração dessas quatro linhas de pesquisa, Vygotsky (1931/1997) se refere a autores de diferentes tradições metodológicas e epistêmicas: além de Freud, Jung e Bleuer, já mencionados, também comenta os trabalhos de Storch, Kapers, Volkelt e Pavlov. A ideia de regressão e sua aplicação à explicação da esquizofrenia parece ser o elo entre eles.

Segundo Vygotsky, Storch propõe um paralelo entre o pensamento do esquizofrênico, o dos povos de culturas mais primitivas e o da criança nas primeiras fases do desenvolvimento. Sua tese principal é a de que nos três casos pode-se constatar uma cisão da personalidade, que se manifesta na forma de um comprometimento da função de autoconsciência e da capacidade de reconhecer, significar e diferir as relações objetais.

Vygotsky, no entanto, explica as patologias da constituição do Eu na esquizofrenia de forma diferente de Storch, que se apoia em premissas fisiológicas e orgânicas. Para ele, trata-se de um processo cognitivo permeado por um déficit no trabalho de significação. Em função dessa falha, o mundo dos objetos do esquizofrênico transforma-se progressivamente de modo radical. Suas experiências exteriores não correspondem ao agrupamento das representações internalizadas, o que impossibilita uma diferenciação suficientemente duradoura entre o eu e o mundo externo. Nessa conjuntura psíquica, os conceitos abstratos perdem sua estabilidade, sendo substituídos por complexos de ideias difusas e fragmentadas, resultado da amálgama de traços visuais e sonoros.

Logo, para Vygotsky, há uma sinergia entre a desagregação da personalidade e a perda da unidade e constância do mundo exterior. Ambos resultam de um abalo radical da função de significação, que ocasiona, por sua vez, um processo de regressão do pensamento. Em função dessas transformações no pensamento e da linguagem, as outras funções psíquicas superiores - a memória lógica, a atenção voluntária e os processos volitivos - são atingidas, mas secundariamente, em sentido inverso, conforme a sequência de sua estruturação histórica e genética.

Outro autor citado por Vygotsky é Kapers, que interpreta a regressão na esquizofrenia por um viés anatômico e neurológico. Para ele, as áreas do córtex mais intensamente atingidas na esquizofrenia são aquelas que se desenvolvem mais tardiamente na ontogênese e filogênese, coincidindo com as zonas do sistema nervoso central responsáveis pelas funções intelectuais superiores. A transformação dessas áreas do cérebro reflete profundamente nos processos cognitivos. Como resultado, as formas mais primitivas do pensamento perdem a mediação das mais complexas, passando a ocupar o primeiro plano na organização psíquica.

Kapers, de acordo com Vygotsky, pondera que algumas formas mais complexas de pensamento são preservadas como subestrutura, ao passo que outras se desestabilizam mais intensamente, especialmente as funções mais dependentes das capacidades de síntese e abstração. O que resulta daí é um modo de organização psíquica bastante peculiar, cujo exemplo mais concreto está no estado de confusão mental, quando vários pensamentos e vivências afetivas ocorrem concomitantemente, de forma descontrolada.

Além de Storch e Kapers, Vygotsky faz referência às pesquisas de Volkelt e Pavlov. O primeiro demonstra que a percepção consciente de um objeto configurado, constante e separado de si surge relativamente tarde no curso do desenvolvimento. Tal conquista, reitera Vygotsky, está intimamente articulada aos efeitos da palavra no psiquismo, não podendo ser reduzida pura e simplesmente a um processo de maturação somática. Em Pavlov, Vygotsky vai destacar seus trabalhos sobre as expressões fisiológicas patológicas dos esquizofrênicos. Nesses estudos, Pavlov propõe que uma falha na inibição interna das atividades psíquicas espontâneas desempenha um papel decisivo na formação dos delírios, alucinações e automatismos motores. Dessa forma, são prejudicados o julgamento e o juízo da realidade, que são responsáveis pela diferenciação entre os devaneios e a percepção consciente dos objetos externos (Freud, 1924/1997).

Outra dimensão relevante da discussão que Vygotsky (1931/1997) realiza acerca da esquizofrenia diz respeito à sua apropriação da categoria marxista e hegeliana de alienação, operando uma ressignificação desse termo na tradição psiquiátrica. A partir daí a palavra alienado, que possuiu durante muito tempo o sentido de desprovido de razão (Foucault, 1991), passa a significar o esgarçamento das mediações sociais e simbólicas.

Para Vygotsky (1931/1997), a criança, no curso de seu desenvolvimento, possui a tarefa de sair de um modo imediato e incompleto de existência em si para tornar-se um ser para si. Ela conquista uma forma mais complexa de estar no mundo, na qual as mediações sociais e simbólicas externas tornam-se processos internalizados. Essa passagem franqueia, no plano cognitivo, a conquista do pensamento abstrato-conceitual e leva à construção de uma consciência de si. Já no plano ético, ela repercute na obtenção da autonomia, da liberdade e do livre arbítrio. Daí a conclusão que o esquizofrênico, ao perder os relacionamentos coletivos, acaba, como consequência, por perder a si mesmo. Isto é, à medida em que deixa de se entender e falar com os outros, ele também cessa de dirigir-se a si mesmo por meio de uma linguagem simbolicamente orientada. Isso o torna progressivamente mais introvertido. Esse processo pode assumir diferentes intensidades e inflexões, sendo o autismo a sua expressão mais extrema (Vygotsky, 1982/1991). Conclui-se daí que tais mudanças não são um fato natural endógeno, mas o resultado de um comprometimento progressivo da eficácia das mediações simbólicas e sociais. Por isso, Vygotsky acentua a diferença qualitativa radical entre os estudos com animais e humanos na pesquisa psicológica sobre a esquizofrenia (Vygotsky, 1982/1991). Nestes, as mediações, sociais e simbólicas, exercem uma influência mais preponderante.

Numa outra vertente de pesquisa, Vygotsky (1931/1997) procede com uma comparação entre a esquizofrenia e outros quadros clínicos que apresentam alterações psíquicas análogas ou semelhantes, embora qualitativamente diferentes no plano ontogenético, semântico e formal. Salienta que a afasia, a histeria e a esquizofrenia constituem exemplos distintos do processo de desintegração das estruturas que se estabilizam na idade de transição. Defende que o estudo comparado desses quadros clínicos pode trazer esclarecimentos relevantes acerca das estruturas cognitivas dos esquizofrênicos.

Vygotsky defende que o pensamento na esquizofrenia se encontra em um nível geneticamente mais comprometido em relação à afasia e à histeria. Nela, os danos ocasionados pela regressão são mais vastos e seus efeitos, mais radicais. Enquanto nas afasias as modificações no pensamento são insignificantes e discretas, haja vista que os danos se restringem às conexões entre as representações, mantendo intactas as estruturas conceituais e a capacidade de abstração e generalização, na esquizofrenia toda a estrutura cognitiva é atingida e, por consequência, a experiência da realidade. Acredita-se que no caso da histeria, embora isso não esteja explícito, o que Vygotsky busca averiguar é o comprometimento, assim como na esquizofrenia, da unidade da consciência, com a ressalva de que nela é preservado o pensamento lógico abstrato.

No texto Thought in schizophrenia, Vygotsky (1931/1994) dedica-se à investigação dos aspectos sintáticos e formais da linguagem dos esquizofrênicos, utilizando-se para isso de alguns testes verbais e de raciocínio. Constata nos sujeitos com os quais interagiu uma dificuldade específica na compreensão de metáforas, destacando que essas pessoas, apesar de possuírem conhecimento prévio dos provérbios e figuras de linguagem que lhes foram apresentados, não conseguiam simbolizar e alcançar uma interpretação metafórica satisfatória dessas expressões. Conclui daí que o esquizofrênico leva aquilo que lhe é dito ao pé da letra, no sentido literal. Vygotsky também sublinha a dificuldade que alguns esquizofrênicos demonstram quando lhes é solicitado que construam e completem cadeias associativas, valendo-se para isso de critérios lógicos homogêneos.

Essas são, em resumo, as principais contribuições de Vygotsky acerca da esquizofrenia. Seu interesse por essa temática, contudo, parece não ter repercutido entre seus seguidores. Atualmente, no Brasil, são escassos os trabalhos que seguem a orientação da psicologia sócio-histórica e que desenvolvem uma discussão sobre as esquizofrenias ou as psicoses numa perspectiva clínica. Ainda assim, é possível recolher alguns elementos para debater a apropriação de suas ideias no âmbito da saúde mental.

Ratner (1995), por exemplo, dedica um capítulo de seu livro que versa sobre os desdobramentos da teoria de Vygotsky na atualidade à apreciação do tema da loucura. Sem se referir especificamente à esquizofrenia, esse autor toma os termos psicose e loucura como sinônimos, definindo-os como experiências de rupturas bruscas que produzem comportamentos que desafiam a compreensão social e psicológica. Ratner, ao contrário de Vygotsky, defende uma relação causal mais direta e imediata entre um fato social desagregador e o surgimento da doença. Segundo ele, "o pensamento psicótico origina-se de interações sociais perturbadoras" (p. 206). A partir de dados demográficos e epidemiológicos, destaca algumas situações que podem levar ao desencadeamento da psicose, denominando-as eventos desintegradores anômalos: o desemprego, a pobreza e a imigração. Acrescenta ainda: situações sociais normativas duradouras, conflitos nos papéis de gênero, relações socioeconômicas desiguais e as práticas psiquiátricas.

Apesar da abrangência dessas assertivas, o autor admite o caráter parcial e inacabado de suas conclusões, apontando para a necessidade de uma análise mais profunda dos fatores específicos que corroboram a eclosão da doença. Isso inclui a preparação psíquica para lidar com situações conflitantes e os impactos subjetivos específicos ocasionados por situações de vulnerabilidade social.

Essas ideias de Ratner, quando contrastadas com as de Vygotsky, levam ao questionamento sobre uma mudança programática nas pesquisas no âmbito da psicologia sócio-histórica. Em uma entrevista recente (Santos, Vieira, Toassa & Lacerda, 2014), Ratner lança luz sobre as opções que influenciaram suas escolhas metodológicas e temáticas. O psicólogo norte-americano afirma que seu trabalho, embora intensamente respaldado no legado de Vygotsky, diferencia-se dele pela valorização dos aspectos macroculturais na explicação do psiquismo humano. Para Ratner, a principal meta do trabalho do psicólogo deve ser propiciar mudanças culturais e, a partir delas, alcançar transformações psicológicas duradouras e estáveis. No rol dos instrumentos disponíveis para ensejar tais mudanças, o autor cita: as instituições sociais, os artefatos socialmente construídos e compartilhados e os conceitos culturais. Ratner também critica fortemente as categorias nosológicas e diagnósticas presentes na psicopatologia, por considerá-las abstratas e desprovidas de fundamentação concreta (Ratner, 1995). Na entrevista citada (Santos, Vieira, Toassa & Lacerda, 2014), ele faz remontar essa posição à influência dos autores do movimento antipsiquiátrico na década de 70, no qual militava.

Conclui-se então que, em Ratner, o debate sobre a psicose distancia-se da investigação dos aspectos relativos a microgênese e ontogênese do pensamento, algo que Vygotsky, na fase final de sua vida, referindo-se à esquizofrenia, valoriza. Talvez as declarações de Ratner nos ajudem a contextualizar algumas tendências da psicologia no campo da saúde mental na atualidade, nas quais se percebe a ênfase em intervenções sociopedagógicas.

Um outro exemplo de linha de pesquisa inspirada nessa tendência está nas investigações das representações sociais sobre a loucura, como faz Jodelet (2005) na França e Santos e Cardoso (2011) no Brasil. Essas pesquisas, assim como Ratner propõe, têm como meta a transformação da cultura e o combate a estigmas sociais como vias de promoção da inclusão.

 

Discussão

No decorrer deste artigo, foram apresentados alguns pontos de aproximação e distanciamento entre a psicologia sócio-histórica e a psicanálise no que tange à apreciação da esquizofrenia e, de modo geral, das psicoses. Um ponto estratégico para se pensar uma aproximação está na abertura para um projeto clínico não médico. Em ambos os casos, predomina uma atitude de pesquisa cujo alicerce não remonta essencialmente a uma matriz fisiológica, química ou anatômica. Ambas tomam a linguagem como elemento fundamental na construção de uma noção complexa de subjetividade. A partir disso, o estado patológico do esquizofrênico não pode ser tomado como um ente autônomo, cuja existência independente das relações simbólicas e discursivas nas quais um dado indivíduo está inserido.

Vygotsky, Freud e Lacan, por sua vez, não ignoram a participação de determinantes biológicos, que, segundo eles, atuam concomitantemente com fatores psicológicos e sociais, numa relação de mútua determinação. Isso exige que se considere uma matriz genética multifatorial, por meio da qual eventos e fenômenos heterogêneos interagem e se modificam reciprocamente. Vygotsky responde a essa dificuldade com uma atitude de reserva conjugada a uma ênfase nos aspectos sociais e mediacionais. Os psicanalistas, por sua vez, a partir de Freud e com Lacan (1955-1956/2002, 1957/1998), apoiam-se em um conceito metapsicológico próprio, a foraclusão, para operar clinicamente.

Como resultado disso, pode-se afirmar que para Freud, Vygotsky e Lacan a elaboração de uma explicação para os processos psíquicos na esquizofrenia e nas psicoses representa um critério heurístico de fundamental importância. É possível encontrar nesses autores vários elementos oriundos da psicopatologia descritiva psicodinâmica (Berrios, 2012) que são apropriados e reinterpretados, a saber: os conceitos de autismo, de cisão do eu, introversão e regressão, dentre outros (Vygotsky, 1931/1997; Freud, 1914/1997). Além disso, há várias semelhanças entre Freud (1914/1997, 1915/1997) e Vygotsky no que tange a suas estratégias de pesquisa. Por exemplo: a investigação comparada - do ponto de vista fenomênico e genético - entre esquizofrenia, afasia e histeria. Outro exemplo é a analogia entre os processos psíquicos normais e patológicos, que não são tomados como ontologicamente e qualitativamente distintos um do outro.

Decorre daí que, tanto para o psicanalista como para Vygotsky, o esquizofrênico não pode ser entendido como alguém alienado de sua capacidade de pensar racionalmente, cujo acesso à realidade - tomado como um fato primário no sentido do processo de constituição psíquica - encontra-se obstruído. Nos dois casos, o desafio está em ensejar uma forma de mediação que potencialize as configurações linguísticas e psíquicas singulares dos esquizofrênicos, permitindo-lhes uma interação mais estável e satisfatória com o mundo.

Deve-se considerar, contudo, as especificidades das formas de mediação e do uso da linguagem em cada caso. Primeiramente deve-se destacar que, muito embora se identifique claramente uma preocupação clínica no seu trabalho, Vygotsky não se preocupa com o desenvolvimento de uma técnica psicoterápica. A atitude de Freud quanto ao tratamento psicanalítico de sujeitos psicóticos, por sua vez, é inicialmente de ceticismo (Freud, 1914/1997) e, num segundo momento, de reserva (Freud, 1925/1999, 1933/1997). Ainda que não exclua essa possibilidade, ele prevê a necessidade de uma modificação da técnica para sua efetivação. Tal reserva, por sua vez, não impediu que ele incentivasse seus colaboradores a desenvolver trabalhos nessa área. O próprio Freud refere-se às contribuições de seus colaboradores, como Jung (Freud, 1911/1997), Tausk (Freud, 1915/1997) e Abraham (Freud, 1917/1997) na discussão metapsicológica sobre as psicoses. As diretrizes dessa adaptação técnica, no entanto, só foram estabelecidas pelos pós-freudianos, entre os quais Lacan (1955-1956/2002, 1957/1998) se destaca.

Deve-se sublinhar, contudo, que vigoram nas abordagens citadas concepções de sujeito distintas (Dunker, 2002; Carmo & Jimenez, 2013). Por razão de espaço, essa discussão deve ser relegada a outra oportunidade. Contudo, em virtude de sua importância, alguns pontos nodais serão indicados. Vygotsky busca explicar as modificações observadas na esquizofrenia por meio da consciência, ao passo que Freud e Lacan buscam justificá-las a partir do inconsciente. Para a psicanálise (Freud, 1925/1999), os fenômenos psicóticos constituem uma forma de manifestação do inconsciente a céu aberto, isto é, sem incidência do recalque. Vygotsky, a seu turno, explica a esquizofrenia como um déficit global que atinge de forma integrada três dimensões do psiquismo: cognitiva, social e simbólica.

Isso fica evidente ao se comparar o uso que fazem do termo regressão. Embora encontremos essa palavra tanto em Freud (1914/1997) como em Vygotsky (1931/1994), tratam-se de modos diferentes de se entender o conceito e o fenômeno em questão. Enquanto na psicanálise tal ideia está alicerçada na sexualidade, que, em última instância, constitui o circuito pulsional que liga o sujeito ao Outro (Lacan, 1963-1964/1998), para Vygotsky (1931/1994), a regressão assume uma acepção preponderantemente cognitiva.

Tal discrepância torna-se ainda mais explícita ao se analisar como Vygotsky (1931/1997) e os psicanalistas abordam a influência da sexualidade na formação dos fenômenos esquizofrênicos. Enquanto o primeiro avalia a presença de conteúdos sexuais na esquizofrenia como um fenômeno atrelado à própria idade de transição (Vygotsky, 1931/1997), para os últimos a influência de componentes sexuais assume uma função mais radical (Freud, 1911/1997, 1914/1997, 1915/1997, 1924/1997; Lacan, 1955-56/2002, 1957/1998).

Da mesma forma como acontece com a ideia de regressão, as leituras que Freud e Vygotsky fazem do conceito de introversão evidenciam as diferenças entre suas matrizes explicativas. Enquanto para Freud trata-se de um fenômeno da libido que retroage em direção ao Eu, sendo desinvestida dos objetos do mundo (1914/1997), para Vygotsky a introversão é o correlato de uma falha na síntese dos processos de mediação social e das possibilidades de internalização e atualização das mediações simbólicas (Vygotsky, 1982/1991). Se em Vygotsky a alienação remete a uma falha simbólica que abala as mediações sociais, produzindo a introversão, para a psicanálise, esse termo representa um processo mais amplo, não necessariamente prejudicial, como parte da dinâmica da constituição psíquica pela inserção do sujeito na linguagem (Lacan, 1963-1964/1998).

É necessário, por fim, demarcar uma diferença no que tange à concepção de linguagem, com consequências fundamentais para direção do tratamento. Enquanto na psicologia sócio-histórica a linguagem é considerada principalmente a partir de sua unidade de signo/significado, na psicanálise, ela é tomada na sua dimensão significante e real, a partir de sua relação com o pulsional (Lacan, 1955-1956/2002, 1957/1998).

 

Conclusão

É possível extrair dessa pesquisa algumas diretrizes para interrogar a apropriação das ideias de Vygotsky na prática dos psicólogos no contexto das políticas de saúde mental brasileira e, concomitantemente, demarcar alguns pontos de aproximações e distanciamento com a psicanálise.

A proposta de inclusão, na psicanálise, deve estar subordinada à investigação clínica, algo que não necessariamente está presente na abordagem sócio-histórica. Com Ratner, a psicose pode ser tomada como consequência direta de vulnerabilidades sociais. Tal concepção inspira o esforço de dirimir tais riscos e promover estratégias de resiliência no coletivo, por exemplo, pela participação direta em grupos e instituições de apoio. O psicanalista, por sua vez, vai destacar a especificidade do laço social do psicótico e do uso particular que ele faz da linguagem.

É importante frisar que essa especificidade do modo como o psicótico opera com a linguagem - em destaque na discussão psicopatológica e na psicanálise - também está presente em Vygotsky. Esse fato, contudo, é pouco valorizado por seus seguidores, principalmente daqueles que atuam no campo da saúde mental no Brasil. Assim, as dificuldades no atendimento a psicóticos são interpretadas como insuficiências na organização e consolidação da rede de assistência, enquanto para o psicanalista o problema se coloca em termos clínicos, a partir da construção do caso, na singularidade de cada sujeito.

Aqui cabe um parêntese sobre a escassez de estudos nas revistas brasileiras indexadas pela CAPES sobre a clínica com pacientes psicóticos a partir de uma perspectiva sócio-histórica. Muito provavelmente há uma quantidade significativa de profissionais que se orientam pelo legado de Vygotsky e seus colaboradores para sustentar uma prática clínica, mas que não sistematizam ou publicam os resultados de seu trabalho. É interessante indagar as razões disso.

Uma situação diametralmente oposta ocorre com os psicanalistas, que têm uma quantidade significativa de textos publicados sobre suas práticas clínicas nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Esses textos destacam, como temáticas privilegiadas relacionadas à prática de psicanalista na saúde mental, a construção de casos clínicos, a aplicação de técnicas e conceitos no contexto psicossocial, relatos de experiências institucionais, além de reflexões sobre a interação entre a psicanálise e outras abordagens clínicas (A. C. Figueiredo, 2005; Guerra, 2004; Guerra e Souza, 2006; Kyrillos Neto, 2009; Mendes, 2005; Montanari & Carvalho, 2011; Silva, 2007; Ribeiro, 2005; Rinaldi & Bursztyn, 2008).

Diante dessa leitura do estado da arte atual do fazer clínico no campo da saúde mental no Brasil, defende-se que uma cisão entre uma terapêutica sem clínica e uma clínica desarticulada de uma preocupação política constitui um forte obstáculo para a consecução dos objetivos da reforma psiquiátrica conforme o referencial psicossocial. É prudente, todavia, evitar julgamentos maniqueístas, reconhecendo o engajamento político-clínico dos psicanalistas brasileiros que atuam nos CAPS e o interesse clínico da parte de um número significativo de psicólogos alinhados ao referencial sócio-histórico. Logo, essa ligação entre clínica e política pode ser potencializada.

Para concluir, vale pôr em destaque que o fortalecimento de uma clínica não médica que se apoia na linguagem e numa concepção complexa de subjetividade constitui um passo fundamental para a consolidação de uma estratégia de cuidado no coletivo que leve em conta a singularidade e especificidade de cada pessoa. A aproximação de um debate em torno da clínica da esquizofrenia e das psicoses entre psicanalistas e psicólogos sócio-históricos que atuam no campo da saúde mental pode representar um movimento significativo nessa direção.

 

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Recebido em 10 de agosto de 2017
Aceito para publicação em 11 de dezembro de 2017

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