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Psicologia Clínica
Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.30 no.2 Rio de Janeiro May./Aug. 2018
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n02A05
SEÇÃO LIVRE
Comportamentos autolesivos e administração das emoções em adolescentes do sexo feminino
Self-harming behavior and emotional management in female adolescents
Comportamientos autolesivos y administración de las emociones en adolescentes del sexo femenino
Carolina Silva RauppI; Angela Helena MarinII; Clarisse Pereira MosmannIII
IPrograma de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), São Leopoldo, RS, Brasil
IIPrograma de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Unisinos, São Leopoldo, RS, Brasil
IIIPrograma de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Unisinos, São Leopoldo, RS, Brasil
RESUMO
Uma das manifestações de sofrimento psíquico associada à depressão, ao suicídio e a outras psicopatologias que têm despontado na atualidade em adolescentes são os comportamentos autolesivos (CA). Este estudo foi desenvolvido com o propósito de caracterizar a prática de comportamentos autolesivos em adolescentes por meio da investigação da expressão e administração das emoções. Para isso, desenvolveu-se um estudo de casos múltiplos, do qual participaram quatro meninas com idades entre 13 e 15 anos, que responderam à Escala de Avaliação de Sintomas-90-R e a uma entrevista semiestruturada. Os eixos de análise foram a caracterização dos CA e a administração das emoções. Constatou-se a precocidade do início dos comportamentos autolesivos, seu caráter aditivo e sua utilização para expressar sentimentos, especialmente a raiva. Indica-se a necessidade de preparo dos profissionais para atender adolescentes que manifestam tais comportamentos, face à sua complexidade e proximidade com o suicídio.
Palavras-chave: adolescentes; comportamentos autolesivos; suicídio.
ABSTRACT
One manifestation of psychic affliction associated with depression, suicide and others psychopathologies that has emerged among teenagers is self-harming behavior. This study was carried out with the aim of characterizing the practice of self-harming behavior in teenagers through the investigation of the expression and administration of emotions. To this end, a multiple-case study was devised, in which four teenage girls aged 13 to 15 took part. They went through a symptom assessment scale-90-R and a semi-structured interview. The analysis axes were SB characterization and emotion management. An early inception of the self-harming behavior was observed, as well as its addictive quality and its use in expressing emotions, mainly anger. There is a clear need for the training of professionals in the care of teenagers who evince this sort of behavior, in view of its complexity and affinity to suicide.
Keywords: teenager; self-harming behavior; suicide.
RESUMEN
Una de las manifestaciones de sufrimiento psíquico asociada a la depresión, al suicidio y a otras psicopatologías que vienen despuntando en la actualidad en adolescentes son los comportamientos autolesivos (CA). Este estudio ha sido desarrollado con el intento de caracterizar la práctica de comportamientos autolesivos en adolescentes por medio de la investigación de la expresión y administración de las emociones. Para eso, se ha desarrollado un estudio de casos múltiples, de lo que participaron cuatro niñas con edades entre 13 y 15 años, que contestaron la Escala de Evaluación de Sintomas-90-R y una entrevista semiestructurada. Los ejes de análisis fueron la caracterización de los CA y la administración de las emociones. Se ha constatado la precocidad en el comienzo de los comportamientos autolesivos, su carácter adictivo y utilización para expresar sentimientos, en especial la rabia. Se puntúa la necesidad de preparación de los profesionales para atender los adolescentes que manifiestan tales comportamientos, frente a su complexidad y cercanía con el suicidio.
Palabras clave: adolescentes; comportamientos autolesivos; suicidio.
Introdução
A literatura indica que na adolescência a sintomatologia depressiva é responsável por, aproximadamente, 75% das internações psiquiátricas (Schneider & Ramires, 2007) e que o suicídio é a segunda causa mais comum de morte entre adolescentes (Hawton, Saunders & O'Connor, 2012). Associada à depressão e ao suicídio, a autolesão tem sido uma das manifestações de sofrimento psíquico que tem ganhado destaque frente a sua incidência durante a adolescência (APA, 2014; Ness et al., 2016), momento em que é mais frequente o primeiro ato de se lesionar (Muehlemkamp et al., 2012; Somer et al., 2015).
Conhecido por comportamentos autolesivos, automutilação, autolesão não suicida e por condutas autolesivas sem intenção suicida em português, e por self-injurious behavior, self-mutilative behavior, self-mutilation, self-harm e non-suicidal self-injury em inglês, há divergências quanto à definição do termo, principalmente no que se refere à presença ou ausência de intenção suicida (Guerreiro & Sampaio, 2013). A literatura anglo-saxônica propõe distinção entre dois termos: (a) deliberate self-harm, em que a intenção suicida pode estar presente ou não, incluindo todos os métodos de autolesão e reconhecendo as dificuldades de sua mensuração (Skegg, 2005); e (b) Non-suicidal self-injury, termo que reporta a destruição do tecido corporal, sem intenção de morrer, por meio de cortes e comportamentos associados, como queimaduras, arranhões etc. (Nock et al., 2006).
Além da diversidade de classificações, também se discute se a prática das autolesões é uma psicopatologia. Na recente edição do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5) foi incluída a Autolesão Não Suicida (ALNS) como uma psicopatologia cujos critérios estão em construção (APA, 2014). Para que se dê este diagnóstico, o engajamento em práticas autolesivas deve ocorrer, no mínimo, em cinco dias no ano, causando dor, sangramento ou contusão. Os comportamentos mais típicos são cortar, queimar, fincar, bater ou esfregar excessivamente, geralmente com uso de faca, agulha, lâmina ou outros objetos afiados.
Propõe-se ainda uma diferenciação entre ALNS e o Transtorno do Comportamento Suicida (TCS), cuja diferença consiste na declaração do desejo de morrer ao provocar o ferimento, no TCS, ao invés de experimentar uma sensação de alívio, como ocorreria na ALNS. Ademais, nas condutas presentes nos casos de TCS, existe uma sequência autoiniciada de comportamentos que se dirigem à obtenção do óbito. O indivíduo criará, conforme o manual, estratégias para que o ato se consume, buscando um lugar e um momento em que o salvamento seja difícil de acontecer, ao passo que na ALNS, haverá episódios repetitivos de autolesão com a finalidade de alcançar um estado de humor positivo, produzir um alívio de um estado cognitivo ou de sentimentos negativos (APA, 2014). Orlando, Broman-Fulks, Whitlock, Curtin e Michael (2015) sugerem que a intenção suicida, a gravidade dos comportamentos autolesivos e o número de métodos para produzi-los seriam meios úteis para distinguir entre autolesão suicida e ALNS. Neste estudo será utilizado o termo comportamentos autolesivos (CA), conforme proposto por Madge et al. (2008) como adaptação do termo self-harm, em que a intencionalidade suicida pode estar presente ou não. Contudo, na literatura revisada, foram mantidas as nomenclaturas originais dos estudos.
Quanto à prevalência dos casos de autolesão em amostras comunitárias, Hawton, Saunders e O'Connor (2012) avaliaram uma amostra norte-americana e verificaram que 10% dos adolescentes haviam cometido CA ao menos uma vez ao longo da vida. Em uma pesquisa realizada com 234 adolescentes italianos, os dados obtidos indicaram que 41,9% haviam provocado lesões no corpo sem intenção de suicídio, e 10,2% reportaram repetir o comportamento quatro ou mais vezes (Cerutti et al., 2011). Na Turquia, quase um terço (31%) de 1.656 estudantes adolescentes investigados relatou CA prévio à data da pesquisa (Somer et al., 2015). Já em um estudo desenvolvido em Portugal, abrangendo 396 participantes com idades entre 13 e 21 anos, residentes em cinco regiões distintas desse país, 18% responderam ter se autoagredido ao menos uma vez, e 5,6% relataram ter repetido o comportamento quatro vezes ou mais nos 12 meses anteriores à pesquisa (Reis et al., 2012). Diversos estudos também têm apontado para maior prevalência de pessoas do sexo feminino envolvidas com CA (Barrocas et al., 2012; Laukkanen et al., 2013; Madge et al., 2008). Não foram encontrados dados nacionais sobre a prevalência de CA em adolescentes.
Uma das características do CA que vem sendo destacada é sua semelhança à adição. A pesquisa conduzida por Arcoverde e Soares (2012) apontou que, quando o comportamento é recorrente, antes de lesionar-se o indivíduo experimenta uma sensação de urgência e fissura, uma vez que poucos minutos transcorrem entre o desejo e o ato de autolesão. Além disso, após o CA costuma-se experimentar alívio imediato, semelhante ao que ocorre em casos de adição (Klonsky, 2011). Jorge, Queirós e Saraiva (2015) também assinalaram a dimensão aditiva na fala de 25 adolescentes portugueses, ilustrando a função que os CA sem intenção suicida desempenham na contenção e/ou amortecimento de angústias, caracterizando uma dependência psicológica. Os comportamentos foram relatados pelos adolescentes como uma forma quase exclusiva de autoajuda e suas tentativas frustradas de abandoná-los. Relativo à sensação de dor, descobriu-se que adolescentes que se autolesionam têm um limiar de dor mais alto que os que não apresentam tal comportamento (Glenn et al., 2014).
Em relação aos sentimentos associados, Kamphuis, Ruyling e Reijntjes (2007) buscaram identificar a forma pela qual um grupo de 106 mulheres, integrantes de um grupo de apoio holandês destinado a praticantes de autolesões, experimentava as emoções antes e depois dos episódios. A partir dos dados obtidos, observou-se que todos os estados de humor negativos foram maiores imediatamente antes da realização das autolesões, reduziram-se acentuadamente em seguida, e tornaram a aumentar um dia depois. Portanto, as autolesões foram entendidas como um mecanismo de regulação emocional desadaptativo, mas eficaz a curto prazo para regular afetos negativos.
De forma semelhante, o estudo conduzido por Klonsky, Glenn, Styer, Olino e Washburn (2015), realizado com 1.157 pacientes clínicos norte-americanos, apontou que a ALNS estava a serviço principalmente de fatores intrapessoais de regulação e antidissociação e de fatores sociais (reforço social), a saber, influência interpessoal e vínculo de pares, com vistas a reforçar a identidade de grupo. Young, Sproeber, Groschwitz, Preiss e Plener (2014) também identificaram o reforço da identidade de grupo como uma das motivações para os CA. Portanto, o indivíduo pode desejar, por meio de seu comportamento, comunicar algo, influenciar pessoas de forma indireta, obter alívio (Cerutti et al., 2011; Klonsky, 2011) e regular seu humor (Arcoverde & Soares, 2012; Linehan, 2010). A busca de alívio também foi relatada por jovens hospitalizados em uma pesquisa conduzida com 220 pacientes internados no sul dos EUA (Rice & Tan, 2017).
Conforme exposto, há consenso na literatura internacional de que adolescentes são mais vulneráveis aos CA e que dificuldades em administrar emoções constituem um dos fatores associados a essa prática. Devido ao caráter multifatorial e complexo do fenômeno, é premente a necessidade de pesquisas nacionais que busquem compreender essas práticas e ofereçam subsídios para embasar ações de prevenção e tratamento desenvolvidas por profissionais da saúde. Este estudo, portanto, foi desenvolvido com o objetivo de caracterizar a prática de CA em adolescentes, por meio da investigação da expressão e administração das emoções.
Método
Delineamento e participantes
Trata-se de um estudo de caráter transversal e exploratório (Sampieri, Collado & Lucio, 2013), de abordagem qualitativa, que utilizou o delineamento de estudo de casos múltiplos (Yin, 2015). Participaram quatro meninas com idades entre 13 e 15 anos, de diferentes cidades do interior do estado do Rio Grande do Sul, que haviam se engajado em CA mais de cinco vezes no ano anterior à data da pesquisa. As adolescentes foram indicadas por servidores de escolas e por profissionais da saúde mental, previamente contatados pela autora.
Instrumentos
Ficha de dados sociodemográficos: Composta por perguntas fechadas para o levantamento e mapeamento de características sociodemográficas das participantes, tais como idade, escolaridade, sexo, religião, configuração familiar, realização de tratamento psicológico e/ou psiquiátrico e uso de medicamentos.
Symptom Checklist-90-Revised (SCL-90-R): inventário de sintomas desenvolvido por Derogatis (1994), que visa a refletir padrões de sintomas psicológicos a partir de nove dimensões básicas (somatização; obsessões-compulsões; sensibilidade interpessoal; depressão; ansiedade; hostilidade; ansiedade fóbica; ideação paranoide e psicoticismo) e três índices globais (índice geral de sintomas, total de sintomas positivos e índice de sintomas positivos). No Brasil, a escala foi validada por Laloni (2001) e, no seu preenchimento, o participante classifica o grau em que cada problema o afetou durante a última semana, numa escala do tipo Likert, com cinco opções de respostas. A partir de 1,5 os traços da patologia são considerados moderadamente presentes e se atingirem 3,5 ou mais, muito presentes. A escala possui um ponto de corte para o índice de sintomas positivos, considerando haver maior probabilidade de encontrar perturbações emocionais nos sujeitos que apresentarem pontuações maiores que 1,7.
Entrevista semiestruturada: As perguntas partiram de aspectos gerais para os específicos e foram baseadas na Escala de Dificuldades de Regulação Emocional (Veloso, Gouveia & Dinis, 2011) e nos critérios para ALNS estabelecidos pelo DSM 5 (APA, 2014). A entrevista era composta de 28 perguntas referentes à caracterização dos CA, perguntas pessoais e, finalmente, à administração das emoções. Foram investigadas percepções relativas ao passado e ao presente. Elas foram realizadas pela pesquisadora em um encontro com duração aproximada de 60 minutos.
Procedimentos éticos, de coleta e de análise dos dados
O estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e, após sua aprovação, foram contatados pessoalmente ou por e-mail e telefone diretores, orientadores escolares, bem como psiquiatras e psicólogos da rede de contatos da autora para indicação de participantes. Duas das adolescentes entrevistadas eram irmãs e foram indicadas por uma psicanalista. As demais foram indicadas por escolas. Todas elas e seus responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), redigido segundo as recomendações da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, e foram entrevistadas em suas residências ou na residência de familiares. As informações prestadas por meio da ficha de dados sociodemográficos foram registradas por escrito e as entrevistas semiestruturadas gravadas em áudio.
Os dados obtidos pelo SCL-90-R foram avaliados conforme suas orientações e as entrevistas foram transcritas literalmente e analisadas qualitativamente, por meio da análise de seu conteúdo. Segundo Yin (2015), a análise dos dados consiste no exame, categorização, classificação ou mesmo na recombinação das evidências conforme as proposições iniciais do estudo.
Resultados
Cada caso foi construído individualmente e organizado em dois eixos temáticos, derivados dos dados, a saber: Caracterização dos CA e Administração das Emoções. Após, foi feito um comparativo entre os casos analisados, destacando suas semelhanças e particularidades.
Caso 1: Alana
Alana tinha 15 anos e cursava o nono ano escolar. Residia com seus pais, uma irmã mais nova e há dois dias um tio idoso tinha vindo morar com a família, no interior do estado. Seu pai tinha mais dois filhos do primeiro casamento que moravam em cidades diferentes. Recentemente haviam descoberto a existência de um irmão de sete anos por parte de pai, com quem ela não tinha contato. Os pais da adolescente procuraram ajuda de uma psicoterapeuta do círculo de profissionais ligados à autora havia menos de um mês, no intuito de buscar ajuda para lidar com as duas filhas que mantinham CA já há alguns anos. No momento da indicação para a entrevista, a psicoterapeuta ainda não havia entrado em contato com as meninas, somente havia atendido os pais. A adolescente fazia uso de medicações naturais (passiflora e guaraná) há cerca de um mês, receitados pela própria mãe, pois contou a ela que estava "vendo coisas". A adolescente afirmou que há algumas semanas estava firme em seu propósito de abandonar os CA, a pedido do atual namorado.
Quanto aos sintomas psicológicos avaliados pela SCL-90, Alana obteve as pontuações mais altas nas seguintes dimensões: somatização (1,91), obsessões-compulsões (1,70), sensibilidade interpessoal (3,88), depressão (3,53), ansiedade (3,20), hostilidade (3,50), ansiedade fóbica (3,14), ideação paranoide (2,33) e psicoticismo (3,42). O índice geral de sintomas foi 2,94. Todos os índices estavam acima do considerado emocionalmente saudável pelo instrumento e seus sintomas se expressaram na fala da adolescente.
Caracterização da prática de CA
Conforme o relato de Alana, a prática de autolesões começou a fazer parte de sua vida quando tinha sete anos. A situação gatilho ocorreu quando o menino de quem ela mais gostava na escola a humilhou dizendo que ela era um lixo: "aí eu peguei, cheguei em casa chorando e acabei pegando e me cortando com coisa de apontador". Ela comenta que: "no começo foi aquelas coisinhas de apontador […] depois fui passar para o compasso, e por fim a lâmina da gilete e coisas assim". Inicialmente, cortava seus braços, mas com o tempo passou a cortar diariamente também a barriga e as pernas, chegando à frequência de até três vezes ao dia.
Diferentes propósitos foram apontados como a causa de seu comportamento. Um deles seria um desejo de morrer: "que taria passando tudo, eu pensava mais na mutilação, eu sempre queria acabar morrendo"; outro seria o alívio e a expressão das emoções negativas: "eu dispenso todas minhas raivas, tudo, tudo nos cortes". Sentia-se magoada com as pessoas, principalmente com amigos, e a esse fato atribuía também uma das motivações dos CA. Alana pontuou que: "é necessidade ou falta de alguma coisa […] acho que é o jeito que eu expresso o que eu tô sentindo no momento". No entanto, referiu não estar mais se autolesionando no momento: "porque posso acabar me matando ou coisa assim [chora], que é horrível". Outros sentimentos também foram associados: "às vezes eu me sinto arrependida. Eu fico com muita vergonha de sair na rua." Além disso, também afirmou: "eu tenho medo, nojo de mim mesma, vergonha e principalmente com as pessoas que me olham". Ainda destacou uma preocupação com seus pais: "Eu pensava que quando eu chegasse em casa, principalmente meus pais iam ficar muito chateados comigo."
Administração das emoções
A dificuldade em lidar com as emoções foi reportada por Alana como algo antigo: "quando eu tinha cinco anos eu atirava as bonecas e depois com o tempo eu acabava me cortando". Ela buscava regular seus sentimentos por meio de comportamentos introspectivos: "Eu gosto de ficar trancada no meu canto, não gosto de conversar com ninguém." Além disso, recorria aos vínculos como fator de ajuda nos momentos críticos: "Eu penso nele [namorado] e na minha família. Na real, antes eu não pensava. Eu sabia que eu podia magoar alguém, mas eu preferia magoar ela [a mãe] e acabar melhorando". Para conseguir conter as emoções negativas que experimentava desde que parou de se cortar, passou a utilizar novos recursos, como, escutar músicas alegres ou comer: "como bastante. Agora eu tô comendo, quando eu tô com raiva eu como".
Caso 2: Paula
No momento em que a pesquisa foi realizada, a adolescente estava com 13 anos e cursava o nono ano do ensino fundamental. Irmã de Alana, Paula igualmente reside com os pais e um tio idoso no interior. Relatou não fazer tratamento psicológico e psiquiátrico, nem uso de medicações. Foi indicada pela mesma psicoterapeuta que estava iniciando um tratamento com a família.
Quanto aos sintomas psicológicos avaliados pela SCL-90, Paula obteve as seguintes pontuações: somatização (0,91), obsessões-compulsões (2,90), sensibilidade interpessoal (2,55), depressão (2,07), ansiedade (1,90), hostilidade (1,16), ansiedade fóbica (2,57), ideação paranoide (2,50) e psicoticismo (1,70). O índice geral de sintomas foi 2,04. Embora tendo obtido pontuações altas no instrumento, com exceção de somatização e hostilidade, alguns sintomas não apareceram de forma significativa em seu relato, como será apresentado abaixo.
Caracterização da prática de CA
A primeira vez que Paula se autolesionou foi aos 11 anos, logo após entrar no quarto da irmã e presenciá-la se cortando: "eu acho que eu senti raiva dela, que tava se machucando por coisas que eu não sabia, ela não falava muita coisa […] aí eu me cortei também". Posteriormente, outras motivações foram citadas como gatilho para os CA: "Algumas coisas que acontecem com a minha irmã, pessoas que já me deixaram faz tempo, coisas assim […] na maioria das vezes eu tô sozinha, talvez me sinto assim."
A adolescente descreveu uma sequência de fatos que costumavam anteceder os CA: "me vêm uns pensamentos assim que eu me lembro de algumas coisas que aconteceu aí eu sinto vontade de fazer". Também disse que lembrar de pessoas que se distanciaram e da falta de atitude dos pais frente aos comportamentos autolesivos gerava nela o ímpeto de se machucar. Logo que esses pensamentos se apresentavam, ela procurava ouvir música para aliviar as sensações ruins provenientes deles. Quando o alívio não acontecia, ela fazia os cortes: "um alívio, porque pode ficar doendo mais do que tu tá sentindo no momento".
A lâmina era o instrumento mais utilizado, embora um pedaço de um copo quebrado também já tivesse servido de instrumento para produzir os cortes. Os episódios de autolesão ocorrem com frequência média de três vezes ao mês e os locais escolhidos eram os braços e as pernas. Embora ainda se autolesionando, Paula gostaria de parar de se cortar, e ela e a irmã fizeram uma promessa: "a gente viu que tava sendo ruim pra nós ficar se cortando […] acho que não valia bem a pena ficar se machucando por causa dos outros […] acho agora desnecessário fazer essas coisas".
Administração das emoções
Paula relatou que quando era criança e sentia raiva da irmã "pegava algumas bonecas e arrancava a cabeça". Após esse período, passou a guardar seus sentimentos para si, sem fazer nada. A tristeza era administrada de forma semelhante à raiva, guardada para si, aliviada com os cortes e associada ao escutar música. A forma de lidar com as emoções também se refletia na postura que assume quando ocorrem os conflitos em sua casa: "eu tento não me meter no meio, porque fica chato ficar do lado de um ou ficar do lado de outro. Não falo nada." Paula não soube definir o que sentia depois de se cortar, disse apenas que amenizava um pouco a tristeza.
Caso 3: Évelin
Évelin tinha 15 anos de idade e cursava a sétima série do ensino fundamental. Ao descrever sua configuração familiar, citou somente a mãe, embora tenha uma irmã mais nova que reside com elas. O pai faleceu quando tinha sete anos, momento em que começou a machucar a si mesma apertando as unhas contra as próprias mãos a ponto de criar calos permanentes.
A adolescente se definiu como uma menina não normal, evangélica e antissocial. Ela fazia tratamento psicológico e psiquiátrico desde os 14 anos, quando foi internada pela quarta tentativa de suicídio. Desde então faz uso de neurolépticos e antidepressivos. No momento da entrevista, estava deitada de olhos fechados, com fones de ouvido e tapada com cobertor, embora a temperatura fosse superior a 30 graus. A adolescente se mostrou muito preocupada com a questão do sigilo.
Quanto aos sintomas psicológicos avaliados pela SCL-90, Évelin obteve as seguintes pontuações: somatização (2,41), obsessões-compulsões (3,40), sensibilidade interpessoal (3,00), depressão (3,69), ansiedade (3,40), hostilidade (3,33), ansiedade fóbica (2,71), ideação paranoide (3,33) e psicoticismo (3,20). O índice geral de sintomas foi 3,17. Estas pontuações indicam forte presença de problemas emocionais, condizentes com seu comportamento durante a entrevista e suas falas.
Caracterização da prática de CA
O início dos CA ocorreu após morte do pai, quando tinha 13 anos, motivada pela recomendação de uma menina no Facebook: "Eu tentei e comecei a ficar viciada. Agora, mesmo quando eu não tô triste, eu me corto. Tipo eu tô nem aí." Contudo, na adolescência aumentou de intensidade, mas Évelin não soube precisar a frequência com que se cortava: "Quando eu vejo que o meu braço não tem mais nenhum corte eu penso: tenho que me cortar, tá na hora! Aí eu começo me cortar."
Quanto ao que leva à prática, ela relata: "quando eu tô me sentindo muito mal aqui dentro de mim, quando aqui não aguenta mais, eu começo a me cortar e a dor que eu tô sentindo aqui [braço] é maior do que eu tô sentindo aqui [peito]". Acrescenta que algumas vezes a intenção foi morrer: "Algumas vezes é morrer, outras vezes não. Mas todas as vezes que eu tentei me matar foi com remédio." Portanto, os cortes não eram feitos com essa finalidade. Quando questionada sobre seu desejo de parar com a prática, afirmou que não queria, justificando: "é a única coisa que me faz bem nesse mundo de merda".
Os cortes eram realizados em diferentes partes do corpo. Em sua infância, Évelin costumava machucar suas mãos com suas próprias unhas quando se sentia triste e quebrar os objetos do seu quarto quando sentia raiva. No presente, tem cortado diferentes partes do corpo: "Eu corto não só os braços, porque eu tô tão viciada nisso a ponto de eu cortar as minhas pernas e a minha barriga." Ao cortar-se, verbaliza: "não sei o que eu sinto. Não posso dizer que é felicidade, mas não posso dizer que é tristeza… uma diversão! Melhor descrição. Uma diversão!" Complementa: "fico pensando no que as pessoas pensam. Tipo, as pessoas estão pouco se fodendo, então por que eu vou lá e não vou fazer? Tipo, eu vou fazer mais, eu tô nem aí." Após se machucar: "eu fico tipo, cara, que eu tô fazendo? Só que eu faço de novo. Vou fazendo, vou fazendo porque no fim eu comecei a gostar de me machucar." Entretanto, destacou: "começo a chorar e durmo". Évelin revela: "tenho um mundo dentro de mim onde ninguém sabe". Descreve que fica confusa nesse mundo e que recorre a ele porque se sente bem lá, já que o mundo real não a deixa satisfeita.
Administração das emoções
Na infância, Évelin realizava ações autodirigidas ao experimentar raiva ou tristeza. Na adolescência, a agressividade também esteve presente: "eu quebrava tudo o que tinha em volta de mim", além do tédio, a que se referiu como um sentimento que despertava a vontade de se machucar: "como eu fico muito dentro de casa, tipo não tenho nada para fazer, aí eu fico pensando em coisas que não devia pensar". No instante em que se abordou esse assunto, relatou o que ocorreu num dia em que a mãe proibiu sua ida a um casamento: "… e o meu quarto, eu quebrei todo ele, quebrei tudo, e a minha mãe deixou, tipo, normal, como se tivesse foda-se, e daí". Já sobre os impulsos de se cortar, não fazia questão de dominá-los.
Caso 4: Amanda
Amanda tinha 14 anos, cursava o sexto ano do ensino fundamental e residia com os pais, um irmão adolescente e um sobrinho. Nunca havia feito tratamento psicológico ou psiquiátrico e não fazia uso de medicação. Definiu-se como católica não praticante e mencionou que sua vida e o clima familiar melhoraram após a visita de um casal de pastores, quando começou a orar de joelhos. No momento da entrevista, Amanda disse que não se machucava há aproximadamente cinco meses.
Quanto aos sintomas psicológicos avaliados pela SCL-90, Amanda obteve as seguintes pontuações: somatização (2,00), obsessões-compulsões (3,40), sensibilidade interpessoal (3,66), depressão (3,76), ansiedade (3,10), hostilidade (4,00), ansiedade fóbica (3,42), ideação paranoide (3,00) e psicoticismo (3,40). O índice geral de sintomas foi 3,21. Com exceção da somatização, que estava moderadamente presente, seus índices nas dimensões avaliadas foram bastante altos e seu sofrimento psíquico também foi expressado em seu relato.
Caracterização da prática de CA
Amanda iniciou a prática dos cortes aos 11 anos, após a morte de um irmão de 16 anos, portador de uma deficiência, cujos cuidados básicos eram realizados predominantemente por ela. A sua motivação inicial para a os CA foi encontrar uma alternativa para expressar a raiva: "descontar toda a raiva ali, toda a raiva, todo o ódio que eu sentia". Outra razão que parecia desencadear o desejo de se machucar, era o distanciamento afetivo que percebia nas relações com os pares e com os familiares: "hoje eu não tenho mais em quem confiar, não converso com mais ninguém, com a minha mãe nem meu pai. Aí procuro me cortar, sempre." No entanto, o principal motivo pareceu ser os conflitos com a mãe. A sequência que desencadeava os CA costumava se iniciar com uma briga, seguida pela procura por músicas tristes e logo os cortes. Após se cortar, relatou que: "sentia raiva de mim mesma, sentia muita raiva, sentia ódio". Indagada sobre ideação suicida, responde que algumas vezes tinha esse intuito, outras vezes não.
Os recursos mencionados para produzir os cortes eram faca, lâmina de gilete e tesoura, utilizados em diferentes partes do corpo: "na perna aqui em cima, na coxa e num braço só. Sempre no que eu tinha menos força." Os CA ocorriam de forma descontinuada, alternando meses em que se autolesionava todos os fins de semana e meses em que não o fazia.
Administração das emoções
Amanda apresentou dificuldades para administrar as emoções desde cedo: "Sempre fui de dar soco na parede. Aí com os meus 11 anos que eu me cortei pela primeira vez […] troquei o soco na parede por se cortar". Sua impulsividade ficou evidente ao falar que se enxergava como uma pessoa que, no momento em que praticava a autolesão, não pensava, só sentia e agia. Ademais, demonstrou internalizar seus sentimentos, reproduzindo o comportamento do pai: "quando ele não tava tão estressado ele conversava um pouco. Mas quando ele tava mais estressado ele se fechava um pouco. Acho que isso puxei a ele, né?"
Diferentes sentimentos foram associados ao comportamento autolesivo, sendo o choro a manifestação de alguns deles: "Eu acabo chorando sempre, sempre choro… de raiva, de tristeza, de angústia, de tudo […] aí eu procuro me cortar". Outro sentimento experimentado no último período em que estava se cortando foi a solidão, ou seja, também se autolesionava para não se sentir sozinha. Entretanto, a raiva se destacou como sentimento predominante nos diferentes momentos em que se machucou: "Nos últimos tempos foi por raiva mesmo."
Amanda decidiu parar com os CA depois de conversar com uma professora, com quem compartilhou sua história. Ela a orientou a buscar alternativas mais saudáveis que a ajudassem a alcançar seus sonhos e ser feliz. A partir desta conversa, pensou: "se eu quero uma vida melhor pra mim acho que eu tenho que correr atrás dos meus sonhos […] do que parar no tempo e ficar me cortando". Apesar de se contradizer ao mencionar que se cortava sempre, relatou que seguia em seu propósito de não se cortar, mesmo com a escassez de fontes de apoio entre os amigos e a família.
Análise integradora dos casos
Foram analisadas convergências e divergências entre os casos investigados (Yin, 2015). Em relação às convergências, destaca-se que somente meninas foram indicadas para a pesquisa. Muitos estudos de prevalência indicaram o predomínio de casos do sexo feminino (Barrocas et al., 2012; Laukkanen et al., 2013; Madge et al., 2008). Por exemplo, Barrocas et al. (2012) indicaram que entre 665 adolescentes praticantes de ALNS norte-americanos, as meninas reportaram cortar-se ou cavucar a pele (63,6%), enquanto os meninos relataram bater em si mesmo como recurso para machucar-se (55%). Nesse sentido, é plausível supor que pode ser mais fácil a descoberta dos casos nas meninas, visto que as marcas resultantes das autolesões ficam mais evidentes pelos locais e métodos utilizados. Contudo, também é possível pensar que as meninas estão mais vulneráveis e têm sido indicadas por estudos como apresentando mais problemas emocionais e de comportamento, especialmente os internalizantes, quando comparadas aos meninos (McGoldrick & Shibusawa, 2016; Wathier, Dell'Aglio & Bandeira, 2008).
Um dado comum que chama a atenção é a idade de início da prática das autolesões, considerando que uma menina começou a se autolesionar aos sete anos, duas aos 11 e outra aos 13 anos. Em uma pesquisa conduzida com uma amostra clínica de 164 adolescentes britânicos depressivos, identificou-se que a frequência de casos de ALNS era maior entre os entrevistados mais jovens (Wilkinson et al., 2011). Contudo, em amostra comunitária norte-americana, o final da adolescência foi considerado o período de maior vulnerabilidade para o início da prática de ALNS (Barrocas et al., 2012).
Destaca-se, ainda, que desde cedo as meninas indicaram possuir dificuldades de regulação emocional, sendo impulsivas em suas ações nos momentos de raiva. O alívio proveniente da expressão da raiva é considerado na literatura um reforço positivo (Nock, 2010) e este sentimento esteve presente em todos os casos e como fator elicitador e/ou associado aos episódios de autolesões. A motivação para o CA era proveniente de impulsos descritos como quase incontroláveis e de forma não ritualizada, indicando uma forte tendência da passagem ao ato sem utilizar a reflexão (Jorge, Queirós & Saraiva, 2015; Klonski, 2011).
Além de remeter a dificuldades em administrar os impulsos, as verbalizações das adolescentes apresentaram a dimensão aditiva que Jorge, Queirós e Saraiva (2015) encontraram em sua amostra. À semelhança de uma dependência química, a dependência psicológica se manifesta diante da sensação de incapacidade nos momentos de frustração e da experimentação de sentimentos negativos. Ademais, Arcoverde e Soares (2012) sustentaram que a resposta desejada é vivenciada no momento ou logo após a autolesão e geralmente se estabelecem padrões de comportamento que indicam dependência. Por outro lado, três participantes mencionaram fecharem-se em si mesmas como recurso para enfrentar sentimentos negativos, o que se assemelha aos achados da pesquisa desenvolvida por Nock et al. (2006), em que os transtornos internalizantes estavam associados à maioria dos casos de autolesão.
Outra semelhança encontrada foi o relato da morte de um familiar significativo para duas das meninas. Em ambos os casos, a perda foi associada a episódios de CA. Simpson (1980) observou que, enquanto pacientes suicidas tendem a ter, em sua infância, experiências de privação parental completa devido a morte ou divórcio, os autoagressores mais frequentemente experimentam a perda parcial marcada por distanciamento emocional e afeto parental inconsistente. Évelin, a única que teve a privação parental, por morte do pai, foi quem mais apresentou ideação suicida e buscou consolidar sua morte. Já Amanda sofreu a perda do irmão e afirmou desejo de morrer em alguns momentos na entrevista, mas não relatou tentativas. As demais adolescentes expressaram afetividade parental inconsistente, destacando que eram mais próximas aos pais na infância e distantes na adolescência.
Especialmente em relação a ideação suicida, três meninas investigadas mencionaram experimentar algumas vezes o desejo de morrer, corroborando os achados de Wilkinson et al. (2011) em que a ideação suicida pode acontecer em alguns momentos em que se provocam as autolesões, não com o objetivo real de morrer, mas em busca de um retorno a um estado de normalidade, como forma de apaziguar conflitos internos (Favazza & Rosenthal, 1990; Suyemoto, 1998). Em um grupo de adolescentes portugueses praticantes de autolesões, Jorge, Queirós e Saraiva (2015) encontraram que 44% dos entrevistados manifestaram ideação suicida e 52% já haviam tentado o suicídio. No entanto, quando eram inquiridos sobre o assunto, os adolescentes não associaram os CA à ideação suicida. Nesse sentido, Alana, que inicialmente expressa o desejo de morrer, deixa claro que o que a motiva a parar de se machucar é o risco de acabar se matando. Já Évelin utilizava-se de métodos diferentes quando tinha intenção suicida, recorrendo a remédios e não a lâminas em tais ocasiões.
No DSM 5 é mencionado que, quando são utilizadas diferentes técnicas para produzir a lesão, há indicação de psicopatologia mais grave, incluindo tentativas de suicídio. Nos casos investigados isso se confirma, pois as três adolescentes que apresentaram pontuações altas no SCL-90-R foram as que utilizaram múltiplos recursos para se cortarem ou lesionaram diferentes partes do corpo, além de aludirem ao desejo de morrer. Por outro lado, Paula, que pontuou mais baixo nas dimensões avaliadas pelo instrumento, foi a única que não apresentou desejo de morte e que não incluiu a raiva como sentimento associado à manutenção dos CA. Já Évelin apresentou um quadro severo de psicopatologia geral e altos níveis em todas as dimensões avaliadas no SCL-90-R, e foi a única que fez múltiplas tentativas de suicídio e que não manifestou o desejo de cessar com os CA.
Ainda a respeito do suicídio, Ribeiro e Joiner (2009) indicaram que os repetidos atos de autolesão podem resultar em maior tolerância à dor e, consequentemente, à redução do medo da morte. Em uma investigação longitudinal realizada em uma amostra clínica de adolescentes com depressão, encontrou-se que um histórico de ALNS antes do tratamento foi um dos maiores preditores para posteriores tentativas de suicídio. Portanto, faz-se importante atentar para a tênue fronteira entre ideias suicidas e a consolidação da morte. Inclusive, alguns autores consideram os CA uma trajetória de risco, como parte de um espectro suicidário (Kapur et al., 2013; Nielsen, Sayal & Townsend, 2017; Orlando et al., 2015; Wilkinson et al., 2011).
Além da função de regulação emocional presente em todos os casos, os CA pareceram estar também a serviço da função antidissociativa. Por exemplo, Évelin relatou ter um mundo dentro de si que ninguém sabia e que, ao pensar nesse mundo, sua cabeça ficava confusa, suscitando a vontade de se cortar. Na descrição das funções da automutilação, o modelo antidissociativo sustenta que as autolesões podem servir para interromper estados dissociativos de despersonalização ou dissociação, permitindo abandonar uma sensação de irrealidade e entorpecimento emocional e voltar à realidade pela dor física que proporciona (Suyemoto, 1998).
Considerações finais
Os estudos sobre CA em adolescentes possuem significativa relevância, visto que se mostram associados a psicopatologias e maior probabilidade de suicídio no futuro. Uma vez que não se encontraram dados sobre a forma como ocorrem na população brasileira, este estudo teve por objetivo engendrar uma abordagem inicial do tema, pela caracterização da prática e da investigação dos sentimentos, das percepções e das possíveis associações com dificuldades na administração das emoções em adolescentes.
Entende-se como limitação a dificuldade de acesso aos casos, visto que a maioria dos adolescentes não externaliza os comportamentos, pelos benefícios que entendem obter deles. Ademais, não há instrumentos validados para a população brasileira que facilitem a obtenção dos dados. Ainda assim, esta pesquisa possibilitou identificar que os CA ocorreram, nesta amostra, de forma semelhante ao que acontece internacionalmente. Foi possível observar que as técnicas utilizadas na produção das autolesões foram similares às encontradas na literatura, bem como a busca por alívio de sentimentos negativos e a dificuldade em regular as emoções. Por outro lado, diferentemente dos dados obtidos na literatura internacional, destacou-se a precocidade do início dos CA e a raiva como sentimento mais associado ao comportamento.
Ressalta-se que, embora seja importante o esforço em tentar criar um termo que descreva o comportamento e facilite a construção de um diagnóstico, a nomenclatura ALNS para descrever o fenômeno e o termo TCS proposto pela APA (2014) para casos em que se manifesta intencionalidade suicida separam situações que coexistem na prática. Na pesquisa conduzida por Barrocas et al. (2012), somente 1,5% dos casos preencheram os critérios para ALNS propostos pelo DSM 5. Este estudo permitiu questionar a adequação do termo, visto que a ideação suicida pode coexistir com a prática de CA sem intenção suicida, geralmente com a utilização de métodos diferentes conforme a finalidade: a morte ou, dentre outras motivações, o alívio de emoções negativas. Assim, o termo CA parece ser mais apropriado por incluir ambas as possibilidades, permitindo ao clínico localizar a gravidade do caso dentro de um espectro suicidário, considerando a intenção, a gravidade e a diversidade de métodos utilizados na análise dos casos (Orlando et al., 2015).
Por fim, sugere-se que pesquisas de prevalência sejam realizadas para que, se confirmadas as estatísticas internacionais no território brasileiro, instituições acadêmicas e órgãos governamentais sejam mobilizados para capacitar profissionais da área da saúde mental e atender à demanda, aparentemente crescente, de casos de jovens que estão aderindo a este comportamento. Conclui-se destacando-se a evidente necessidade de mais estudos sobre esse fenômeno de causas multifatoriais e complexas.
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Recebido em 30 de julho de 2017
Aceito para publicação em 22 de setembro de 2017