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Psicologia Clínica
Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.30 no.2 Rio de Janeiro May./Aug. 2018
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n02A07
SEÇÃO LIVRE
Para além do paradigma histérico da anorexia: a ordem de ferro do supereu materno*
Beyond the hysterical paradigm of anorexia: the iron order of maternal superego
Más allá del paradigma histérico de la anorexia: el orden de hierro del superyó materno
Camila Ferreira SalesI; Cristina Moreira MarcosII
IPsicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de Mariana, MG, Brasil
IIDocente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas, Belo Horizonte, MG, Brasil
RESUMO
Interessa-nos interrogar a afinidade estrutural entre anorexia e feminino a partir de um caso para além do paradigma histérico da anorexia. Tal afinidade frequentemente é abordada a partir de sua declinação histérica. Podemos dizer que, dentro desse paradigma, esta relação concerne sobretudo à essência do discurso amoroso: é por amor, para ser a única, que a anoréxica se consome na recusa do alimento. Por meio da recusa daquilo que vem do Outro no registro do ter, ela busca criar uma posição particular no Outro. Está disposta a morrer de fome por amor. Sabemos, contudo, que a busca do amor pode se converter em seu contrário, em uma recusa do Outro. É o que encontramos, por exemplo, nos casos de anorexia não histérica. A que responde a anorexia nos casos em que há uma foraclusão da significação fálica e que, portanto, não são redutíveis à manobra histérica de defesa do desejo? Como situar aí a afinidade entre anorexia e feminino? Tais questões serão colocadas a partir de um caso clínico no qual verificamos uma submissão a uma ordem de ferro do supereu e uma não assunção de uma posição sexuada na dialética amorosa.
Palavras-chave: anorexia; feminino; histeria; psicose.
ABSTRACT
We are interested in questioning the structural affinity between anorexia and femaleness from a case beyond the hysterical paradigm of anorexia. Such affinity is often approached from its hysterical decline. It can be said that, in this paradigm, this relation concerns mainly the essence of the amorous discourse: the anorexic is consumed in her refusal of food in order to be the only one. By refusing that which comes from the Other, she seeks to attain a particular place in the Other. She is willing to die of hunger for love. We know, however, that the pursuit of love can turn into its opposite, into a refusal of the Other. It is what we find, for example, in cases of non-hysterical anorexia. To what is anorexy an answer, in the cases in which there is a foreclosure of the phallic signification, and are thereby irreducible to the hysterical manoeuver to preserve the desire? How to locate the affinity between anorexia and femaleness? Such questions will be posed within a clinical case in which we discern a submission to an iron order of the superego and abstaining from a sexual position in the amorous dialectic.
Keywords: anorexia; femaleness; hysteria; psychosis.
RESUMEN
Estamos interesados en cuestionar la afinidad estructural entre la anorexia y la mujer a partir de un caso más allá del paradigma de la anorexia histérica. Esta afinidad a menudo se acercó de su declinación histérica. Podemos decir que, dentro de este paradigma, esta relación se refiere principalmente a la esencia del discurso amoroso: la anoréxica se consume en rechazo a la comida para el amor. Sabemos, sin embargo, que la búsqueda de amor puede convertirse en su contrario, en el rechazo del Otro. Es lo que encontramos, por ejemplo, en casos de anorexia no histérica. Donde hay una exclusión de la significación fálica y por lo tanto no se reduce a maniobra histérica en la defensa del deseo, ¿a lo que responde la anorexia? Entonces, ¿cómo colocar la afinidad entre la anorexia y la mujer? Estas cuestiones serán colocadas a partir de un caso en el que vemos una sumisión a un orden de hierro del superyó y una no asunción de una posición sexual en la dialéctica del amor.
Palabras clave: anorexia; femenino; histeria; psicosis.
Introdução
Interessa-nos, neste artigo, interrogar a afinidade estrutural entre anorexia e feminino a partir de um caso, para além do paradigma histérico da anorexia. Tal afinidade é frequentemente abordada a partir de sua declinação histérica, que visa à instauração de um lugar de exceção do lado feminino, no qual não há a exceção. É para ser a única no desejo do Outro que ela recusa o alimento. Dentro desse paradigma, a anorexia revela o sintoma histérico como uma mensagem endereçada ao desejo do Outro e evidencia uma afinidade estrutural com o feminino concernente sobretudo à essência do discurso amoroso. É por amor, para ser a única, que a anoréxica se consome na recusa do alimento. Por meio da recusa daquilo que vem do Outro no registro do ter, ela busca criar uma posição particular no Outro. Está disposta a morrer de fome por amor.
Nesse sentido, a anorexia é uma demanda de amor ao Outro. No amor, demanda-se não algo da ordem do ter, mas signos da falta. Dessa forma, amor e anorexia aproximam-se, na medida em que não se situam no registro do ter (Marcos, 2016). Contudo, sabemos que a busca do amor pode se converter em seu contrário, em uma recusa do Outro. É o que encontramos, por exemplo, nos casos de anorexia não histérica. A que responde a anorexia nos casos em que há uma foraclusão da significação fálica, e que portanto não são redutíveis à manobra histérica de defesa do desejo? Como situar aí a afinidade entre anorexia e feminino? Tais são as questões que serão colocadas a partir de um caso clínico.
Freud já havia assinalado, no "Rascunho G." (1895/1987), a relação entre a anorexia e as moças jovens cuja sexualidade não se desenvolveu. Ele destaca ainda, nesse trabalho, a relação entre anorexia e melancolia, embora não classifique a anorexia como uma psicose, considerando-a uma espécie de paralelo neurótico da melancolia.
A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A famosa anorexia nervosa das moças jovens, segundo me parece (depois de cuidadosa observação), é uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu. A paciente afirma que não se alimenta simplesmente porque não tem nenhum apetite; não há qualquer outro motivo. Perda do apetite - em termos sexuais, perda da libido. (Freud, 1895/1987, p. 222)
Tanto em Freud quanto na psiquiatria, a anorexia é abordada como uma patologia feminina por excelência, que atinge especialmente as mulheres. A expressão de Freud "moças jovens", presente no "Rascunho G" (1895/1987), não deixa de destacar a afinidade da anorexia com o feminino. A anorexia nervosa nas jovens mulheres seria a neurose paralela à melancolia, frente a uma sexualidade não desenvolvida. "É sabido que existe uma neurose nas meninas que ocorre numa idade muito posterior, na época da puberdade ou pouco depois, e que exprime a aversão à sexualidade por meio da anorexia" (Freud, 1918/1987, p. 133). Freud faz assim uma observação de que a famosa anorexia nas adolescentes é uma melancolia diante de uma sexualidade precária, pouco desenvolvida.
Em Freud (1900/1987), é o sonho da Bela Açougueira que desenha o quadro da anorexia histérica. Em seu comentário, Lacan afirma que o desejo de caviar da espirituosa histérica é um desejo de mulher satisfeita que não quer estar assim. "Mas, vejam, ela não quer ser satisfeita apenas em suas verdadeiras necessidades. Quer outras, gratuitas, e, para ter toda a certeza de que o são, não quer satisfazê-las." (Lacan, 1958/1966, p. 625) A satisfação da necessidade aparece como engodo no qual a demanda de amor é esmagada.
Cosenza (2008) afirma que, dentro desse paradigma, a anorexia revela o sintoma histérico como uma mensagem endereçada ao desejo do Outro.
[…] Ao orquestrar o próprio dejeto (da comida, do sexo, do corpo feminino) como um desejo, a anoréxica coloca em cena, de modo exemplar, o estatuto simbólico metafórico do sintoma como mensagem inconsciente escrita no corpo. Essa mensagem demanda o desejo do Outro e a interpretação, mesmo que seja preciso pôr em risco a sobrevivência do corpo. (Cosenza, 2008, p. 35)
Isso significa dizer que a anorexia coloca em evidência a recusa do objeto da necessidade e do Outro da demanda. "É a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa sua recusa como um desejo (anorexia mental)" (Lacan, 1958/1966, p. 628). A satisfação da necessidade só pode aparecer como ilusão na qual a demanda de amor é eclipsada. A recusa do alimento faz surgir o que está para além da demanda, o desejo do Outro. Com sua recusa em satisfazer a demanda da mãe, a criança faz um apelo para que a mãe deseje para além dela, na medida em que é isso que lhe falta para a constituição do seu desejo. Não comer nada faz surgir o nada como objeto separador, como defesa subjetiva do desejo. O corpo se consome numa tentativa de abrir uma falta no Outro. Se o Outro reduz a falta à falta de alimento, a solução do sujeito para a sustentação do seu desejo é a recusa do objeto oral (Marcos, 2016).
Segundo Soria (2016), na anorexia histérica, a repugnância permanece atrelada a uma estratégia de defesa, um gozo da recusa. Na melancolia, ao contrário, a perda da libido se estende a tudo, como uma "hemorragia interna", da qual resulta a indiferença do melancólico pelos objetos. Em "Luto e Melancolia" (1917/1968), Freud faz uma distinção entre a identificação narcísica, mecanismo em jogo na melancolia, e a identificação histérica. Na melancolia há, no lugar do objeto, uma identificação regressiva que aponta para uma escolha de objeto do tipo narcísica. O melancólico elege como objeto de amor alguém em quem ele identifica seu ideal narcísico, o que faz com que todas as mensagens dirigidas a esse objeto sejam em última instância dirigidas a si próprio. As autorrecriminações e autoacusações do melancólico são na verdade recriminações e acusações ao objeto e, uma vez que este é colocado numa relação especular a partir da identificação narcísica, elas se voltam para o eu. A relação com o objeto é marcada por uma forte ambivalência, o que explica o ódio contra si próprio.
Na melancolia, Freud afirma que "a sombra do objeto caiu sobre o eu" (1917/1968, p. 156), o que faz com que o supereu passe a tratar o próprio eu como objeto, "o objeto abandonado", passível de ser julgado e maltratado. O supereu se converte em pura cultura da pulsão de morte. Isso implica que a relação entre supereu e eu se estabelece tal como na primeira fase da identificação, considerada por Freud como preliminar à escolha de objeto: "ele (o eu) gostaria de incorporar esse objeto, e isso, conforme a fase oral ou canibal do desenvolvimento da libido, por meio da devoração" (Freud, 1917/1968, p. 157). Assim, as autoacusações do melancólico tendem a se estender em uma "recusa de alimentação que se apresenta na forma grave do estado melancólico" (Freud, 1917/1968, p. 157).
Para Soria (2016), a anorexia na melancolia é um dos fenômenos de retorno do real e a dificuldade do diagnóstico reside em que, nesses casos, o real retorna no próprio sujeito. "O melancólico localiza o gozo e o encarna, fora do lugar do Outro." (Soria, 2016, p. 31) Após essa breve diferenciação entre a anorexia histérica e a melancólica, veremos que o caso Margarida nos permite interrogar a função da anorexia nos casos não redutíveis à histeria. Neles, o sujeito se submete a uma ordem de ferro do supereu e não ocorre a assunção de uma posição sexuada na dialética amorosa.
O caso Margarida
"Você é moça bonita. Eu gosto de coisa bonita." Estas foram as primeiras palavras de Margarida ao entrar no consultório. A transferência se estabeleceu de imediato, pela via da aparência, da imagem do corpo. Ora, no primeiro encontro com o analista, ele oferece seu corpo ao paciente. Se há aperto de mão, abraço ou simplesmente um olhar, isso é secundário quanto à presença física de seu corpo. Como em qualquer encontro entre duas ou mais pessoas, o fato de se ter um corpo e de se apresentar ao outro antes de mais nada com a aparência deste corpo comporta toda uma série de surpresas e curiosidades - estranhamento, vergonha, desconcerto, exibição, inveja, sedução, manifestações corpóreas como sudorese ou gagueira. Quando outros elementos entram na cena, elementos de linguagem, a aparência ainda assim continua: enquanto durar o encontro, os corpos estarão dispostos em sua presença física.
Marie-Hélène Brousse (2012) comenta, em entrevista sobre o tema "O que é uma mulher?", que é possível localizar três níveis da aparência: a biologia, a mascarada e o semblante. Com relação ao primeiro nível, ela afirma que a verdade enunciada pela biologia é da ordem da aparência, ao passo que, em relação ao sujeito do inconsciente, a biologia é vazia de saber. Isso significa dizer que o discurso da ciência não é detentor da verdade sobre o sujeito; a anatomia não responde ao que é ser homem ou mulher. É no campo da fala que devemos situar a pergunta sobre o feminino dentro da psicanálise: "do ponto de vista do discurso analítico, a biologia não é portadora de um saber sobre o feminino nem sobre o masculino" (Brousse, 2012, p. 7).
O segundo nível da aparência é a mascarada. A mascarada diz respeito às insígnias e aos emblemas maternos e femininos. Trata-se de uma transmissão pela aparência, por um parecer. Brousse (2012) exemplifica a mascarada usando a imagem da filha que se apropria dos objetos da mãe - chapéu, óculos, maquiagem, brincos - em busca da transmissão, pela via desses objetos, do que é ser mulher. A mascarada, diferente da biologia, já se inscreve num aparato simbólico, embora seja também aparência. É quando a linguagem atravessa a demanda, separando definitivamente o que é da ordem da necessidade e o que é da ordem do desejo, que a mascarada surge como apelo simbólico de uma resposta sobre o feminino. A linguagem é o que permite metaforizar o vazio que não aparece no real biológico e provocar o deslocamento da necessidade ao desejo. Ao mesmo tempo, a mascarada não deixa de flertar com a dimensão do fetiche, do véu, da máscara que se coloca diante da dificuldade de se caracterizar o feminino.
O terceiro nível da aparência, segundo Brousse, é o semblante. O semblante, longe de fazer oposição àquilo que é autêntico, é a "modalidade fundamental de laço entre os sujeitos humanos" (Brousse, 2012, p. 9). A sexualidade é uma questão de semblante, assim como o desejo. A categoria de semblante foi inventada, na psicanálise, a partir dos avatares da sexualidade feminina. Se a pergunta sobre o que é uma mulher é calcada sobre uma lógica significante, dirigida ao Outro simbólico, já o acesso ao feminino é inalcançável ou é atingível somente enquanto ideal. O semblante é o próprio funcionamento do simbólico e ele sustenta a mascarada: "a mascarada funciona segundo esse registro de semblante" (Brousse, 2012, p. 21).
Brousse (2012) ressalta que o semblante respalda o acesso ao feminino somente enquanto ideal. Ou seja, o ideal deve permanecer como ideal, pois se for encarnado indica uma inclinação para a psicose. Voltando ao caso clínico em questão, o comentário inicial da paciente sobre a aparência da analista já revela o que veremos a seguir: o semblante fracassa em sua função de semblante e Margarida busca encarnar o ideal no corpo como forma identificatória de possuir aquilo que ela supõe que a mulher tem. Em outros termos, ela insiste em fazer existir a mulher-toda, A mulher.
A princípio, o comentário da paciente indica isto: que um laço transferencial se estabeleceu a partir do significante "coisa bonita". Talvez no campo da neurose isso viria de um modo velado, como uma mensagem enigmática que portaria uma cifra cuja repetição se faria ouvir ao longo da análise. No caso de Margarida, a transparência da verbalização, ainda que não a torne menos enigmática, favorece o caminho pelo qual devemos encontrar seu signo. Alguma coisa dessa beleza se repete, a começar pelo sintoma que a levou pela primeira vez à internação psiquiátrica: sua anorexia.
O desencadeamento da anorexia em Margarida
Internada pela primeira vez quando tinha 18 anos, com sintomas psicóticos positivos - delírio e alucinações auditivas - além de quadro anoréxico com uso de diuréticos e laxante, Margarida tem hoje, aos 28 anos, um histórico de nove internações. Atualmente, encontra-se estabilizada e continua seu tratamento em um serviço de saúde mental. Sua última internação foi há dois anos; depois disso tem sido acompanhada pelo serviço público e pela analista, sem novos episódios de surto que exigissem internação.
O desencadeamento da crise ocorreu quando sua professora de balé lhe disse que ela deveria emagrecer dois quilos, pois estava "gordinha" para a apresentação. A paciente conta que neste momento sentiu vergonha das colegas, que riam dela. A partir desse dia, parou de frequentar as aulas de balé e de conversar com as meninas, que antes eram consideradas "melhores amigas". A paciente foi se desvinculando gradualmente do convívio social até que, três anos depois, teve o surto e foi internada no hospital psiquiátrico.
Margarida relata que sempre gostou de moda e que na época de colégio cortava seus uniformes "para ficar fashion e diferente das outras". Na adolescência, começou a fazer uso exagerado de álcool, chegando a faltar às aulas para beber e por vezes até a participar da aula alcoolizada. Conta que ficava inquieta na sala de aula, o que foi notado por um professor que, segundo ela, indicou que ela procurasse um psiquiatra. Sobre isso, comenta: "eu devia ter procurado naquela época… agora é tarde". Reconhece que sempre foi agitada, porém nunca se incomodou com isso a ponto de procurar tratamento. Apenas com o episódio da aula de balé o surto foi desencadeado e gradualmente foi se configurando um quadro de melancolia.
Com sagacidade, a paciente fala sobre sua doença, demonstrando um certo "saber" que chega a desconcertar os médicos. Ela sabe os efeitos de cada medicamento - chegando a exigir do psiquiatra que lhe prescreva tal ou tal remédio - e domina um entendimento leigo da psicologia, do senso comum, mas com o qual ela enlaça os vários profissionais que atuam em seu tratamento, colocando-se como "paciente especial". Ela quer, de todo modo, cativar a equipe. Com uma ressalva: que sejam mulheres! Margarida recusa ser tratada por homens, diz não gostar de homens. Porém, quanto às mulheres do serviço, ela demonstra carisma e as manipula de tal modo que chega a considerá-las suas "amigas".
Margarida se veste de modo singular: está sempre arrumada, "excêntrica" (outro ponto que em que ela se identifica com a analista, ao definir o estilo dela como "excêntrico"), com vários apetrechos e o cabelo invariavelmente exuberante. Aparência que, pode-se supor, tenta fazer a suplência de um corpo ao qual faltam certas referências, pois fica evidente que há um corpo "fora do lugar", impossível de ser nomeado por um significante e por isso extremamente dependente do olhar do Outro. É como se a presença física do Outro - de seu olhar - fosse o único fio, tênue, que sustentasse a existência desse corpo frágil. Tanto assim que o nome com o qual ela tenta fazer algum tipo de colagem reverbera nos momentos de agitação: ela pula e repete três vezes "menina Margarida, Margarida, Margarida", "eu gosto de moda, moda, moda", "quero ser magra, magra, magra".
Será o nome aquilo que restou do corpo e que perambula solto, como um fora-de-sentido que não consegue dar a esse corpo uma nomeação? Ou será o corpo isso que resta do nome e que pula, pulsa, exigindo alguma significação que possa lhe servir de referência?
Freud, em "Introdução ao narcisismo" (1914/2004), demonstra que a constituição do eu é uma operação necessária diante da fragmentação original do ser falante. O eu, segundo ele, é a projeção de uma superfície corporal. É isso que Lacan (1949/1966) conceitualizará no estádio do espelho, afirmando que o corpo é primeiro, e é depois que a simbolização vem dar a esse corpo seu contorno - operação que passa necessariamente pelo Outro. É o olhar do Outro que ratifica a imagem que a criança vê aparecer no espelho, devolvendo a ela a idêntica correspondência entre aquele reflexo e seu eu.
A imagem, porém, não se acopla totalmente ao eu da criança. Sobra um resto irredutível - resto da operação da entrada do sujeito na linguagem - que Lacan chamou de objeto a. Não apenas o a introduz o hiato fundamental que garante a inscrição da falta sobre a qual o desejo se articula, como também cria a condição de que esse corpo seja nomeado. Lacan, ao retomar o esquema óptico no seminário sobre a angústia, diz:
Essa ausência é também a possibilidade de uma aparição, ordenada por uma presença que está em outro lugar. Tal presença comanda isso muito de perto, mas o faz de onde é inapreensível para o sujeito. Como lhes indiquei, a presença em questão é a do a, o objeto na função que ele exerce na fantasia. Nesse lugar da falta onde algo pode aparecer, coloquei pela última vez, e entre parênteses, o sinal (-phi). Ele lhes indica que aqui se perfila uma relação com a reserva libidinal, ou seja, com esse algo que não se projeta, não se investe no nível da imagem especular, que é irredutível a ela, em razão de permanecer profundamente investido no nível do próprio corpo, do narcisismo primário, daquilo a que chamamos auto-erotismo, de um gozo autista. (Lacan, 1962-1963/2005, p. 55)
Ou seja, a imagem não dá conta de cobrir o corpo. Estamos sempre construindo um corpo - essa aparência que, como diz o ditado, engana ("as aparências enganam…"). O corpo resiste à simbolização totalizante e o que resta é o real, que insiste em retornar sempre no mesmo lugar (Lacan, 1964/2008). No caso de Margarida, a impossibilidade de destacar esse objeto a da imagem de seu corpo faz com que o corpo não seja nomeado. Não há inscrição da falta, logo, o nome que lhe foi dado - se não respaldado pelo significante do Nome-do-Pai - não ganha a consistência simbólica devida. A repetição "Margarida-Margarida-Margarida" exibe justamente o fracasso do nome em dar conta de uma reposta simbólica para seu corpo. Sem a interdição que faz descolar o objeto a da imagem corporal, Margarida encarna o semblante que é a própria aparência, como visto inicialmente. Ela recusa o semblante enquanto semblante e faz da imagem ideal a própria verdade de seu corpo.
Como no caso de Margarida, o fenômeno anoréxico nas anorexias não histéricas pode se apresentar como uma resposta ou uma suplência a uma falha do suporte narcísico (Soria, 2016). Para Soria (2001), se a histérica sabe se servir do significante fálico e o corpo se apresenta como falicizado na mascarada, nas formas de anorexia não neuróticas haveria uma recusa do semblante. A autora demonstrará que, nesses casos, a aspiração anoréxica consiste em existir como pura imagem. Margarida parece buscar fazer-se um corpo com o estilo de vida anoréxico: a imagem, os croquis desenhados, o interesse pela moda, as roupas, a maquiagem são artifícios que buscam transformar esse corpo em pura imagem, em um corpo desencarnado. A ingestão de detergente, xampu e sabonete atesta a tentativa de limpar o corpo de toda e qualquer impureza, do seu excesso de carne, como se a carne do corpo fosse ela própria a impureza, por tornar "sujo" aquilo que é da imagem, a "bela" imagem.
O desencadeamento da anorexia de Margarida, aos 18 anos, nos leva a interrogar a função da irrupção de um gozo no corpo provocado pelas manifestações da feminilidade corporal da adolescência. Soria (2008) ressalta que, em casos de melancolia, o sujeito se mantém mais ou menos bem durante a infância, quando o corpo se mantém com certa uniformidade, uma espécie de boa forma permitindo um fechamento narcísico que garantiria sua estabilização. Com as mudanças corporais, o advento das curvas e ocos, algo vai exceder a imagem plana, especular, e o corpo vai exigir um novo tratamento do gozo. Não raro este tratamento passa pelos transtornos alimentares, transtornos que colocam em relevo a questão da imagem do corpo e a relação com o outro. Aprendemos também isto no caso de Margarida, para quem é necessário manter um corpo infantil, ou seja, sem os relevos/impasses do feminino, e um "mundo infantil".
Cosenza (2014) destaca que Lacan, em seu "Prefácio ao Despertar da Primavera de Wedekind", isola dois tempos lógicos em torno dos quais a iniciação sexual se estrutura. O primeiro tempo é dado pela representação onírica da relação sexual: para "fazer amor com as mocinhas […] eles (os meninos) não pensariam nisso sem o despertar de seus sonhos" (Lacan, 1973/2003b, p. 557). Há assim a elevação da relação sexual ao inconsciente, que faz com que ela exista para o sujeito de modo singular, como enigma, num quadro fantasmático. O segundo tempo é aquele em que o adolescente se depara, nos primeiros encontros da vida sexual com seus parceiros, com a inexistência da relação sexual e descobre o verdadeiro sentido da iniciação: que o véu (do mistério da sexualidade) levantado não mostra nada. Nesse tempo, o adolescente experimenta na relação sexual que seu gozo é irredutível e só há gozo do corpo próprio. O tempo 1 funciona como um véu inconsciente que recobre o furo da não relação. Entre o tempo do véu e o tempo do trauma, se estrutura a iniciação sexual do adolescente.
Ora, Cosenza (2014) desenvolverá a hipótese que nas anorexias não redutíveis ao paradigma histérico haveria um fracasso da entrada na adolescência, já no tempo da construção de um véu fantasmático em torno da sexualidade, que impediria "uma verdadeira assunção da posição sexuada e uma inscrição subjetiva no interior da lógica fálica" (Cosenza, 2014, p. 211). Consequentemente, ocorreria um fracasso na equação corpo=falo e uma privação do valor enigmático da vida amorosa e sexual. O véu adquire uma posição central na construção da posição feminina na dialética fálica, na medida em que sua função permite à mulher entrar na mascarada feminina e ter seu valor fálico reconhecido como causa de desejo de um homem. Nesse sentido, o véu é um órgão simbólico essencial na vida amorosa feminina. Segundo o autor, na clínica da anorexia além do campo da histeria, podemos observar uma "lesão estrutural da função do véu" (Cosenza, 2014, p. 210). Isto impede a assunção de uma posição sexuada na dialética da vida amorosa, o que não é incompatível com uma vida de casal ou mesmo com uma vida sexual; entretanto, esse terreno da vida surge desprovido de valor fálico e não é a expressão de uma construção fantasmática.
Em Margarida, observamos essa vida sexual esvaziada de agalma. A relação com seu parceiro parece se ancorar em uma exigência de apoio narcísico-especular, o que responderia a uma necessidade mimética em se parecer com as outras mulheres; no entanto, a vida amorosa se mostra desprovida de desejo. Vemos aí um casamento do sujeito com a imagem do seu próprio corpo como um casamento sem véu, do qual fala Cosenza (2014).
A ordem de ferro do supereu materno
A necessária falicização do corpo feminino, assinalada por Lacan (1960/1966) em "Diretrizes para um congresso acerca da sexualidade feminina", se reduz, em Margarida, ao recurso a uma identificação imaginária, a uma pura imagem, separada do simbólico. Uma mulher deve fazer de seu corpo um falo para entrar na lógica fálica; entretanto, ela pode permanecer identificada ao falo imaginário. Nesse caso, Lacan indica que ela não atravessa o véu do semelhante materno, o que a impede de desejar o falo no homem. Essa identificação imaginária com o falo é uma recusa da função de castração, que a deixa presa a uma relação especular com a mãe.
Margarida se queixava constantemente de que a família não lhe dava muita atenção, com exceção da mãe, única pessoa com quem ela podia contar. "Não sei o que vou fazer se ficar sem minha mãe; não vou dar conta de viver sozinha", ela chegava a dizer, referindo-se a uma possível ameaça de autoextermínio, caso a mãe viesse a falecer. É interessante notar que essa frase indica uma antecipação da morte da mãe, como se houvesse uma necessidade de se afirmar por meio do negativo da existência - tanto da mãe quanto de si própria. Ela, de certa forma, convida a analista a protegê-la dessa ameaça de suicídio ao entrar como um terceiro capaz de mediar a relação com a mãe.
É sabido que a inveja entre as mulheres é apontada por Freud (1916/1969) como um traço clássico da relação mãe/filha, herdeiro da raiva pela mãe por ela ter transmitido a castração. Em suas palavras:
Conforme aprendemos pelo trabalho psicanalítico, as mulheres se consideram como tendo sido prejudicadas na infância, como tendo sido imerecidamente privadas de algo e injustamente tratadas; a amargura de tantas filhas contra suas mães provém, em última análise, da censura contra estas por as terem trazido ao mundo como mulheres e não como homens. (Freud, 1916/1969, p. 356)
Lacan (1973/2003a) utiliza o termo "devastação" para definir a relação mãe-filha. Freud havia falado, em "Sexualidade feminina" (1931/1969), em catástrofe, definindo a mãe como Outro Onipotente ao qual a menina está inexoravelmente ligada em sua pré-história. É nesse texto que ele assinala a importância da relação mãe-filha e afirma tê-la subestimado em função do forte recalque que a mantém quase inacessível à análise. Nesse texto de 1931 e posteriormente em sua última conferência sobre a feminilidade (1933/1969), Freud acentua o ódio ressentido em relação à mãe, considerada responsável pela falta da filha. Para ele, a devastação é uma das consequências da sexualidade feminina, derivada da inveja do pênis. A intensidade do ódio é proporcional à intensidade do amor que o precede e à decepção. Portanto, a devastação é, em Freud, ligada ao destino do falo materno na menina (Marcos, 2011).
Brousse (2002) destaca que Lacan nos permite abordar a devastação a partir do desejo da mãe. O sujeito busca saber o que orienta o desejo da mãe para encontrar aí o seu lugar. O pai é aquele que abre a possibilidade de um além da captação imaginária. Nesse sentido, orientar-se em direção ao pai é a possibilidade para a menina de transformar a rivalidade imaginária presente na relação com a mãe e simbolizar a falta. É preciso que a menina saia da posição de saturar a falta da mãe e que a mãe se deixe dividir pela troca fálica para que a criança não permaneça na posição de fetiche ou de dejeto (Drummond, 2011).
Ora, o campo do desejo da mãe não é inteiramente recoberto pelo significante. Para Brousse (2002), a devastação está ligada à impossível troca fálica, na medida em que algo da mãe escapa à lei simbólica. Assim, o campo do desejo da mãe comporta uma zona obscura, não saturada pelo Nome-do-Pai e, como tal, sem limite. A autora nos adverte que não se trata de reduzir a devastação à relação dual com a mãe e esclarece que, tanto em Freud quanto em Lacan, a relação mãe-criança é logo de início situada no campo simbólico. Também não devemos circunscrever a relação mãe-filha a uma relação que escaparia ao discurso, o que nos conduziria a atrelar a devastação à psicose. Trata-se de especificar o modo singular como a linguagem emergiu para cada sujeito, constituindo seu corpo. O insulto, a rejeição ou o silêncio são alguns dos modos de emergência particular da linguagem para o sujeito, destacados por Brousse. Embora diversos, eles trazem um traço em comum, a saber, a consagração da "crença inabalável na onipotência de um Outro não castrado, de uma mãe que escapa à falta da castração e que apresenta ao sujeito uma alternativa mortal: ou a rejeição, ou a reintegração do seu produto pela genitora" (Brousse, 2002, p. 99).
Brousse (2002) conclui que a devastação comporta uma face fálica de reivindicação ligada ao desejo da mãe e uma face não toda fálica que diz respeito a um rapto do corpo, ligado à dificuldade de simbolização do gozo feminino. Sua hipótese desemboca em três pontos centrais. O primeiro deles articula-se ao Outro primordial, na medida em que está ligado ao modo de emergência da linguagem no sujeito. O segundo situa a devastação no momento da introdução traumática do sexual, na perspectiva de uma satisfação direta da demanda da mãe que, se não exclui a função fálica, não a coloca na dialética da troca e da perda. Por fim, a devastação é definida como consequência de um arrebatamento determinado pela ausência do significante d'A mulher que o sujeito entrevê naquilo que, no campo do desejo da mãe, não se reduz ao desejo e ao significante fálico, apontando para um sem limite. Concordamos com a autora quando ela afirma que não se deve fazer uma equivalência entre devastação e psicose; entretanto, devemos nos perguntar o que separaria a devastação do sujeito histérico desse mesmo fenômeno na psicose.
Alvarenga afirma que "há uma tendência estrutural, nas mulheres, para a devastação e/ou arrebatamento" que provém da falta de um significante para nomear algo para uma mulher (Alvarenga, 2003, p. 47). Se, na neurose, a operação da metáfora paterna permite ao sujeito especificar o enigma do desejo da mãe como significação fálica, na psicose, a foraclusão do Nome-do-Pai torna impossível a inscrição do sujeito na função fálica. A devastação que a mãe pode ser para uma filha é o resultado de um atalho que evita passar pelo falo. Nele, Margarida fica presa a um supereu materno feroz, que recusa ou desconhece a função paterna. Rosa, mãe de Margarida, designa um projeto para a filha: "ser bela" e a encerra nele, como em uma ordem de ferro.
Há que se lembrar que a foraclusão do Nome-do-Pai não é a totalidade da teoria de Lacan acerca da psicose. Ela é uma hipótese causal, não um fenômeno observável, e está ligada a outro conceito descrito por Lacan como regressão tópica ao estádio do espelho, este sim atrelado aos fenômenos observáveis. A foraclusão é uma falha na estrutura simbólica que ressoa na estrutura imaginária, "ela a dissolve, a conduz à estrutura elementar chamada estádio do espelho" (Miller, 1996, p. 122).
Se o Nome-do-Pai tem como função operar como ponto de basta na ordem simbólica, ele é o significante que detém o deslizamento da significação quando a metáfora paterna é operante. A não inscrição do Nome-do-Pai abre um furo no significado que corresponde à significação fálica e conduz a uma dissolução da estrutura imaginária. Proliferam aí os fenômenos de agressividade, de transitivismo e de despersonalização que observamos em Margarida.
Margarida insiste em chamar de "amizade" a relação que ela mantém com alguns profissionais do serviço de saúde mental frequentado por ela. Todas são mulheres, com exceção de um médico que ela diz ser o amor de sua vida - relação que tem um caráter marcadamente erotômano. Há uma transferência que passa pelo saber, como se essas mulheres (e esse homem) fossem lhe dar o significante que explicará o que é ser uma mulher. Já a relação amorosa factual com os homens não se sustenta. Margarida sempre escapa do encontro sexual, que parece representar uma ameaça para esse corpo já frágil, um corpo que ela insiste em recolocar na cena infantil, tal como disse a respeito da última relação amorosa rompida: "eu estava estranhando meu corpo. Chegava no meu quarto e não conseguia brincar mais. Por isso resolvi parar de sair com ele". Na ausência da significação fálica, esse corpo não pode entrar na dialética do amor e do desejo que rege a troca amorosa. A falha no simbólico aberta pela ausência do Nome-do-Pai repercute no imaginário, abrindo as portas da sua dissolução.
Na entrevista com a mãe, Rosa, foi possível escutar uma espécie de história particular da beleza que situou, de certo modo, o lugar de Margarida no romance familiar. Na ocasião de seu nascimento, Rosa foi rejeitada pela mãe, que chegou a jogá-la no esgoto com poucos dias de nascida. Na escola, quando as crianças faziam homenagem no Dia das mães, Rosa ouvia a seguinte recusa: "não quero nada vindo de você. Você não é minha filha."
Um ato falho denuncia seu lugar no desejo da mãe: "eu não lembro de nenhum carinho da minha mãe, não lembro de eu deitada no meu colo". De fato, apenas um amor autoerótico servia para constituir um colo ou um corpo para ela. Diante da ausência desse corpo da mãe, a madrinha de Rosa (amiga da mãe) a adotou como filha. Anos depois, ela veio a saber que a madrinha amava o pai de Rosa, mas ele escolheu a mãe por ela ser a mais bonita. Rosa diz: "eu não me pareço com minha mãe; sou mais parecida com meu pai". O que pode ser traduzido em: "eu não sou bonita como a minha mãe".
Para reverter esse quadro dramático, Rosa sempre sonhou em ter uma filha e cuidar dela com todo o carinho que sua mãe não foi capaz de lhe dar. Engravida então da primeira filha: "ela é ótima, nunca deu trabalho". Depois veio Margarida: "chorona, pidona, mais irritadinha que as outras… sempre foi também a mais gordinha". Esse "gordinha", no entanto, não fazia oposição à beleza. Uma vizinha lhe disse recentemente, referindo-se a Margarida: "a sua filha que era a mais bonita ficou parecendo uma filha especial". Isso visivelmente incomodou Rosa, e sua resposta foi: "é só uma fase da doença, vai passar. Todas as minhas filhas são lindas". E me disse em seguida: "mãe, você sabe… para ela os filhos são os mais bonitos".
Margarida, a filha eleita de Rosa, parece ter recebido colo em excesso. Quando uma criança não pode esconder-se do olhar em excesso do Outro, o sujeito pode escolher fazer-se massivamente presente, como se dissesse: "Queria me ver o tempo todo? Aqui estou e não poderá ver outra coisa além de mim." Margarida começou a estudar aos sete anos e antes disso a mãe ficava "por conta", além de sempre dar tudo que a menina pedia.
A anorexia reflete de modo emblemático uma aliança firme entre o imperativo superegoico de beleza (ideal materno) e a beleza social ligada ao corpo magro (ideal social). É preciso ser belo, e para ser belo é necessário ser magro. Em Margarida, porém, essa exigência de beleza tem um agravante: sua concepção do eu é atrelada a essa imagem do próprio corpo, imagem que é frágil, capenga, ou seja, só se sustenta na duplicidade da relação especular (a-a'). Na falta de um significante que ratifique a castração do Outro, "aquele Nome-do-Pai, que encarna, especifica, particulariza o que acabo de lhes explicar, isto é, representa no Outro o Outro como aquele que dá alcance à lei" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 160). O corpo fica, assim, refém da relação imaginária.
Por isso, Margarida tem a necessidade de ser elogiada o tempo todo por sua beleza, seduzindo incessantemente o olhar do Outro, arrumando-se com roupas e acessórios chamativos, sempre na "moda-moda-moda". Quando o Outro não lhe devolve o elogio à beleza, ou quando ela mesma observa no corpo de outra mulher uma beleza-magreza que não é capaz de conferir a si própria, seu corpo parece se despedaçar. Ela entra em crise, toma laxante, filtro solar, detergente e xampu, para "acalmar o coração". Ou será para fazer uma borda nesse corpo, ainda que seja pela corrosão interna dolorosa que os produtos químicos lhe causam?
A ingestão de produtos para emagrecer parece vir embutida nessa fixação no objeto, como se ele representasse duplamente a significação do feminino e a encarnação imaginária do ideal de beleza. Paradoxalmente, o corpo que Margarida almeja, corpo que, de tão magrelo, é desprovido dos caracteres femininos, encarna ele próprio a impossibilidade da relação sexual. É como se, por meio dele, a paciente se protegesse do encontro com o Outro sexo.
Se Margarida seduz o olhar do Outro e sustenta seu corpo apenas na brevidade desse olhar, qualquer vacilação desse lugar especular pode provocar nela uma passagem ao ato. Uma vez que ela está colada no objeto, objeto imaginário de beleza, os dispositivos da linguagem são insuficientes para sua estabilização, e ela apoia seu corpo na afirmação do olhar do Outro. O corpo a ser olhado deve ser não desejado, ou seja, deve ser olhado sem a voracidade do desejo que quer "comê-lo", pois tal voracidade colocaria em risco sua integridade. Para esse corpo existir, é preciso a garantia de que não haverá ato sexual. O corpo de Margarida só existe enquanto corpo da "Menina-Margarida".
Talvez o que se repita, no caso clínico em questão, é a cena de uma filha que nasce com a promessa de tamponar um lugar de falta da mãe, um colo vazio, e cuja senha para ocupar esse lugar seja um excesso: que a filha tenha tudo, que seja a mais bonita, que seja a mais amada, a quem seja proporcionado tudo o que ela demandar. Se não há intervalo entre a demanda da criança e a resposta da mãe, não há espaço para o desejo. "A possibilidade da ausência, eis a segurança da presença" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 64). Lacan fala da criança cuja mãe "está o tempo todo nas costas dela, especialmente a lhe limpar a bunda, modelo da demanda, da demanda que não pode falhar" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 64). É a presença ininterrupta do desejo dessa mãe que "nunca soube fazer da criança outra coisa senão um prolongamento dela mesma" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 161). Essa posição de fetiche da mãe é uma posição de devastação.
Nos casos de anorexia histérica, a recusa constitui-se como uma estratégia de defesa do desejo, para que algo do desejo do sujeito possa aparecer. No caso de Margarida, diferentemente de uma anorexia histérica, essa estratégia se converte em uma recusa do Outro. A interrogação sobre o desejo do Outro não se realiza. A beleza, herança da demanda de amor da mãe, fica confundida entre uma mãe que quis dar à filha o colo que não teve e uma filha que só pode recusar esse colo (e também a comida).
Considerações finais
Há um resto real que escapa à mortificação do corpo pelo significante, chamado por Lacan de objeto a. Este resto real está articulado à castração. Seguindo o percurso lacaniano sobre a imagem do corpo próprio, Miller (2005, p. 322) nos mostra que "todas as análises sugeridas por Lacan do campo visual convergem para um ponto: em todos os casos, o segredo da imagem é a castração". A imagem é o que vela a castração e esconde o objeto. Quando o objeto emerge em seu estatuto real, sem recobrimento imaginário, ele desorganiza o campo do imaginário e surge como excesso na imagem do corpo. De acordo com Eidelberg (2009), quando o retorno de uma carga libidinal funciona como apoio de i(a), ela está regulada pelo Nome-do-Pai, mas quando este retorno se faz visível, já não está mais regulada por ele. A anorexia é um dos modos de tentar regular esse gozo não regulado, para que ele deixe de perturbar a boa forma a que aspira a imagem corporal. Quando o objeto a retorna como excesso, a anorexia é um recurso para controlar este excesso. É o que vemos em Margarida nos jejuns, nas práticas purgativas, nos rituais de limpeza do corpo pela ingestão de xampus e detergentes. Com tais práticas, ela trata de expurgar esse excesso do seu corpo. Custa muito a ela unificar essa perturbação do imaginário em uma unidade corporal.
Margarida permanece presa a uma ordem de ferro do supereu materno: "seja bela". A transmissão da beleza, herança materna, não se faz regulada pelo falo e assim não permite nenhuma dialetização desse imperativo. Identificada ao falo imaginário, ela fica encerrada em uma relação especular com o semelhante materno… e com as outras mulheres. A posição feminina clássica de ser o falo implica a entrada na mascarada, na qual, apesar de encarnar o falo, a mulher dirige seu desejo ao falo no corpo do homem. Isso não se cumpre quando se trata de ocupar o lugar do falo materno na anorexia. O falo, para Margarida, não tem estatuto simbólico e não entra na dialética do desejo; ele cumpre tão somente sua função imaginária na imagem fetichizada do corpo próprio.
Referências
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Recebido em 03 de fevereiro de 2017
Aceito para publicação em 09 de outubro de 2017
* Este artigo resulta da pesquisa Anorexia e Sexuação Feminina, financiada pela FAPEMIG (APQ 01012-13) e pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da PUC-Minas (FIP 8497).