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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.32 no.2 Rio de Janeiro MayAug. 2020

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0032n02A09 

SEÇÃO LIVRE

 

O estruturalismo e algumas de suas vicissitudes: política e sujeito

 

Structuralism and some of its vicissitudes: policy and subject

 

El estructuralismo y algunas de sus vicisitudes: política y sujeto

 

 

Thales Fonseca

Psicólogo, Mestre e Doutorando pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), São João del-Rei, MG, Brasil. email: thalesalberto94@gmail.com

 

 


RESUMO

Este ensaio parte de dois questionamentos que se entrecruzam: um, que diz respeito aos limites do estruturalismo no que tange à proposição de uma política emancipatória; e outro, à importância que o conceito de sujeito pode ter para esse tipo de proposta política. Assim, fizemos um brevíssimo percurso sobre o conceito de estrutura enquanto objeto central do estruturalismo. Em seguida, articulamos as noções de ideologia e poder em Althusser e Foucault, partindo do caráter onipresente de tais instâncias na teoria desses filósofos, que acreditamos se desdobrar da onipresença do conceito de estrutura, e das consequências de tal onipresença para a categoria de sujeito. Posteriormente, mostramos as divergências existentes entre Lacan e os outros autores no que diz respeito ao conceito de sujeito, ressaltando o alcance político desse constructo e da própria clínica psicanalítica.

Palavras-chave: estruturalismo; ideologia; poder; sujeito do inconsciente; política.


ABSTRACT

This essay emerges from two interwoven inquiries: one of them about the limits of structuralism concerning the proposal of an emancipatory policy; the other about the importance of the concept of subject for this kind of political proposal. Therefore, we weave a short course about the concept of structure as a central object of structuralism. Next, we articulated the notions of ideology and power according to Althusser and Foucault, from the omnipresent character of these instances in these philosophers' theories, which we hold that arises from the omnipresence of the concept of structure; and the consequences of such omnipresence for the category of subject. Later, we display the divergences between Lacan and the other authors about the concept of subject, highlighting the political reach of this construct and of the psychoanalytic clinic itself.

Keywords: structuralism; ideology; power; subject of the unconscious; policy.


RESUMEN

Este ensayo parte de dos cuestionamientos que se entrecruzan: uno, con respecto a los límites del estructuralismo en lo que se refiere a la proposición de una política emancipatoria; y otro, a la importancia que el concepto de sujeto puede tener para ese tipo de propuesta política. Así, hicimos un brevísimo recorrido sobre el concepto de estructura como objeto central del estructuralismo. En seguida, articulamos las nociones de ideología y poder en Althusser y Foucault, partiendo del carácter omnipresente de tales instancias en la teoría de esos filósofos, que creemos desdoblarse de la omnipresencia del concepto de estructura, y de las consecuencias de tal omnipresencia para la categoría de sujeto. Posteriormente, mostramos las divergencias existentes entre Lacan y los otros autores en lo que se refiere al concepto de sujeto, resaltando el alcance político de ese constructo y de la propia clínica psicoanalítica.

Palabras clave: estructuralismo; ideología; poder; sujeto del inconsciente; política.


 

 

Introdução

É preciso acordar desse sono antropológico, é o que nos diz Michel Foucault (1965/2011), em entrevista concedida a Alain Badiou. Por antropologia, ele ressalta, "[] entendo essa estrutura propriamente filosófica, que faz com que, agora, os problemas da filosofia sejam todos alojados no interior desse domínio que podemos chamar de domínio da finitude humana" (p. 221). Para bom entendedor, "meia explicação" basta: Foucault não está se referindo à antropologia enquanto disciplina do campo das chamadas ciências humanas e sociais, mas à antropologia enquanto enfoque no Homem (do grego anthropos). Em suma, o filósofo está se referindo ao humanismo.

Partimos, neste ensaio, desse movimento teórico-filosófico que marcou o século XX, o estruturalismo, que, a nosso ver, foi um dos principais responsáveis pelo abalo e consequente despertar do sono antropológico que, como nos lembra Foucault, fascinou a filosofia e as ciências humanas a partir do século XIX. Mais especificamente, partiremos da confrontação de algumas de suas vicissitudes1, quais sejam, três importantes figuras do pensamento francês - Louis Althusser, o próprio Foucault e Jacques Lacan - que de alguma maneira foram influenciadas por tal movimento e que buscaram de diferentes maneiras pensar o sujeito, tendo por base não a busca da essência humana, mas, pelo contrário, a dos mecanismos estruturais e simbólicos dos quais esse sujeito é efeito.

A questão que nos colocamos no presente ensaio pode parecer um tanto paradoxal - diante da vulgata que dissocia completamente o que é de ordem subjetiva do que é de ordem social -, a saber: qual o alcance político do conceito de sujeito nesses três intelectuais? Nossa aposta é de que sujeito, longe de inspirar individualismo (ou mesmo subjetivismo), pode dar ensejo para se pensar o campo político, social e alteritário. Mais especificamente, que uma doutrina do sujeito pode indicar as brechas presentes nesse campo normativo que o social, por vezes, representa, configurando-se como elemento de subversão - sem que seja necessária uma busca humanista pela pureza do Homem, anterior a sua corrupção pelos processos sociais e ideológicos.

Para tanto, num primeiro momento, trabalharemos de maneira mais conceitual sobre a noção de estrutura - objeto por excelência do estruturalismo -, a partir de um brevíssimo percurso em que passaremos por autores como Ferdinand de Saussure, Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes, entre outros. Posteriormente, buscaremos articular as teorias da ideologia e do poder em Althusser e Foucault, partindo da ideia de que haveria nelas algumas convergências que acreditamos ter sua origem na onipresença engendrada pelo próprio conceito de estrutura, o que implica corolários significativos no que diz respeito à forma como esses autores veem a categoria de sujeito. Em seguida, passaremos pelo conceito de sujeito do inconsciente em Lacan, dando ênfase aos pontos em que ele diverge em relação aos sujeitos althusseriano e foucaultiano - principalmente no que tange à influência determinadora (ou não) da estrutura - e ao alcance político desse conceito; e, nesse sentido, para o alcance político da própria clínica psicanalítica. Por fim, cotejaremos as elaborações dos três autores, apontando os pontos de contato e afastamento entre eles.

 

Estrutura: um lugar fechado e sem exterior

Roland Barthes, em sua célebre Aula (1977/2013), que inaugurou a cadeira de semiologia literária no Collège de France, afirma ser a linguagem, em seus mecanismos de poder e opressão, um lugar fechado e sem exterior. Dessa constatação culmina sua enfática advertência que "[] a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista, pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer." (p. 15).

Já desde Saussure (1916/1970) tais afirmações podem ser sentidas. O linguista suíço não cessou de afirmar que o indivíduo não possui meios para modificar a língua, enquanto "[] tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade" (p. 21). Em outras palavras, o indivíduo não tem capacidade de modificar o sistema linguístico; assim, cabe a ele submeter-se às leis que regem os signos; submeter-se, enfim, a esse lugar fechado que tal sistema designa. Como nos diz Saussure: "[] o fato social pode, por si só, criar um sistema linguístico. A coletividade é necessária para estabelecer os valores cuja única razão de ser está no uso e no consenso geral: o indivíduo, por si só, é incapaz de fixar um que seja." (p. 132).

Mas, se nos é possível entrever, de maneira clara, que para Saussure (1916/1970) o sistema linguístico é um lugar fechado - aqui, vale comentar que o sistema saussuriano foi o pontapé inicial para o que conhecemos como estrutura, objeto central dessa tradição de pensamento chamada estruturalismo -; a proposição de que ele é sem exterior parece ser menos evidente. Nisso consiste, aliás, um ponto importante no que tange ao método do "estruturalismo nascente" de Saussure: o fato de ele pressupor a existência de elementos, no que se refere ao estudo da língua, que seriam estranhos, externos ao seu sistema, aos quais ele denomina como "linguística externa". Ainda assim, o linguista não deixa de afirmar que as questões que dizem respeito à linguística externa não se sentem apertadas pelo torniquete do sistema (lembremos que se trata de um lugar fechado, ora!), de modo que a linguística interna, na qual ele de fato se envereda, "[] não admite uma disposição qualquer; a língua é um sistema que conhece somente sua ordem própria" (p. 31). O que vemos é que, apesar da pressuposição de elementos externos, Saussure, por uma motivação metodológica, acaba por ignorar tais elementos, de modo a poder isolar a língua e, assim, formalizá-la a partir da proposição de que ela possui um sistema próprio, isto é, uma estrutura autônoma.

O que vem a se constituir posteriormente como estruturalismo, a partir desse pontapé linguístico, parece ser uma tentativa de levar a tese saussuriana às suas últimas consequências. Assim, o estruturalismo, metodologicamente, ignora a existência de algo externo à estrutura, a ponto de podermos afirmar, no que diz respeito a ela, a inexistência de exterior. Como nos diz Deleuze (1972/2006, p. 225), ao comentar sobre o estruturalismo: "Os elementos de uma estrutura não têm designação extrínseca nem significação intrínseca". Daí ele afirmar que o estruturalismo não deixa de ser uma filosofia transcendental nova, pois podemos pensar a estrutura como uma espécie de matriz simbólica que, como ele nos lembra, "[] começa por ter seus efeitos primários em si mesma." (p. 246). Para o filósofo francês, é possível pensar o estruturalismo como a constatação de um profundo não-sentido - que, como ele atenta, nada tem a ver com a falta de sentido proposta por Camus em sua filosofia do absurdo. Um não-sentido que origina o sentido, isto é, que resulta em superprodução, em sobredeterminação de sentido pela combinação de elementos implicada na estrutura.

E, se olharmos de perto, isso se expressa de diferentes maneiras nas proposições daqueles que de alguma forma se utilizaram dos pressupostos do estruturalismo. Saussure (1916/1970), por exemplo, nos diz da arbitrariedade do signo, de modo que seu valor linguístico é produzido, primeiramente, pela articulação entre significado (conceito) e significante (imagem acústica) e, ainda, pela relação de oposição entre os diversos signos que compõem o sistema linguístico. Como ele adverte: "[] Se esse não fosse o caso, a noção de valor perderia algo de seu caráter, pois conteria um elemento imposto de fora." (p. 132). Consequentemente, o sistema, a partir do qual os signos ganham valor linguístico, perderia sua primazia.

Já Lévi-Strauss (1958/2012), ao comentar sobre a estrutura elementar de parentesco, isto é, os quatro elementos (irmão, irmã, pai, filho) que ele denomina de átomo de parentesco, nos diz que "[] não há existência que possa ser concebida ou dada aquém das exigências fundamentais de sua estrutura e, por outro lado, ele [o átomo de parentesco] é a única matéria-prima de construção dos sistemas mais complexos." (p. 81).

Aqui, é importante lembrar que o sistema de parentesco, para Lévi-Strauss, tem um caráter primordialmente sociossimbólico e não biológico. Como nos diz o antropólogo: "Ele só existe na consciência dos homens, é um sistema arbitrário de representações, e não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de fato." (p. 85). Se assim não fosse - se o sistema de parentesco fosse o desenvolvimento espontâneo das relações (biológicas) de consanguinidade, por exemplo - ele seria determinado por elementos impostos "de fora" que afetariam o caráter arbitrário da estrutura. Desse modo, Lévi-Strauss não ignora a importância da consanguinidade, mas aposta na primazia das relações de aliança (o casamento entre pessoas sem qualquer grau de parentesco), das quais se deduz, aliás, a universalidade da proibição do incesto (afinal, tal proibição acaba por reforçar a tendência a relações de aliança). Como ele nos diz:

Sem dúvida, a família biológica está presente e se reproduz na sociedade humana. Mas o que confere ao parentesco seu caráter social não é aquilo que ele tem de manter da natureza. É o procedimento essencial pelo qual ele se afasta dela. [] Assim, o que é de fato "elementar" não são as famílias, termos isolados, e sim a relação entre esses termos [as relações de aliança]. (Lévi-Strauss, 1958/2012, p. 84-85).

Lacan (1960/1998), por sua vez, propõe que o Outro é o lugar do tesouro do significante - a semelhança com a já comentada definição saussuriana da língua não é mera coincidência -, de modo que "[] qualquer enunciado de autoridade não tem nele outra garantia senão sua própria enunciação, pois lhe é inútil procurar por esta num outro significante, que de modo algum pode aparecer fora desse lugar." (p. 827). É o sentido, enfim, de seu aforismo segundo o qual não há Outro do Outro, ou de sua afirmação de que não existe metalinguagem: de uma maneira ou de outra, tudo que diz respeito ao significante passa pelo grande Outro, pois ele se configura como o próprio esqueleto, a armação significante - aquela que não possui exterior2.

Em outros termos, podemos dizer que o que Lacan identifica, nesses enunciados, é o fato que a linguagem, em si, implica sempre certo grau de alienação. Daí ele afirmar, em A instância da letra (1957/1998), que "[] o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome próprio" (p. 498). Como ele comenta em um momento do Seminário 3 (1955-56/1988), a descoberta freudiana revela uma metafísica da condição humana que nos transcende e que se inscreve inteiramente em nossa relação com o simbólico. Tal metafísica, ele nos diz: "[] vocês a recebem em cima da cabeça, pode-se confiar nas coisas tal como são estruturadas - elas estão aí, e vocês estão dentro" (p. 91, grifos nossos).

E, aqui, se o nosso argumento sobre a primazia da estrutura (enquanto produtora de sentido, significação etc.) já não fosse suficientemente claro, arriscaríamos dizer que a lista de exemplos se estenderia, enfadonhamente, por quantos "estruturalistas" resolvêssemos citar. Da primazia da estrutura enquanto matriz simbólica determinadora deduz-se o que já de saída afirmamos com Barthes: que a estrutura, como tal, apresenta-se como um lugar fechado e sem exterior. Fazendo uso das palavras de Deleuze (1972/2006):

A determinação recíproca dos elementos simbólicos prolonga-se, deste modo, na determinação completa dos pontos singulares que constituem um espaço correspondente a esses elementos. [] Em todo caso, sempre os elementos simbólicos e suas relações determinam a natureza dos seres e objetos que vêm efetuá-los, ao passo que as singularidades formam uma ordem dos lugares, ordem que determina simultaneamente os papéis e atitudes desses seres enquanto os ocupam. (p. 228-229, grifos nossos)

 

A onipresença da ideologia e do poder em Althusser e Foucault

É comum encontrar, no campo da filosofia e da teoria social, a asserção de que haveria certa homologia no que tange às análises do social presentes no pensamento de Louis Althusser e de Michel Foucault.

A título de exemplo, podemos citar o filósofo esloveno Slavoj Zizek (1996), que vê no micropoder de Foucault um contraponto à teoria althusseriana dos Aparelhos Ideológicos de Estado (doravante AIE), pois enquanto aquele pensa no controle social a partir de sua horizontalização pelos processos disciplinares nas instituições, este centraliza tal controle na figura de um Sujeito institucional e interpelador - em ambos os casos, diga-se de passagem, o sujeito acaba (sobre)determinado sócio-institucionalmente. De modo semelhante, o também filósofo e crítico literário Terry Eagleton (1996) afirma haver certa similaridade no que diz respeito à maneira como ambos pensam o sujeito, seja como assujeitamento (Althusser), ou como auto-encarceramento (Foucault).

Em tal homologia, qual seria o ponto nodal em que se daria a interseção entre ambas as teorias? Nosso palpite é que tal ponto se localizaria no que acreditamos ser uma influência comum aos dois filósofos, qual seja, a filosofia estruturalista subjacente às suas concepções: Althusser era notadamente estruturalista, sendo tal "filiação", inclusive, uma das marcas de sua originalidade no marxismo ocidental. Foucault, por sua vez, apesar de não se nomear um filósofo estruturalista (e inclusive se irritar quando assim denominado), já confessou ter feito uso de tal modelo de análise, o que, geralmente, é circunscrito a suas primeiras obras, do período chamado arqueológico.

Caso nossa hipótese esteja correta, poderemos, então, esclarecer os motivos das noções de ideologia e de poder tomarem proporções tão grandes para esses pensadores, a ponto de se tornarem onipresenças que, inevitavelmente, acarretam a anulação do sujeito enquanto possibilidade de escape, de subversão - afinal, não foi o estruturalismo que proclamou diversas vezes a morte do sujeito? Se não a morte, pelo menos seu esmigalhamento, como nos mostra Deleuze (1972/2006, p. 245): "O estruturalismo não é absolutamente um pensamento que suprime o sujeito, mas um pensamento que o esmigalha e o distribui sistematicamente, que contesta a identidade do sujeito, que o dissipa e o faz passar de um lugar a outro, sujeito sempre nômade, feito de individuações, mas impessoais, ou de singularidades, mas pré-individuais".

Comecemos por Althusser, em que é possível ver a influência estruturalista de maneira mais evidente. Em um de seus textos mais importantes - o hoje clássico Contradição e Sobredeterminação (1965/1979) -, o filósofo faz uma crítica contundente à retomada, no marxismo, do conceito hegeliano de dialética (e, consequentemente, de contradição) mediante uma simples inversão (que ele caracteriza como uma ficção de inversão) do idealismo para o materialismo. Para Althusser, nessa extração pura e simples, juntamente com o conceito de dialética, "viria" toda a concepção de mundo hegeliana que, como tal, é idealista. E como ele nos diz: "[] é impossível jogar verdadeiramente às urtigas essa 'concepção de mundo', sem se obrigar a transformar profundamente as estruturas dessa mesma dialética" (p. 90, grifos do autor). Daí a sua proposta teórica de abandonar a noção de contradição simples pela ideia de um acúmulo, de uma fusão de contradições (uma unidade de ruptura, ele nos diz) que ele chamará de sobredeterminação3.

A partir de tal elaboração teórica, é permitido, enfim, a Althusser (1970/1996) explicar materialmente a origem de um fenômeno que, enquanto tal, é sempre sobredeterminado em seu princípio pela infraestrutura e, inversamente, reafirmar o poder de (sobre)determinação da estrutura. Em outras palavras, a partir de tal leitura (uma leitura do materialismo pelo estruturalismo, podemos dizer), é possível, então, pensar o sujeito não mais como substância, mas como produto de um complexo processo de sobredeterminação ideológica: "a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos" (p. 131); sujeito esse esmigalhado, efeito da estrutura.

Como comenta Deleuze (1972/2006), o verdadeiro sujeito, para Althusser, acaba por ser a própria estrutura. Afinal, como podemos ver em Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (1970/1996), o sujeito é completamente determinado pelo Outro Sujeito Absoluto do aparelho ideológico - pela estrutura, enquanto "armação ideológica" - por meio da interpelação, de modo que aquele se apresenta como simples reflexo especular deste. Devemos notar que, aqui, quando afirmamos que os AIE designam a estrutura enquanto "esqueleto ideológico", o fazemos partindo de um léxico estruturalista, pois, se estivéssemos nos utilizando de termos marxistas, o mais correto seria afirmar que os AIE se configuram como um dos níveis da superestrutura que, como mostra Althusser, são determinados, em última instância, pela infraestrutura. De todo modo, como é evidente, mantêm-se o poder de sobredeterminação, seja pela estrutura ideológica (Outro Sujeito Absoluto) que os AIE designam, seja por eles enquanto superestruturas submetidas, enfim, à infraestrutura. E como lembra Deleuze (1972/2006, p. 242): "Todas as estruturas são infraestruturas.". Logo, a estrutura sempre detém a faculdade de determinação em última instância.

Aqui, é interessante chamarmos a atenção para o fato de que tal maneira de se pensar o sujeito em Althusser acaba por se aproximar bastante da abordagem foucaultiana; porém, nesta, em vez de a ideologia (em sua raiz material nos AIE) ocupar o lugar determinante, quem o ocupa é o poder. Assim, se Foucault elabora sua teoria sobre o poder em um momento em que buscava se afastar do paradigma estruturalista, tal paradigma parece retornar (tal como um conteúdo recalcado retorna nos sintomas) na maneira como o filósofo pensa o sujeito (mais uma vez), esmigalhado e constituído por relações de poder e saber. Aliás, a própria forma como Foucault lida com as afirmações de que haveria, subjacente a sua teoria, uma abordagem estruturalista, é sintomática, ora afirmando ter feito uso do método estruturalista, ora rechaçando (recalcando?) veemente tal influência. De todo modo, o que nos importa é que Foucault, assim como Althusser, repudia a perspectiva de pensar o sujeito como substância. Como ele nos diz:

Procurei mostrar como o próprio sujeito se constituía, nessa ou naquela forma determinada, como sujeito louco ou são, como sujeito delinquente ou não, através de um certo número de práticas, que eram os jogos de verdade, práticas de poder, etc. Era certamente necessário que eu recusasse uma certa teoria a priori do sujeito para poder fazer essa análise das relações possivelmente existentes entre a constituição do sujeito ou das diferentes formas de sujeito e os jogos de verdade, as práticas de poder etc. [] [O sujeito] não é uma substância. É uma forma, e essa forma nem sempre é, sobretudo, idêntica a si mesma. [] o que me interessa é, precisamente, a constituição histórica dessas diferentes formas do sujeito, em relação aos jogos de verdade. (Foucault, 1984/2006, p. 275, grifos nossos).

Dessa maneira, podemos dizer que Foucault buscou "fugir" aos limites do estruturalismo, mas, no que diz respeito ao sujeito, tal influência parece se perpetuar, talvez pelo ímpeto do filósofo por se afastar de uma perspectiva humanista. Aliás, esta é mais uma característica comum a Foucault e Althusser: um anti-humanismo radical enquanto recusa da busca incansável pela essência humana. Dessa recusa, surgem as noções de sujeito para ambos os filósofos, seja como indivíduo fabricado pelo poder - "[] o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber" (Foucault, 1975/1983, p. 171) -, seja como sujeito interpelado pela ideologia - que, como lembra Eagleton (1996), está mais para o moi lacaniano (a instância imaginária do Eu) do que para o je (o sujeito do inconsciente).

Nesse sentido, aliás, concordamos com Zizek (1996) que Althusser leva vantagem sobre Foucault ao propor que a micropolítica presente nos processos ideológicos é sempre determinada, em último caso, pela presença maciça do grande Outro ideológico dos AIE, dando consistência ao caráter determinador (interpelador) dessa instância sobre o sujeito - consistência que é, enfim, imaginária, visto que Althusser pensa a interpelação a partir da teoria lacaniana do estágio do espelho e de formação do Eu. Pensado dessa maneira, tal processo, cujo privilégio imaginário do Outro Sujeito Absoluto é crucial, pode, inclusive, ser explicado psicanaliticamente por meio da transferência, tal como o fez Freud (1921/2011), por meio do conceito de sugestão, ao explicar as mudanças psíquicas ocorridas nos indivíduos que compõe uma massa e que condiciona, enfim, sua identificação com a figura de um líder (lugar homólogo ao ocupado pelo Sujeito Absoluto althusseriano). Porém, inversamente, acreditamos que Foucault (1984/2006) leva vantagem sobre Althusser ao buscar uma saída possível do domínio do poder pela problematização do sujeito e da prática do cuidado de si - por ele proposto a partir da retomada do imperativo socrático: ocupa-te a ti mesmo. Tal problematização, aliás, ao denunciar o que determina o sujeito, mais uma vez o aproxima da abordagem althusseriana, que vê o sujeito como produto da interpelação: "[] o doente mental se constitui como sujeito louco em relação e diante daquele que o declara louco" (Foucault, 1984/2006, p. 275).

De todo modo, é importante dizer que o próprio Althusser (1970/1996) chega a prever a existência de formas encarniçadas de luta no interior dos Aparelhos de Estado, em que ele recorre ao conceito gramsciano de hegemonia. Assim, Althusser (1976/1980) não deixa de prever formas de resistência política (e mudança hegemônica), formas que, como um fiel marxista, ele localiza na luta de classes. É basicamente o que faz Foucault (1984/2006), partindo, porém, de outra construção teórico-filosófica, isto é, a partir da brecha do cuidado de si como prática de liberdade e da assunção de que as relações de poder se configuram como jogos estratégicos entre liberdades (os quais, arriscamos dizer, também se tratam de jogos de luta hegemônica), em que se deve buscar "[] jogar com o mínimo possível de dominação" (p. 285).

Assim, mesmo que tanto Althusser, quanto Foucault - como bons militantes que eram - tenham pressuposto formas de resistência política, tais formas acabam sempre se dando do interior dos próprios limites impostos pelos mecanismos de sujeição pela ideologia, para um, e de dominação pelo poder, para o outro. Acreditamos que o caráter onipresente dessas instâncias (ideologia e poder) é derivado, enfim, da noção estrutura enquanto lugar fechado e sem exterior, da estrutura enquanto instância que, para aproveitar a referência barthesiana, é fascista. Desse modo, em ambos os casos, as formas de resistência acabam por ser interiores à própria instância a que se busca resistir e, portanto, por ela presumidas.

Como nos diz Althusser (1976/1980), "a existência das classes está [] inscrita na produção mesma, no próprio coração da produção: nas relações de produção" (p. 135, grifos do autor), de modo que o que acabamos de afirmar se faz sentir: a luta de classes é interior à própria infraestrutura (que designa, justamente, as forças produtivas e as relações de produção). Foucault (1984/2006), por sua vez, afirma ser o cuidado de si uma espécie de conversão do poder, uma maneira de controlá-lo e limitá-lo (de seu próprio interior); afinal, a liberdade é inerente à relação de poder:

[] para que se exerça uma relação de poder, é preciso que haja sempre, dos dois lados, pelo menos uma certa forma de liberdade. Mesmo quando a relação de poder é completamente desequilibrada, quando verdadeiramente se pode dizer que um tem todo poder sobre o outro, um poder só pode se exercer sobre o outro a medida que ainda reste a esse último a possibilidade de se matar, de pular pela janela ou de matar o outro. Isso significa que, nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência, pois se não houvesse possibilidade de resistência - de resistência violenta, de fuga, de subterfúgios, de estratégias que invertam a situação -, não haveria de forma alguma relações de poder. (p. 276-277).

Assim, podemos dizer que em Althusser e Foucault até mesmo a resistência política não escapa completamente à onipresença da estrutura, de modo que esta, encarnada na ideologia e no poder, praticamente se configura como a representante legítima do Divino (ou pelo menos de Sua vontade). Ou seja, se a crença humanista na autonomia do homem é ingênua - como bem mostram Althusser e Foucault -, o "estruturalismo" desses filósofos parece levá-los a uma falta de saída em que o sujeito se apresenta como mera imagem e semelhança do Outro da estrutura; como puro reflexo Dele, por Ele completamente determinado.

O próprio Althusser (1970/1996) privilegia o exemplo da ideologia religiosa cristã, em que o Sujeito Absoluto dos AIE encarna nada menos que a figura de Deus. Por outro lado, mesmo que o poder em Foucault (1975/1983) se apresente de maneira anônima e fragmentada em uma série de processos microfísicos4, podemos dizer que seu "arquétipo" fundamental se expressa no dispositivo do Panóptico de Jeremy Bentham - que parece dar um mínimo de consistência imaginária ao poder foucaultiano, ainda que seja na figura da torre central, dessa espécie de olho que tudo vê, mas que nunca é visto:

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, [] isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. [] um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, e do que lhe acontece. (p. 174-175, grifo nosso).

E, como nos lembra Miller (1975/1996), ao falar do projeto arquitetural de Bentham, trata-se, enfim, de uma instância em que se pode reconhecer uma espécie de Deus artificial, uma máquina que faz semblante de Deus. Diante de Deus em sua onipresença, pouco resta a fazer - o próprio texto bíblico nos mostra, em Carta aos Hebreus: "Não existe criatura que possa esconder-se de Deus; tudo fica nu e descoberto aos olhos Dele; e a Ele devemos prestar contas" (Hb. 4:13).

Em meio a isso, parece-nos que a única saída possível frente à onipresença do poder e da ideologia é acreditar em um milagre às avessas - às avessas, pois ao invés de ter sua origem no Divino, é um milagre que permita fugir ao Seu domínio. Talvez seja esse o sentido do que nos diz Zizek, ao comentar sobre o conceito lacaniano de real. Como ele afirma, "[] o Real-como-impossível significa que ele acontece. Para Lacan, milagres acontecem, e esse é o Real lacaniano" (Zizek & Daly, 2006, p. 203), real que denota, antes de qualquer coisa, "[] a liberdade como um corte radical na textura da realidade" (p. 205).

 

Jacques Lacan e o sujeito enfim em questão

Não é raro Jacques Lacan ser rotulado de estruturalista. Tal rotulação, apesar de imprecisa, não é de todo injustificada. Afinal, Claude Lévi-Strauss, com sua antropologia estrutural (Lacan, 1953/1998), e Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson, com a linguística estruturalista (Lacan, 1957/1998), talvez componham, ao lado de Freud, o referencial teórico básico do psicanalista francês. De tal articulação, aliás, surge o célebre aforismo de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem - a grande marca de seu retorno a Freud.

Assim, o que nos permite afirmar ser impreciso chamar Lacan de estruturalista? Que ele tenha feito uso de seus pressupostos, é inegável, como já demonstramos. A interrogação a ser feita, portanto, é: como se caracteriza tal uso? Jacques-Alain Miller (1968/1996), ao tentar constituir uma exposição sistemática do conceito de estrutura em Lacan - como se sabe, o ensino/teoria do psicanalista parisiense é marcado por certo hermetismo e dispersão, apesar de seus Escritos possibilitarem uma visão mais sistemática (porém não menos abstrusa) de sua elaboração teórica -, deixa claro que seu uso parte da crítica, que "[] o desdobra, sem excedê-lo" (p. 10), de modo que é possível falar em um conceito lacaniano de estrutura. Em outros termos, Lacan realizaria um trabalho sobre o conceito, tal como definido por Canguilhem5.

Talvez o principal indicativo de que a estrutura, em Lacan, não tem o mesmo sentido que em outros estruturalistas seja sua doutrina do sujeito. Assim, fazemos da pergunta de Lacan (1960/1998, p. 814) a nossa: "Uma vez reconhecida a estrutura da linguagem no inconsciente, que tipo de sujeito podemos conceber-lhe?".

De antemão, podemos responder que, a despeito do estruturalismo, a psicanálise afirma o sujeito, mesmo que não o faça, como atenta Miller (1968/1996), a partir de uma busca fenomenológica: o sujeito, sustentado pela estrutura, isto é, pelo significante, "[] não conserva assim nenhum dos atributos do sujeito psicológico, ele escapa à sua definição" (p. 14). Para além do fenômeno e, portanto, para além do imaginário - e, devemos acrescentar, não obstante a estrutura simbólica e seu potencial de determinação -, eis o sujeito do inconsciente.

Daí podermos afirmar que a estrutura, para Lacan, se sustentaria em uma falta fundamental: "Nenhuma relação de um sujeito com outro sujeito, ou de um sujeito com um objeto, preenche a falta, a não ser por uma formação imaginária que a sutura, mas ela volta a se encontrar em seu interior" (Miller, 1968/1996, p. 16). Desse modo, se a categoria do sujeito, em Althusser e em Foucault, é completamente determinada pela estrutura, pelo processo de interpelação ideológica ou pelos microprocessos que caracterizam o poder disciplinar - o que acaba por implicar um certo pessimismo no que tange às suas teorias (quase que como um contraponto direto ao "otimismo" humanista), principalmente se levarmos em conta que ambos eram ativamente engajados e preocupados com uma prática política transformadora -, em Lacan, o sujeito é correlato justamente do que surge como impasse (como falta) da estrutura, ponto impossível de formalizar, simbolizar, subjetivar e que, paradoxalmente, permite ao sujeito ser colocado em questão - sujeito que, como nos lembra Zizek (1992), denota, justamente, a falha da subjetivação: "[] o sujeito não subsiste 'além' de sua representação impossível, mas é como que o efeito dessa própria impossibilidade, constitui-se pelo fracasso de sua representação significante" (p. 77, grifo do autor).

E o que permite à psicanálise operar com o que surge do impossível? Para Lacan (1966b/1998, p. 230), se "[] a psicanálise não tem o privilégio de um sujeito mais consistente, porém deve, antes, permitir esclarecê-lo igualmente nas vias de outras disciplinas". E isso, ela só faz por se constituir, antes de tudo, como uma clínica, e uma clínica que se propõe a escutar um sujeito implicado em sua demanda: sujeito implicado no que há de mais enigmático do seu ser, justamente por saber que isso lhe concerne; sujeito estimulado a associar livremente por um psicanalista, na busca de dizer o indizível.

Pensamos ser esse, aliás, o principal distintivo da psicanálise - esse discurso que surge com a descoberta freudiana e que, devemos dizer, é consectário ainda da "descoberta de Freud por Jacques Lacan" (como consta na contracapa da edição brasileira de seus Escritos). Distintivo que lhe permite "esclarecer" o sujeito, sem pretender, com isso, lançar-lhe uma luz que não produza sombra; afinal, o sujeito é correlato do que lhe escapa.

Por essa razão mesma, o sujeito também escapa. Daí ter se apresentado como um impasse clínico que Lacan (1966b/1998), seguindo a tradição inaugurada por Freud com a metapsicologia, foi obrigado a elaborar teoricamente: "Queremos falar do sujeito colocado em questão por esse discurso, pois ao reinstaurá-lo aqui, pelo ponto em que de nossa parte não faltamos com ele, é apenas fazer justiça ao ponto em que ele nos concedia um encontro marcado" (p. 229). Por tudo isso, por operar com um sujeito que, subversivamente, não se reduz à determinação por mecanismos sociossimbólicos, acreditamos ser a clínica psicanalítica dotada de relevância política.

Aqui, vale lembrar o que dissemos sobre a estrutura no primeiro tópico deste ensaio. Para Barthes (1977/2013), a saída dos mecanismos de poder impostos pela linguagem se dá, necessariamente, de seu interior: "[] é no interior da língua que a língua deve ser combatida" (p. 17) - afirmação tautológica; afinal, como não cessamos de comentar, ela é fechada e sem exterior. Dela, disse-nos Barthes, só se pode sair pelo preço do impossível, da trapaça, que ele localiza na literatura. Perguntamos: qual o estatuto de tal impossível? Ao que o semiólogo francês, prontamente, nos responde: é o real de Lacan, real como impossível, real que topologicamente não coincide com a ordem da linguagem, mas a que nem por isso devemos nos render. Em suas palavras: "[] a literatura não quer, nunca quer render-se" (p. 23).

Ora, e não foi justamente por meio de um recurso topológico à chamada banda de Moebius que Lacan deu uma representação formal ao real (mesmo que de maneira paradoxal, já que o real se configura, justamente, como o irrepresentável, o impossível de formalizar) e, assim, conseguiu explicar a estrutura do sujeito - que, para parafrasear Barthes, igualmente não se rende?

Que se aprenda nisso a marca a não perder de vista do estruturalismo. Ele introduz em toda "ciência humana" - entre aspas - que conquista uma modalidade muito especial do sujeito, aquele para o qual não encontramos nenhum índice senão o topológico, digamos, o signo gerador da banda de Moebius, que chamamos de oito interior. O sujeito está, se nos permitem dizê-lo, em uma exclusão interna ao seu objeto. (Lacan, 1965/1998, p. 875).

Nesse ponto surge, enfim, o sujeito lacaniano. Sujeito que, ao mesmo tempo em que é efeito da estrutura em suas identificações simbólicas e imaginárias - um significante que representa o sujeito para outro significante (Lacan, 1960/1998) etc. -, é correlato de um objeto puramente negativo, objeto que se apresenta como hiância, como antagonismo fundamental, como impasse irredutível da simbolização: o objeto a, que, como lembra Lacan (1965/1998, p. 878), "[] deve ser inserido, já o sabemos, na divisão do sujeito". É justamente nesse ponto que Lacan, ao subverter o sujeito, indica haver nele um "para além" da estrutura (a despeito de esta denotar um lugar fechado e sem exterior). E isso, Lacan o enuncia de maneira irônica já na abertura de seus Escritos, ao comentar a célebre frase de Buffon, contestando que o sujeito seja simples lugar de retorno da mensagem vinda do grande Outro da estrutura:

"O estilo é o próprio homem" repete-se sem nisso ver malícia, e sem tampouco preocupar-se com o fato de o homem não ser mais uma referência tão segura. [] O estilo é o homem; vamos aderir a essa fórmula, somente ao estendê-la: o homem a quem nos endereçamos? Isso seria simplesmente satisfazer a este princípio por nós promovido: na linguagem nossa mensagem vem do Outro, e para enunciá-lo até o fim: de forma invertida. [] Mas se o homem se reduzisse a nada ser além do lugar de retorno de nosso discurso, não nos voltaria a questão de para que lho endereçar? [] Pois deciframos aqui [] a divisão onde se verifica o sujeito pelo fato de um objeto o atravessar sem que eles em nada se penetrem, divisão que se encontra no princípio do que se destaca, no fim desta coletânea sob o nome de objeto a (a ser lido: pequeno a). (Lacan, 1966a/1998, p. 9-10-11).

Assim, é como se Lacan, por meio de uma trapaça topológica (parafraseando mais uma vez Barthes) e motivado por um imperativo clínico (de considerar o sujeito que procura um psicanalista e, ali, se põe a falar), conseguisse burlar os limites que o estruturalismo acaba impondo no que se refere à proposição de uma política emancipatória; burlar, enfim, o fascismo da estrutura; em suma, desdobrar a estrutura sem excedê-la. A insígnia fundamental dessa trapaça, como já deve ser evidente ao leitor, é nada menos que o sujeito do inconsciente.

 

Considerações finais

Há de se convir que, apesar das diferentes contingências e percursos teóricos trilhados pelos três pensadores franceses apresentados e contrapostos neste ensaio - Althusser, Foucault e Lacan -, parece ser possível ver neles alguns pontos de contato. Um dos mais notáveis talvez seja o fato de todos eles terem sido, de alguma maneira, atravessados pelo estruturalismo - atravessamento este que não foi sem consequências. Desse ponto de contato, é possível medir, pelo menos em parte, seus efeitos, dos quais destacamos um, por sua pertinência com a questão do sujeito (questão primordial deste trabalho): há uma profunda recusa em pensá-lo (o sujeito) como substância6.

Se não é substância, o sujeito implica, necessariamente, algo de uma dimensão vazia, ou seja, de uma forma, a priori, sem conteúdo. De uma maneira ou de outra, este ensaio se dedicou a tentar demonstrar como esses autores, em seus respectivos percursos teóricos, deram conta desse sujeito marcado, em seu fundamento, por uma ausência de conteúdo positivo e, a partir disso, pensar no alcance político de tais percursos - numa espécie de tentativa de matar os dois coelhos (o fundamento teórico do sujeito e seu potencial político) com um argumento só. Avancemos na ordem que até aqui seguimos (começando por Althusser, passando por Foucault e chegando, finalmente, a Lacan), o que talvez mostre que ela não é completamente arbitrária.

Tomando a estrutura como referência, talvez possamos dizer que, deles, Althusser foi o que menos avançou7, mantendo-se no limite desse espaço fechado e sem exterior que a estrutura designa. A sua via de emancipação política pela luta de classes, apesar de possuir um peso retórico, parece ter pouca consistência teórica. Afinal, o que impede que, tomados os meios de produção por meio de uma revolução proletária, este mesmo proletário não continue sendo objeto da interpelação - o Estado Stalinista (do qual o próprio Althusser era crítico), por exemplo, não seria fundamentalmente interpelador?

Nesse sentido, nos parece que a onipresença da infraestrutura em Althusser - com sua característica de determinação em última instância - desemboca em um conceito de sujeito limitado, que se apresenta como simples produto de sobredeterminação simbólica e imaginária; como, por exemplo, o conceito de Eu (moi) em Lacan. Desse modo, sua crítica da ideologia e sua aposta na luta de classes acabam por implicar a simples assunção do polo oposto ao burguês, quando, como nos lembra Zizek (1996), a crítica da ideologia, para ser efetiva, deve, antes, se pautar no antagonismo (do qual a luta de classes pode, inclusive, ser um dos nomes) em sua negatividade pura8, isto é, pensar "[] o antagonismo social (luta de classes) como Real, e não como (parte da) realidade social objetiva" (p. 30). Afinal, como prossegue Zizek: "Essa ideia de luta de classes enquanto antagonismo permite-nos contrastar o real do antagonismo com a polaridade complementar dos opostos: talvez a redução do antagonismo à polaridade seja uma das operações ideológicas elementares" (p. 28).

Foucault, por sua vez, parece alargar um pouco mais os limites desse lugar fechado (encarnado pelo poder em sua filosofia) que, devemos dizer, continua sem exterior. Tal alargamento se dá na possibilidade de saída pela própria subjetividade, ou melhor, de sua problematização por meio do cuidado de si. Porém, tal saída ainda se apresenta de maneira sutil, pois se mantém em meio às relações de poder (que permanecem onipresentes), com a diferença de que esse poder, nos lembra Foucault (1984/2006), não deve ser mais visto como representando sempre o mal - em declarada oposição a Sartre, que via no poder a expressão do mal. Assim, a perspectiva do cuidado de si como prática de liberdade busca um estado em que as relações de poder mantenham-se num nível aceitável, e no qual tais relações sejam definidas como jogos estratégicos abertos em que as posições podem se inverter sem que, necessariamente, isso implique dominação de um lado pelo outro, como, por exemplo, nas relações amorosas e nos jogos de sedução.

Já Lacan, ao afirmar o furo do estruturalismo, parece subverter completamente o enunciado que o afirma como um lugar fechado e sem exterior - subvertendo, inclusive, a própria ideia de exterior, já que a partir de seu recurso à topologia, os registros são trabalhados pela lógica do espaço euclidiano, que não prevê a distinção entre interior e exterior. Nisso consiste, para nós, o estatuto fundamental do conceito de real em Lacan: uma impossibilidade radical ao simbólico estrutural - o que não implica, necessariamente, vê-lo como uma entidade positiva externa à estrutura, metafísica, tal qual a Coisa-em-si kantiana (como se o real fosse da ordem do numênico), e sim como pura negatividade, ao modo hegeliano. Daí o real ser, em seu fundamento, impasse: da representação, da simbolização, da formalização. Zizek (1992) dá uma explicação precisa para essa passagem de Kant para Hegel:

Kant continua a pressupor que a Coisa-em-si existe como um dado positivo, além do campo da representação, da fenomenalidade; a falha da fenomenalidade, da experiência dos fenômenos, não é, para ele, mais do que uma 'reflexão exterior', uma simples maneira de mostrar, no próprio interior do campo da fenomenalidade, essa dimensão transcendental da Coisa, que persiste intrinsecamente além da fenomenalidade. A posição de Hegel, ao contrário, é que não existe nada além da fenomenalidade, além do campo da representação - a experiência da negatividade radical, da inadequação radical de todos os fenômenos para representar a Ideia, a experiência da distância radical entre os dois, essa experiência já é a Ideia como negatividade 'pura' e radical. Quando Kant considera estar sempre lidando com a exposição negativa da Coisa, já estamos no seio da própria Coisa, porque essa mesma Coisa não é nada além dessa negatividade radical. (p. 130, grifos do autor)

É por meio dessa leitura "mais hegeliana" de Lacan - da qual o pensamento zizekiano é paradigmático - que alguns autores, como Safatle (2007) e Dunker (2007), afirmam que a psicanálise opera com uma ontologia negativa, por se pautar em uma perspectiva que vê no sujeito um correlato da negatividade do real. Acreditamos que tal perspectiva nos possibilita ver, na irredutibilidade do real ao poder de determinação da estrutura, um potencial inquebrantável de liberdade, em que nossa aposta no alcance político da noção de sujeito tem sua expressão legítima. Parece-nos ser isso o que quer dizer Lacan (1960/1998, p. 815) ao afirmar que é o corte da cadeia significante que nos permite "[] verificar a estrutura do sujeito como descontinuidade no real. Se a linguística nos promove o significante, ao ver nele o determinante do significado, a análise revela a verdade dessa relação, ao fazer dos furos do sentido os determinantes de seu discurso".

E nesse ponto, concordamos com Lacan que só a clínica poderia ter feito tal revelação, em sua aposta na singularidade da enunciação frente ao enunciado. A relação do sujeito com o significante, com a estrutura, se apresenta "[] através de uma enunciação com que o ser estremece, pela vacilação que lhe retorna de seu próprio enunciado" (p. 816). A clínica aposta, justamente, nesse sujeito da enunciação que expressa o mal-entendido próprio à linguagem, que denuncia a inconsistência de nosso sistema linguístico, que demonstra, enfim, que o enunciado não é tão estável quanto supomos.

Aqui, é interessante atentar, ainda, que se em Althusser, as críticas aos resquícios do hegelianismo na teoria de Marx acaba por encaminhá-lo para o estruturalismo, em que ele dá ênfase ao conceito de sobredeterminação (conceito, aliás, de extração psicanalítica), em contrapartida, a retomada do hegelianismo na teoria de Lacan, realizada principalmente por Zizek, acaba por implicar um certo recuo frente ao estruturalismo, a partir, principalmente, do real como conceito negativo. A negatividade do real implica a assunção de que a estrutura, longe de ser onipresente e homogênea, é inconsistente; que o Outro da estrutura, longe de ser absoluto, é barrado - S(Ⱥ)9. De todo modo, é importante ratificar que tal recuo é parcial (e de modo algum um rompimento completo); afinal, a própria perspectiva de uma sobredeterminação estrutural do sujeito é aceita em psicanálise para explicar, por exemplo, suas identificações simbólicas e imaginárias - o sujeito do inconsciente não é somente dividido (como efeito do antagonismo irredutível implicado pelo objeto a), mas também vazio (pois sustentado pelo significante que, enquanto tal, não significa nada).

Mas, aqui, não seria justo dizer que, dos três "protagonistas" deste ensaio, somente Lacan tentou responder aos limites do estruturalismo. Foucault, que, assim como o psicanalista, ora é chamado de estruturalista, ora de pós-estruturalista, também tentou responder a tais limites, tendo em vista, porém, outros objetivos que não a colocação do sujeito em questão, apesar de ter buscado na década de 1980 pensar em um contrapeso à sujeição pelo poder mediante uma ética do cuidado de si e da problematização do sujeito enquanto produto de intricadas relações de poder e saber (Foucault, 1984/2006). Aliás, talvez o fato de ele acreditar na possibilidade de problematização da sujeição justifique que ele reconhecesse, a despeito de suas críticas ao psicanalista parisiense, a teoria lacaniana do sujeito (Foucault, 1981/2011) - e nesse sentido, não seria a clínica psicanalítica uma modalidade do cuidado de si?

Em todo caso, essas constantes tentativas (fracassadas) dos estudiosos de nomear a que movimento teórico o filósofo e o psicanalista se filiavam apontam para um outro esforço teórico - surgido na cena intelectual francesa - de responder e ultrapassar os limites impostos pelo estruturalismo: a já citada filosofia pós-estruturalista. Mas isso já é capítulo de outra história.

 

Referências

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Recebido em 09 de agosto de 2018
Aceito para publicação em 18 de dezembro de 2018

 

 

1 Vicissitudes que, devemos dizer, nem sempre foram fiéis ao estruturalismo e que, em alguns casos, como veremos, o criticaram ou romperam com seus próprios limites.
2 É interessante atentar para o caráter ambíguo do aforismo lacaniano sobre a inexistência de um Outro do Outro. Por um lado, tal aforismo demonstra que a estrutura se apresenta como um "circuito fechado", de modo que não há uma "estrutura da estrutura", ou seja, ela determina a si mesma (o que, como vimos, é uma premissa do próprio estruturalismo). Por outro lado, o aforismo de Lacan denuncia a inconsistência desse Outro, ao afirmar que não existe um "meta-Outro", ao dizer da inexistência de uma alteridade transcendental absoluta. Para o psicanalista, até mesmo o grande Outro, enquanto estrutura que nos transcende, é barrado. Como veremos mais adiante, essa ambiguidade se explica pela dupla fundamentação teórica do conceito de sujeito em Lacan, cuja expressão se dá no fato de ele ser, ao mesmo tempo, vazio (sujeito da estrutura) e dividido (sujeito da dialética).
3 Tomamos a liberdade de trazer um trecho do texto althusseriano que, apesar de longo, é bastante exemplar de sua crítica ao conceito de simples contradição em Hegel: "A simplicidade da contradição hegeliana não é, com efeito, possível a não ser pela simplicidade do princípio interno que constitui a essência de todo período histórico. É porque é possível, de direito, reduzir-se a totalidade, a infinita diversidade de uma sociedade histórica dada (Grécia, Roma, o Santo Império, a Inglaterra etc.) a um princípio interno simples, que essa mesma simplicidade, adquirindo assim direito à contradição, pode aí se refletir. [
] Daí porque, aliás, Hegel pode-nos representar como 'dialética', isto é, movida pelo jogo simples de um princípio de contradição simples, a História Universal desde o longínquo Oriente até os nossos dias. Daí porque para ele não há jamais, no fundo, verdadeira ruptura, fim efetivo de uma história real - nem, ademais, começo radical. Daí porque também a sua filosofia da História é cheia de mutações todas uniformemente 'dialéticas'. Ele não pode defender essa concepção estupefaciente a não ser mantendo-se no cume do Espírito, onde pouco importa que um povo pereça, visto que encarnou o princípio determinado de um momento da Ideia" (Althusser, 1965/1979, p. 89, grifos do autor).
4 Que, como nos diz Foucault (1975/1983, p. 158): "Organiza-se assim como um poder múltiplo, automático e anônimo; [
] uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente".
5 Como nos diz Georges Canguilhem (1963, citado por Miller, 1968/1996, p. 10): "[
] trabalhar um conceito é fazer variar sua extensão e sua compreensão, é generalizá-lo pela incorporação de traços de exceção, exportá-lo para fora de sua região de origem, tomá-lo como um modelo ou, inversamente, buscar-lhe um modelo; em suma, conferir-lhe progressivamente, por meio de transformações regulares, a função de uma forma.".
6 Neste ponto vale um pequeno comentário à margem: a afirmação de que Lacan recusaria pensar o sujeito como substância pode ser imprecisa. Imprecisa, porque se tomarmos Lacan a partir de uma leitura hegeliana - tal como faz, por exemplo, Zizek (perspectiva adotada neste ensaio, como o leitor verá mais adiante) -, devemos afirmar que a "essência substancial" do sujeito é descentrada de si mesma, é autodividida, ou em outros termos, que "[
] a essência é 'sujeito', e não apenas 'substância'" (Zizek, 1992, p. 142). Como explica Zizek (1992): "[] podemos falar da diferença, da separação entre essência e a aparência, unicamente na medida em que a própria essência é dividida [] Paradoxalmente, poderíamos dizer que o sujeito é precisamente a substância que se apreende como substância (isto é, como uma dada entidade estranha, exterior e positiva, existente em si): o 'sujeito' é apenas o nome dado à distância interna entre a 'substância' e ela mesma, o nome dado ao lugar vazio de onde a substância pode se perceber como 'estranha' a si própria. Sem essa autodivisão da essência, não há nenhum lugar que possamos distinguir da própria essência, aos olhos do qual a essência possa aparecer também distinta dela mesma, isto é, precisamente, como 'pura aparência': a essência só pode aparecer na medida em que já é exterior a ela mesma." (p. 142, grifos do autor). Grosso modo, o que estamos afirmando é que, apesar de Lacan não reduzir o sujeito à substância (o que dá inteligibilidade à nossa afirmação de que ele, assim como Foucault e Althusser, recusa pensar o sujeito como substância), ele não recusa a noção de essência, mas a toma como negatividade.
7 O "avanço" a que aqui nos remetemos nada tem a ver com mérito teórico - que de modo algum é mensurável -, mas sim um avançar em direção à ruptura com os limites impostos pela estrutura. Nesse sentido, vale lembrar que não era do interesse de Althusser superar o estruturalismo.
8 Como nos diz Zizek (1996): "[
] esse lugar de onde se pode denunciar a ideologia tem que permanecer vazio, não pode ser ocupado por nenhuma realidade positivamente determinada; no momento em que cedemos a essa tentação, voltamos à ideologia" (p. 22-23, grifo do autor). Acreditamos que Althusser acaba cedendo à tentação, ao tomar a luta de classe como conceito positivo, isto é, Althusser determina em demasia o que deveria manter-se uma negatividade indeterminada.
9 O que estamos dizendo é que a crítica de Althusser (1965/1979) à noção de simples contradição em Hegel (que como vimos, recai na elaboração do conceito de sobredeterminação) acaba por ser, em certa medida, uma crítica à ideia de que haveria uma contradição essencial ou uma essência em forma de contradição. Em suma, uma crítica à própria ideia de essência, que de alguma maneira remeteria ao "cume do Espírito" (como ele mesmo nos diz). Ora, nos parece que a posição de Zizek (e de outros "ontólogos negativos") nesse debate que Althusser trava com Hegel é que Hegel tinha razão e sua influência se faria sentir na psicanálise de Lacan, principalmente em sua doutrina do sujeito - mesmo que, para afirmar isso, Zizek precise inaugurar uma leitura totalmente original de Hegel. Sobre tal influência, nos diz Safatle (2007) ao falar da pulsão de morte como negatividade irredutível (devemos lembrar que o objeto a, correlato do sujeito do inconsciente, é objeto pulsional por excelência): "Essa irredutibilidade tem um peso ontológico, pois está assentada em uma noção de negação, nem sempre tematizada de maneira explícita por Lacan, como modo ontológico de acesso à essência" (p. 174, grifo nosso).

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