Services on Demand
article
Indicators
Share
Revista Psicopedagogia
Print version ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.23 no.72 São Paulo 2006
ARTIGO DE REVISÃO
Formação profissional em Psicopedagogia: embates e desafios
Professional formation in Psychopedagogy: collisions and challenges
Elcie F. Salzano Masini
Doutora e Livre Docente
RESUMO
As publicações sobre Psicopedagogia, em livros e revistas especializadas, comprovam que essa área de estudos já existe há décadas, no Brasil e na Europa. Esses anos de existência, no entanto, não foram suficientes para uma clara delimitação do objeto e especificidade da área. Restam, entre os próprios profissionais, embates sobre fins, local de exercício, modalidades e recursos de atuação e, com profissionais de outras áreas, discussões sobre os limites de seu objeto de estudo. Em meio aos problemas de delimitações, há concordância que a Psicopedagogia é a área que estuda o processo de aprendizagem e seus bloqueios. Ao tratar de aprendizagem no Século XXI - um cenário onde o homem se debate no movimento entre o real e o virtual, submerso cada dia mais em profusão de informações - a Psicopedagogia enfrenta um dos maiores desafios de nossa época. Como lidar com o aprender do ser humano neste cenário? A busca de uma resposta demanda, em primeiro lugar, a definição precisa de seu objeto de estudos e especificidade, como quadro referencial de delimitação dessa área. Isso requer aprofundamento de estudos, de pesquisas e análise crítica das mesmas - condição indispensável para discussão sobre a formação de profissionais. Este é o tema desta comunicação.
Unitermos: Psicopedagogia, história. Competência profissional. Área de atuação professional.
SUMMARY
The publications on Psychopedagogy, in specialized books and magazines, show decades of existence of this field of knowledge in Brazil and Europe. Those years of existence, nevertheless, were not enough to establish a clear delimitation of the object and specification of the area. There still remain, among its professionals, disagreements about place of exercise, modalities and resources of action and controversies with professionals of other areas about the limits of its object of study. Despite these delimitation problems, it is generally agreed that Psychopedagogy is the area that studies the process of learning and its difficulties. Dealing with learning in the XXI century - a scenario where man struggling between the real and the virtual, overwhelmed in ever increasing superabundance of information - the Psychopedagogy faces one of the major challenges of our time. How to deal with the learning of human being in such environment? The search for an answer demands first a definition of its object of study and specification, as a referential frame that delimits that area of study. This definition requests deepening of studies, researches and critical analyses of those - a mandatory condition to the discussion about preparation of professionals. That is the subject of this paper.
Key words: Psychopedagogy, history. Professional competence. Professional practice location.
INTRODUÇÃO
A identidade da Psicopedagogia não está ainda bem delimitada como área de estudos, apesar de décadas de existência, no Brasil e na Europa, comprovadas em livros e revistas especializadas. Permanecem discussões e embates com os próprios pares, em meio a mal entendidos sobre fins, locais, modalidades e recursos de atuação. Persistem questionamentos de outros profissionais sobre a especificidade de seu objeto de estudos, frente a: 1) diversidade de atividades sob essa denominação, em publicações, na atuação dos que se denominam psicopedagogos, em cursos de extensão, especialização e pós-graduação lato sensu; 2) desempenho de funções de áreas com as quais apresenta interfaces: Psicologia Educacional, Didática e Ensino, Psicoterapia, Psicologia Institucional e Educação Especial.
Esses embates assinalam a necessidade de precisão e clareza sobre o objeto de estudos e a especificidade da Psicopedagogia, tornando-se indispensável compor um quadro referencial de delimitação dessa área.
Apesar das difusas demarcações, há concordância que a Psicopedagogia é a área que lida com questões referentes ao processo de aprendizagem e seus bloqueios. Ao adotar essa definição, os psicopedagogos assumem um dos maiores desafios no contexto do Século XXI - cenário em que vive o homem, tanto em países desenvolvidos como em países em desenvolvimento.
Ovadia1 (Frédéric Ovadia - professor da equipe pedagógica do Institut d'Administration des Entreprises de Nice) contribui para tornar mais claro o significado desse desafio. Conforme assinala esse pesquisador, a cada instante, o mundo se enriquece de paradigmas e paradigmas... e o homem aí está em um mundo homogeneizado, enfrentando enorme quantidade de informações, das quais participa virtualmente e pelas quais compartilha angústias realmente. No movimento entre o real e o virtual, o homem se debate, submerso a cada dia mais em profusão de informações, distante das complexidades e mistérios do que vivencia. Com a globalização do mundo e os novos contextos sistêmicos fica, assim, condenado a uma aprendizagem modelada por estratégias impostas e sem fundamentos... e... para poder criar e recriar em um mundo permanentemente em mudança e participar de forma mais livre, mais justa e, especialmente, mais ética, há necessidade de chaves para incluir, para compreender, para aprender, chave para abrir a porta de um caminho em que o homem recobre sua maneira própria de sentir, pensar, agir em meio a tantas informações...
Este é o panorama para nossa reflexão em Psicopedagogia. Como enfrentar essas questões para lidar com o ser humano neste cenário do século XXI: como lidar com o seu aprender, que traz implícito o lidar com o próprio aprender?
Serão retomados alguns pontos de embates e de desafios que a Psicopedagogia tem enfrentado e enfrenta, em um breve histórico desta área desde seu surgimento. A partir daí, serão pontuadas algumas questões referentes à formação do profissional em Psicopedagogia.
Histórico
A Psicopedagogia, como área de estudos, surgiu da necessidade de atendimento e orientação a crianças que apresentavam dificuldades ligadas à sua educação, mais especificamente à sua aprendizagem, quer cognitiva, quer de comportamento social. Procurava-se, assim, o porquê ocorria essa problemática, avaliando e diagnosticando a criança, física e psiquicamente. Envolvidos nessa busca, estavam professores, psicólogos, médicos, fonoaudiólogos e psicomotricistas. Nessa primeira etapa da história da Psicopedagogia, todo diagnóstico recaia sobre a criança, o que significava que nela estava o problema, sendo então encaminhada para atendimento especializado. Esse enfoque de diagnóstico, prescrição e tratamento, envolvendo prognóstico, trazia implícita uma concepção de que o fim da educação era de adaptar o homem à sociedade. O Quadro 1 mostra essa tendência na Europa, nas décadas de 20 a 40, presentes ainda na década de 60. Mauco2, diretor dos Centros Psicopedagógicos da Academia de Paris, em publicação, esclarece que a denominação "psicopedagógico" foi escolhida, em vez de "médico-pedagógico", porque os pais enviariam com mais facilidade seus filhos a uma consulta psicopedagógica do que a uma consulta médica. Os Centros contavam com equipes de médicos, psicólogos, psicanalistas, pedagogos, reeducadores de psicomotricidade, da escrita e grafia. O médico era responsável pelo diagnóstico: realizado a partir de dados da investigação familiar, condições de vida, atmosfera familiar, relações conjugais, métodos educativos, resultados de testes de Q.I. - época em que os testes de inteligência eram considerados de alta credibilidade. Após o diagnóstico, o médico dava orientação para o tratamento, quer de reeducação, quer de terapia. Nesse enfoque de trabalho, o diagnóstico pedagógico visava esclarecer a inadaptação escolar e social e corrigi-la. O título da publicação de Mauco sobre os Centros Psicopedagógicos ilustra isso: "A inadaptação escolar e seus remédios"2.
Na França, na década de 60, tiveram início as críticas a essa linha de trabalho dos Centros. Vasquez e Oury4 não aceitavam essa conceituação diagnóstica, bem como questionavam a Educação e a Psicologia. Argumentavam que, sem considerar as manifestações da criança em sua classe e outras situações na escola e fora dela, corria-se o risco de estar apenas comparando-a com padrões abstratos. Manonni5-7 reiterava essas críticas ao afirmar que todos sabiam falar de diagnóstico e encaminhar para reeducação, para adaptar a criança ao que a sociedade e a escola dela esperavam, o que, segundo afirmava, não era educar, mas forçá-la a submeter-se, docilmente, às instituições que reproduziam os valores sociais, adestrando-a. Esses estudos aprofundados e pesquisados eram documentados em publicações especializadas. O problema da pesquisa em psicopedagogia foi analisado em artigo de periódicos especializado por Henriot9, discutido sob diferentes ordens: 1) prática, referente à especificidade da psicopedagogia de ter como objeto o estudo do comportamento do aluno e as relações deste frente ao que lhe era ensinado, diferenciando-a de outras áreas; 2) teórica, referente às implicações da fundamentação teórica da pesquisa em psicopedagogia; 3) subjacentes às duas anteriores, referente às inter-relações entre psicólogos e pedagogos em psicopedagogia. O Instituto de Pesquisa e Documentação Pedagógica de Paris publicou, em 1972, o debate "problema escolar x inadaptação-patologia": Nesse debate, Heuyer8, um dos mais eminentes neuropsiquiatras infantis na França, defendia o diagnóstico dos Centros; Bloch Laine, designado pelo primeiro ministro francês, argumentava que não se podia reduzir a questão do problema escolar à patologia da criança, frente ao excessivo número de fracassos que a escola vinha enfrentando. A questão do fracasso pôs em xeque a crença no diagnóstico e contribuiu para que a Psicopedagogia entrasse em outra fase.
No Brasil, como pode ser visto no Quadro 2, as fases da Psicopedagogia assemelham-se às que ocorreram na Europa, embora em décadas posteriores. Os primeiros registros de atividades de uma psicopedagoga - Genni C. Moraes - dizem respeito ao atendimento a alunos com dificuldades para aprender. A trajetória dessa pioneira na área ilustra dados relatados por Rubinstein10, sobre a história da Psicopedagogia no Brasil. Conforme esta autora, as dificuldades para aprender eram atribuídas a uma inaptidão ou distúrbio do aluno, o que o impedia de aprender como seus demais pares, as causas ficando depositadas nele, principalmente. Os primeiros psicopedagogos eram profissionais da educação, que queriam ajudar na reintegração daqueles que estavam à margem. Assim, na própria prática eram encontradas as técnicas que melhor atendessem à necessidade do aprendiz para reeducá-lo de forma mais eficaz e específica. Buscavam entender melhores as questões referentes às dificuldades, estudando psicologia, neurologia e psicomotricidade. Para formar esses profissionais, surgiram cursos de extensão de professores brasileiros com experiência em atendimento a crianças com dificuldades escolares e professores estrangeiros, principalmente da França e Argentina.
Na década de 70, começaram os cursos de especialização, com profissionais experientes na área de educação, de psicologia, de aconselhamento escolar e em aprendizagem. Foram, concomitantemente, desencadeadas várias pesquisas sobre aprendizagem e sobre alunos de escolas públicas: Poppovic11-14, Ronca16, Masini17, Oliveira Neto18, Saad19, entre muitas outras.
A questão do fracasso, que pôs em xeque a crença no diagnóstico, teve início também no Brasil: Gatti et al.20; Collares24 retomou o tema, discutindo-o frente às questões de ordem orgânica versus social; Fonseca22 apontou o problema das responsabilidades para lidar com o fracasso escolar; Patto22 focalizou o fracasso escolar e o discurso que evidencia os padrões estabelecidos. Esses autores são aqui citados para ilustrar a tendência a enfocar os aspectos sociais, em vez de restringir-se aos fatores intrapsíquicos, orgânicos e familiares. Surgia, dessa forma, no Brasil, como em outros países, o que alguns denominavam tendência de trabalho preventivo em Psicopedagogia.
Nas décadas de 60 e de 70, na Europa, e de 80, no Brasil, aparece a ênfase ao aspecto social ligado ao fracasso escolar. O Ministério de Educação da França, no documento já citado, mostrou que mais de 50% das crianças não faziam o primário no tempo estabelecido. Segundo dados de 1999, do Instituto Nacional de Educação e Pesquisa (INEP/ MEC26), sobre a aprendizagem nas escolas públicas, o porcentual de alunos que estão acima da idade correta é de 45,8%, na 1ª série do Ensino Fundamental, 69,2%, na 5ª série e 67,5%, no Ensino Médio. Os dados de escolarização no Brasil, em 2001 (MEC), apontam a seguinte porcentagem de alunos com idade acima do esperado no Ensino Fundamental, em cada série: 1ª série - 25,3% ; 2ª série - 31,9%; 3ª série - 38,0%; 4ª série - 39,4%; 5ª série - 50,0%; 6ª série - 45,0%; 7ª série - 45,5%; 8ª série - 45,7%. Essas porcentagens crescem em cada série devido ao número de reprovações acumuladas, que, em outras palavras, significa fracasso escolar.
Esses dados corroboram com os questionamentos às "patologizações", como gênese do fracasso escolar e os problemas de aprendizagem serem investigados com enfoque exclusivo nos fatores individuais do aluno. O ponto nevrálgico da questão passou a ser o papel da escola para efetivo preparo da clientela que a freqüentava, analisando a adequação da estrutura e funcionamento dessa instituição, do currículo, e das condições de preparo do professor e de ensino aí propiciadas. A escola passou a ser vista como uma das instituições de uma comunidade ligada por uma trama de valores, hábitos, linguagem, conceitos e padrões de comportamento. Ampliaram-se os temas e passaram a ser pesquisados, também, os fatores intra-escolares e os de ordem social, econômica e política envolvidos na aprendizagem. As pesquisas desencadeadas a partir da década de 70 já assinalavam essa mudança de enfoque.
É importante esclarecer que não se está negando a existência de distúrbios ou transtornos neurológicos desencadeadores de problemas de aprendizagem. O aprendiz com esses problemas merece atenção e requer específicos conhecimentos para seu atendimento psicopedagógico. O que importa frisar é que estes casos constituem pequena porcentagem dos fracassos na escola. Ciente disso, a Psicopedagogia ampliou seu campo de atuação, deixou de focalizar o problema para focalizar o aprendiz1 .
Embates
O Quadro 2 - Breve esboço da Psicopedagogia no Brasil - assinala a convivência de trajetórias paralelas, isto é, o caminhar sem complementaridades de pesquisas referentes à aprendizagem e de atividades de entidades e profissionais da área da psicopedagogia.
Por que isso tem ocorrido? Por que pesquisadores de renome nacional, como Poppovic, cujas contribuições referentes a processos de aprendizagem, que foram e são reconhecidas nos meios acadêmicos, ficam no esquecimento e não são referenciados em livros, revistas e sites especializados em psicopedagogia? Por que as pesquisas de dados da realidade brasileira, ligadas à aprendizagem, realização escolar, criança culturalmente marginalizada, escola e comunidade, formação de professores e currículo, orientação cognitiva, ensino-aprendizagem não são utilizadas ou referendadas pelos psicopedagogos? O que significa essa trajetória paralela que o Quadro 2 mostra? Para nossa reflexão a esse respeito, retomamos as idéias de Erney Camargo - presidente do CNPq, uma das mais renomadas instituições responsáveis por pesquisas no território nacional. De acordo com esse experiente pesquisador, é coletando dados do próprio contexto social, organizando-os e sistematizando-os que as ciências sociais, em cada comunidade científica, fortalece-se e sua contribuição passa a ser reconhecida. Há, além disso, necessidade da comunidade científica estar unida para um aperfeiçoamento do sistema de avaliação de sua produtividade científica, participando ativamente e conjuntamente. Essas idéias constituem sugestão para que sejam analisados os problemas da pesquisa em psicopedagogia no Brasil, nos seus vários aspectos, conforme o fez Henriot9, anteriormente citado. Sem a devida atenção aos dados de investigações da realidade nacional, estaria a Psicopedagogia do Brasil dispersando-se em pesquisas e literatura importadas? Isso poderia estar refletindo no reconhecimento da Psicopedagogia, no Brasil, como área de estudos com seu próprio objeto de investigação?
Estudiosos e pesquisadores, sem dúvida, precisam ter acesso à bibliografia especializada e pesquisas realizadas em outros países, bem como ter oportunidades de participar de cursos e encontros com autoridades de outros países para o evoluir de uma área de conhecimento. Há, no entanto, necessidade de cuidado e vigilância para não se perder de vista o próprio referencial social, cultural, econômico, de valores, de hábitos de linguagem. Referencial que assegura a identidade cultural, individual e coletiva, do conhecimento. Comunicar-se, preservando a própria língua, é um indicador do cuidado com a própria identidade, como pessoa e como profissional. Nesse sentido, cabe perguntar: Por que alguns psicopedagogos brasileiros adotam, sem titubear, termos de língua estrangeira como ensinante e aprendente - que não constam do Dicionário da Língua Portuguesa, do Brasil? Por que essa adoção, quando existem, em Português, os termos aprendiz e professor? A utilização de ensinante e aprendente, no atendimento psicopedagógico, significa que é função do psicopedagogo ensinar? É relevante esse esclarecimento, pois diz respeito à especificidade da área de estudos.
O Quadro 2 evidencia, também, que a concepção de diagnóstico, no Brasil, sofreu mudança, ultrapassando a dimensão estritamente individual para ampliar-se com dados do contexto social. As publicações, já nos títulos, revelavam esse redimensionamento, como mostram as selecionadas a seguir. "A escola, a criança culturalmente marginalizada e a comunidade", de Poppovic27; "O fracasso escolar como objeto de estudo: anotações sobre as características de um discurso", de Patto22; "Ajudando a desmistificar o fracasso escolar", de Collares24. Essa transformação aparece, também, no trabalho de muitos psicopedagogos, da década de 80 até o presente ano 2006, conforme ilustram as obras de Fagali28, Scoz29, Weiss30, Maluf31, dentre muitas outras. Para avaliar se essas transformações têm-se estendido, de um modo geral, à atuação dos psicopedagogos e aos cursos de formação desses profissionais, caberia uma pesquisa cuidadosa, envolvendo análise de publicações especializadas, de relatos de experiências em eventos e de currículos e programas de cursos de psicopedagogia.
Um ponto de sutileza, e que requer análise cuidadosa de todos que lutam por definir o objeto de estudos da psicopedagogia e sua delimitação, é refletir se a ação de um psicopedagogo pode legitimar as impropriedades do ensino. Sua atuação corre o risco de constituir recurso remediador para o baixo rendimento escolar? Quando o aluno é encaminhado ao psicopedagogo para diagnóstico e tratamento para recuperar-se, ao realizar o atendimento sem analisar métodos e programas da escola para o processo de aprendizagem, o psicopedagogo estará reiterando a posição da escola de que o problema é do aprendiz?
Se o psicopedagogo aceita assumir a função remediadora, está compactuando com as impropriedades da escola?
Se o psicopedagogo não aceita assumir a função remediadora, considerando que estaria compactuando com as impropriedades do ensino, resta a pergunta: Em que situações caberia à Psicopedagogia oferecer recursos para o processo de aprendizagem e seus eventuais bloqueios?
Essas perguntas e impasses dizem respeito à definição e ao significado da Psicopedagogia e trazem implícitas questões indispensáveis para compor um quadro referencial de delimitação e de avaliação desta área. Delimitação e avaliação prementes, cujas lacunas têm desencadeado embates entre profissionais da psicopedagogia e de áreas afins.
Espera-se que estas perguntas e questionamentos sugiram reflexões e possam contribuir para a identidade da Psicopedagogia como área de estudos com seu próprio objeto de investigação.
Desafios
A partir do que ficou exposto, pode-se esboçar os desafios com que se defronta a Psicopedagogia.
Em primeiro lugar, está a definição da Psicopedagogia, fator de embates com profissionais da própria área e com os de outras áreas.
Uma sugestão para a busca de resposta a essa questão seria a análise de pesquisas e registros de trabalhos psicopedagógicos desenvolvidos, identificando: 1) a prática e a especificidade das atividades, diferenciando-as das de outras áreas; 2) a adequação da fundamentação teórica à prática e/ou à metodologia da pesquisa em psicopedagogia; 3) o subjacente aos itens 1 e 2 - as inter-relações entre psicopedagogos e outros profissionais afins e os mal entendidos no que diz respeito à pertença dessa área de estudos.
Em seguida, está o desafio da Psicopedagogia frente ao cenário do homem no século XXI. Definindo-se a Psicopedagogia como a área que estuda a aprendizagem, é necessário, em primeiro lugar, ter claro o sentido atribuído à aprendizagem para assegurar consistência ao campo de estudos e especificidades da psicopedagogia.
Nesta comunicação, aprendizagem é concebida como o processo responsável pelas transformações que acompanham o ser humano do seu nascimento à sua morte, transformações que emergem das inter-relações sociais e interações ambientais no contexto de vida do indivíduo e são constituídas pelas aquisições de habilidades, raciocínios, atitudes, valores, vontades, interesses, aspirações, integração, participação e realização.
A Psicopedagogia tem algo a dizer para assegurar que essa aprendizagem ocorra? Teria algo a contribuir para conservar vivos no ser humano (adulto, jovem ou criança), neste cenário do século XXI, seus interesses, aspirações, integração, participação e realização? Teria sugestões que apontassem alguma perspectiva à problemática evidenciada, também, em temas das publicações da época atual, como: "Violência na escola: um desafio mundial?", de Debarbieux32; "A inflação escolar - as desilusões da meritocracia", de Bellat33; "A dificuldade de ensinar", de Salomé34; "A mídia e seus truques", de Hernandes35.
Essa literatura sobre educação retrata a perplexidade de especialistas e a necessidade de encontrar diretrizes para lidar com problemas comuns como: a inflação escolar, violência na escola e as dificuldades de ensinar; e de definir o que é a escola; dificuldades da submersão em imensa quantidade de informações, sobretudo informações e manipuladas.
Há, na Psicopedagogia, interesse, disponibilidade e conhecimentos específicos para lidar com essas questões?
No contexto da realidade educacional brasileira, Araújo (2002) afirma, em entrevista, que embora o Estado tenha investido bastante em programas de capacitação nos últimos vinte anos, não há um retorno significativo em termos da aprendizagem. O Brasil, em 2001, entre 32 países avaliados, ficou em último lugar no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), cuja ênfase era a compreensão de textos. De acordo com o autor, o país acabara de ganhar um tremendo certificado internacional de mau aluno - o aluno leu e não entendeu. Em outras palavras, não conseguiu elaborar a informação.
Essa problemática diz respeito à Psicopedagogia?
Acrescente-se à problemática da aprendizagem nas escolas públicas, já referida (INEP/ MEC26) sobre os alunos que estão acima da idade correta no Ensino Fundamental, a explosão da demanda por Ensino Médio pelo retorno ao sistema da população que procura elevar sua escolaridade ante às novas demandas do mercado de trabalho.
Esta é uma problemática que diz respeito à Psicopedagogia? Em que situações caberia à Psicopedagogia contribuir?
Essas perguntas poderão ser vistas como pontos auxiliares para uma reflexão da comunidade científica da psicopedagogia sobre seu objeto de estudos e seus reais desafios. Por outro lado, poderá constituir um exercício para que se resgate das atividades já realizadas em Psicopedagogia aquelas que ofereçam diretrizes ou sugestões para encaminhamento a essas questões.
Para ilustrar esse exercício de resgate será exposto um episódio que teve lugar em 2002, no III Ciclo de Estudos de Psicopedagogia Mackenzie, cujo objetivo foi evidenciar que as possibilidades humanas desabrocham, e o aprender ocorre desde que se propiciem relações, recursos e ambientes apropriados36.
Para alcançar esse objetivo, várias professoras da equipe de psicopedagogia realizaram um debate sobre a experiência comunitária de arte/educação, denominada Meninos do Morumbi. Foram apresentados a proposta e o relato do desenvolvimento dessa experiência, juntamente com a exibição de um vídeo e uma palestra da coordenadora desse Projeto, a psicóloga Lígia Pimenta. Pôde-se acompanhar as manifestações de auto-descoberta e realização de jovens, em suas ações, no ambiente físico e social em que viviam. Os debates evidenciaram as situações de ocorrência de aprendizagem enraizadas em seres humanos que vivenciaram essa experiência educacional: meninos de rua que se transformaram em componentes de uma banda conhecida nacionalmente e internacionalmente. Ficou ilustrado que as possibilidades humanas desabrocham e o aprender ocorre, quando são propiciadas relações, recursos e ambientes apropriados; quando há disponibilidade e atitude de abertura e cooperação das pessoas envolvidas, no caso dos Meninos do Morumbi, os profissionais de diferentes áreas, os meninos e jovens de rua co-participando das atividades desenvolvidas.
O foco nas condições para aprender de pessoas em ação no seu contexto de vida deslocou o estudo esquematizado e abstrato da aprendizagem, para o sujeito do conhecimento na complexidade das inter-relações corporais, afetivas e cognitivas individuais, coletivas e sociais.
Os meninos de rua que ali estavam sem nada fazer, transformaram-se. Desenvolveram habilidades para tocar instrumentos musicais, raciocínios para acompanhar o que a escola pública ensinava, atitudes de responsabilidade junto à banda, prazer pela cultura e arte, ampliaram valores como o de participar e integrar-se no grupo Meninos do Morumbi, vontade, interesses, aspirações de ir mais além do que tocar na banda, no próprio bairro. O aprender dos meninos ocorreu no empenho e contato com cada coisa do seu viver, do dia-a-dia.
Essa experiência constituiu, para a equipe de professores da Psicopedagogia Mackenzie, um aprendizado profundo sobre o aprender. O exercício de resgate dessa experiência, do III Ciclo de Estudos de Psicopedagogia Mackenzie, propiciou revalorização da atividade de psicopedagogia realizada e retomada de diretrizes e sugestões para outras situações. O que foi relatado desse resgate pode ser pensado como contraponto para o desafio da aprendizagem do homem no cenário do século XXI.
Os embates, desafios sugestões e contrapontos expostos constituirão referencial para as considerações a serem feitas no próximo item.
Formação do Profissional em Psicopedagogia
Os embates e desafios da Psicopedagogia, evidentemente, estão presentes em qualquer consideração sobre a formação do profissional nessa área. Assim sendo, serão retomados, aqui, apenas alguns princípios gerais a serem pensados, levando em consideração os embates e os desafios apontados.
Tendo como referência o cenário do século XXI, é pertinente que a Psicopedagogia tenha como linha diretriz, ao lidar com o processo de aprendizagem, o desenvolvimento harmonioso do aprendiz e da consciência do significado de sua ação no contexto onde age. A busca da consciência do que realiza na situação de aprendizagem e o significado do que e porque o faz pode constituir um possível caminho para salvaguardar que o aprendiz (adulto, criança ou jovem) não se perca em um fazer automático e sem sentido de vida.
A partir do exposto, são sugeridos alguns princípios gerais para essa formação.
Na seleção de candidatos para um curso de Psicopedagogia, seria interessante ter entre os critérios, além dos referentes à escolarização e aos conhecimentos, outros que contemplassem interesse pelo processo de aprender e pelo trabalho junto aos envolvidos nesse processo (educadores e aprendiz), bem como condições de personalidade que não apresentassem graves problemas.
Conviria que os cursos fossem em nível de pós-graduação, pois só um conhecimento amplo de Educação e Psicologia, fundamentado em uma visão crítica da realidade social e da investigação científica, propiciaria ao psicopedagogo segurança para decidir sobre sua ação, bem como posicionar-se e justificar suas diretrizes de trabalho diante de outros profissionais que lidam com o aprendiz.
Os cursos precisam ter um direcionamento teórico-prático, por várias razões: 1) para o psicopedagogo vivenciar situações para lidar com o próprio aprender e para lidar com o aprender do outro; 2) para o psicopedagogo desenvolver, com propriedade, o uso de recursos específicos, quer para assessorar professores ou outros profissionais em situações específicas de aprendizagem, quer para o atendimento do aprendiz; 3) para o psicopedagogo saber, de forma cientificamente fundamentada, o porque utilizar um ou outro recurso para o aluno com quem está lidando. Por essa razão, os cursos necessitam ter um currículo composto de aulas teóricas e estágios supervisionados, que constituam um espaço de discussão e reflexão teórica sobre a prática.
Frente a esses princípios gerais, seria prioritário que a formação do psicopedagogo propiciasse formas de: 1) ampliar sua percepção e a acuidade às manifestações do ser humano em situação de aprendizagem, considerando as relações que facilitam ou limitam seu ato de aprender; 2) assegurar sua atenção à totalidade do sujeito na situação do ato de aprender, considerando-o no seu contexto, em sua afetividade, valores, hábitos e linguagem; 3) garantir a aquisição de conhecimentos sobre o desenvolvimento do ser humano, teorias de aprendizagem, relações com o outro; 4) desenvolver visão crítica sobre as teorias que embasam sua ação em relação ao contexto no qual atua profissionalmente e sobre a utilização dos recursos propostos (instrumentos e técnicas), para o desenvolvimento global do aprendiz, considerando-o em seu meio social específico e em seu momento histórico; 5) incutir o cuidado em analisar quando os recursos científicos e tecnológicos da atualidade estariam distanciando o aprendiz de si próprio e de seus significados.
Síntese
Frente ao cenário do século XXI, é indispensável a Psicopedagogia caracterizar-se como a área que:
- estuda as relações envolvidas em situações do aprender, para nelas resgatar o que emerge da vida de crianças, jovens e adultos - de suas impressões, sentimentos, dúvidas valores, elaborações;
- cuida para não perder o que sucede, ao buscar os significados de situações do aprender para os que dela participam e assim contribuir para que cada um amplie e aprofunde seus próprios significados;
- esforça-se para não enfeitar nem mascarar os encontros e desencontros do sujeito consigo mesmo, com o outro e com o próprio contexto social, dissimulando fealdades e tornando inexpressivas as situações.
REFERÊNCIAS
1. Ovadia F. Apresentação do livro. In: Bertola L, ed. Ethique & education: um autre regard. Nice:Paradigme;2004. [ Links ]
2. Mauco G. L'inadaptation scolaire et sociale et ses remêdes - Cahiers de pedagogie moderne - collection Bourrelier. Paris:Lib Armand Collin;1964. [ Links ]
3. Adler A. Guiando el nino. Buenos Aires: Paidós;1965 (Original publicado em 1948). [ Links ]
4. Vasquez A, Oury F. De la classe coopérative... à la Pédagogie Institutionnelle. Paris:François Maspero;1971. [ Links ]
5. Manonni M. L'enfant arrieré et sa Mére. Paris:Éd. du Seuil;1964. [ Links ]
6. Manonni M. L'enfant sa ''maIadie'' et les autres. Paris:Éd. du Seuil;1967. [ Links ]
7. Manonni M. Éducation impossible. Paris: Éd. du Seuil;1973. [ Links ]
8. Heuyer G. Pedopsychiatrie et pedagogie. Reve Neuropsychiatr Infant. 1966;14(6):413-8. [ Links ]
9. Henriot J. Les problèmes de la recherche em psychopédagogie. Bull Psychol 1967;257:10-5. [ Links ]
10. Rubinstein E. Uma prática, diferentes estilos. São Paulo:Casa do Psicólogo;1999. [ Links ]
11. Poppovic AM. Programa Alfa: um currículo de orientação cognitiva para as primeiras séries do 1º grau inclusive crianças culturalmente marginalizadas visando ao processo ensino-aprendizagem. Cad Pesqui. 1977;21. [ Links ]
12. Poppovic AM. Fatores ambientais, classe social e realização escolar na marginalização cultural. Cad Pesqui. 1972;6. [ Links ]
13. Poppovic AM. Alfabetização: um problema interdisciplinar. Cad Pesqui. 1971;2. [ Links ]
14. Masini EFS. Ação da Psicologia na escola. São Paulo:Cortez e Moraes;1978. [ Links ]
15. Carvalho CA, Vassimon MA, Machado MES et al. 25 anos de psicopedagogia no Instituto Sedes Sapientiae: onde estamos e para onde vamos?. Constr Psicopedag. 2005;13(10). [ Links ]
16. Ronca ACC. O efeito dos organizadores prévios na aprendizagem significativa de textos didáticos [Dissertação de Mestrado]. São Paulo:Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;1976. [ Links ]
17. Masini EFS. Sistematização e aplicação dos recursos facilitadores de aprendizagem significativa ausubelianos, em uma situação de sala de aula [Dissertação de Mestrado]. São Paulo:Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;1976. [ Links ]
18. Oliveira Neto LA. Aprendizagem e recuperação: um enfoque operativo. São Paulo: Centro de Estudos Psicoeducacionais Persona;1976. [ Links ]
19. Saad. Proposta de um modelo instrucional fundamentada na teoria de Gagné [Tese de Livre Docência]. Goiânia:Universidade Federal de Goiás;1977. [ Links ]
20. Gatti BA, Patto MHS, Costa ML, Kopit M, Almeida RMA. A reprovação na 1ª série do 1º grau: um estudo de caso. Cad Pesqui. 1981;38:3-13. [ Links ]
21. Collares CAL. Ajudando a desmistificar o fracasso escolar. In: Toda criança é capaz de aprender. Sapo Paulo:FDE;1989. p.24-8. (série Idéias 6). [ Links ]
22. Fonseca V. Educação especial. Porto Alegre: Arte Médica Sul;1987. [ Links ]
23. Patto MHS. O fracasso escolar como objeto de estudo: anotações sobre as características de um discurso. Cad. Pesqui. 1988; 72-7. [ Links ]
24. Moreira MA, Masini EFS. Aprendizagem significativa - a teoria de David Ausubel. São Paulo:Moraes;1982. [ Links ]
25. Masini EFS, Baptista MTDS. Centro de Atendimento em Educacional (CAPE). Revista Marco 1988;Ano 9, nº 5, 1º semestre. [ Links ]
26. BRASIL MEC/ INEP. Relatório sobre a situação de escolaridade. Brasília: 1999. [ Links ]
27. Poppovic AM. A escola, a criança culturalmente marginalizada e a comunidade. Cad Pesqui. 1979;30:51-5. [ Links ]
28. Fagali EQ. Uma abordagem sobre o conhecimento que visa à integração do homem e do processo de aprendizagem. In: Fagali EQ, org. Múltiplas faces do aprender - novos paradigmas da pós-modernidade. São Paulo:Unidas;2001. [ Links ]
29. Scoz B. Psicopedagogia e realidade escolar - o problema escolar e de aprendizagem. Petrópolis:Vozes;1994. [ Links ]
30. Weiss MLL. Psicopedagogia institucional: controvérsias, possibilidades e limites. In: Sargo C, org. A práxis da Psicopedagogia. São Paulo:ABPp;1994 [ Links ]
31. Maluf MI. Gerando reflexões. Rev Psicopedagogia. 2006;70:1. [ Links ]
32. Debarbieux E. Violence à l'école: un défi mondial? Paris:Armand Colin;2006. [ Links ]
33. Bellat MD. L'inflation scolaire - lês desillusios de la méritocratie. France: Seuil;2006. [ Links ]
34. Salomé J. La difficulté d'enseigner. Paris: Albin Michel;2004. [ Links ]
35. Hernandes N. A mídia e seus truques. São Paulo:Contexto;2006. [ Links ]
36. Masini EFS, Shirahige EE. Condições para aprender. São Paulo:Vetor;2003. [ Links ]
Correspondência:
Dra. Elcie Masini
Rua dos Franceses, 498 - Bloco F - apto 142
São Paulo - SP
Tel.: (11) 3287-8765
E-mail: delcie@uol.com.br
Artigo recebido: 04/06/2006
Aprovado: 12/09/2006
Trabalho realizado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP.
*O termo "aprendiz" é utilizado aqui no sentido geral de "o ser que aprende", e não no sentido específico de "aqueles que aprende arte ou ofício"