SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.40 issue122Psychopedagogy as a body of knowledge about human learningArt and Psychology: Collage as a working tool for the psychologist author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.40 no.122 São Paulo May./Aug. 2023  Epub June 24, 2024

https://doi.org/10.51207/2179-4057.20230024 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

A fala “atípica” e o meio social – desafios diários

The “atypical” speech and the social environment - daily challenges

Renata Teixeira da Vitória Libotti1 

1Graduação em Letras - Português/Inglês – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Mestrado em Linguística – UFRJ; Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística na UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


Resumo

Ao lidar com crianças neuroatípicas, tanto pais quanto profissionais enfrentam uma grande incerteza: o prognóstico. Habilidades comunicativas podem ajudar as crianças a entenderem e explicarem o mundo ao seu redor, compartilharem ideias e sentimentos, e a fazerem amigos. A capacidade comunicativa capacita a criança a argumentar e, consequentemente, aprender, além de desenvolver o sentimento de pertencimento. O comprometimento da fala é uma questão que pode gerar dúvidas, medo e insegurança, pois a comunicação é uma via bastante importante para o sucesso do aprendizado. No que tange ao aprendizado de uma língua estrangeira, tais questionamentos podem se fazer ainda mais presentes. No entanto, bastante estímulo, juntamente com persistência, podem ser a receita para derrubar alguns obstáculos.

Unitermos Comunicação; Fala; Linguagem; Língua Estrangeira; Psicopedagogia

Summary

When dealing with neuro-atypical children, both parents and professionals might face a great uncertainty: the prognosis. Communication skills can help children understand and explain the world around them, share ideas and feelings, and make friends. The communicative ability enables the child to argue and, consequently, learn, in addition to developing a sense of belonging. Speech impairment is an issue that can generate doubts, fear and insecurity, as communication is a very important path for successful learning. Regarding learning a foreign language, such questions can be even more present. However, enough encouragement, coupled with persistence, can be the recipe for knocking down some obstacles.

Keywords Communication; Speech; Language; Additional Language; Psychopedagogy

Introdução

Embora o ato de falar seja natural e automatizado desde a primeira infância, levando-se em consideração os marcos ditos “normais” do desenvolvimento, ele é, na verdade, extremamente complexo e envolve uma programação neuronal que articula diferentes áreas cerebrais. Tudo isso é permeado de especificidades que podem apresentar disfunções congênitas e adquiridas, e que se instauram como dificuldades ou mesmo barreiras na aquisição e produção da fala de crianças e adultos.

Uma das dúvidas que permeia as mentes de pais e profissionais que lidam com crianças neurodiversas (ou neuroatípicas)1 é o prognóstico, e a pergunta que nunca cala é: e o futuro? Será que esta criança terá amigos, conseguirá ter uma vida social saudável (pelo menos próximo do dito “normal”), conseguirá concluir seus estudos, ter uma carreira? Enfim, as perguntas são infinitas, bem como as possibilidades.

Gostaria, entretanto, de limitar o presente trabalho a uma imparidade específica, a qual faz parte de minha experiência tanto profissional quanto de vida, que é o comprometimento da fala. Uma criança com essa limitação será capaz de ir mais além e aprender uma língua estrangeira?

Tal reflexão basear-se-á nas experiências resultantes de desafios diários e num estudo extensivo por meio de literatura e cursos presenciais.

Como psicopedagoga, interessei-me muito pelos marcos do desenvolvimento infantil. Entende-se que a Psicopedagogia, em linhas gerais, lida com o processo de aprendizagem humana, mais especificamente com uma demanda latente, que são os problemas de aprendizagem. A prática psicopedagógica requer, portanto, um substancioso arcabouço teórico, pois investiga situações do ponto de vista do aluno/paciente, do professor e da família.

Rappaport et al. (1981) mostram a importância do estudo do desenvolvimento infantil. Com efeito, o conhecimento das fases do desenvolvimento humano vem contribuir de maneira significativa com a prática do psicopedagogo, uma vez que tal compreensão é de suma importância para que se possa pensar o processo ensino-aprendizagem. Os seres humanos estão em constante processo de transformação, desde sua concepção até o final da vida. Estudar tal processo (científica e sistematicamente) é o cerne do campo do desenvolvimento humano.

Uma questão bastante discutível no que tange ao estudo do desenvolvimento humano é se esse é ativo ou reativo. Tal controvérsia resgata as ideias de John Locke, que defendia que a criança era uma tábula rasa e todo o processo do conhecer, do saber e do agir seria aprendido através da experiência. Em contrapartida, para Jean Jacques Rousseau, o homem possui uma natureza boa que é corrompida pelo processo civilizador. Sabemos, todavia, que as crianças possuem impulsos e necessidades intrínsecas que influenciam o desenvolvimento, e são seres sociais que não podem viver isoladamente.

Como resultado de tal debate, surgiram dois padrões do desenvolvimento: mecanicista e organicista. Para o primeiro modelo, baseado na visão de Locke, os indivíduos são como máquinas reagentes a forças. A pesquisa mecanicista visa identificar o que faz os indivíduos se comportarem de determinado modo; no modelo organicista a força propulsora da mudança é interna. Influências ambientais não são por si só responsáveis pelo desenvolvimento, embora possam exercer influência sobre ele, no sentido de acelerá-lo ou lentificá-lo. Teóricos mecanicistas inclinam seus olhares para aspectos quantitativos, tais como peso, altura etc.; teóricos organicistas atentam para fenômenos qualitativos, veem o desenvolvimento como estágios distintos.

As teorias compreendem perspectivas que enfatizam diferentes tipos de processos de desenvolvimento e assumem diferentes posições sobre as questões descritas anteriormente. Feldman e Papalia (2013) afirmam ainda que são cinco as perspectivas que ancoram boa parte da pesquisa sobre desenvolvimento humano: a psicanalítica, que se concentra nas emoções e nos impulsos inconscientes; a da aprendizagem, que estuda o comportamento observável; a cognitiva, que analisa os processos do pensamento; a contextual, que enfatiza o impacto do contexto histórico, social e cultural; e a evolucionista/sociobiológica, que considera as bases evolucionistas e biológicas do comportamento.

Nós professores sabemos o quanto a comunicação é vital para o sucesso do aprendizado. Habilidades comunicativas podem ajudar as crianças a entenderem e explicarem o mundo ao seu redor, compartilharem ideias e sentimentos, e a fazerem amigos. A capacidade comunicativa capacita a criança a argumentar e, consequentemente, aprender, além de desenvolver o sentimento de pertencimento.

Lemos em Fish (2011) que, nas últimas décadas, foram identificadas por pesquisadores uma série de características comuns observadas em crianças que apresentavam algum transtorno relacionado à fala. As crianças em questão pareciam ter todo o aparato necessário para o mecanismo de fala íntegro, ou seja, tecnicamente não havia nada que as impedisse de falar. No entanto, elas demonstravam uma dificuldade significativa na produção da fala, incluindo o sequenciamento de fonemas, inconsistência nos erros, dificuldade na imitação de movimentos orais, entre outros.

Dadas as semelhanças em relação à apraxia de fala que afeta adultos que tiveram um AVC ou qualquer lesão cerebral, pesquisadores começaram a identificar essas crianças como apráxicas ou dispráxicas. O termo Childhood Apraxia of Speech (CAS) é a nomenclatura recomendada pela Associação Americana de Fonoaudiologia ou ASHA (do inglês American Speech-Language-Hearing Association):

A apraxia da fala na infância (AFI) é um distúrbio neurológico dos sons da fala na infância em que a precisão e a consistência dos movimentos subjacentes à fala são prejudicados na ausência de déficits neuromusculares (por exemplo, reflexos anormais, tom anormal). A AFI pode ocorrer como resultado de comprometimento neurológico conhecido, em associação com distúrbios neurocomportamentais complexos de origem conhecida ou desconhecida ou como distúrbio neurogênico idiopático dos sons da fala. O comprometimento central no planejamento e/ou programação de parâmetros espaço-temporais de sequências de movimento resulta em erros na produção de sons da fala e na prosódia. (Ad Hoc Committee on Apraxia of Speech in Children, 2007, tradução e grifos nossos).2

Recebi o diagnóstico de Apraxia de Fala na Infância (AFI) quando minha filha tinha 2 anos e 8 meses. Nessa época, todas as perguntas anteriores vieram à tona, exceto aquela referente ao aprendizado de uma língua estrangeira. Obviamente, o meu foco era a aquisição de sua língua mãe – uma linguagem ainda que básica a fim de que ela obtivesse o mínimo de independência possível, mesmo que para isso tivéssemos que recorrer à comunicação alternativa ou até mesmo à língua de sinais.

Sou professora de língua inglesa e, após vinte anos trabalhando com adolescentes e adultos, resolvi mudar meu campo de atuação e passei a trabalhar com a Educação Infantil. Iniciei meus estudos relacionados à primeira infância e comecei a trabalhar em uma escola para que pudesse acompanhar minha filha mais de perto. Tudo estaria perfeito não fosse pelo fato dessa escola ser francesa. Uma nova preocupação veio à tona: e se a língua estrangeira atrapalhasse o processo, ainda em construção, de aquisição de sua língua materna, marcado por tantas dificuldades neuropsicomotoras? Essa preocupação iria ainda mais além: ela aprenderia não só o francês, mas também o inglês!

Muito atenta e extremamente inteligente, Nina passou a acompanhar e participar de toda minha rotina com relação à preparação das aulas. Sua pronúncia é esplêndida (estou tentando ser o mais imparcial possível) e sua memória incomparável. As duas línguas vieram, para minha surpresa, somar ao invés de atrapalhar seu processo.

É claro que estou falando de uma criança que passou por um tratamento exaustivo desde seus 3 anos de vida com um acompanhamento bastante diligente em casa.

Em 2019, em um curso de línguas, recebi um aluno jovem, por volta dos seus 20 anos, que tinha visivelmente alguma questão relacionada à fala. Confesso que foi um presente ter um aluno como este. Era como se eu pudesse vislumbrar como seria a vida adulta de minha filha.

Ele estava no nível quase que avançado e se comunicava razoavelmente bem. Tinha muitos problemas no que diz respeito à prosódia em ambas as línguas – português e inglês –, porém tinha insights maravilhosos durante a aula. Seu maior desafio? O preconceito! Sim, esse era seu maior desafio em todas as aulas. Eram muitos os olhos revirados e visível a falta de paciência dos outros participantes, pois muitas vezes ele precisava de um tempo um pouco maior para elaborar suas frases. Foi um trabalho árduo de conscientização que tive que fazer ao longo daquele semestre. Divulguei, trouxe à luz um problema que hoje é mais frequente do que podemos imaginar. No final daquele semestre, aquele aluno já era mais aceito e sentia-se muito mais à vontade para expor sua opinião e participar. Senti-me plena!

O preconceito é nosso maior inimigo. Nossos maiores aliados são a divulgação, a educação e, acima de tudo, o amor.

Referências

American Speech-Language-Hearing Association (ASHA). (2007). Childhood Apraxia of Speech [Technical Report]. http://www.asha.org/policyLinks ]

Feldman, R. D., Papalia, D. E. (2013). Desenvolvimento Humano (12ª ed). AMGH. [ Links ]

Fish, M. A. (2011). Here's how to treat childhood apraxia of speech. Plural Pub. [ Links ]

Rappaport, C. R., Fiori, W. R., Davis, C. (1981). Psicologia do Desenvolvimento: teorias do desenvolvimento. Conceitos fundamentais (Vol. 1). EPU. [ Links ]

Singer, J. (2017). NeuroDiversity: the birth of an idea. Amazon Kindle. [ Links ]

1 Segundo Singer (2017), neurodiversidade diz respeito às particularidades do cérebro humano em relação às funções cognitivas. O termo surgiu como uma visão oposta àquela predominante de que os transtornos do neurodesenvolvimento são inerentemente patológicos. ‘Neurodiversidade’ é uma palavra usada para explicar as peculiaridades do funcionamento cerebral. Embora o cérebro de todos se desenvolva basicamente da mesma forma, não há dois cérebros que funcionem da mesma maneira. Ser neurodivergente significa ter um cérebro que funciona de maneira diferente das pessoas no geral ou “neurotípicas”.

2Childhood apraxia of speech (CAS) is a neurological childhood (pediatric) speech sound disorder in which the precision and consistency of movements underlying speech are impaired in the absence of neuromuscular deficits (e.g., abnormal reflexes, abnormal tone). CAS may occur as a result of known neurological impairment, in association with complex neurobehavioral disorders of known or unknown origin, or as an idiopathic neurogenic speech sound disorder. The core impairment in planning and/or programming spatiotemporal parameters of movement sequences results in errors in speech sound production and prosody.

Trabalho realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Agência de fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Recebido: 06 de Janeiro de 2023; Aceito: 15 de Junho de 2023

Correspondência: Renata Teixeira da Vitória Libotti Av. Horácio Macedo, 2151 - Faculdade de Letras - Sala D3-103 - Cidade Universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil CEP 21941-917 - E-mail: renatavitoria1979@gmail.com

Conflito de interesses: A autora declara não haver.

Creative Commons License  This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution Non-Commercial License, which permits unrestricted non-commercial use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.