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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo July/Sept. 2011
DEBATE - LIMITES: PRAZER E REALIDADE
De "Limites: prazer e realidade" à Sociedade excitada
Comissão editorial
Desde o início da psicanálise, a partir do porte intelectual e cultural da figura humana de Freud, os psicanalistas, embrenhados em sua atividade clínica, sentem necessidade do diálogo enriquecedor com outras áreas do conhecimento. A investigação do mundo psíquico, a busca de compreensão do "mundo interno" do indivíduo, sempre se fez de modo integrado à consideração da inserção desse indivíduo à sua época histórica e à sua condição cultural, isto é, seu "mundo externo".
Há um limite divisor entre esses dois "mundos" ou, paradoxalmente, o limite se apresenta como condição de permeabilidade mental, em que interno e externo, prazer e realidade, se configuram interdependentes em constante transição?
Desejando expandir e aprofundar o tema do XXIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, "Limites: prazer e realidade", a Revista Brasileira de Psicanálise trouxe para debate algumas ideias apresentadas pelo professor de filosofia, Christoph Türcke, da Hochschulefur Grafikund Buchkunst, em Leipzig, em seu livro Sociedade excitada: filosofia da sensação.1 Assim, convidamos Cecilia Maria de Brito Orsini, Viviane Sprinz Mondrzak e Eduardo Guerreiro Brito Losso a apresentar seus comentários às ideias do filósofo, aproximando o vértice psicanalítico do diálogo com a teoria crítica desenvolvida pela escola de Frankfurt, da qual Türcke, de certo modo, é herdeiro.
Poucos foram os pensadores que, imersos em seu contexto histórico, puderam trazer proposições de caráter universal ao arsenal do conhecimento humano. Partir da crítica de sua época e alcançar a abrangência fundamentada de sabedoria, capaz de oferecer alternativas ao fluxo envolvente das correntes sociais em movimento num determinado momento da história, não é tarefa comumente realizada a contento. Para os psicanalistas, Freud imediatamente seria lembrado como pensador portador de tal capacidade. Para os filósofos contemporâneos, ou estudiosos contemporâneos da filosofia, não muitos pensadores, ao longo da história, preencheriam tal condição. Não é exagero afirmar que Christoph Türcke se propõe tal desafio.
Lembra-nos o filósofo que, desde o advento da Modernidade e num crescendo cada vez mais intenso, a modalidade de comunicação propagandística domina fortemente a organização social a ponto de indicar como as pessoas devem se comportar para "fazer sensação" e, com isso, ganharem presença e existência reconhecíveis.
Sensação hoje, na linguagem coloquial, quer dizer simplesmente "aquilo que causa sensação". Quando a palavra passou do latim para as línguas nacionais europeias, representava bem genericamente a primazia fisiológica do sentimento ou da percepção - sem nenhuma conotação espetacular. E o mais notável é que, justamente a alta pressão noticiosa do presente, que quase automaticamente associa "sensação" a "causar uma sensação", não apenas se sobrepõe ao sentido fisiológico antigo de sensação, mas também o movimenta de uma nova maneira. Ou seja, se tudo o que não está em condições de causar uma sensação tende a desaparecer sob o fluxo de informações, praticamente não sendo mais percebido, então isso quer dizer, inversamente, que o rumo vai na direção de que apenas o que causa uma sensação é percebido. A percepção do que causa uma sensação converte-se na percepção toutcourt, o caso extremo da percepção em instância normal. Por certo, estamos apenas no princípio dessa tendência, mas a pressão econômica da concorrência global cuida para que ela se acelere - uma tendência que na alta pressão noticiosa só faz manifestar-se mais evidentemente. (p. 20)
Aquela modalidade de comunicação, eminentemente propagandística, incorpora as potencialidades da fotografia e do cinema com suas lógicas de reprodução e apreensão do "instante fixado", pondo em curso um movimento imperativo difundido em toda a malha social, por meio de revistas e televisão, a ponto de quando o sujeito se acostuma a tal corrente de estímulos, perde a sensibilidade para aquilo que não prende o olhar, para o que não se anuncia.
Como parecem insossos os estímulos do meio ambiente em comparação com aqueles que, berrantes, continuamente cintilam na tela; como fica entediante a rotina de cada um diante de tudo aquilo de excitante que as mídias incessantemente veiculam. Os estímulos do ambiente do dia a dia não são páreo para a torrente de excitação midiática do espetacular; eles ficam abaixo do limite do que o aparato sensorial pode absorver, possuem um pobre aqui e agora, mas nenhum "aí" (no sentido heideggeriano). Representam estímulos de menos para serem percebidos. A torrente de excitação, porém, representa estímulos demais. Ela coloca o organismo na situação paradoxal de não mais ser capaz de transformar os puros estímulos em percepção. (p. 65)
Seguindo com as ideias trazidas ao longo do livro, o autor procura provar como o estado atual de vida social humana configura, numa nova versão, o entendimento da própria história do homem. Aproximando-se de Freud, utilizando o conceito de "compulsão à repetição", esforça-se em desvelar a origem da cultura. Diante da situação traumática de pavor, frente a vivências de impotência, quando experimenta estímulos ameaçadores, o homem, para sua proteção, busca repetir, por meio de rituais sacrílegos, a experiência aterrorizadora, a fim de assimilá-la e controlá-la. A simbolização surgiria da repetição interminável de certos elementos presentes em tais rituais, sendo que ao se destacar do espaço sagrado teria alcançado a dimensão de linguagem. Na continuidade de sucessivas e infindáveis gerações humanas, por meio da repetição, com a proteção contra estímulos excessivos, tendo tempo para refletir e guardar o que aprendeu, o homem atinge a condição para a cultura e o conhecimento.
Sensações atuais são pálidos sucedâneos inflacionados da epifania do sagrado. Sim. Mas a sensação primeva humana não é o sagrado, e sim o pavor. É verdade que não no sentido de que a humanidade o tenha inventado. Ela simplesmente encontrou meio singular para sua assimilação. Também não no sentido de que ela tivesse tremido vinte e quatro horas por dia tomada de angústia. Também ela não terá encontrado menos prazer e fruição em alimento, luz, cores, calor, contato corporal e atos sexuais do que os outros mamíferos. Mas não é isso que a cunhou, e não existe nenhum cunho sem pressão, golpe, pontada ou choque. O que a punção de cunhagem é para a moeda, o choque foi para o sistema nervoso humano: um fixador abalador. Apenas, a fixação aqui não se deu como um único enrijecer-de-pavor, mas foi tomada sob o próprio governo e estendida e alargada por meio de repetição a tal ponto que as formas ritualizadas de linguagem, culto e trabalho que surgiram nesse processo ganharam uma relativa vida própria. De um lado, elas são sentimentos apagados, extintos, instintos e desejos "calcinados", no belo dizer de Freud ("Mais além do princípio de prazer", 1920): portanto, "mortos": sedimentos do suprimento de excitação humana. De outro lado, pertencem eles próprios - esses sentimentos e desejos - a esse suprimento, eles próprios agem nele filtrando, suavizando, refinando, transformando, fortalecendo o transcurso da excitação, o quão concretamente essa excitação é sentida e percebida, e, por conta disso, não são, tais sentimentos e desejos, uma "casca" exterior, morta, ou "folha de celuloide" do sensório humano e sim, se quisermos empregar uma imagem, a pele respirante desse sensório humano, que não apenas o protege, mas também o mantém coeso e o capacita a concentrar-se em algo, um objeto, uma pessoa, uma constelação, um problema, em outras palavras: realizar, para muito além da duração de um estímulo físico imediato, o trabalho sintético de uma longa, duradoura atenção. (p. 169)
Türcke, no entanto, ao retomar sua compreensão da sensação como paradigma da sociedade contemporânea, terá que examinar com profundidade a história do vício, outro conceito bastante moderno. Com o fim da estrutura cultural da Idade Média, antes mesmo da instalação da era moderna, já o homem havia perdido suas raízes. O caráter local da vida do homem pré-moderno, com suas crenças, ritos sagrados e símbolos, é perdido e substituído progressivamente por uma massificação na vida social cada vez mais urbanizada e, atualmente, globalizante. No início da revolução industrial, para a devida manipulação da massa trabalhadora, vê-se o aparecimento da bebida destilada com seu uso exagerado e destituído de qualquer significado sagrado. Era uma maneira de tornar a vida mais suportável, fazendo com que a taverna passasse a se igualar à igreja enquanto instrumento alienador da condição humana, esta mesma, caracterizada por ser faltante e vazia. A isso se somará a projeção de filmes pensada a partir da observação trotskista de que a exibição cinematográfica pode oferecer "a diversão como ferramenta da educação coletiva". E assim, também o cinema passa a ser mais um meio a formar uma verdadeira trindade da sociedade excitada.
O choque imagético não é mais foco de uma visão de mundo revolucionária especial, e sim apenas uma forma de intuição geral: a da sensação. Ele coloca em inquietação e fermentação elementares, resolve a moderna sociedade capitalista até seus sedimentos pré-modernos, mas de modo que com isso ele ao mesmo tempo a redefine e revivifica. Porém por meio de uma vida verdadeiramente artificial. Que ele atue sobre o sistema nervoso humano como um excitante incessantemente ministrado em doses mínimas, já se delineou no primeiro capítulo (deste livro). Mas apenas a passagem através da história da sensação trouxe à luz do dia a "química" desse meio, seus micronutrientes fisioteológicos arcaicos em extensão tal que agora, pouco a pouco, seu efeito geral se torna apreensível para os olhos. Pode-se resumi-lo numa palavra, quando se tem presente o quanto ela é rica em nuanças: vício. (p. 231)
Tanto quanto os fundamentalistas religiosos estariam vinculados a uma ilusão, assim também viveriam os drogados, bem como a maioria da população desenvolveria o vício a altas doses de estimulação audiovisual como quase o único recurso para poder suportar um mundo submetido ao regime do capital.
O vício é a busca de um apoio vital num objeto falso, sendo que aqueles que o procuram não devem ser informados de que se trata de algo falso. Eles sentem, eles sabem que a substância na qual se aferram não fornece nenhum apoio, mas eles não têm outra e, por isso, cada vez mais se jogam a ela, a mesma substância que os priva daquilo que lhes deveria proporcionar. Quando se fala em sintomas de abstinência, os quais seguem o vício do mesmo modo como a sombra segue a luz, esquece-se facilmente de que o próprio vício já é um sintoma de abstinência. Entretanto, a sua abstinência, que representa uma forma de reação desamparada, silenciosa, e continuamente moderna, não é tão evidente. Deve-se deduzi-la e, para tanto, não se pode evitar o emprego de reflexões teorético-pulsionais. Onde há abstinência perdeu-se algo que fora desejado. A energia pulsional, por meio da qual se ligou ao desejado, vagueia por todos os lados, pressiona por recolhimento; e onde ela se vincula com algo que serve como alternativa para tal, e que não se distancia tanto assim do que fora privado e desejado, mas como que se coloca em seu lugar e é tratada como se fosse esse algo, realiza-se aquilo que Freud denominou de "fetichismo". (p. 239)
Frente à exposição de tão excessiva excitação, provocadora do realce fetichista das sensações, característica moderna que denuncia a carência de recursos culturais atuais que possam oferecer suporte à condição faltante do ser humano que, no entanto, lhe é fundadora, restaria uma complexa tarefa para o sujeito: buscar uma "alavanca para o freio de emergência", enquanto tentativa de ascese, no sentido proposto por Walter Benjamin (citado por Türcke, 2010, p. 303), para interromper a torrente de estímulos sensoriais que tende a alienar o homem de si mesmo. Na busca dessa "legítima defesa cotidiana", a arte de vanguarda do início do século XX, enquanto maneira de resistir ao rapto perceptual promovido pela indústria cultural, foi destacada exemplarmente por Benjamin (citado por Türcke, 2010, p. 306). Proteger-se dos estímulos, excessivamente valorizados pela cultura de massas, que constitui o fundamento neurológico da consciência, passa a ser condição da continuidade do ser humano enquanto ser pensante.
Não estaria aí a função estruturante que o recalque exerce para o funcionamento psíquico? Não seria a psicanálise, além da arte, outra forma de resistência frente à alienação do homem, a cunhar na história da humanidade sua marca própria como representante da busca permanente do homem a se aproximar do que, até então, era impensável?
Acreditamos que as propostas de entendimento da contemporaneidade feitas por Christoph Türcke, em seu livro Sociedade Excitada, oferecem contribuição valiosa para o psicanalista comprometido, em sua investigação clínica, com a ampliação e aprofundamento da compreensão do ser humano imerso no mundo atual. Desse modo, poderemos acompanhar os convidados, que na sequência, nos estimularão com seus comentários a expandir nossos questionamentos sobre o tema "Limites: prazer e realidade", proposto no xxiii Congresso Brasileiro de Psicanálise.
1 Türcke, C. (2010). Sociedade excitada: filosofia da sensação (A. Zuin, F. Durão, F. Fontanella e M. Frungillo, trads.). Campinas: Unicamp.