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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo July/Sept. 2011
DEBATE - LIMITES: PRAZER E REALIDADE
COMENTÁRIOS SOBRE AS IDEIAS DE CHRISTOPH TÜRCKE
A "sociedade excitada" na clínica
The "excited society" in clinical practice
La "sociedad excitada" en la clínica
Cecilia Maria de Brito Orsini
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
RESUMO
O comentário, utilizando-se da experiência clínica da autora, tematiza os dilemas vividos pelo analista, perigosamente desafiado, como seu paciente, num embate entre proposições da vida contemporânea, aparentemente excludentes, ou seja: que solução singular encontrar para desenvolver-se enquanto sujeito no confronto com a força, aparentemente invencível, da "sociedade excitada", conforme desvelada por Christoph Türcke.
Palavras-chave: narcisismo; excitação; vício; cultura contemporânea; clínica atual.
ABSTRACT
The commentary, based upon the clinical experience of the author, characterizes the dilemma faced by the psychoanalyst, dangerously challenged, as his patient, in a clash between propositions of contemporary life, apparently excludent, that is: which singular solution can be found in order to promote self-development as subject in the confrontation against the strength, seemingly unbeatable, of the "excited society", as unravelled by Christoph Türcke.
Keywords: narcissism; excitement; addiction; contemporary culture; current practice.
RESUMEN
El comentario, basándose en la experiencia clínica de la autora, tematiza los dilemas vividos por el analista, peligrosamente desafiado, como su paciente, en un choque entre proposiciones de la vida contemporánea, aparentemente exclusiva, o sea: que solución singular encontrar para desarrollarse como sujeto de la confrontación con la fuerza, aparentemente invencible, de la "sociedad excitada", como fue dada a conocer por Christoph Türcke.
PALABRAS-CLAVE: narcisismo; excitación; vicio; cultura contemporánea; clínica actual.
Antes de receber o honroso convite desta editoria para comentar o material acima, eu já havia travado contato com livro de Christoph Türcke, estimulada por uma resenha saída no Jornal A Folha de São Paulo há um certo tempo. Penso que foi uma oportuna sincronicidade, já que como analistas, somos movidos por problemas clínicos semelhantes.
Além do título do livro, Sociedade excitada: filosofia da sensação, muito sugestivo para o psicanalista, motivou-me a clínica: o que pensar de certas formações da cultura contemporânea que "invadem" cotidianamente nossos consultórios?
Digo "invadem" por que acontece, ao menos na nossa fantasia, nos considerarmos infensos a certos movimentos do mundo sob pretexto de acreditarmos numa "essência" da vida psíquica que nos deixaria ao abrigo de certos dilemas.
Tomo uma breve vinheta clínica cujo mote foi um dos estímulos para entrar em contato com o livro e que pode ilustrar bem nossos dilemas como analistas.
L., em análise há vários anos, decide-se por questionar seu estilo de vida que se prende às seduções prodigalizadas pelo mundo corporativo, principalmente aquelas seduções vinculadas ao universo da tecnologia de ponta, na área de informação. Embora seja rapaz ambicioso, deseja se casar, constituir família, preservar algum nível de vida pessoal. Plano que parece frequentemente ameaçado pelo seu trabalho corporativo, em área extremamente volátil, excitante e excitável. Resolve-se, então, não sem altas doses de conflito, por mudar de corporação, escolhendo a dedo uma que não representasse simplesmente uma troca de "seis por meia dúzia". Ou seja, onde tentaria "pagar as contas" sem prejuízo de seu projeto pessoal.
Debalde. Depois de alguns meses de felicidade - voltara a dormir, podia pensar no casamento e na compra do apartamento, projetos relativamente próximos no tempo - L. começa a sentir certa comichão, ainda que não manifeste "remorso" pela troca de emprego. Subitamente, volta a se queixar de insônia, volta a "trabalhar dormindo" (queixa antiga: quando era despertado de madrugada pela própria "excitação", no modo como entende Türcke, entretinha-se preparando o power point mentalmente e já chegava no escritório com tudo pronto). Mesmo decidido a viver mais tranquilamente, L. conta que "não resistiu à tentação" de envolver-se num projeto - melhor dizendo, dedicou-se a "fuçar até encontrar um projeto excitante". Não estava suportando mais aquela modorra de um serviço pouco exigente e começou a ficar insatisfeito de aproveitar o tempo para dedicar-se ao preparo de seu casamento, já relativamente próximo.
Quando questionado, L. consegue formular: precisa de ações diferentes, não sabe bem quais, até que suas palavras o levam à conclusão: "ações que causem impacto nos outros". Ou seja, que provoquem "sensação", no sentido de sensacionais, como descreve Türcke. Sente-se mesmo "viciado" nesse tipo de ação.
Chego a pensar: estará L., malgrado o empenho desses anos todos em análise, realmente viciado nesse "estimulante"? Como tratá-lo, já que é um "vício" que congrega coisas tão diferentes quanto:
1. a estrutura real de funcionamento e exigências atuais do mundo corporativo, sobretudo na área de informática e comunicações;
2. a possibilidade de ter um bom emprego, ou seja, fazer frente às demandas do mundo adulto, como pagar contas, casar-se e constituir família;
3. a excitação promovida por aquilo que L. chama de "adrenalina", ou seja, ações impactantes que trazem tanto prazer quanto insônia?
Ademais, na sequência, L. revela um particular vínculo à mãe, mulher igualmente ambiciosa, com grande sucesso profissional: essa senhora regalava-se quando L. se destacava nas tarefas escolares, esportes, teatrinhos, cursos de línguas, momento no qual o tratava de "meu L", "esse sim: é o meu L.!", e propagandeava o feito por dias, entre familiares e amigos, exibindo seu filho como se fosse um troféu. No demais, era pouco atenta a ele, por demais ocupada com a própria ambição.
Bem, caro leitor, é aqui que as coisas se complicam de fato: entra em jogo o modo como se articulou o desejo na vida de L., soldado ao tipo de laço proposto por sua mãe, um laço narcísico no qual, como no vício, o prazer é tão imediato quanto fugaz.
Potencializa-se o problema pois aí o laço social vai funcionar como uma verdadeira solda nessa constituição narcísica, uma vez que os trabalhos oferecidos nessa área corporativa são verdadeiros "sintomas", ou seja, supradeterminados como descrevi a pouco, aparecendo como isca fácil aos sujeitos com déficits narcísicos e viciados no excesso de estimulação sensorial.
Estaríamos, eu e L., encurralados entre:
a. o apelo das demandas desejantes de uma sociedade que só faz incrementar as compulsões no bojo mesmo da estrutura corporativa, no interior dessas empresas ultra modernas e
b. o desejo de desenvolver-se, enriquecer-se enquanto subjetividade mediante laços mais profundos consigo mesmo, com seu trabalho e com o outro (o que exige muito mais esforço)?
O mais interessante contudo é observar que por intemédio de sua análise L., que nunca travou contato com a teoria crítica da escola de Frankfurt e menos ainda com Marx, começa, pelo próprio interrogar-se sobre sua posição no mundo, a desconfiar que a corporação vende "gato por lebre". Se por um lado promove um discurso altamente democrático, por outro, na prática, humilha seus funcionários quando se arvoram a efetivamente questionar alguma coisa; faz com que os funcionários sintam-se membros de uma elite, toda especial, como se fossem "os escolhidos" - são submetidos a oito entrevistas antes da contratação, cuja aprovação da vaga deve ser unânime e receber o aval pessoal dos donos, em nível internacional -, mas os faz trabalhar nos feriados, fins de semana e até tarde da noite, como se fossem escravos brancos. Contrata nutricionistas para almoços balanceados, lanches nutritivos; disponibiliza Nespresso, sorvetes e iogurtes à vontade, mas não vê com bons olhos quem sai para comer fora do refeitório, transformando o agradabilíssimo escritório de design ultra sofisticado e contemporâneo, numa espécie de gaiola de ouro, da qual ninguém pode sair para almoçar fora, sem ser julgado pelo feed back dos chefes - explicitamente - como um desadaptado na equipe. É tudo tão fantástico, tão "sensacional", com tantos estímulos visuais, financeiros, táteis, sensíveis, que L., exercendo com plenos direitos sua suspeita, chega a perguntar-se, para meu espanto com sua penetração, se não seria um pouco como uma propaganda nazista toda essa parafernália.
O que nos traz essa vinheta, vista sob a ótica das ideias de Türcke, é suficente para pensar no desafio colocado ao analista contemporâneo: como desenvolver e integrar as teorias do narcisismo num contexto em que se reconhece uma dimensão mais fisiológica do vício nas "sensações" de caráter extraordinário? Türcke convoca diferentes áreas do saber - a neurofisiologia, a psicanálise, a teologia, a filosofia da história e a teoria social - para desvendar o preço pago por cada ser humano para participar do espetáculo, entendido na concepção de Guy Debord - enquanto a necessária mediação social que faça o sujeito experimentar-se como existente, somente e se dentro do "espetáculo". É tão mais importante essa convocação se pensarmos no pressuposto básico de Türcke, ou seja, de que esse bombardeio audiovisual ligado ao que seja tido como "sensacional", a que estamos sujeitos, "revoluciona a potência de conexões neurais elementares, as quais formam a base elementar de toda cultura, então a palavra 'revolução' adquire uma nuança que nunca fora prevista no vocabulário socialista" (Türcke, 2010, p. 12).
Com L., desde então, com seu projeto de casamento e filhos, viemos trabalhando a "abstinência" ao vício do "sensacional". Como transformar num projeto satisfatório de longa duração a frequente ressaca do day after de projetos tão extraordinários quanto fugazes, vinculada à nova face do mundo corporativo?
No momento, viemos nos dedicando a pesquisar a ideia de "brechas": por onde poderá L. continuar a pagar suas contas a contento, de modo suficientemente harmônico com seu projeto de realização pessoal? Encontrará ele uma corporação em que consiga articular estas diferentes demandas?
Em nível intrapsíquico: como fazer a transformação do próprio narcisismo, sem que a renúncia ao mesmo signifique uma mera "abstinência"?
Como trabalhar o dilema ético do analista, que promove o crescimento pessoal, cujo paciente dará de cara com uma sociedade "excitada", que não para de açular pseudo pulsões narcísicas em seus membros, pela oferta de empregos no mundo corporativo que obedecem a cada vez, mais e mais, a esta implacável lógica do "sensacional", arrastando corações e mentes jovens e talentosas para as suas fileiras? Resultaria disso que todos os seus pacientes tornariam-se "marginais", no bom sentido do termo, colocando-se à margem do caudal hegemônico que a cultura propõe a seus membros, quando a mesma o faz tremendamente infelizes, acordando no dia seguinte da ressaca de estímulos, tão vazios quanto exauridos emocionalmente?
A solução que L. vem pensando: trabalhar na área que gosta (marketing), numa corporação ligada a área educativa, que além de oferecer horários mais humanos sem a contraparte de salários desumanos, ainda oferce a possibilidade de matricular os filhos sem ônus. Vê-se portanto o quão singular, complexo e delicado é o equilíbrio que vamos tentando encontrar ao trilhar nossos caminhos.
Finalizando
Para dar azo a tais reflexões, selecionei do material preparado com apuro pela equipe editorial o trecho abaixo, como o centro da problemática que se nos apresenta concernindo a relação do paciente com o vício:
Lembra-nos o filósofo [Türcke] que desde o advento da Modernidade, e num crescendo cada vez mais intenso, a modalidade de comunicação propagandística domina fortemente a organização social a ponto de indicar como as pessoas devem se comportar para "fazer sensação" e, com isto, se sentirem "alguém", ganharem presença e existência reconhecíveis na medida em que se ative-rem a causar alguma sensação. (comentário preparado pela equipe da RBP)
A equivalência entre ser percebido = a ser sensacional = a existir parece-me crucial, parece ser o fulcro da questão, pois provoca um verdadeiro curto-circuito que apela diretamente ao narcisismo do sujeito, transformando a inserção na cultura contemporânea numa manobra de alto risco. Ou seja, já não é mais para ser reconhecido que o sujeito se esmera em impactar e sim para não ser aniquilado e ter a sua existência assegurada. Desde que Guy Debord, na década de 60, desvelou esse curto-circuito, estamos frente a este desafio: para existir é preciso ser espetacular, ou seja, mediar suas relações por algum tipo de veiculação imagética de natureza impactante, nem que seja o das mídias sociais, que aliás, não por outra razão fazem imenso sucesso. O que Türcke vai modificar nesta ideia de Guy Debord, já suficientemente inquietante, é adicionar o risco de que esse mecanismo esteja funcionando mediante um vínculo perverso com a fisiologia do vício, ou seja, prendendo o sujeito em suas malhas através do disparador de estímulos químicos que provocam sensações e dependência em nível orgânico.
Interessa que tal proposição seja estudada com apuro. Por que? Basta lembrar que pesquisas recentes sobre a epidemiologia do alcolismo (Galduroz, palestra na SBPSP, 2005) alertaram para a necessária retirada do álcool presente em medicamentos para criança, o que de fato aconteceu, como com a água de melissa e com o biotônico Fontoura, cujas fórmulas continham álcool e que, embora administrado em pequenas doses, era utilizado para abrir o apetite ou acalmar o bebê, formando desde o berço subjetividades afeitas ao vício, por uma oferta irresponsável da indústria. Ou mesmo a descoberta recente de que se adiciona ao tabaco inibidores do apetite para viciar mulheres desejosas de emagrecer ou sabores em sua composição para conquistar os adolescentes que têm repugnância pelo sabor e o cheiro da fumaça.
Convenhamos: nosso desafio não é pequeno e nosso empenho em enfrentá-lo não pode ser menor.
Acredito que é por essa razão que a equipe do corpo editorial primou em produzir um material que nos implicasse enquanto analistas, cujo fulcro sublinho a seguir:
Poucos foram os pensadores que imersos em seu contexto histórico puderam trazer proposições de caráter universal ao arsenal do conhecimento humano. Partir da crítica de sua época e alcançar a abrangência fundamentada de sabedoria, capaz de oferecer alternativas ao fluxo envolvente das correntes sociais em movimento num determinado momento da história, não é tarefa comumente realizada a contento. Para os psicanalistas, Freud imediatamente seria lembrado como pensador portador de tal capacidade. Para os filósofos contemporâneos, ou estudiosos contemporâneos da filosofia, não muitos pensadores, ao longo da história, preencheriam tal condição. Não é exagero afirmar que Christoph Türcke se propõe tal desafio, tornando-o merecedor de atenção e estudo (extraído do material produzido pela equipe, itálico meu).
Para finalizar, creio que podemos tranquilamente fazer nossas estas colocações, pois não se trata apenas de encontrar a administração possível do desejo na vida contemporânea, mas de alargar seus horizontes para além das opções visíveis, descortinando novas dimensões de existência.
Correspondência:
Cecilia Maria de Brito Orsini
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Arthur de Azevedo, 1857/74 | Pinheiros
05404015 São Paulo, SP
ceciliaorsini@uol.com.br
Recebido em 6.7.2011
Aceito em 2.8.2011