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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.3 São Paulo July/Sept. 2011

 

RESENHAS

 

O eu em ruína: perda e falência psíquica

 

 

Maria Cecília Pereira da Silva

Psicanalista, membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Mestre em Psicologia da Educação e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Pós-doutora pela PUC-SP. Membro do Departamento de Psicanálise de Criança e Professora do Curso de Introdução à Intervenção na Relação Inicial Pais-Bebê do Instituto Sedes Sapientiae

Correspondência

 

 

Organização: Eliane Michelini Marraccini
Editora: Primavera Editorial, São Paulo, 2010, 357p.
Resenhado por: Maria Cecília Pereira da Silva

O eu em ruína: perda e falência psíquica surgiu com objetivo de ampliar e aprofundar a noção de "eu em ruína", tema central da tese de Eliane Michelini Marraccini. Composto por 14 artigos escritos por 19 psicanalistas de diferentes instituições, ligados a universidades e cursos de psicanálise, conta com um agradecimento especial à querida Camila Pedral que estimulou essa publicação por ocasião de sua arguição no doutoramento da autora.

Os artigos apresentam, com um discurso metapsicológico coerente, consistente e poético, o fenômeno psíquico do "eu em ruína", ilustrado na clínica psicanalítica e compreendido sob o vértice de diferentes linhas teóricas e situações clínicas distintas, tais como o luto não elaborado, a melancolia, a toxicomania, as relações iniciais mãe-bebê, a anorexia, entre outros.

Seguindo o fio das origens, clínicas e teóricas, e o faro da intuição, esse livro oferece uma compreensão que permite uma visão mais ampla e aguda dos estados melancólicos e desesperançados. Leitura fundamental para todo psicanalista que se depara com pacientes que nos apresentam seu eu em ruína, fenômeno tão presente na clínica contemporânea.

Logo no primeiro capítulo "O eu em ruína: perda e colapso", Eliane Michelini Marraccini, a partir de sua experiência clínica com pacientes que apresentam uma vivência traumática dilacerante que os conduz ao colapso diante da perda de um objeto amado, propõe o conceito de "eu em ruína":

O "eu em ruína" diz respeito à experiência traumática da perda de um ser amado, de seu amor, ou de algo que tenha ocupado esse lugar, o que leva o eu a sucumbir ao colapso, de forma dramática e, por vezes, integral. Tem lugar em um psiquismo que, embora de funcionamento primitivo, mantinha-se razoavelmente edificado antes da comoção transbordante dessa perda. Uma perda real, mas que, no entanto, constitui também uma perda imaginária e representa simbolicamente uma perda essencial para o psiquismo.

A noção "eu em ruína" abriga uma complexidade intrínseca. Diz respeito a uma falha na constituição psíquica e envolve um comprometimento da coluna de sustentação do eu, edificada em torno do eixo de estruturação narcísica e do fortalecimento egoico, alicerces centrais da subjetividade. Além disso, comporta uma regressão que é perturbadora das funções egoicas, o que produz um afastamento do contato com a realidade psíquica e um distanciamento do mundo externo e da interação com a realidade. Em função de uma organização narcísica de personalidade, as relações de objeto que o sujeito estabelece são fundamentalmente narcísicas e, portanto, impregnadas de onipotência e permeadas de identificação projetiva. (p. 30)

Eliane ilumina o conceito com uma situação clínica e descreve os desdobramentos técnicos necessários para a condução de um processo analítico com esses pacientes. Aponta que a função do analista não é a de substituir o ser amado ausente nem de preencher o vazio gerado, mas a de "fundar a relação de ausência que é desconhecida no psiquismo deste sujeito" (p. 34). Destaca que isso só é possível por meio da presença especial do analista que procura tomar em consideração o "ausente imaginário" (o seio ou a mãe) para oferecer uma representação para este vazio instalado no psiquismo marcado pela desesperança.

Além de considerações sobre o narcisismo, o luto e a melancolia, salienta a importância do "trabalho da melancolia" e do "trabalho de luto" para a constituição subjetiva, diferenciando a capacidade depressiva criativa, não alcançada nos primórdios da vida psíquica. Acompanhada de Fédida (2002), nos lembra como essa depressividade é fundante da percepção interna do paciente e "do contato com o que permaneceu da experiência primeira da subjetividade, da descoberta da vida em contato com a morte" (p. 49), e deve ser alcançada no trabalho transferencial analítico.

Homero Vettorazzo Filho em "A tirania do ideal na ruína do eu", para construir sua compreensão sobre o desmantelamento do eu, parte da experiência com pacientes que perdem o sentido de vida e que o "imaginário da morte" assume um estatuto de verdade.

Recorre a autores como Freud, Bleichmar, Lacan, Aulagnier, Fédida, para discutir a importância estrutural dos processos identificatórios na fundação do narcisismo e na constituição do superego e das primeiras relações objetais que comporiam a pré-história do sujeito.

Homero detém-se longamente sobre o conceito de melancolia e seus desdobramentos e nos lembra que essa é "uma das formas mais antigas de sofrimento da 'alma' - que etimolo-gicamente significa 'bile negra' em franca alusão às alterações de humor relacionadas às dis-funções hepáticas - o que persiste como uma das formas de sofrimento mais frequentes na atualidade", (p. 78) Retoma a afirmação freudiana em "Luto e melancolia" (1917[1915]/1974a, p. 108), de que: "a melancolia é uma identificação do eu com o objeto que foi abandonado", configurando a tirania do ideal na ruína do eu.

Compartilha com o leitor os caminhos transferenciais e contratransferenciais expe-rienciados com uma paciente sem esperança na vida e na possibilidade de encontrar no processo analítico uma saída para seu sofrimento.

Em "Desmantelamento do eu e cuidados fundamentais," Sérgio de Gouvêa Franco ancora-se na contribuição winnicottiana e fundamenta seu pensamento na teoria dos estados primitivos e na técnica para atender pacientes que não encontraram um ambiente suficientemente bom. Por intermédio de um caso clínico estabelece a relação entre o desmantelamento do eu e as falhas das relações iniciais. Destaca a necessidade de o analista pensar o lugar que ocupa no tratamento do fronteiriço ou psicótico para se aproximar de angústias impensáveis e recuperar o crescimento emocional e o verdadeiro self.

Em "A violência dos ideais na anorexia nervosa: o eu corporal em ruínas." Ana Paula Gonzaga e Cybelle Weinberg descrevem a anorexia como uma experiência em que o eu corporal está arruinado, maculado e deformado.

As autoras procuram compreender a subjetividade e as instâncias ideais de pacientes com anorexia em que o corpo imaginário reflete o aprisionamento narcísico na mente materna e no desejo de satisfazê-la até a morte de si. Recorrem à compreensão freudiana do processo de identificação e constituição do aparelho psíquico, movido pelas forças pul-sionais, e em conceitos de Bleichmar, Dolto, Nasio, Aulagnier. Essa conflitiva é ilustrada em experiências clínicas com pacientes com transtornos alimentares. Concluem perguntando:

Vale o quê? Vale decidir sobre a própria morte. Ideal de onipotência, que mascara a impotência de viver sua própria vida. Soberania e soberba de quem não tem nada, de quem triunfa sobre um ego arruinado, refletido ... no espelho mortífero de seu ego ideal. (p. 124)

"Nas fronteiras do ego", Maria Helena Saleme apresenta quatro recortes clínicos para mostrar um limite entre um corpo desenfreado, transbordante de excitações, concomitante ao prenúncio de alguma possibilidade de representação. Nessas situações analíticas descreve um estado de desamparo em que há uma desarticulação egoica com maneiras diversas de se manifestar e formas distintas para lidar com ela. Aponta como o aparelho psíquico é insuficiente para dar conta das demandas de excitabilidade e o ser humano está sempre sujeito a afetações que superam sua capacidade de representação, definindo um estado de desamparo.

A biografia de Maria Callas é o ponto de partida do artigo "Quando a vida perde o sentido" das autoras Heloisa de Moraes Ramos e Mirian Malzyner. Articulando Arte e Loucura, apresentam a dicotomia vivida pela cantora lírica Maria Callas. De um lado a Maria, mulher frágil e vulnerável, e de outro a cantora Callas, mitificada. Exemplificam assim questões da clínica contemporânea em que há o esvaziamento do sentido da vida pela perda do gesto criativo, como representação do "eu em ruínas" ou dos estados depressivos graves. A partir de uma dimensão ontológica propõem que será o ato criativo que garantirá a sobrevivência do eu, que de posse do si mesmo apropriar-se-á do viver, incluindo toda a gama de situações dolorosas e traumáticas. Estruturam sua argumentação na teoria win-nicottiana.

Em um título que contém um oxímoro, "A glória da ruína na toxicomania", Claudio Eugenio Marco Waks e José Waldemar Thiesen Turna recorrem a Lacan, Abraham e Torok, e Malvina Cirela para defender que na toxicomania o "eu em ruína" experimenta um estupor glorioso. Mostram como diante de

uma realidade indubitável, de extrema penúria psíquica e/ou física, paradoxalmente, o toxicômano, carregado pela fantasia de incorporação, manifesta certo gozo na ruína que alivia, pois confirma a profecia contra a qual lutou-se tenazmente: a glória na ruína. (p. 165)

Apontam como o analista necessita trabalhar com "uma lacuna no psiquismo" e incluir a falha, o erro, a morte enquanto parte inseparável do acometimento sintomático, pois ele se constitui, ao mesmo tempo, em defesa e em mecanismo destrutivo.

Em "Melancolia, dor e ruína", Paulo José Carvalho da Silva trata a melancolia, desmoronamento interno e externo, como algo característico do homem há séculos. Propõe que o eu está em ruínas quando o mundo ao seu redor se despedaça, pois aquilo que mantinha a unidade de seu ser não cumpre mais sua função.

Ancora seu pensamento em Freud, Sêneca, Burton, Le Brun, Binswanger, Lambotte, Barcelar, e se pergunta: por que em alguns, sob o domínio da perda, há uma ruína do eu e, em outros, apenas uma dor que pode ser intensa, mas finita?

Conclui que

se o eu é o sítio da angústia por estar sujeito aos perigos emanados do mundo externo, da libido e do supereu, e se na melancolia o desenvolvimento da angústia é um processo interior, entende-se porque o melancólico teria uma maior tendência à ruína. Ao invés de se sentir protegido pelo supereu, como ele gostaria, o eu melancólico sente-se perseguido e odiado por ele, abandonando-se à morte. Afinal, qual fortaleza permaneceria em pé quando, no meio da guerra, seus próprios canhões acabam apontados para si mesma? (p. 197)

Adriana Campos de Cerqueira Leite parte de um caso de histeria e melancolia para construir seu artigo "Rosa: enterrar para nascer." Rosa a partir da separação de um namorado admirado e invejado, não podia nem viver nem morrer, pois já sentia que estava morta, configurando um estado de falência melancólica. Para compreender a dinâmica psíquica dessa paciente, Adriana estrutura seu pensamento sobre o "eu em ruína" a partir da definição de Lambotte sobre a "condição existencial do sujeito melancólico que, à falta de energia disponível, não dirige mais interesse para as percepções exteriores e soçobra na economia da retirada. (Lambotte, 1997, p. 148)" (p. 203-4).

Maria Beatriz Romano de Godoy em seu artigo fundamentalmente clínico intitulado "Sobre as cinzas..." apresenta sua experiência analítica de muitos anos com uma paciente atravessada por situações traumáticas e sua luta por uma sobrevivência psíquica. O relato, extremamente sensível de Beatriz, descreve as vicissitudes do trabalho analítico. Retrata os aspectos contratransferenciais e as descobertas técnicas aprendidas e apreendidas no manejo desse caso que apresentava um psiquismo frágil, esgarçado e corrompido em que se presentificava o conflito entre seus aspectos psicóticos e perversos e aqueles não-psicóticos da personalidade.

Inspirada pela teoria bioniana, discute a necessidade de uma forma de continência muito especial, em que as interpretações clássicas não bastam, exigindo do analista, para além de sua contratransferência, utilizar-se de sua imaginação e de sua capacidade construtiva que possibilite a criação e recriação mútua: analista e paciente. Justifica assim o titulo de seu artigo: a necessidade de sempre "renascer das cinzas".

No texto "Exogamias na clínica da mulher e do homem", Marciela Henckel e Regina Maria Guisard Gromann enfocam o "eu em ruína" a partir de duas situações clínicas de pacientes com traços melancólicos em possíveis construções no atravessamento edípico.

No primeiro caso descrito observam o quadro depressivo característico de um trabalho de luto, permitindo uma transformação e a instauração de um espaço psíquico com o surgimento de fantasias pela via do autoerotismo e deslocamentos exogâmicos. O segundo caso caracteriza-se por um eu empobrecido, esvaziado, para além de um estado depressivo. Destacam a importância do trabalho analítico constituído na situação transferencial para a possibilidade do estabelecimento de novas ligações.

No artigo "Bebês autônomos? Mães autofecundadas?" Adriana Grosman e Julieta Jerusalinsky discutem a constelação psíquica dos bebês nascidos de "fertilizações técnico-científicas" e das mulheres que recorrem a intervenções médicas para a fecundação em função do final de sua idade fértil. Destacam como na modernidade as mulheres alimentam a ilusão de uma maternidade autofecundada e os bebês ocupam um lugar narcísico e de "Sua Majestade o Bebê" (Freud, 1914/1974b, p. 108).

Diante de uma gravidez, que na maioria das vezes se constitui em um acting out, as autoras interrogam-se que lugar esse bebê, fruto de uma fertilização in vitro, irá ocupar na fantasia materna e no seio da família. A experiência clínica das autoras demonstra que esse bebê-objeto vem atender a um desejo narcísico materno. Exemplificam com a história de de uma paciente, denominada de Barriga Negra, cuja falência de uma fantasia imaginária onipotente experimentada após a perda de uma filha e de um embrião feminino insemina-do caracteriza-se por um "eu em ruína", eu diria um eu materno em ruína.

Elisa Maria de Ulhôa Cintra em seu artigo "O eu em ruínas no documentário Es-tamira" detém-se no conceito de pulsão de morte para discutir a personagem Estamira presente no documentário de Marcos Prado. Essa mulher de 63 anos, catadora de lixo do Aterro Sanitário de Jardim Gramacho no Rio de Janeiro, definindo-se como um ser extraterrestre: "Eu não sou um horror sanguíneo" procura desmascarar a hipocrisia do mundo e erguer-se "de todas as ruínas de si" (p. 300). A autora argumenta como o trabalho da pulsão de morte se apresenta como uma desarticulação dos significados humanos.

No último capítulo, "A perda, o luto e o narcisismo: uma releitura de Luto e melancolia", Maria Cristina Perdomo inspirada na letra de Chico Buarque de Holanda, "Pedaço de mim", descreve a experiência de um luto eternizado em três mulheres: Madalena, Lucia e Ângela. Para discutir um estado depressivo crônico, que a autora caracteriza como um luto depressivo e não como uma melancolia, apoia-se em alguns conceitos freudianos, principalmente aqueles presentes no texto "Luto e melancolia" (S. Freud, 1917 [1915]/1974a), que caracterizam um "funcionamento psíquico de situações de perda, que se bem não se estruturam como uma melancolia, tampouco se processam à maneira de um luto dito normal. São situações de perda violenta em que o psiquismo não teve tempo de estruturar, ou acionar, barreiras defensivas nas quais ancorar-se para processar a perda e onde um elemento impossível de metabolizar aflige o Eu e perturba a economia libidinal de todo o aparelho psíquico de maneira duradoura." (p. 312)

Perdomo acredita que as situações traumáticas vividas por essas pacientes não se constituem somente como aspectos primitivos ou arcaicos, mas sim resultam de uma recomposição simbólica exitosa ou falha, que exigem um trabalho de metabolização. Indica que há um recrudescimento da elaboração de perda e um movimento depressivo diante da presença de um novo objeto. A autora afirma que o novo objeto representaria uma traição ao objeto de amor narcísico primário.

Concluo esta resenha relembrando uma expressão cunhada por Nietzsche (1978) amor fati, amor ao destino, atitude de aceitação do sofrimento e das perdas experimentadas na vida. Amor fati - não seria esta uma tarefa quase impossível para quem vive sob a ruína do eu? Suportar as ambivalências e conflitos da vida, integrá-los e amar aquilo que é? Talvez este se constitua num grande desafio para o psicanalista e para o paciente - integrar as ruínas deixadas pela perda do amor do objeto primordial e tornar-se capaz de amar.

 

Referências

Abraham, N. & Torok, M. (1995). A casa e o núcleo (p. 245). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Bleichmar, S. (1993). A fundação do inconsciente: destinos de pulsão, destinos do sujeito. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

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Winnicott, D.W. (1954). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto psicanalítico. In D.W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise - Obras escolhidas (pp. 374-392). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Maria Cecília Pereira da Silva
Rua Joaquim Antunes, 490/94
05415-001 São Paulo
Tel: 11 3081-9159
mcpsilv@gmail.com

[Recebido em 6.5.2011
A ceito em 10.7.2011]

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