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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo Mar. 2016

 

EM PAUTA

 

Considerações sobre a análise de uma personalidade psicótica1,2

 

Considerations on the analysis of a psychotic personality

 

Consideraciones sobre el análisis de una personalidad psicótica

 

 

Judith S. T. C. Andreucci (in memoriam)

Formada em Filosofia pela Universidade de São Paulo, membro efetivo e analista com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

 

 


RESUMO

Neste trabalho, que se refere à análise de uma personalidade psicótica, trazemos à consideração três pontos fundamentais: (a) Transcendendo o mundo psicótico, parece existir uma inteligência e uma estranha intuição e arte que funcionam em termos completamente desconhecidos e incompreensíveis para o nosso mundo lógico racional; esta inteligência, fortalecendo os vértices do mundo psicótico, captando perigos imperceptíveis para a razão, organiza e comanda as defesas psicóticas, no sentido que considera a solução mais adequada para evitar a destruição total; (b) Na base mais primitiva do complexo de Édipo, parece existir algo como uma mutilação ao próprio direito de ser, de existir, ocasionada, talvez, por um catastrófico desencontro criança-mãe, que faz a primeira ficar sem ponto referencial para sentir-se existente, tombando num caos através de angústias inimagináveis; (c) Alguns pacientes peculiares têm seu limite de suporte para as angústias decorrentes do conhecimento de profundos níveis da mente; até que limite deverá o analista prosseguir no seu trabalho de investigação e conhecimento, atendendo às limitações do próprio paciente?

Palavras-chave: personalidade psicótica; intuição; inteligência; defesa psicótica; angústia.


ABSTRACT

In this paper, which is referred to the analysis of a psychotic personality, we bring into consideration three fundamental points: (a) When the psychotic world is transcended, there seem to be an intelligence and a strange intuition and art which work in completely unknown and incomprehensible terms to our logical and rational world. This intelligence, which strengthens the psychotic world’s vertexes and captures dangers that reason cannot detect, organizes and commands psychotic defenses by considering the most adequate solution to avoid the total destruction; (b) In the most primitive basis of Oedipus complex, there seems to be something like a mutilation of the own right of being, of existing, which may be caused by a catastrophic child-mother mismatch or "misencounter". This mismatch makes the child live without a reference point to feel existing, which leads her (or him) to topple into chaos through unimaginable anguishes; (c) Some particular patients have their support limit for anguishes which arise from understanding deep levels of mind. How far should psychoanalysts go to proceed with their work of investigating and understanding, attending to the patient’s limitations?

Keywords: psychotic personality; intuition; intelligence; psychotic defense; angst; anguish.


RESUMEN

En este trabajo, que se refiere al análisis de una personalidad psicótica, ponemos en consideración tres puntos fundamentales: (a) Trascendiendo el mundo psicótico, parece que existe una inteligencia y una intuición extraña y un arte que funcionan en términos completamente desconocidos e incomprensibles para nuestro mundo lógico y racional; esta inteligencia, fortaleciendo los vértices del mundo psicótico, captando peligros imperceptibles para la razón, organiza y comanda las defensas psicóticas, en el sentido que considera la solución más adecuada para evitar la destrucción total; (b) En la base más primitiva del complejo de Edipo, parece existir algo como una mutilación al propio derecho de ser, de existir, provocada, tal vez, por un choque catastrófico niñomadre, que hace que el primero se quede sin punto de referencia para sentirse existente, cayendo en un caos a través de angustias inimaginables; (c) Algunos pacientes peculiares tienen su límite de apoyo para las angustias resultantes del conocimiento de profundos niveles de la mente; ¿hasta qué límite deberá el analista proseguir en su trabajo de investigación y conocimiento, de acuerdo con las limitaciones del propio paciente?

Palabras clave: personalidad psicótica; intuición; inteligencia; defensa psicótica; angustia.


 

 

Na área que corresponde às transformações em alucinóse, o devenir zero se aproxima de realizações que pertencem a um estado não abrangido pelas teorias conhecidas, e provavelmente seja necessário dispor de novas formulações teóricas que contenham tanto as realizações como o estado mental e emocional que as representam.

(W. R. Bion)

O progresso da análise de psicóticos ameaça exatamente o paciente, com o aparecimento de um estado confusional agudo que, com tanta frequência, conduz à hospitalização temporária ou mesmo à interrupção da análise.

(H. Rosenfeld)

 

Este trabalho tem por objetivo a investigação de períodos pré e pós-catastróficos da paciente A., que durante cinco anos esteve em análise conosco.

A. teve vários internamentos longos em hospitais psiquiátricos, anteriores à análise. Esta foi iniciada no final do último internamento, vindo a paciente às sessões acompanhada de uma enfermeira do sanatório. É óbvio que não estava em condição de decidir nada.

Vinha como um autômato, como iria a qualquer outra atividade no hospital, enviada pelo psiquiatra.

Olhar vazio, fala desconexa, fisionomia estática sem vestígios de expressão de vida, entrava no consultório e atirava-se no divã, como um corpo morto ou uma coisa colocada em algum lugar.

Aos poucos, algo daquele estranho mundo desconhecido ter-se-ia configurado e tornado possível de captar e verbalizar para a paciente, pois uma frágil comunicação começou a surgir entre nós.

A paciente foi se tornando menos ausente e desconexa. Passou a vir só à análise e recusava deitar-se. Olhava-me e punha-se a lamuriar: "Eles me mandaram vir aqui, eles querem isso". Falava no plural, jamais se identificando na primeira pessoa do singular. Ao entrar, perguntava, invariavelmente: "Como vamos?", olhando-me com um olhar perfurante, que eu sentia que se introduzia em mim, envolvia-me e transbordava. Era como se me trespassasse e se perdesse ao longe, não lhe sendo possível distinguir-nos ou precisar-se a si própria. Mostrava-lhe isto. Ela parecia, rapidamente, reintrojetar algo de si que havia projetado, fazia um movimento ligeiro em que parecia concentrarle, voltando a cumprimentar: "Como vai?" Observando a paciente, surgia-me a ideia de que, na sua fragmentação e projeção "Eles me mandaram vir aqui, eles querem isso", havia partes que queriam vir até mim, desejavam o encontro comigo, enquanto em outras áreas da mente este encontro seria sentido como algo desastroso e combatido, o que se expressava no tom emocional da voz, lamuriento e angustiado.

Parecia-me existirem áreas na mente da paciente que tentarei transmitir usando a expressão os dois mundos, e todo nosso trabalho foi dominado pela alternância ora de um, ora de outro, isto é, do mundo que colaborava e do que odiava e destruía qualquer vínculo.

Muito aprendi com esta paciente e creio que ela também aprendeu comigo, até onde o seu mundo estranho o permitiu, isto é, até onde não houve uma capitulação decisiva por parte deste mundo sinistro. Melhor, talvez, seria dizer até onde foi possível a esta paciente suportar as frustrações vindas do seu próprio e do meu existir, da realidade, do vínculo entre nós, do horror do conhecimento de uma realidade interna plena de ódio, inveja e arrogância sem limites, a derrocada de toda uma engrenagem de estranhos sistemas, a dor de uma existência desperdiçada.

Disse-me, certa vez, após alguns anos, quando a comunicação entre nós se tornou mais possível: "A senhora pode ir à sala de visitas, à de jantar, aos quartos, mas nunca, ouviu, nunca poderá ir até o porão".

Pareceu-me ter sido a forma de a paciente configurar as diversas áreas de sua mente, acessíveis ou não ao nosso conhecimento, e desafiar-me a penetrá-las além das fronteiras por ela estabelecidas.

Creio, hoje, que a invasão ao porão seria o defrontar com a sua loucura, área perigosa cujo conhecimento nos era vedado. Seria o devenir zero, através de realizações envoltas em um terror sem nome ou pânico psicótico, ligado a estes níveis inacessíveis da mente, em que algo teria sido, mas não configurado.

Tentativas de acesso a este mundo estranho de violências inimagináveis, valores invertidos, tempo, espaço, limitações inexistentes, lógica desconhecida pelo nosso mundo racional, provocavam na paciente ódios e angústias terríveis. Em períodos pré-catastróficos, controláveis pela análise, as emoções eram teoricamente admitidas, mas não sentidas. Violências faladas, mas não vividas: "Eu sei que sou um vulcão..."

Nos primeiros anos de análise, orgulhava-se da saúde física, do seu corpo, que sentia invulnerável, o ponto referencial para a sua autoestima. "Tinha uma 'saudona’, nunca fiquei doente!" O corpo não a frustrava.

Com o decorrer da análise, surgiram sintomas hipocondríacos: cefaleias, dores no corpo e até uma gestação que chamarei, estranhamente, de hipocondríaca, pelo sentido de continente especial que parecia desempenhar. Este fato ocorreu nas vésperas do casamento da segunda filha. A paciente tivera um dos mais graves episódios psicóticos por ocasião do casamento da primeira.

Pareceu-me que, através desta gestação, a frustração causada pela noção de tempo, pois a realidade do casamento das filhas a fazia senti-las moças e ela envelhecendo, seria solucionada de modo singular: ela engravidaria, seria também jovem, sempre gerando filhos, o tempo não teria passado...

Assim, através do estratagema da gravidez, sua mente, desta vez, conseguiu permanecer integrada, não precisando ser atacada, para não saber que envelhecera, que o tempo de jovem passara, que um dia morreria. "Veja como sou mais jovem que qualquer jovem! Gero melhor que qualquer moça. Não me troco por nenhuma delas. "

Constatei que a paciente reagia com violência imprevisível a interpretações capazes de promover conhecimentos e transformações.

Em determinada sessão, quando conseguiu ter uma percepção mais precisa da intensidade do seu ódio e da sua terrível competição invejosa comigo, num momento em que a entendia e era capaz de me fazer entender por ela, reagiu de súbito, como uma bomba explosiva, fragmentando palavras, desconectando o sentido e despejando tão violentamente uma enxurrada de sons ininteligíveis dentro de mim que fiquei paralisada.

Pareceu-me que sua inveja atacara a minha mente, que teria tido a capacidade de se aproximar do seu porão, ou melhor, do conhecimento da sua loucura expressa através de ódio, inveja e arrogância sem limites. De acordo com os seus sistemas, a si própria se bastava; minha ajuda era sentida como uma agressão às suas teorias, uma invasão a territórios proibidos.

Foi quando, em meio à expelição da enxurrada de elementos coisificados e ininteligíveis, a paciente, de súbito, dirigiu-se a mim, proferindo nitidamente esta frase em tom triunfante de desafio: "Isto é um jogo de xadrez! Quero ver juntar tudo e entender!" Num primeiro momento, pensei ser uma farsa. Observando atentamente a paciente, percebi que não era. Voltara a seu palavrear desconexo, a fisionomia petrificada, deixando-me aturdida ante a descoberta incrível: seu mundo psicótico funcionava de acordo com um plano organizado, provindo, talvez, de uma desconhecida dimensão da mente (é o termo que encontro) que parecia possuir uma inteligência e uma intuição que trabalhavam a seu modo, organizando-se em torno de um objetivo, fortalecendo as próprias defesas psicóticas para atingi-lo. Pareciam empenhar-se, em situações só perceptíveis para elas, em evitar que o desconhecido inaguentável fosse conhecido; procuravam confundir a minha razão, a qual desafiavam, perturbando-me a intuição, a percepção e a comunicação.

E com que argúcia armavam o seu jogo de xadrez para que o porão não fosse vasculhado!

As partes não psicóticas da paciente que tentavam aproximações com a analista pareciam frágeis e cautelosas, em contínuas propiciações ante as ameaças vindas do mundo sinistro.

Usando uma metáfora, a parte não psicótica seria uma frágil jangada, vagando ao léu, em mar tempestuoso, permitindo ser varrida pelos vagalhões, pagando o preço de não submergir por meio de concessões ao mar psicótico, ao qual não teria possibilidades de enfrentar doutra maneira.

À medida que a análise prosseguia, a paciente evoluía quase imperceptivelmente em seu crescimento, conseguia comunicar-se em nível de pensamentos e afetos, havia uma expressão de vida em sua fisionomia antes vazia, mostrava-se, muitas vezes, verdadeiramente interessada em nosso trabalho.

Comunicava-me os seus progressos no mundo exterior. Podia já ler e escrever, entrar em contato com as pessoas do seu meio social, o que antes era impossível. Saíra do seu isolamento. Certo dia disse:

Antes eu era um pedaço de gelo - morta. Agora sinto-me viva. Sei até que sou violenta. Os de casa notam a diferença e reclamam porque sou agressiva. Acho que o perigo agora é ter os sentimentos soltos. A análise, que me ajudou a senti-los, precisa agora ajudar-me a contê-los melhor.

A estes períodos sucediam-se outros de imobilidade e confusão. Faltava ou vinha tarde às sessões. A inveja terrível, estimulada pelo seu crescimento, tentava a todo custo impedir o evoluir do conhecimento, imobilizando o nosso trabalho, pelas ausências ou pelos ataques à mente da paciente, que passava a perturbar-se.

Durante os estados confusionais, já agora rápidos, ocorridos durante as sessões, a paciente tornava-se apavorada, atribuindo a uma figura alucinada de mãe todos os seus desastres:

A minha mãe, aquela que a senhora conhece, não disse quem eu era. Deu-me tantas mães que não sei qual é a minha. Fez a trança. Agora não sei quem é a mãe, quem é a filha. É tarde demais para desfazer a trança. A senhora não vai poder.

Desafiava-me, através da parte psicótica, a poder desfazer seus esquemas e teorias.

Em períodos de maior integração, referia-se a um ponto nodal: quando tinha menos de um mês, a mãe teve uma grave moléstia contagiosa que a obrigou a afastar-se da paciente durante os dois primeiros anos de vida. Foi cuidada por várias pessoas. Considerava isto de uma única perspectiva: "Uma crueldade e traição sem nome".Odiava a mãe e culpava-a do suicídio do pai, ocorrido quando a paciente era adolescente. Todavia, as suas alucinações, na análise, iam diminuindo, ao passo que ia aumentando a capacidade de suportar a percepção da sua verdade: "Sei que estive muito doente e ainda estou doente".

A consciência da sua loucura, porém, assustava-a tanto que imediatamente negava, fragmentava e projetava o seu conhecimento: "Eu não estou doente. Eles é que querem me fazer doente. Eles estão doentes e querem apossar-se do que é meu".

Sucedeu-se um longo período de integração, praticamente sem retrocessos, que durou aproximadamente dois anos e meio.

O comportamento da paciente pareceu de tal modo harmonioso e produtivo que chegou a convencer a família e os amigos a insistirem para que terminasse a análise.

Os familiares viajavam com ela, prolongavam os períodos de férias, declarando-a sem necessidade de análise.

Na vida real, passou a dirigir seu carro, frequentar reuniões sociais, interessar-se pela vida. Lia muito, estudava, discutia. Passou a conselheira da família.

A mim, porém, a paciente não convencia. Não havíamos chegado ao porão.

Desconfiei, inclusive, se todo aquele progresso não seria mais uma manobra da parte psicótica, que passava a ultrapassar o campo analítico, movimentando os familiares para que me forçassem a dar-lhe alta. Assim, jamais chegaríamos ao porão.

Parecia-me mais um estado de calmaria, prenuncio de borrasca. Observei que a paciente, que especificamente não suportava alguma falta minha, férias, um minuto que fosse de atraso, pois transformava o fato atual numa catástrofe, reagindo violentamente, como uma criança que perdesse o seu ponto referencial e se sentisse tombando num caos, passara a tolerar melhor tais situações.

E foi a esta altura que a parte psicótica fez a sua grande jogada, perturbando o meu entendimento. Houve na ocasião a visita de Bion a São Paulo. Tive que modificar alguns horários, inclusive o da paciente, para tomar parte nos trabalhos. E, justamente, levei o caso desta paciente à supervisão.

Seguiram-se duas sessões estranhas, com reações bruscas e violentas, que tentarei comunicar como me for possível, já que destas vivências agora tenho penumbras, e que passarei posteriormente a comentar.

 

Sessão seguinte à mudança de horário

Quando a paciente entrou no consultório, notei-lhe uma expressão perturbada. Não fechou a porta como habitualmente. Antes de sentar no divã, falou:

- Está frio aqui. Lá fora está mais quente.

Sentou-se e colocou um pacote sobre o divã.

- É um remédio para a criança.

Moveu os lábios como em solilóquio. Subitamente exclamou:

- Ah! O seu cheque... Meu marido enviou-o para a senhora. Eu adverti-o que escrevesse corretamente o seu nome. [Soletrou meu nome e sobrenome.] Lembra-se? Ele escreveu errado duas vezes, e eu necessitei voltar com o cheque para corrigi-lo. Mas agora eu disse: "Dona J. disse-me que ela necessitava seu nome escrito corretamente, porque ela tem o direito de preservar os direitos dela."

Chamei sua atenção para o fato de que estaria muito interessada em que eu preservasse os meus direitos, que tivesse o meu próprio nome, pois se sentia confundida comigo naquele momento, manifestando o seu direito de ser ela própria, de ter o seu próprio nome e repeti-lhe o nome.

Concordou. Escreveu algo em seu braço. Surgiu-me a ideia de que estivesse se marcando, pois repetia seu nome, acrescentando "e nada mais".

Perguntei-lhe o que pensava que poderia ser excedente ou a mais.

- Não me chame de dona ou senhora.

Novamente inquiri o que para ela significava dona ou senhora.

- Dona é uma mãe com duzentos filhos ou mais. Senhora é algo pertencente a meu marido. As crianças não são minhas. Eu tenho cinco filhos, mas aquele homem, que a senhora conhece, tem muitos filhos. Ele deu os filhos para a mãe para esconder os seus bifes. A mãe é compreensiva e pode manejar melhor as crianças para fazer ajustamentos.

Fiquei muito surpresa, porque há longo tempo, precisamente dois anos e meio, a paciente não se manifestava de forma tão fragmentada e confusa.

Ressaltaram-se na minha mente certas expressões da paciente usadas nesta sessão: "escreveu errado duas vezes [o meu nome]"; "o direito de preservar os direitos dela"; "aquele homem, que a senhora conhece,[...] esconde[u] os seus bifes". Bifes era expressão usada comumente pela paciente com o sentido de traição.

De súbito, ocorreu-me que eu lhe havia pedido para trocar o horário duas vezes - que levara seu caso à supervisão e que ela não havia comparecido no dia anterior. Eu havia, pois, errado duas vezes, não preservando sua hora, e a paciente havia transformado este fato numa traição terrível. Pelo que eu conhecia da paciente, tocara no seu ponto basal: o horror às mudanças transformadas na sua mente através do modelo primário da perda do lugar junto à mãe, sentida como perda dos seus direitos de existir, de ser no tempo e no espaço. Crueldade imensa, traição inaguentável.

Mostrei-lhe a confusão que estava fazendo entre mim e uma imagem de mãe, sentida como terrivelmente má e traidora, que produzia dentro de si. Chamei sua atenção para a diferença entre a situação passada, que se fora, e a presente, na qual eu existia como sua analista que mudara o dia e hora de sua sessão.

Por ter feito esta confusão, não teria vindo na véspera e estaria desesperada comigo agora.

A paciente dardejou-me um olhar de imenso ódio e respondeu:

- Eu não gosto que mudem o meu lugar. Eu venho conversar com a senhora, mas somente no meu tempo certo.

Fez uma pausa e seu olhar tornou-se menos odiento, mas labioso.

- Sabe, hoje eu vim cedo. Na sala de espera, havia uma mulher que desejava falar com a senhora, e eu respondi que estava ocupada. Veja como a ajudo e meus pensamentos funcionam perfeitamente bem. Não acha assim?

Disse-lhe que estaria suspeitando que eu não concordava com ela e que sabia que ela não suportava que alguém ocupasse seu lugar junto a mim. Ficava terrivelmente odienta e seu desejo era mandar o outro embora e não pensar nisto.

- Dizem que quando uma pessoa é ciumenta é porque está doente. Mas isto não é verdade. Toda gente é ciumenta.

Após esta sessão, a paciente compareceu mais uma vez à analise. É desta última sessão que passo a comunicar o que me restou. Posteriormente, falarei das atuações da paciente que se seguiram, tentando pensar sobre elas.

 

Última sessão

A paciente chegou transtornada e muito atrasada.

- Eles não gostam que me ligue a ninguém. Eles me despojam de cada coisa que tenho. Mas descobri uma solução. Darei todas as minhas coisas. Eles pensam que eu estou doente, incapaz de tomar conta de minhas coisas. Então nada mais é importante. Ficarei só e livre para fazer o que quero.

Disse-lhe que se sentia aterrorizada por se sentir ligada a mim e sofrer por isto, pois achava que eu a abandonara e traíra, despojando-a das suas horas. E ainda a levava a pensar nas deformações que fazia da realidade e defrontar com a sua doença. Assim, preferia desfazer-se de tudo, sentimentos, pensamentos, e desligar-se de mim. Achava que desta forma ficaria livre do sofrimento.

- Estou acostumada a ser espoliada. Primeiro foi minha mãe, depois meu marido, que prefere as jovens e me deixa só. A senhora se lembra de um retrato que lhe mostrei? O pai dançando com as filhas e eu sempre só, deixada de lado. Mas não estou enciumada, mas resignada. Já lhe disse que velhas coisas, muito velhas, jamais serão possíveis de ser consertadas.

Disse-lhe que talvez o seu interesse fosse justamente que eu não a ajudasse a consertá-las, pois estava com medo de não suportar o conserto.

 

Reflexões

Ao pensar, posteriormente, na primeira sessão, pareceu-me perceber, de início, a existência dos "dois mundos", o que desejava a própria identidade, o seu nome, o direito de existir, de saber, e o que, diante da frustração ocasionada pela troca de suas horas - fato que, pelas transformações que fez, possivelmente despertou angústias terríveis, atingindo o seu porão -, apelava para o não saber, através de confusão, fragmentação e identificações projetivas como defesa. A paciente, já ao deixar a porta aberta, parecia mostrar a profunda cisão de sua personalidade. Enquanto uma parte trazia para a análise a esperança de que houvesse solução, através de outras perspectivas, para o desastre basal contido nos modelos de vivências primárias expressos na fala sobre o remédio para a criança doente, a outra sentiria frio e desespero no contato com a analista: "Está frio aqui." À medida que uma parte desejava ter o direito de ser ela mesma "e nada mais", a outra fragmentava, projetava e introjetava, com incrível rapidez, partes do ego e de objetos - apresentando um mundo interno caótico, bizarro, que projetava na analista -, confundidas numa massa informe, indecifrável. A massa informe seria o objeto excessivo, "o nome e nada mais". Apontado pela analista o ponto nodal, a troca das sessões, a paciente volta à realidade da frustração atual e denuncia a invariável que permanecia da situação primitiva: "Eu não gosto que mudem o meu lugar." A frustração atual mobilizara áreas psicóticas da mente em que predominavam modelos primários - a paciente, abandonada pela mãe doente, sentindo-se envolta num terror sem nome, despojada do seu ponto referencial, que lhe permitiria sentir-se existente, ter um lugar no espaço e no tempo: "velhas coisas, muito velhas, jamais serão possíveis de ser consertadas." Pensei que minhas interpretações, durante esta sessão, teriam irritado profundamente o sistema do seu mundo psicótico: (a) quando precisei a distinção entre a identidade da paciente e a minha; (b) quando fiz perguntas à paciente sobre o sentido de certos termos usados por ela, tentando levá-la a pensar; (c) quando procurei aproximá-la da realidade presente, confrontando a frustração atual da troca de horários com o pânico ocasionado por situações terríveis de sua realidade interna. Seu mundo psicótico não tolerava definições, pensamento, realidade, conhecimentos que desmoronassem as suas teorias.

 

Outros pensares

Poderia valer-me da teoria edipiana para a interpretação deste material. Mas não da teoria edipiana no sentido usual em psicanálise. Teria que ir além, ao mais profundo do segredo do Édipo; aquilo que se achava no porão desconhecido e que Tirésias não revelou. Necessitava ir ao fundo do segredo dos pés perfurados e amarrados do pequeno Édipo, ferido irremediavelmente, na sua base de sustentação existencial, como um ser que não teria o direito de existir, abandonado ao nascer pelos próprios pais.

A minha paciente diz tratar-se de algo muito velho, irreparável. Ferida profunda, mutilação básica, causada no seu porão pela ausência de continente-mãe quando recém-nascida. Tal qual o pequeno Édipo abandonado pela mãe, desprovida de um ponto referencial para saber quem era, para sentir que era alguém. Pequeno Édipo, perdido no caos, abismo sem fim, vagando num terror sem nome, sofrendo a angústia do irremediável.

Esta ferida basal constituiria a mais terrível castração do pequeno Édipo, condenado, já ao nascer, a uma mutilação no seu direito existencial, da qual jamais se recuperaria.

Duas soluções apresenta a nossa paciente: (a) uma união com a analista, de tal forma que se confundiriam num ser único e jamais poderia haver a grande catástrofe: "Como vamos?" Esta solução, entretanto, traria o fim de seu direito de existir com um nome, uma identidade própria. Sua repelência a esta solução foi o que revelou através da sua identificação projetiva com a analista: "Dona J. disse-me que ela necessitava seu nome escrito corretamente, porque ela tem o direito de preservar os direitos dela"; (b) a outra solução seria o isolamento: despojar-se de tudo e ficar livre - livre do sofrimento, das frustrações da realidade que transformava na grande catástrofe. Unir-se a alguém resultaria, pois, na perda dos seus direitos de existir, degenerando na massa informe; separar-se seria sentido como o não existir por perda do ponto referencial, seria a queda no caos. Lanço a hipótese de que áreas desconhecidas da mente, dirigidas por uma inteligência e uma intuição cujas dimensões transcendem a nossa captação, teriam intuído o limiar de suporte da minha paciente, relativo às suas angústias mais profundas (o porão indevassável), mobilizando todas as defesas psicóticas para que este não fosse jamais conhecido.

Assim, fragmentações, identificações projetivas e introjetivas maciças, violentas, irromperam como um cataclismo durante as últimas sessões e, ultrapassando o campo analítico, invadiram o meio familiar. Os seus fragmentos confusos e enlouquecidos foram depositados nas pessoas das filhas, marido, família, no sentido de atuarem destruindo o nosso trabalho, buscando um novo psiquiatra, que passaram a idealizar dizendo-o descobridor de "uma droga maravilhosa que curava em um mês a esquizofrenia".

Soube disto pelo marido que me telefonou, alguns dias mais tarde, informando que as filhas e a família o pressionaram a levar à força a paciente para um hospital, a fim de submetê-la ao tratamento através da "droga milagrosa", orientados pelo psiquiatra, sentido com milagreiro, abandonando a analista e o analista psiquiatra que, há longos anos, teria dado à paciente uma assistência segura e eficiente. Perguntei-lhe se a paciente tivera alguma crise violenta semelhante às que motivaram internamentos anteriores à análise. Respondeu-me, francamente, que nada ocorrera neste sentido. A paciente estaria apresentando momentos de confusão, como acontecia de quando em quando, porém mais acentuados na última semana.

Afirmava estar estupefato e contrafeito com a reação violenta das filhas, que subitamente se irritaram com a analista, achando que a mãe, com cinco anos de análise, deveria estar "curada, não apresentando falhas". Segundo ele, exigiram o internamento, ameaçando-o de culpa se não entregasse a paciente ao novo psiquiatra.

O internamento se fez contra a vontade consciente da paciente, que, desesperada, segundo o marido, "apelava para a analista, dizendo que não precisava de hospital, que lhe dessem mais tempo e chance de análise, que iria ter alta".

A esta altura, porém, era tarde demais. A jangada, a parte não psicótica, acordara, mas clamava em vão, vagando em mar revolto, açoitada pelos fragmentos da parte psicótica, os vagalhões enlouquecidos projetados nas filhas e familiares, que arrancavam a paciente do vínculo com a analista, condenada a não chegar ao porão, isolada na praia distante. Era a vitória da parte psicótica, que, reduzindo a analista à impotência, preferia enfrentar o internamento no sanatório, que a paciente odiava, a conhecer o terrível porão, ou melhor, chegar à consciência da própria loucura, isto é, à percepção do ódio, inveja, voracidade, arrogância sem limites e, possivelmente, à impossibilidade de viver uma culpa insuportável relativa a uma vida desperdiçada, empregada no ataque a todo vínculo capaz de levá-la ao crescimento e à vida. Foi o xeque-mate do jogo de xadrez da parte psicótica.

Deste caso surgiram profundas dúvidas que trago a pensar. Seria realmente a angústia despertada por um conhecimento mais profundo, impossível de ser suportado pela paciente? O terror da própria violência, o pânico dos objetos sinistros deste mundo desconhecido, a dor de uma vida desperdiçada representariam um perigo fatal para a existência da paciente?

A minha hipótese é que a opção gradativa da paciente por valores mais realistas teria alcançado um grau que, subitamente, teria sido sentido, pela área da mente que dirige o mundo psicótico, como o limiar possível de conhecimento. E a reação teriam sido os arremessos violentos, o despojamento daquilo que a paciente havia adquirido, ou seja, o pensar, o sentir, o nosso vínculo, por constituírem, talvez, o desmoronamento de todo o sistema psicótico, o qual estaria, para o pensar racional, na mesma relação que a antimatéria está para a matéria, ou que o movimento de um astro de outro sistema cósmico, girando em sentido inverso, para o movimento dos astros do nosso sistema solar. A paciente, durante o nosso trabalho, chegara a uma encruzilhada: teria que se definir entre os dois mundos e era justamente isto que não poderia fazer.

Dizia-me várias vezes: "Estou agora vivendo bem. Sei que estive muito doente. Mas não quero saber mais do que já sei sobre minha doença. Assusta-me ir mais adiante. Por que não me dá alta?" E justificava-se: "Às vezes, faço confusões, mas quem não as faz?"

A paciente apelava para que não prosseguíssemos. Mas a verdade é que, lentamente, estávamos nos aproximando de áreas mais profundas de sua mente. Fantasias sádicas de uma violência e bizarria incríveis passaram a surgir na análise, aterrorizando a paciente. Neste ponto da análise é que, hoje, me parece ter a paciente atingido seu limiar de suporte.

A inteligência que transcendia à inteligência ligada ao mundo da razão teria fixado a fronteira. A parte psicótica, dirigida por esta inteligência, organizou a sua melhor jogada: (a) levando-me a confiar demais na capacidade da paciente de tolerar frustrações, iludindo-me com todos os seus progressos; (b) movimentando seus familiares, que, perturbados por identificações projetivas de fragmentos de suas partes violentamente destrutivas, passaram a atuar, retirando a paciente da análise.

Pergunto-me: por que, em certos casos, esta violência brusca e terrível irrompe, destruindo a possibilidade de continuação do trabalho analítico?

Diz Rosenfeld que, embora a transferência e a contratransferência sejam bem trabalhadas, ninguém pode prever, em certos pacientes, a irrupção súbita de violências psicóticas através de atuações incontroláveis.

Refere-se Bion a uma fase na análise de psicóticos na qual o paciente tem que defrontar-se com a própria loucura e, nesta altura, ou o paciente foge e interrompe a análise, ou a análise prossegue.

A nossa experiência tem nos ensinado que há vários níveis de suporte de angústias relativas ao conhecimento de um paciente, relacionadas às áreas perturbadas da sua mente.

No caso da nossa paciente, estaria expresso, metaforicamente, na possibilidade de conhecer a sala de visitas, de jantar, os quartos. O nível inaguentável estaria ligado ao conhecimento do porão, que, talvez, representasse para ela o impossível de ser suportado sem perigos existenciais, o inimaginável, o não configurado, o que teria que permanecer no desconhecido, o acesso ao pânico produzido pela ofensa basal do pequeno Édipo. Atendendo que todo ser humano tem um limiar de suporte no que diz respeito à angústia, à tolerância, à frustração, relacionado com a intensidade da violência inata, passo a pensar nos limites de uma análise, de acordo com o limiar de suporte de cada paciente. Há quem sobreviva aos horrores de um campo de concentração; há quem possa enfrentar as mutilações sinistras de Hiroshima; mas há também os que perdem a razão e morrem.

E o mundo interno, desconhecido e profundo, não será mais sinistro e inaguentável que todos os horrores do mundo real?

A nossa paciente não teria razão ao tentar estabelecer a nossa fronteira de investigação? Até onde poderemos chegar, em uma análise, com cada paciente?

O analista essencialmente investigador, pesquisador, objetivo, poderia argumentar: "Mas interromper uma pesquisa seria um impedimento ao avanço do conhecimento das áreas mais profundas da mente. Seria uma atuação do analista, uma envolvência pelos medos psicóticos do paciente projetados no analista. Seria uma falha da técnica, uma falha do analista. Seria a atuação de um superego moral que impediria o desenvolvimento científico. Seria uma fuga, e fuga não conduz ao crescimento, ao enriquecimento pelo saber, da vida." Pergunto se este analista não estaria raciocinando de uma forma generalizada para todos os pacientes, não levando em conta certos casos peculiares. Indago se não estaria pensando dentro da lógica do seu mundo racional ou se não estaria demasiado onipotente, não considerando a própria relatividade e a do seu analisando, se não estaria "splitado" da sua parte humana.

A relação analítica é uma relação entre dois seres humanos, não dependendo apenas do mais arguto pesquisador atingir os porões do outro ser humano com quem vive uma experiência de vida. O outro pode intuir um perigo para o seu limiar suportável e negar-se a ir mais longe. A experiência com psicóticos nos tem revelado que o

mundo psicótico não é um caos desordenado, mas é dirigido por uma estranha sabedoria que visa, antes de tudo, proteger a vida a seu modo, como um singular barômetro que capta as temperaturas suportáveis para a existência de cada ser vivo, que diz basta quando a situação se torna inaguentável.

Este modo é incompreensível para nosso mundo racional, que o sente como destruidor da própria vida. Mas o fato é que, em inimagináveis emergências, focalizadas de outros vértices, pode ser a única solução para a sobrevivência. Na citação de Bion usada como epígrafe neste trabalho, há referências a áreas da personalidade cujo conhecimento se aproxima a realizações pertencentes a um estado ainda não abrangido pelas teorias conhecidas e à necessidade de novas formulações teóricas, que contenham tanto as realizações como o estado mental e emocional que as representam. Há, pois, uma imensidão a pesquisar nestes níveis profundos. Em cada caso, com cada analisando, pode-se pesquisar um pouco mais ou um pouco menos nestas profundidades. Há uma gradação até nas tempestades. A nossa paciente enfrentou tempestades a seu modo, mas hesitou ante o porão, a tempestade capaz, talvez, para ela, de provocar o cataclismo da sua extinção total.

O porão seria o zero que, através do seu processo de transformações, poderia apenas ser referido muito fugazmente; porém, o devenir zero, que iluminasse o porão, não lhe teria sido possível suportar. A realidade última não pode, por definição, ser conhecida nem sentida.

E pode ter deixado uma mutilação irreparável que, neste caso, não foi possível ser conhecida nem sentida durante a análise.

Finalizo com as palavras de minha paciente: "Já lhe disse que velhas coisas, muito velhas, jamais serão possíveis de ser consertadas".

Ao que acrescentarei: a paciente talvez necessitasse, para manter-se viva, que o que chamava de velhas coisas não fosse revelado, e nem consertados os seus sistemas e teorias para lidar com elas.

 

Notas

1 Trabalho original publicado em 1976: Revista Brasileira de Psicanálise, 10(2),297-312.

2 O meu reconhecimento ao doutor Orestes Forlenza Neto, que, como retaguarda psiquiátrica, me acompanhou nestes árduos e estranhos caminhos.

 

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