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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.43-44 Canoas Aug. 2014

 

ARTIGOS TEÓRICOS

 

Pesquisa em psicoterapia e psicanálise

 

Research in psychotherapy and psychoanalysis

 

 

Paula von Mengden CampezattoI,II; Maria Lucia Tiellet NunesI; Milena da Rosa SilvaII,III

I Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
II Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
III Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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RESUMO

No decorrer do último século, as ciências empíricas e a psicanálise não desenvolveram proximidade, mantendo-se como campos à parte do conhecimento científico hegemônico. Atualmente, a comunidade psicanalítica se depara com pressão significativa para aumentar as pesquisas empíricas. A literatura internacional revela várias linhas de investigação do tema, ligadas aos resultados e processo do tratamento. São discorridas as dificuldades e vantagens de pesquisar. Enfatiza-se a necessidade de que o pesquisador em/sobre psicoterapia e psicanálise tenha real conhecimento da clínica e de seu método de trabalho, na intenção de tornar-se um instrumento “calibrado” para apreender os processos mentais conscientes e inconscientes. Enfatiza-se a pesquisa empírica sobre psicoterapia e psicanálise como uma das vertentes de aplicação prática dos construtos teóricos desenvolvidos em sua metapsicologia. Dessa forma, poderá principalmente compreender o que funciona, para o que funciona e como funciona este tipo de intervenção.

Palavras-chave: Pesquisa, Psicoterapia, Psicanálise.


ABSTRACT

During the last century, empirical sciences and psychoanalysis did not develop approach, keeping the field far away of the hegemonic scientific knowledge. Currently, the psychoanalytic community is facing significant pressure to increase empirical research. The international literature reveals several lines of research theme, linked to results and process of treatment. Were listed the difficulties and advantages of realizing research. It’s emphasized the need for the researcher to have actual knowledge of the clinic and it’s method of work, becoming na instrument “calibrated” to seize the conscious and unconscious mental processes. It is argued that empirical research on psychotherapy and psychoanalysis is one of the aspects of practical application of theoretical constructs developed in it’s metapsychology. Thus, it may mainly contribute expanding the knowledge that what works, for what works and how this type of treatment works.

Keywords: Research, Psychotherapy, Psychoanalysis.


 

 

Introdução

A psicanálise foi definida por Sigmund Freud abrangendo três áreas, que incluem um método de tratamento dos transtornos psíquicos; uma teorização organizando os conhecimentos sobre o funcionamento psíquico advindos dessa experiência prática, e um procedimento de investigação dos processos psíquicos inconscientes, que de outra forma são pouco acessíveis (Freud, 1922/1996). Assim sendo, Freud já referia a indissolubilidade entre a investigação (pesquisa) e a clínica, ambas inseridas no próprio conceito da psicanálise, demonstrando que a observação é uma das melhores formas de sanar as curiosidades sobre os fenômenos (Freud, 1922/1996). Porém, nesse contexto, a pesquisa estava circunscrita à investigação analítica clínica, realizada pelo analista em minuciosos estudos de caso.

Os trabalhos de Freud, estudos de caso único, detalhados e minuciosamente descritos, buscavam o desenvolvimento e a avaliação da teoria e da técnica psicanalítica. Entretanto, o método psicanalítico utilizado por Freud não é reconhecido por muitos pesquisadores que defendem o método científico tradicional, por considerarem a sua metodologia incapaz de ser replicada. Da mesma forma, pesquisas empíricas sobre psicoterapia também não se mostram interessantes aos clínicos psicanalíticos, que as rejeitam em prol do método clínico psicanalítico, considerado teórica e tecnicamente consagrado. Barros (2006) lembra que o próprio Freud, apesar de ter despendido um tempo monumental na construção da psicanálise, nunca se interessou por nenhuma outra técnica de psicoterapia que não fosse a própria psicanálise. A ideia de que a psicanálise era a única psicoterapia verdadeira e científica permeou todos os anos de vida de Freud e marcou significativamente essa área (Wallerstein, 2005).

No decorrer do último século, as ciências empíricas e a Psicanálise não desenvolveram proximidade, mantendo-se como campos à parte do conhecimento científico hegemônico. Existe uma questão, debatida desde a época de Freud, acerca da cientificidade da Psicanálise, e, se ciência, que tipo de ciência, e o lugar da pesquisa organizada em relação a ela. Para ele, a priori, a psicanálise era uma ciência biológica (ciência da mente dentro de um corpo biológico), a qual deveria se ancorar firmemente na sua matriz fisiológica e química. Freud nunca relacionou a natureza da psicanálise como ciência à necessidade de pesquisas utilizando o método científico hegemônico, através das quais essa ciência cresceria (Wallerstein, 2009). Recentemente, todavia, o debate acerca da cientificidade da psicanálise perdeu força na medida em que se passou a questionar a concepção de um modelo único de ciência e de metodologia científica. A tendência atual é reconhecer que cada disciplina utilize métodos de pesquisa adequados e coerentes à sua área e seu objeto de estudo (Santos & Zaslavsky, 2007).

Sendo assim, as temáticas pesquisa, psicoterapia e psicanálise necessitam ser exploradas na busca de uma aproximação. Partindo deste pressuposto, o presente artigo apresenta uma revisão assistemática das principais ideias de autores clássicos e contemporâneos que exploram o assunto, buscando apresentar suas tendências atuais.

Pesquisa, psicoterapia e psicanálise: intersecções

Atualmente, existe forte tendência que privilegia o que pode ser comprovado empiricamente. Ainda que se reconheça a importante relação entre prática clínica e pesquisa, existe grande distância entre essas duas áreas, havendo necessidade de colaboração entre esses campos, por sua complementaridade na formação do conhecimento em psicoterapia. Nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, muitos dos recursos disponíveis para a saúde mental somente são destinados a modalidades de tratamento comprovadamente efetivas no tratamento psicológico dos pacientes (Fonagy, 2003).

Com a crescente demanda de comprovação da psicoterapia como tratamento efetivo para desordens mentais, percebe-se, nas últimas décadas, um crescimento da produção teórica mundial geral a respeito dos resultados das psicoterapias, demonstrando uma aproximação ascendente entre a pesquisa e a clínica. A maior parte das publicações são artigos empíricos produzidos nos Estados Unidos e Europa, caracterizados por rigor metodológico. A maior concentração dos artigos está centrada na abordagem teórica da Terapia Cognitivo-Comportamental (Campezatto, Vieira & Nunes, 2013). Deakin e Nunes (2008) atribuem essa questão às peculiaridades das abordagens teóricas de cada tipo de tratamento psicoterapêutico e ao fato de as pesquisas se adequarem às demandas dos planos de saúde de forma a receber o reembolso dos custos dos tratamentos, e não da necessidade de aprimoramento técnico-clínico. Os estudos sustentam que há tratamentos eficazes para uma série de psicopatologias em um espaço de tempo curto e, portanto, com custo mais acessível do que os extensos tratamentos baseados na teoria psicanalítica.

A comunidade psicanalítica se depara com pressão significativa para aumentar as pesquisas empíricas em todos os aspectos da teoria psicanalítica. São consideradas tanto a necessidade de avançar nos conhecimentos científicos, como a responsabilidade social por demonstrar a efetividade dos tratamentos psicoterapêuticos e psicanalíticos. Também se faz necessário incrementar trocas profissionais com outras ciências e com o universo acadêmico e clínico (Kernberg, 2006). Turato, Magdaleno Junior e Campos (2010) consideram a necessidade de comprovar quantitativamente os resultados da psicanálise uma tarefa impossível, pois a psicanálise não é própria do campo das quantidades e sim das qualidades (subjetividade). Por isso, os autores salientam a necessidade de se construir modelos próprios de investigação desta disciplina, uma vez que se sabe que a psicanálise funciona, mas o desafio seria buscar evidências disso.

Pesquisa em psicanálise e psicoterapia

Apesar da necessidade apontada no tocante à realização de pesquisas empíricas sobre psicoterapia psicanalítica e psicanálise, muitos autores discutem as possibilidades de realização deste tipo de investigação. São duas as posições opostas centrais na literatura internacional sobre o tema, representadas por Wallerstein (2005), defensor da pesquisa empírica, e por André Green, contrário à mesma (Green, 2005).

Green (2005) salienta que a psicanálise deve se manter como disciplina única e sui generis, prática que tem por base o pensamento clínico que emerge no consultório, do qual deriva suas hipóteses teóricas e suas conceitualizações para enriquecer sua base de conhecimento. Para este autor, a pesquisa somente é válida quando realizada no interior da sessão psicanalítica, vendo como incompatíveis a psicanálise e as exigências do método científico. A identificação de muitos psicanalistas com a posição de Green é refletida pelo escasso número de pesquisas empíricas de tratamentos psicanalíticos, principalmente se comparadas ao número de publicações existentes em outros referenciais teóricos (Campezatto, Vieira & Nunes, 2013).

Barros (2006) salienta que alguns autores consideram que o próprio espírito da psicanálise, sua natureza em si, estaria sendo violentado pelas demandas feitas a ela pela pesquisa empírica. Nesse caso, o grande desafio seria desenvolver métodos desenhados especificamente para não violentar nem a natureza nem o “espírito” daquele objeto que está sendo estudado.

Já Wallerstein (1998; 2005; 2009) defende tanto a utilização de métodos qualitativos como quantitativos na pesquisa em psicanálise, dependendo de qual seria o mais apropriado para responder a cada pergunta. Considera a psicanálise como uma ciência compromissada tanto com a elaboração de leis gerais a respeito da mente como com as diferenças e especificidades de cada indivíduo sob estudo. Considera possível e desejável realizar pesquisa empírica em psicanálise, que deve responder a questões sobre resultado e processo psicoterapêutico. Essa posição, segundo Eizirik (2006), vai ao encontro do crescente número de estudos desse tipo publicados na literatura internacional, sendo que, atualmente, é privilegiado o estudo do processo psicoterapêutico.

A discussão gerada pela impossibilidade de união entre prática clínica psicanalítica e pesquisa é evidenciada por Herrmann (2004). O autor anuncia a existência de três formas de pesquisa em psicanálise, a investigação clínica, o comentário teórico e a pesquisa empírica. Os defensores da investigação clínica deliberam sobre a autenticidade do fenômeno vivo e a naturalidade de sua pesquisa, sendo esse o próprio ofício do psicanalista. O comentário teórico é defendido por sua sutileza e retomada da obra freudiana, uma vez que diz respeito a textos sobre a aplicação do método psicanalítico na clínica. Os que defendem a pesquisa empírica argumentam a falta de rigor metodológico na clínica, a subjetividade e a singularidade do processo psicoterapêutico, evidenciando a necessidade de metodologias de pesquisa aceitáveis no mundo científico para que, então, as demais áreas científicas, reconheçam a psicanálise como ciência. Contudo, Herrmann (2004) salienta que a solução não consiste em escolher uma das três formas. Considera ser possível habitar a clínica e, nesse ambiente naturalístico, procurar o rigor metodológico possível – que em geral supera muito o da pesquisa quantitativa enxertada na clínica, mas sem perder de vista a crítica e a criação de teorias.

Perron (2006) salienta a necessidade de libertação do fascínio exercido pelos modelos baseados na ciência experimental e, mais precisamente, nas ciências exatas. Para tanto, é necessário o desenvolvimento de modelos epistemológicos e técnicos que sirvam ao nosso campo, que se baseia no funcionamento mental humano. Neste sentido, Irribary (2003) destacou que o trabalho de análise prioriza o estilo e a marca singular daquele que se coloca como analista. Por isso, a pesquisa psicanalítica é sempre uma apropriação do autor, e o pesquisador psicanalítico é o primeiro sujeito de sua pesquisa. Por trabalhar com a impossibilidade de previsão do inconsciente, a pesquisa em psicanálise não poderia jamais exigir uma sistematização completa e exclusiva.

Perron (2006) diferencia a pesquisa em psicanálise da pesquisa sobre psicanálise. A pesquisa em psicanálise busca conhecer melhor o que acontece durante o tratamento, ou seja, entender melhor o processo psicanalítico em si. Poderia ser realizada unicamente por psicanalistas praticantes e bem treinados. Já a pesquisa sobre psicanálise seria uma abordagem a respeito da psicanálise a partir de fora, ou das suas bordas – trabalho sobre indicação de tratamento, técnicas terapêuticas, funcionamento de instituições – e também análises críticas dos seus conceitos ou hipóteses, estudos da história da psicanálise. Poderia ser realizada por alguém que não seja psicanalista, desde que esteja em associação próxima com a psicanálise (Perron, 2006).

Ainda que persista, em parte, a discussão sobre a possibilidade de pesquisa empírica na psicanálise e na psicoterapia psicanalítica, muitos estudos vêm ocorrendo, demonstrando algumas das possibilidades reais de avanço na pesquisa em psicoterapia. A literatura internacional revela várias linhas de investigação do tema, o que denota contribuições significativas para a área.

Consideram-se quatro gerações da pesquisa empírica na Psicanálise de acordo com o alcance e abrangência a que se atinge (Bucci, 2007). A primeira se caracterizou por pesquisadores individuais envolvidos no desenvolvimento de medidas objetivas de determinados aspectos do processo de tratamento, além de busca de estabelecimento de sua validade e confiabilidade; na segunda fase, houve a aplicação das medidas desenvolvidas na primeira geração em material clínico oriundo de estudos cooperativos, bem como a expansão do desenvolvimento de instrumentos; a terceira geração de pesquisa começou a alargar o escopo de observação, buscando a conexão entre clínica e pesquisa. Wallerstein (2002) assinala que os avanços metodológicos e os recursos de áudio, vídeo e informática permitem que atualmente estejamos na quarta geração de pesquisa, alcançando os estudos de processo psicoterapêutico. Destaca a existência de grupos engajados no “estudo microscópico da interação momento-a-momento do processo de interação psicanalítica, em cada sessão ou em pequenos segmentos de sessão” (p.46). Os estudos de processo examinam os padrões de comunicação entre paciente e terapeuta de forma intensiva, sistemática e sequencial (Charman, 2003).

O desenvolvimento de tecnologias, como gravação em áudio e filmagem das sessões, favoreceu a elaboração de pesquisas de processo, pois viabilizou registros objetivos, evitando a crítica em relação aos relatos de casos elaborados a partir da memória dos próprios psicoterapeutas, os quais apresentam limitações (Bucci, 2007; Wallerstein, 2005).

A temática da gravação das sessões de psicoterapia está longe de encontrar consenso na literatura. Autores referem a possibilidade de ampliação dos conhecimentos e entendimento mais aprofundado do que se passa nas sessões com o uso da gravação (Domingues & Serralta, 2005; Kächele, Thomä, Ruberg & Grünzig, 1988; Peuker, Habigzang, Koller & Araujo, 2009; Yoshida, 2008); outros consideram a exposição dos pacientes e a interferência negativa da gravação no processo psicoterapêutico e no desenvolvimento da aliança terapêutica, segundo os estudos de Kachele et al., (1988) e Thomä e Kachele (1990).

Porém, o expresso verbalmente, registrado com o auxílio da tecnologia não apreende, por si só, justamente o que se aproxima do conteúdo de interesse nas investigações psicanalíticas. Por isso, ainda que a utilização de tais tecnologias seja muito questionada no meio psicanalítico, a utilização dessas gravações e transcrições, juntamente com os tradicionais registros de memória por parte do psicoterapeuta, parece ser a melhor forma de aproximar o pesquisador à essência do processo terapêutico. Cada tipo de registro, incluindo os relatos a partir da memória do psicoterapeuta, traz riqueza e privilegia alguns aspectos, de modo que sua escolha deve se dar de acordo com os objetivos da sua utilização (Silva, Steibel, Sanchez, Campezatto, Barcellos, Fernandes & Klarmann et al., 2014). A experiência de escuta de tons, silêncios e suspiros, em uma gravação de áudio, complementa as informações contidas em uma transcrição, que por sua vez contribui para o relato de memória, vivaz e com sentimentos contratransferenciais e contextualizações (Silva, Hallberg, Steibel, Campezatto & Klarmann, 2011).

Além do registro preciso das sessões através de tecnologias, a introdução de instrumentos com o objetivo de medir variáveis do processo analítico, em sessões gravadas e transcritas, trouxe uma enorme contribuição na área da pesquisa psicanalítica (Almeida, 2011).

De acordo com Wallerstein (2002), há duas questões que a pesquisa em psicanálise busca responder, direcionadas aos resultados e processo do tratamento. Os resultados estão vinculados a quais mudanças ocorrem durante um tratamento, em virtude deste, e o processo de como essas ocorrem.

Pesquisas de processo e resultado de psicoterapia

Existem duas diferentes modalidades de aproximação ao estudo empírico das psicoterapias: as que envolvem avaliação de resultado, que são as de eficácia e de efetividade, e as que avaliam o processo psicoterapêutico, que enfocam especialmente como ocorrem as mudanças no contexto da psicoterapia (Peuker, et al., 2009). A eficácia se propõe a medir o quanto uma determinada intervenção produz um resultado benéfico em condições ideais de observação; trata-se do resultado experimental em laboratório, ou seja, mesurando-se a intervenção em uma amostra homogênea, através do controle rígido de variáveis. A efetividade se propõe a medir o quanto uma determinada intervenção produz um resultado benéfico, quando empregado no mundo real (condições habituais de uso), em uma população definida (Deakin & Nunes, 2008).

Hilliard (1993) questiona tanto os estudos de eficácia como os de efetividade, ao dizer que pode estar havendo erro metodológico ao avançar em pesquisas em psicoterapia que comparam grupos antes que se tenha uma real clareza de como ocorrem os processos psicoterapêuticos individualmente. A investigação deveria estar direcionada a saber como um terapeuta, em particular, afetou o comportamento do paciente, através de análises caso-a-caso, na intenção de constituir um escopo teórico e empírico consistente para então fazer comparação entre sujeitos.

Nesse sentido, alguns pesquisadores passaram a defender que somente o estudo do processo psicoterapêutico pode oferecer respostas mais específicas sobre o impacto da psicoterapia nos tratamentos emocionais, buscando assim esclarecer o que as pesquisas de resultado, que envolveram estudos de eficácia e efetividade, não resolveram (Kächele, 2000). O estudo de processo pode se dar através de metodologias quantitativas ou qualitativas, mas a psicanálise dialoga mais facilmente com esta segunda perspectiva.

No estudo qualitativo, o observador é o instrumento de captação do fenômeno (Cassorla, 2003). Esse instrumento tem que estar “calibrado” da melhor forma possível (como ocorre com os das ciências experimentais). No entanto, calibrar-se a observação humana é mais difícil, sendo a teorização do método e o treinamento indispensáveis. Não podemos cair na ingenuidade de que existem métodos “puros” ou objetivos, sem determinantes humanos. Saber o máximo sobre esses determinantes é o que torna o conhecimento em científico e não pseudocientífico. O pesquisador precisa se envolver com o objeto de estudo, se misturar, “ser ele”, já que sua subjetividade tem importância especial, ao contrário das “ciências duras”. Essa subjetividade, porém, necessita ser avaliada objetivamente, de modo que o pesquisador se divide; uma parte se mescla com o objeto de estudo e outra parte observa essa dinâmica (Cassorla, 2003).

O pesquisador, ao trabalhar nesse paradigma qualitativo, pode se aprofundar nas questões subjacentes, ao observar, escutar, relatar e interpretar o caso clínico. Nesse sentido, pode ser importante uma mudança epistemológica no método, que valorize o papel da subjetividade e a existência de múltiplas verdades, especialmente na pesquisa em psicoterapia (Berríos & Lucca, 2006). De qualquer forma, as análises qualitativas têm sido consideradas a melhor maneira de descrever processos de mudança psicológica e a complexidade de uma psicoterapia (Diniz-Neto & Féres-Carneiro, 2005). Assim, encontramos um movimento recente que busca assegurar conhecimentos mais precisos sobre os mecanismos de mudança em psicoterapia através de estudos de caso, com uma metodologia mais rigorosa (Jung, Nunes & Eizirik, 2007), de forma a manter o ambiente natural e subjetivo da psicoterapia, porém com registros mais claros e precisos do tratamento, uso de medidas e procedimentos válidos e confiáveis.

Os estudos de processo têm auxiliado a compreender o chamado “Veredicto Pássaro Dodô”1 (Luborsky, Singer & Luborsky, 1975), que afirma a equivalência das diferentes abordagens de psicoterapia em termos de seus resultados, sendo sustentado por diversas meta-análises (Luborsky, Rosenthal, Diguer, Andrusyna, Berman, Levitt, Seligman & Krause, 2002). O veredicto pássaro Dodô tem sido questionado por pesquisadores que o consideram um mito que reflete uma série de limitações das pesquisas: diferentes tipos de variáveis, de delineamentos e de procedimentos utilizados (Serralta, Nunes & Eizirik, 2007).

Faz-se necessário compreender os fatores inespecíficos ou comuns (presentes em qualquer abordagem de psicoterapia) e os específicos (que caracterizam uma abordagem particular). Para Galatzer-Levy, Bachrach, Skolnikoff & Waldron (2000), a presença de processo analítico é apenas uma entre outras formas, e bastante discutível, de estabelecer se um determinado tratamento é ou não é uma psicanálise; em anos recentes, alguns analistas passaram a considerar a presença de processo analítico como definindo a psicanálise e acrescenta que tal definição é um desafio, pois é difícil demonstrar empiricamente a presença do processo nos tratamentos.

Embora o conceito de processo não seja claro e nem consensual na literatura psicanalítica, a referência de Freud (1913/1996) ao tema em “Sobre o início do tratamento” é uma das mais importantes:

[o analista] põe em movimento um processo, o processo de solução das repressões existentes. Pode supervisionar esse processo, auxiliá-lo, afastar obstáculos em seu caminho, e pode indubitavelmente invalidar grande parte dele. Mas, em geral, uma vez começado, [o processo] segue sua própria rota e não permite que, quer a direção que toma, quer a ordem em que colhe seus pontos, lhe sejam prescritas (p.172).

Estudando especificamente o processo psicoterapêutico, Krause, Parra, Aristegui, Dagmino, Tomicic, Valdés, Vilches, Ben-Dov, Reyes, Altamir e Ramirez (2006) apresentaram em seu artigo de revisão três linhas de investigação com procedimentos metodológicos alternativos. Os autores destacaram que a pessoa do terapeuta tem papel fundamental, independente da linha de pesquisa de processo que esteja sendo realizada. A primeira linha, intitulada “o estudo do processo terapêutico”, centra-se tanto na interação terapêutica como no processo de mudança experimentado durante a relação e estuda os episódios relevantes de mudança psicoterápica. Essa linha de investigação é adequada para abarcar assuntos de maior complexidade, abandonando a premissa da homogeneidade do processo psicoterapêutico. Para tanto, é importante a análise das relações sequenciais dos dados e a identificação de eventos ou episódios relevantes de mudança. Os autores referiram que, metodologicamente, faz-se necessária maior flexibilidade para analisar os dados dessa linha, o que se traduz em interesse crescente pelos métodos de investigação qualitativos, uma vez que a percepção humana é o melhor “instrumento de coleta” de padrões e episódios do processo psicoterapêutico, além de combinar métodos qualitativos com quantitativos.

Já a segunda linha de investigação, denominada “o estudo dos fatores de mudança inespecíficos” – ou fatores comuns a diferentes tipos de psicoterapias – busca descobrir que fatores da psicoterapia transversais a diferentes tipos de psicoterapias seriam responsáveis pelos processos de mudança. Em termos gerais, os fatores inespecíficos ou comuns incluem condições gerais da terapia, tais como: aliança terapêutica, a estrutura da situação terapêutica, a função do terapeuta, a forma de interação entre os envolvidos nas sessões, a forma como se organiza e se transmite os conteúdos terapêuticos e a capacidade do paciente em se ajudar (Krause et al., 2006). Esses se diferenciam dos elementos específicos das psicoterapias, ou seja, aqueles considerados técnicos e que distinguem diferentes tipos de psicoterapia. Estudos têm demonstrado que os elementos inespecíficos são preditores de resultados psicoterapêuticos em diferentes tipos de psicoterapias, contudo não há produção científica satisfatória para elucidar de que forma estes fatores colaboram na mudança em psicoterapia (Serralta, Nunes & Eizirik, 2007).

A terceira linha é denominada “relação de tipo de tratamento com tipo de problema”, busca elaborar listas de tratamento, com apoio empírico, para temas específicos, como depressão, fobias, bulimia, entre outros (Krause et al., 2006).

Em relação especificamente à pesquisa de processo psicoterapêutico no Brasil, Serralta, Nunes e Eizirik (2007) afirmaram que este é um campo que se encontra em desenvolvimento inicial, pois ainda não há estudos sistemáticos do processo psicoterapêutico e poucas são as medidas disponíveis para os pesquisadores interessados nesse tema. Contudo, os autores observaram recente interesse por essa temática, expresso pelas publicações de trabalhos sobre fatores do paciente associados à capacidade de formar aliança terapêutica e sobre a associação entre aliança terapêutica e transferência. Observaram ainda um maior interesse, entre pesquisadores, na elaboração de versões brasileiras de instrumentos que avaliam fatores que integram ou influenciam o processo da psicoterapia, como transferência, contratransferência, aliança terapêutica e mecanismos de defesa.

Ainda no que diz respeito ao estudo da mudança psicológica, Yoshida (2008) salienta a importância da escolha do critério de mudança. Em suas pesquisas, menciona que a busca da avaliação de mudança com significância clínica, e não apenas estatística se faz importante, e que este pode ser buscado tanto na perspectiva do paciente (avaliação do bem-estar por meio de autorrelatos), do profissional da saúde (baseado no referencial teórico) e da sociedade (efeitos do tratamento, passar a enquadrar-se em uma população funcional).

Em resumo, a pesquisa apresenta uma série de questões ainda não resolvidas quanto ao conceito de processo psicoterapêutico. Em alguns estudos de resultado, há investigações que se referem a processo, mas não o conceituam; em outros, que o conceituam, repete-se o que se vê na clínica: uma variedade de definições e muitas vezes conceituações a posteriori, confundindo-se processo (ou seja, desenvolvimento do tratamento) com resultado. O conceito de “processo” permanece em aberto, ambíguo e variando conforme o autor ou a pesquisa. E essa inexatidão conceitual que impregna a psicanálise é um complicador importante para a pesquisa (Santos & Zaslavsky, 2007).

Sobre as dificuldades e vantagens de pesquisar...

Perante o exposto até o momento, enfatiza-se a necessidade de que o pesquisador em/sobre psicoterapia e psicanálise tenha real conhecimento (vivencial) da clínica e de seu método de trabalho, na intenção de tornar-se um instrumento “calibrado” (Cassorla, 2003) para apreender os processos mentais conscientes e inconscientes. Esse fator, enriquecedor sob o aspecto empírico, torna-se difícil na medida em que clínicos não dispõem do extenso tempo necessário para a execução de ambas as tarefas – clinicar e pesquisar. A verba destinada à pesquisa é escassa na maioria das instituições, provavelmente pela pouca valorização da atividade por muitos clínicos, conforme exposto no decorrer deste artigo. E os clínicos, na maioria das vezes profissionais autônomos, pouco podem dispor de horas de trabalho.

Além de todas as dificuldades para que pesquisadores e clínicos busquem as devidas conexões para considerarem suas práticas complementares no fortalecimento das psicoterapias e da psicanálise, também se apresentam dificuldades práticas, que corroboram para que a pesquisa fique relegada a uma minoria de clínicos. Deakin e Nunes (2008), ao realizar pesquisa sobre efetividade da psicoterapia psicanalítica de crianças, propuseram como uma saída às dificuldades de pesquisar a intersecção clínica e investigação, tendo como ponto de partida a universidade, que poderá auxiliar na adaptação de métodos. Tal alternativa parece solução bastante eficaz na implementação de uma mentalidade ampliada da clínica, que pode contribuir grandemente para estudos de resultado como o proposto pelas autoras. As investigações no contexto das clínicas-escola universitárias vêm se desenvolvendo de forma crescente com dissertações de mestrado como as de Konrat (2012), “A relação entre sexo e idade e queixas de crianças em psicoterapia”; Merg (2009), “Características da clientela infantil em Clínicas-Escola”; Boaz (2009), “Caracterização das queixas apresentadas por meninos e meninas encaminhados a clínicasescola”; e Campezatto (2006), “As clínicas-escola de cursos de Psicologia da Região Metropolitana de Porto Alegre”, e contribuíram para a construção de um panorama geral das práticas exercidas nas clínicas-escola, bem como na descrição da clientela que utiliza seus serviços, os tipos de terapia e o desfecho geral dos atendimentos.

No entanto, para as pesquisas de processo, que exigem do clínico/pesquisador bagagem diferenciada, consideram-se as instituições de formação de psicoterapeutas e psicanalistas locais mais propícios para a aquisição de material clínico para realizar pesquisas empíricas, em comparação com os consultórios dos profissionais. A rotina de ambulatório inclui aspectos favorecedores da aceitação do paciente em participar de tais estudos, que envolvem a participação de secretária (agendamentos, pagamentos, administração das salas), triador, prontuários institucionais, sala de espera compartilhada com outros pacientes e a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual o paciente autoriza o uso de seus dados para estudos, supervisão e pesquisa. Salienta-se que estes locais, com diversas nomenclaturas como cursos de formação, de especialização, entre outros, são considerados clínicas-escola de pós-graduação, onde os profissionais podem e devem tomar contato com as diversas facetas de utilização de conhecimento clínico – dentre elas, a pesquisa.

Sabe-se da existência de iniciativas dessa natureza, em que psicoterapeutas/pesquisadores de centros de formação buscam inserir a investigação em suas instituições através da execução de dissertações de mestrado e teses de doutorado de seus membros, tendo como suporte metodológico a Universidade. Destacam-se os trabalhos de Gastaud (2013), “Indicação, concordância em iniciar tratamento e melhora inicial na psicoterapia psicanalítica”, Deakin (2008), “Avaliação dos Resultados de Psicoterapia Psicanalítica com Crianças”, Dian (2007) “Psicoterapia Psicanalítica com Crianças: Avaliação e Resultados”. Há também a experiência de promoção da interface entre psicanálise, psiquiatria e universidade por meio do compartilhamento de conhecimento, como o fazem Silva, Yazigi e Fiore (2008), ao ilustrarem um processo psicanalítico realizado na universidade.

Mesmo assim, considera-se que a dificuldade de executar pesquisas sobre psicoterapia envolve diversos fatores, entre eles a dificuldade de acesso a dados de prontuários que, quando existem, estão em sua maioria mal preenchidos, com diversos campos em branco e com expressões e termos técnicos não acordados entre profissionais que os preenchem (Campezatto & Nunes, 2007). Percebe-se uma confusão acerca do resguardo do sigilo e confidencialidade do material, tanto quando se trabalha com prontuários e materiais advindos de arquivos como com material advindo diretamente de sessões psicoterapêuticas gravadas em áudio e/ou vídeo. Tais aspectos resultam em uma comum recusa por parte de psicoterapeutas em participar de estudos empíricos (Serralta, Nunes & Eizirik, 2007). Ao citarem as razões dadas pelos terapeutas a se recusarem a participar de pesquisas, Vachon, Susman, Wynne, Birringer, Olshefsky e Cox (1995) mencionam a falta de tempo, o desconforto em gravar as sessões e considerar seus pacientes contraindicados a participarem de pesquisas.

O temor de exposição dos próprios psicoterapeutas, o receio acerca da exposição e possível quebra de sigilo dos pacientes, bem como possível interferência negativa da gravação em áudio ou outros registros sistemáticos no processo psicoterapêutico e no desenvolvimento da aliança terapêutica também são aspectos significativos que interferem na execução destas investigações (Silva et al., no 2014).

Santos & Zaslavsky (2007) acrescentam que os resultados e conclusões de uma pesquisa tendem a ser modestos, em contraste com a riqueza livre e descritiva dos relatos clínicos que os psicoterapeutas produzem e têm acesso. Fonagy (2003) corrobora a ideia, referindo que o fato empírico soa enfadonho diante das evocativas narrativas clínicas. Além disso, as teorias psicanalíticas surgem da clínica, como se verifica desde a obra de Freud. Tais teorias são profundas e ousadas, contribuindo para o arcabouço teórico disponível aos psicoterapeutas, que recorrem a este tipo de publicação. Em contraste, o pesquisador empírico muitas vezes necessita ficar atrelado aos fatos evidentes e objetivos.

Faz-se necessário, portanto, esforço de integração dos resultados das investigações. Cada pesquisa tende a trazer pequena contribuição ao conhecimento da psicoterapia e da psicanálise, mas um grande conjunto de pequenas contribuições pode apresentar material de significativo interesse a clínicos e investigadores. Por todo o exposto, portanto, enfatiza-se a ideia de que a pesquisa empírica sobre psicoterapia e psicanálise é uma das vertentes de aplicação prática dos brilhantes construtos teóricos desenvolvidos em sua metapsicologia. Dessa forma, poderá principalmente contribuir para o acesso de uma maior quantidade de pacientes a esse tipo de intervenção, na medida em que possa se expandir os conhecimentos de o que funciona, para o que funciona e como funciona esse tipo de intervenção. Será possível sua divulgação, constante aprimoramento teóricotécnico e facilitará o treinamento e a formação de novos profissionais a trabalharem com essa práxis.

 

Referências

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Endereço para contato
E-mail: paulavmc@hotmail.com

Recebido em abril de 2014
Aceito em abril de 2015

 

 

Paula von Mengden Campezatto: Psicóloga. Psicoterapeuta de Crianças, Adolescentes e Adultos. Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Bolsista do CNPq. Sócia efetiva do IEPP – Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
Maria Lucia Tiellet Nunes: Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica (Tratamento e Prevenção) pela Universidade Livre de Berlim. Professora titular aposentada da PUCRS, Faculdade de Psicologia.
Milena da Rosa Silva: Psicóloga. Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Sócia Graduada do IEPP – Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
1 Referência ao livro de Lewis Caroll "Alice no país das maravilhas", no qual o pássaro Dodô, após uma corrida na qual todos chegam ao final do percurso, proclama que 'todos venceram e todos devem ser premiados'. Original publicado como Alice's Adventures in Wonderland em 1865 por Charles Lutwidge Dodgson sob o pseudônimo de Lewis Caroll. Itaipava (RJ): Editorial Arara Azul, 2002.

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