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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
On-line version ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.34 no.26 Rio de Jeneiro June 2012
Artigos
Rastros e escombros da violência: memórias do assassinato
Traces and debris of violence: memories of murder
Francisco Ramos de Farias*
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Resumo
Pretende-se analisar a violência originária, de caráter estruturante, transmitida em narrativas míticas e a violência reativa que, como repetição, dissolve os laços sociais. Parte-se do pressuposto que a violência faz parte da condição humana, remontando os primórdios de sua história, mas que a vontade de destruição, própria da pulsão de morte, presente no homo violens e materializada em violência, deve ser minimamente contida para possibilitar as trocas mediante ações políticas no âmbito das relações de poder. Assim, conjuga-se a nuança individual da violência, mesmo nas ações violentas das massas, com o aspecto relacional do poder.
Palavras-chaves: Violência, pulsão de morte, poder, relações sociais.
Abstract
In this work we intend to analyze the original violence, of structural character, transmitted in mythical narratives and the reactive violence that, like repetition, dissolves social ties. We start from the assumption that violence is part of human condition and dates from the beginning of its history, but the will of destruction, typical of death instinct, presented in homo violens and materialized into violence, should be minimally contained to allow trade through political actions in the context of power relations. Therefore, we conjugate the nuance of individual violence, even in masses' violent actions, with the relational aspect of power.
Key-words: Violence, death instinct, power, social relations.
Introdução
A compreensão da violência é um dos temas mais discutidos ao longo da história da humanidade. Embora seja objeto de constante reflexão, muitos de seus aspectos permanecem ainda obscuros, especialmente quando o eixo matricial de problematização considera a possibilidade de sua eliminação em nome da tão sonhada harmonia idealizada em termos de paz. As discussões sobre a violência acontecem em diferentes campos do saber científico, o que demonstra a preocupação de estudiosos acerca do tema.
Quando nos debruçamos sobre os tratados acerca da violência encontramos concepções que partem do pressuposto de que um de seus efeitos seria a produção de um estado caracterizado por uma espécie de confusão sem forma, conforme postula Sorel (1992). Em outro extremo, encontramos a posição de Arendt (2010) para quem a violência contém um elemento de arbitrariedade e de imprevisibilidade. Disso, então, decorre que a violência é considerada como suspensão da ordem, imprevisibilidade, ruptura de contornos nos arranjos sociais e mesmo um estado de caos. Sem dúvida, nessas aproximações observa- se que a violência é compreendida como uma espécie de desvio absoluto das normas e regras que possibilitam o estabelecimento de laços de solidariedade no âmbito da experiência humana. Nisso reside uma questão espinhosa: como definir aquilo que não apresenta qualquer tipo de regularidade e nem estabilidade por ser da ordem do imprevisível e arbitrário?
Considerada como transgressão às regras sociais, a violência aponta para a emergência do imprevisível e assim seu efeito seria o de produzir um estado de caos, como podemos depreender na forma difundida para caracterizá-la como sendo a guerra de todos contra todos. Eis o tom da imprevisibilidade presente na extenuação do estado de desamparo do homem, dos dias atuais, em relação a questões de segurança, seja pessoal, seja do lugar em que vive. O sentimento de insegurança, de acordo com Michaud (2007, p. 9), corresponde à "crença, fundamentada ou não, de que se pode esperar tudo; que não se pode mais estar seguro na vida cotidiana. Imprevisibilidade, caos e violência estão, em parte, ligados".
Em meio à variedade de aproximações teóricas, adotamos como recorte, para a reflexão pretendida, um aspecto da violência a ser interpretado à luz dos conceitos de criação e de destruição e assim, baseamo-nos no conceito de pulsão, enfatizando a pulsão de morte para tecer considerações, tanto sobre a violência originária quanto a violência reativa. Partimos do pressuposto de que uma modalidade de violência, a reativa, de alguma forma faz ressonância à violência originária considerada, sobretudo, em termos do assassinato, caso consideremos a narrativa mítica apontada por Freud (1913/1976) acerca da constituição dos grupos devido, principalmente, à morte de um pai primevo, fato que serviu de alerta quanto à prática do incesto e de indicação quanto à proibição do assassinato. Esse ato marcou também o fim do gozo absoluto.
No sentido de abertura à temática, enveredamos pela trilha que nos apresenta a violência como aspecto integrante da vida do homem, em termos da manutenção da sobrevivência. Quer dizer, a violência seria um aspecto imanente ao dinamismo vital. Porém, essa formulação não é uma solução satisfatória para a questão, especialmente se considerarmos que a mesma ação violenta, empreendida pelo homem para sobreviver, causa danos irreparáveis. Isso quer dizer que, para sobreviver, o homem empreende uma ação violenta, entendida em termos de necessidade, mas cujo resultado é a destruição. Essa é uma aproximação que pode ser traçada quando se focaliza a temática da violência: para viver o homem precisa destruir, o que conforma um ciclo vicioso que culminará com sua própria destruição. Porém, no percurso da existência, há também criação. Dependendo do destino dado aos vestígios oriundos da ação violenta, temos duas possibilidades: integração de rastros no âmbito das relações sociais e não integração de escombros que persistem como espécie de "lixo" atômico não reciclável.
A análise de vestígios materiais e daqueles que compõem narrativas conhecidas é um aspecto que requer uma atenção no que concerne a qualquer tentativa de reflexão para compreender a violência. Em primeiro lugar, devemos seguir um tipo de encaminhamento para não focalizarmos apenas a condição de espetáculo que se desdobra das ações violentas. Em segundo lugar, com relação à violência temos de considerar o transcorrer de um processo em três planos diferentes: o plano do agente, no caso o homo violens, o plano da ação violenta e o plano dos efeitos, com seus produtos, incluindo restos inassimiláveis e construções de memória.
O quadro da violência é pintado com nuanças bastante esfumaçadas e sombrias quando situamos a ação do homem em relação à ocupação de determinados espaços colocando em risco a sobrevivência de determinadas espécies de animais, às consequências da guerra, aos atos de terrorismo, os avanços desenfreados da tecnologia, à exploração e à escravização da natureza para extração, produção e armazenamento de energia, entre outras tantas possíveis. Obviamente, a possível e gradual destruição das condições de vida no planeta é a consequência de uma questão ética no manejo da técnica. Como é do conhecimento do homem, as máquinas e equipamentos mortíferos não operam isoladamente da vontade humana: é preciso haver um comando. E é nesse aspecto que situamos, no âmago das ações humanas, a violência em sua face destrutiva, principalmente quando os comandos técnicos ultrapassam determinados limites ou são naturalizados em prol de ideologias, de políticas de estados ou de fundamentalismos religiosos. Porém, quase sempre, a esperança do homem é a de que seu esforço estaria a serviço do bem estar e da melhoria de condições de vida, salvo circunstâncias como ações terroristas, massacres, linchamentos e outras.
Convém assinalar que o homem não desconhece os efeitos de destrutividade que podem advir do uso da técnica. Sendo assim, poderíamos indagar se, a produção de poderosos e eficientes instrumentos de destruição e o arsenal de exploração e manipulação da natureza, são o equivalente a verdadeiros monstros?
Indagação crucial que tanto pode ser respondida afirmativa quanto negativamente, dependendo dos fins pretendidos e dos efeitos provocados, principalmente, se considerarmos que para viver o homem precisa criar meios de sobrevivência, contudo, para criação desses meios, faz-se necessário destruir alguma coisa. Destruição e criação são, então, dois princípios que regem a natureza. Para criar, o homem precisa sempre destruir alguma coisa. Não há outra maneira de fazê-lo. Difícil encruzilhada da qual estamos advertidos e que não passamos incólumes!
A grande perplexidade, com a qual somos confrontados, é que quanto mais se argumenta em prol da redução da violência, mas se observa o seu aumento quantitativo em escalas incontroláveis, bem como a sofisticação na produção de engrenagens de destruição, seja em simples situações da vida cotidiana, seja no contexto das guerras planetárias que, em função do avançado progresso tecnológico, são, cada vez mais, mortíferas e devastadoras.
A guerra ainda persiste no âmbito da vida do homem, exatamente, pelo fato de que, até então, não surgiu nenhum outro artifício para negociação no cenário das políticas internacionais. Nesse sentido, a guerra faz parte do contexto da sociedade, sendo, até certo ponto, impensável a ideia de aboli-la, a não ser que sejam produzidos meios ainda mais criminosos para o homem lidar com suas questões. Sem dúvida, qualquer contradição à estrutura de poder de um país, por quem quer que seja, converte-se em uma ameaça e daí são pensadas estratégias de defesa e de proteção, cuja solução é apresentada também em termos da proposta de uma guerra.
Notadamente, tem-se nisso a possibilidade da solução de um conflito em nome da paz, mas que não acontece sem rastros marcantes de destruição. Via de regra, do confronto de uma guerra vislumbra-se duas situações: a vitória ou a derrota. Porém, tratando-se da modalidade de guerra que o progresso científico produziu, no século XX, a guerra termonuclear, ápice do aperfeiçoamento de métodos bélicos, não se tem tanta garantia de vitoriosos e derrotados, pois muitos confrontos armados não têm como finalidade vencer o inimigo pela dominação e sim a ampliação do horizonte de divisas econômicas, a apresentação ao mundo de material bélico de última geração, além de outras.
A situação de uma guerra realizada com o arsenal técnico produzido pelo progresso científico é tal natureza paradoxal que, não se tem mais nenhuma garantia de que vencedores encontrem um lugar seguro que sirva igualmente para os vencidos. Na verdade, o manejo da técnica, em muitas circunstâncias, cujos efeitos extrapolam determinadas expectativas, pode representar um grande risco para ambos, em termos de uma provável situação de "suicídio" universal, com o completo desaparecimento das possibilidades de vida no planeta, conforme podemos ilustrar, considerando os efeitos devastadores de uma bomba atômica, ou melhor, dos acidentes ocorridos, no século XX, nas usinas atômicas.
A descoberta científica, que propiciou a construção das usinas atômicas voltadas para a produção do bem-estar, não apresentou ao mundo uma forma de controle e de domínio no que tange aos possíveis perigos que podem advir de seu funcionamento, não só em termos dos resíduos produzidos, como também em relação aos prováveis acidentes. Eis uma nuança em que a possibilidade de destruição faz parte do processo de criação. Certamente, estamos assinalando que o homem destrói para criar e que a própria criação pode ser potencialmente um veio de destruição. Mas, cabe assinalar que a nossa reflexão considera um dos aspectos referidos: o emprego da violência para a criação.
Indaguemos: o homem precisa empregar a violência para destruir, a ponto de produzir os meios que colocam em risco sua própria vida e que representam o fim da espécie? Qual seria, então, o sentido da autodestruição que aumenta em escala alarmante e que é refratária aos métodos de contenção? De uma coisa estamos certos: o homem, mesmo diante de todas essas evidências, não consegue impor diques para amortecer a potencialidade das ações violentas e tampouco consegue controlar os efeitos do arsenal de destruição que produz, mesmo porque, em muitas situações, uma descoberta que é direcionada a serviço do bem, pode também ser utilizada para a destruição em massa.
Seguindo essa linha de raciocínio, diríamos então que a violência é imanente à condição humana e está inscrita em uma memória que remonta à ancestralidade. Mas, qual direcionamento deve ser empreendido ante as
manifestações constantes e contínuas da violência? Explicações a esse respeito abundam desde as mais remotas épocas até a atualidade, porém, segundo Ceccarelli (2006, p. 113) "a história nos mostra que a violência tem estado presente desde a aurora da humanidade: guerras sempre existiram; civilizações sempre dominam outras".
Indubitavelmente, não podemos ignorar o fato que os avanços tecnológicos que permitem o acesso aos acontecimentos em tempo real, o acelerado aumento demográfico do planeta, cada vez mais, evidenciando e acentuando as desigualdades sociais, a farta disponibilidade de armas distribuídas legal e ilegalmente são algumas das condições que contribuem para globalizar a violência, conformando um cenário que dá a impressão de que o mundo jamais conheceu onda tão grande de destruição e de devastação.
Diante desse cenário, perpassa uma grande contradição: por um lado, são inúmeros os esforços para refletir sobre a violência e buscar soluções para combatê-la, desde grandes debates científicos até programas governamentais. O que acontece é que, as supostas estratégias de contenção, são executadas com o emprego da violência. Por outro, quando nos voltamos para o presente cotidiano, constatamos que a violência parece crescer de forma incontrolável, basta que consideremos as guerras planetárias de destruição em massa em pequenas frações de tempo. Então o que o homem tem a fazer diante da violência? Teríamos resposta para essa indagação? Contudo, podemos refletir no sentido de produzir explicações.
Violência originária
A constatação de que a violência inscreve-se na aurora da história da humanidade é o que há de mais intrigante na mente dos pensadores que se ocupam de refleti-la. Nesse sentido, poderíamos fazer a transposição do adágio "no início era o Verbo" para "na origem da condição humana era a violência". Com isso, estamos admitindo que a violência remonta às priscas eras e então indaguemos: qual teria sido a sua motivação e sua serventia?
Em princípio, levantamos algumas especulações. A história da violência confunde-se com a história do advento do homem. Para fundamentar esse pressuposto é preciso que situemos um tipo de violência que denominamos de originária (FARIAS, 2010). Para tanto, basta direcionar nossas lembranças à história e constatar que determinados povos deixaram escritas de dominação de uns sobre outros, explicitando formas de destruição que, além dos destroços produzidos, serviram para inaugurar determinados arranjos sociais, fundar cidades, promulgar interdições e criar condições de novos tipos de laços sociais.
Se localizarmos a violência na origem da condição humana, trata-se então de uma violência fundadora? Quer dizer, como entender a máxima que supõe ser o homo violens definido e estruturado fundamentalmente pela violência? Face à complexa questão, podemos traçar duas linhas argumentativas em relação à violência que suportam uma contradição insolúvel.
Em primeiro lugar, situamos a dimensão originária da violência em termos de seu caráter estruturante para que possamos tecer considerações sobre acontecimentos como o assassinato do pai da horda primitiva, a passagem bíblica que retrata um fratricídio, entre outros. Esse tipo de violência nos é transmitido em uma espécie de narrativa mítica para que possamos refletir e frear nossa inclinação em repeti-la.
Em segundo lugar, há um tipo de violência que apresenta apenas a finalidade de dissolução e desagregação dos arranjos sociais e ainda persiste no âmbito das relações entre os homens. Os produtos dessa modalidade de violência não se inscrevem no espectro da tessitura social, perpetuando-se como restos inassimiláveis. Referimo-nos à dimensão reativa da violência.
Tanto em uma modalidade, quanto em outra, temos a presença da violência no homem, como condição sine qua non, justificada em função da sobrevivência e que, em alguns contextos, assume a característica de devastação, desde que consideremos o significado da palavra violência. Seguindo a trilha de compreensão de Héritier (1996, p. 17), deparamo-nos com a formulação que a caracteriza como "toda pressão de natureza física ou psíquica capaz de produzir terror, infelicidade, sofrimento, morte, todo ato de intrusão, destruição de objetos". Como podemos depreender, essa explicação situa apenas a dimensão reativa da violência. Porém, devemos considerar também a dimensão originária, retratada em textos canônicos, como formas de construções de monumentos, arranjos sociais e fundação de novos tipos de laços sociais.
A violência é algo imanente ao homem, mas que sugere ser um aspecto, ao mesmo tempo propiciador de condições vitais e também destrutivo, ou melhor, autodestrutivo. Estaríamos, assim, fazendo eco à exortação freudiana, de que "o objetivo da vida é a morte e, que as coisas inanimadas existiram antes das coisas vivas" (FREUD, 1920/1976, p. 56). Indaguemo-nos: essa seria a consequência da impossibilidade de o homem conter, com um dique, a propensão à violência, sendo esta uma fatalidade própria ao seu destino?
Obviamente, se o homem, ao nascer traz em seu germe a própria morte, então isso se expressa pela inclinação em todo ser vivo em direção à própria destruição, cumprindo ciclos que se repetem. Quer dizer, a destruição de um organismo de uma espécie tem a finalidade de ser a repetição de um ciclo que tem por finalidade a preservação da própria espécie. Sabemos, como nos ensina Lorenz (1974), qual seria o destino de uma espécie, na qual cessam os nascimentos e apenas registram as mortes, ou seja, a sua provável extinção. Para uma espécie ser perpetuada, faz-se necessário um movimento contínuo de aparecimento e desaparecimento. Por acaso, estamos aludindo à lei da natureza de que toda criação pressupõe uma destruição, visto que não há criação ex-nihilo. Quer dizer, nascer, para a matéria viva, é o início de uma caminhada em direção à sua destruição para que, assim, a espécie seja mantida. Não seria esse um estado de conscientização que presentifica a violência como estratégia de retorno da matéria viva ao estado inorgânico?
A violência originária é fundadora do homem e das criações culturais que compõem o tesouro de produções históricas, constantemente, apropriadas por gerações futuras. Sendo assim, o que conhecemos como civilização é, ao mesmo tempo, "criação e destruição. A civilização está a serviço da vida e da morte: tensão inevitável que coloca o homem diante de impasses insolúveis" (PAZ, 1993, p. 37). Certamente, a matéria viva é habitada por duas potencialidades: uma traduzida pelo movimento em direção à vida e outra, que presentifica a morte. Nesse processo, a matéria viva é solidária à lei da natureza expressa em termos de união, dispersão e reunião de elementos. Quer dizer, uma perpétua combinação e separação de substâncias conhecidas como princípios referentes à vida e à morte. Na verdade, a matéria viva, ao se destruir, concorre para a criação, cumprindo o ciclo de que na natureza as coisas surgem, desenvolvem-se e desaparecem; dando lugar ao aparecimento de novas que terão o mesmo destino.
Sabemos como a "combinação de violência, vida e criatividade figura no rebelde estado mental da presente geração" (ARENDT, 2010, p. 93). Esses aspectos concernem à dinâmica própria relativa à sobrevivência em que a ênfase recai sobre o sentido acerca do viver. Para a travessia concebida como percurso de existência, convoca-se o amor como a manifestação gloriosa da vida que deve ter a força de um poderoso vetor que amortece a potência de destruição. Mas devemos ponderar um pouco o peso dessa reflexão, pois "enxergar a produtividade da sociedade na imagem da criatividade é tão velho quanto Marx; acreditar na violência como uma força estimulante da vida é pelo menos tão velho quanto Nietzsche; e pensar a criatividade como o maior bem do homem, é tão velho quanto Bergson" (ARENDT, 2010, p. 93).
Mas o que podemos extrair dos encaminhamentos propostos por esses pensadores?
Em primeiro lugar, é preciso assinalar que, no âmbito da matéria viva, há um processo descrito em termos de aparição, de crescimento, de declínio e de morte.
Em segundo lugar, na esfera da condição humana, há uma propriedade estreitamente relacionada ao poder que é a expansão, condição necessária à sua manutenção. A perda do poder de expansão representa o fim da espécie.
Em terceiro, considerando essas constatações, é possível traçar uma aproximação, do ponto de vista biológico, entre violência e poder, seguindo as diretrizes do pensamento bergsoniano de que a vida e a criatividade da vida justificam a existência da violência, especialmente, focalizando a necessidade de expansão da matéria viva, considerada como condição sine qua non à sobrevivência e à perpetuação da espécie (BERGSON, 2009).
Vê-se, assim, que as metáforas a respeito da analogia entre a matéria viva e a violência recorrem, frequentemente, a explicações de natureza biológica, especialmente, quando determinadas convulsões sociais são explicadas pela recorrência à metáfora de uma sociedade enferma. Há, nessas explicações, analogias que comparam as perturbações do organismo, causadas por estados mórbidos, com os movimentos desagregadores do tecido social justificados pela presença de um estado de morbidez social. Desse modo, a violência, em um âmbito ou em outro, é explicada em relação à presença de alguma desordem, disfunção ou estado mórbido.
Nessas circunstâncias, argumenta-se, como estratégia de minimização da violência, ser possível determinados tipos de ordenação mediante o uso de instrumentos sociais corretores, mesmo que a aplicação de tais instrumentos aconteça por meios violentos. Essa seria uma alternativa, de conotação moral, que presume que os estados decorrentes da violência são expressões de desvios a serem corrigidos. Outra alternativa consiste em um tipo de explicação assentada em injunções que advogam em prol de reformas não violentas, na suposição de que a violência rompe uma ordem, originalmente, pacífica. Sem sombra de dúvida, as considerações tecidas sobre a violência tendem para uma ou outra dessas alternativas, dependendo da intensidade dos efeitos que decorrem da prática da ação violenta.
Analisar a violência, utilizando metáforas do âmbito do saber biológico, é correr o risco de deixar de fora o campo das práticas políticas, para aderir à visão de que, no seio da natureza, a destruição e a criação são as duas faces de um mesmo processo natural. Sendo assim, uma ação violenta, praticada coletivamente, pode ser naturalizada e também interpretada como um requisito básico para a vida no âmbito dos laços sociais, considerando a luta pela sobrevivência e a morte do homem como a condição de continuidade da espécie humana. Mas, há um perigo em aceitar essas interpretações sem, pelo menos, relativizá-las. Sendo assim, criação e destruição não seriam consideradas apenas como extremos opostos de um mesmo processo e sim princípios inerentes à condição de vida.
A função estruturante da violência, no homem, deve ser analisada em um escopo que considere outros aspectos além das descrições superficiais relacionadas às irrupções da violência, às ondas de violência e às explosões de violência. Estas manifestações são, na verdade, aproximações que consideram a violência como um acontecimento repentino, imprevisível, provavelmente, surgido de uma fatalidade histórica ou de uma circunstância em relação a qual o homem teria perdido completamente o seu controle como o desvario, a loucura, a presentificação do mal, o pecado, o absurdo entre outras.
É sob esse ângulo que localizamos a Idade de Ouro, como a época na qual situamos o mais alentador mito narrado em termos da possibilidade de que "a violência sempre existiu, em um grau maior ou menor, como ensina a história da humanidade" (MICHAUD, 1978, p. 88).
Desse modo, as manifestações que conhecemos são figurações da violência. Porém, existem outras quando consideramos a dimensão estrutural. Sendo assim, é preciso analisar a violência "em seu duplo aspecto, banal e fundadora, e em seu funcionamento positivo." (MAFFESOLI, 2009, p. 18).
Disso então, decorre que, ao nos atermos aos sentidos da palavra violência, podemos afirmar que estamos no regime de uma pressão, de uma coação, de um excesso insuportável, de uma ruptura e também de uma experiência traumática, visto que nessas formas inscrevem-se sob a égide de uma ameaça, tanto a violência originária que nos chega pelas narrativas míticas, quanto em relação às constantes repetições transmitidas em tempo real de seus acontecimentos, como nas guerras, assaltos, assassinatos entre outros. Eis a modalidade de destruição para a qual cunhamos a expressão "violência reativa".
Entretanto, é pertinente assinalar que a associação entre violência e terror não é uma peculiaridade do genocídio, visto que o terror é uma das estratégias de aplicação da violência. Certamente, estamos refletindo sobre a violência fundadora e para tanto situemos a narrativa de uma situação de explosão de violência, cujos rastros são o fratricídio. O texto bíblico remete-nos, conforme assinala Dadoun (1998), ao assassinato de Abel por seu irmão Caim, na condição de um crime primordial, quer dizer, um crime de caráter inaugural sendo, pois considerado uma espécie de violência fundadora em razão de seus desdobramentos.
Adentremos nas explicações apresentadas para a justificativa desse crime mítico. Narra o texto bíblico que Caim foi tomado por um estado de cólera. Indaguemos: a cólera teria sido o móbil da violência ou a expressão da própria violência? Sem dúvida, pensaremos na direção dessa segunda hipótese. No entanto, sabemos que a motivação para essa ação criminosa adveio dos próprios desígnios. Deus, quando acusou e castigou Caim que, por não ter sido reconhecido em suas oferendas, ou por inveja, matou seu próprio irmão.
Esse fratricídio original representa o extremo da violência, situada nos primórdios da existência humana, quando Deus prescreveu ao homem ocupar a terra, subjugá-la, dominar os peixes e os pássaros. Ora, como não perceber nessas prescrições uma clara incitação à violência potencial à qual o homem se esmerou em convertê-las em ações destrutivas? Não estaria assim sendo transmitida uma escrita, quer dizer, um tipo de memória que coloca o homem no lugar de ser submetido e obediente ao poder absoluto de um criador? Sob este prima, teríamos de considerar a designação para o trabalho como um gesto criador, do mesmo modo que todas as ações divinas são em si recomendações de violência, como, decretar, nomear, separar, classificar.
Voltando ao episódio fratricida, sabemos de seu desfecho: Caim é protegido com uma marca corpórea, uma inscrição divina de memória cuja finalidade seria impedir, em todo aquele que o encontrasse, a execução o ato de matar. Tem-se assim a simbolização como a advertência na proibição de uma ação. Com um signo distintivo Caim, sobrevive, mas na condição de exílio. Uma vez afastado do paraíso funda uma cidade.
A marca corpórea é um indício de construção de memória que visa a firmar laços sociais. Com a cidade e com a indicação traduzida pela proibição do ato de matar, Caim é considerado, em termos míticos, o fundador da civilização que decorreu de um fratricídio.
Amainemos nossa perplexidade ante o entendimento de uma gênese que inscreve a civilização humana sob o signo da violência e da ação de um crime. Certamente, podemos fazer uma analogia a esse momento fundador se nos reportarmos ao crime da horda primitiva no mito construído por Freud (1913/1976) em que irmãos, uma vez segregados, revoltam-se e firmam um pacto para praticar um parricídio. Desse ato tem-se, como resultado, a interdição do incesto e a proibição do assassinato. De posse desse ordenador social, os irmãos criminosos, movidos pelo sentimento de culpa em razão da destruição de um ente odiado, mas também amado, organizaram-se em clãs com regras de funcionamento e, em seguida, estabeleceram, pela criação deinstituições, os grupos fraternos. Mas qual seria a finalidade do fratricídio e do parricídio para as condições de vida coletiva?
Em principio, os relatos desses crimes, bem como a marca corpórea inscrita no corpo de Caim, podem ser considerados indícios que ordenam o homem declinar de sua vontade de realizar tais práticas, devendo contentar-se apenas com a memória dos mesmos e, assim, evitar a repetição da ação devastadora. São memórias construídas no sentido de elaboração de acontecimentos relativos a violências praticadas que devem, doravante, estarem inscritas e povoarem o imaginário humano apenas como narrativas míticas. Essa seria a esperança, mas sabemos que as coisas não seguem esse rumo, pois crimes acontecem em escalas desmedidas, acontecem como meras ações/ repetições desses assassinatos originais. De uma coisa estamos certos: essas narrativas não são potencialmente capazes para fazer com que os homens pratiquem apenas crimes de intenção, sem chegar à devastação pela prática de ações violentas, conforme se aventava acontecer com o progresso da civilização.
É certo que existem tanto sujeitos quanto nações que não se contentam em realizar crimes na dimensão imaginária e escolhem a alternativa de produção de restos mediante a devastação de povos, cidades, patrimônios culturais, condições de vida no planeta, entre outros. Sendo assim, a grande desilusão do homem moderno assenta-se na aposta de que o progresso da civilização amortecesse a inclinação à destruição. Porém, não foi isto o que a História retratou, mesmo porque a construção do sofisticado arsenal técnico não ocorreu sem rastros de destruição, minimizando radicalmente as chances de sobrevivência no planeta.
Cada produção de um instrumento a serviço do homem requer um tipo de transformação irreversível em a natureza. Certamente, chegará um dia em que os efeitos devastadores estão fora de controle e essa já é a grande ameaça que paira sobre o homem dos dias atuais. Quer dizer: o que fazer com o lixo produzido pelas usinas atômicas? Como sobreviver, em algumas regiões do planeta, com a falta de água portável? Quais providências deverão ser tomadas em relação ao aquecimento global? O que fazer com o esgotamento da terra pelo extrativismo de minérios? As questões são múltiplas e as possíveis soluções ainda não forma esboçadas, embora já haja uma grande preocupação a esse respeito.
Violência reativa
Além da violência originária, apresentada ao homem por intermédio de construções de memória que compõem o arsenal da cultura e da história da humanidade, há a expressão da impulsão da pulsão de morte que funciona de modo a dissolver os agregados firmados pela presença do amor. Essa modalidade de violência, diretamente associada ao Mal, atinge o homem em termos de devastação, no contexto da atualidade, se considerarmos que os avanços tecnológicos, em qualquer lugar do planeta, edificam cenários de destruição ao vivo e em cores, atingindo massas humanas e minimizando as condições e possibilidades de sustentação da vida.
Há também que se considerar a explosão demográfica cujo resultado é a exiguidade de espaços relativos a produções de condições satisfatórias de vida. Sem dúvida, esses fatores contribuem, de forma significativa, para que se tenha a ilusória impressão de que o mundo atual é o palco de maior ocorrência de violência. No entanto, devemos considerar que os aparatos que globalizam a violência apenas cumprem a função de difundi-la e banalizá-la. Sem dúvida, são aparatos técnicos de considerável eficácia.
Os efeitos devastadores da violência reativa são amplamente conhecidos desde as mais remotas épocas, como são registradas as ocorrências de domínios de povos para posse de terra, de massacres em nome de fundamentalismos religiosos, de guerras para expansão de territórios e interesses econômicos que acontecem, na forma de violência institucionalizada, em cenários rituais bem conhecidos com leis e justificativas apresentadas em nome da paz. Eis uma imagem ideal da violência, presente na guerra, utilizada para justificar a sua prática que geralmente assume a forma de massacre traduzido pelo "estrondo selvagem do ódio e do desprezo, em que as pessoas são tratadas como inferiores, para serem eliminadas" (DADOUN, 1998, p. 24). Em certo sentido, o homem é tratado como objeto descartável e inútil, pelo fato de portar traços diferenciadores em função dos quais é inscrito negativamente no contexto das relações sociais. A partir dessa operação, segundo Assoun (1995) são segregadas e, dependendo da política de tratamento destinada ao resto produzido na construção do laço social, são destinadas à eliminação pelo extermínio ou por outras modalidades de aniquilamento. A esse respeito são conhecidas três tipos de práticas devastadoras: o extermínio, o terrorismo e o atentado.
O extermínio justifica a prática da violência por meios ilimitados. A eficácia dessa ação conta com a imposição de uma memória que reavive constantemente os limiares de violência, ou seja, uma memória que justifique a prática da violência como necessária a determinados fins difundidos como necessários à ordem, à paz, à pureza racial, à expurgação de pecados, à correção moral. Eis como se assentava a proposta de Lenin, na segunda década do século XX, quando disseminou a ideia de que era preciso limpar a terra russa de todos os insetos nocivos; ocasião em que planejou executou, com esmero, um programa eficiente de práticas de exclusão, com o objetivo de profilaxia social, até então jamais visto na história. (SOLHENISTSYN, 2007).
A denominação "insetos nocivos", para fins de purificação, prática atualizada em recentes conflitos no leste europeu entre iugoslavos e bósnios, para citar apenas um exemplo, atinge nacionalidades, profissionais, classes sociais, intelectuais, religiosos. De certo modo, as estratégias empregadas de acordo com os princípios de purificação são realizadas por métodos eficazes e bastante precisos.
Com respeito ao terrorismo, em diversas formas, conhecemos suas incidências no século XX, como as mais indicadoras ilustrações. Destas, apresentamos duas: o stalinismo e o nazismo.
O stalinismo consistiu em uma prática de destruição, de caráter extensivo, destinada a todos que portem quaisquer sinais de diferença. Havia então um critério: os diferentes eram subjugados e reduzidos à categoria de serem ofensivos e perigosos. Melhor dizendo: comparados a insetos nocivos. Assim, a eliminação estaria justificada, restando ao aparato estatal executá-la por intermédio de programas planejados com eficiência em relação aos resultados.
O nazismo representou uma prática de caráter intensivo de liquidação de grupos humanos, de maneira seletiva, em espaços artificiais criados para tal finalidade conhecidos como a indústria da morte, produzida com o auxílio do progresso tecnológico: amontoados de pessoas, fornos crematórios, câmaras de gás, caminhões asfixiantes e empilhamento (Bursztein, 1998).
Enfim, o atentado é o ato imediato de violência que ocorre em um dado espaço, cuidadosamente selecionado, em unidades temporais mínimas. Trata- -se de uma ação pontual, de certo modo, difusa quanto a seu alvo: nem supostos "insetos", nem determinados grupos e sim são os ideais que comandam as estratégias e preparam as ações terroristas relacionadas ao atentado. Na grande maioria das vezes em que acontecem, os atentados visam a monumentos, a bens públicos, a patrimônios históricos e, enfim, a tudo aquilo que encerre uma dimensão simbólica indicadora de um estatuto de poder, de glória ou de qualquer outra significação.
As expressões do terrorismo, na qualidade de violência reativa, apresentam dinâmicas próprias. Tratando-se do atentado, têm-se duas nuanças da violência. Uma, voltada para o interior do próprio grupo terrorista, considerada como o laço que constitui e marca a pertinência de seus membros, sendo uma violência de densidade bastante significativa, por assinalar o caráter de adesão e coerência grupal; outra, voltada para o exterior que é o resultado do pacto realizado, em termos públicos, sendo considerado um tipo de violência difusa. Quer dizer, um pacto de violência sinaliza a união dos membros no grupo, sendo um ritual de iniciação com conotações políticas, religiosas, segregacionistas, mágicas. Além desse tipo de ritual de iniciação, perpassa outro tipo de violência, representada pelas relações de força e domínio, que consiste na sustentação da estrutura interna do grupo.
Em suma, no emaranhado da tessitura da destrutividade, presente no terrorismo, encontramos justificativas de caráter ambíguo, que causam repulsa e fascínio, centralizadas em posicionamentos ideológicos, discursos doutrinários que racionalizam e banalizam a violência; posicionamentos políticos, discursos que apresentam vocações oportunistas; posicionamentos organizacionais, discursos do grupo terroristas que apontam, como objetivo, sua interioridade e posicionamentos publicitários, discursos de cunho midiáticos em prol da difusão dos acontecimentos.
Analisada sob esse prisma, a violência reativa é estreitamente vinculada ao extermínio. Em sua radicalidade conhecida como genocídio, é a expressão extrema que desnuda a máxima potencialidade da pulsão de morte, expressa de forma planejada com aplicações técnicas eficientes pelo cálculo previsto em função esperadas. A indagação, que inquieta o espírito dos grandes pensadores da história da humanidade, consiste na constatação de que a violência originária, descrita miticamente em textos canônicos, deveria ter por função, frear a potencialidade destrutiva do homem para que ações violentas destrutivas pudessem apenas ser objeto da imaginação e não tomassem a concretude de atos. Porém, isso não aconteceu. Contudo, essa é tão somente uma esperança que se mantém, até nossos dias, como esperança, pois as ondas de criminalidade, o terror, o genocídio, a redução das condições de vida no planeta e outras sinalizam, de forma bem pregnante, que ainda não foi construída uma usina que sirva para reciclar a porção indomável da pulsão de morte em direção à destruição. Apenas são construídos diques, até certo ponto, bastante precários que irrompem causando efeitos drásticos como acontece no terrorismo; prática de devastação na qual a violência é uma aplicação da vertente sádica da pulsão de morte, desencadeada pela obediência cega do homem aos imperativos ditados por um deus obscuro que ordena a execução de ações ferozes. Temos assim algo comparável a um tipo de sacrifício exigido sempre por um deus obscuro, em relação ao qual o homem se submete (ZALOSZYC, 1994).
Em meio a gama de ações de destruição é pertinente particulariza a reflexão e tecer considerações sobre o assassinato realizado sob uma lógica que convoca o psicanalista a pensar a destrutividade como efeito ruidoso da pulsão de morte. Sabe-se que o ato matar nem sempre é uma empreitada aceita por todos, mesmo que o homem esteja na condição de obediência a uma ordem. Aliás, uma das dificuldades, com a qual se confrontaram os carrascos nazistas, consistiu na hesitação de certos soldados alemães em executar, a tiros, judeus, ciganos, crianças, homossexuais, razão pela qual, os dirigentes dos campos de concentração optaram pela invenção das câmeras de gás como métodos de execução em massa. (SELIGMANN-SILVA, 2005).
Em termos de reflexão, o psicanalista deve rastrear as marcas da escrita que atravessam um dado limite da experiência humana como o crime, visando à produção de um saber, especialmente, no tocante à violência; seja a resposta a uma situação traumática ou a produção de uma experiência impossível de ser simbolizada que permanece como um tipo de memória subterrânea. (POLLAK, 1989). Tomamos uma delas para problematização: o assassinato em série praticado na tentativa de construir esteios visando à elaboração de signos recorrentes de percepção. A permanência dessas imagens indica que as mesmas não são alçadas à condição de lembrança. Assim nos aproximamos de um tipo de crime que tem lugar de destaque no campo da mídia televisiva, em revistas, jornais e livros que enfatizam, em primeira página, impulsões técnicas exitosas de dissolução de pessoas em contextos diversos, com justificativas que evidenciam estados de furor do homo violens, entendido como vontade de destruição.
No que tange ao assassinato estamos diante da presença dos efeitos desagregadores da pulsão de morte, razão pela qual, essa nuança da condição humana não é uma exclusividade apenas do campo das práticas jurídicas, visto que a Criminologia mantém em silêncio a vertente do gozo no crime ao se ocupar da culpa, da responsabilidade e da condenação. Não obstante, "o gozo é o termo que só se institui por sua evacuação do campo do Outro e, por isso mesmo, da posição do campo do Outro como lugar da fala" (LACAN, 2008, p. 340). Essa vertente do gozo no crime pela produção de um excesso concerne ao desejo e, assim, não é recoberta pelo campo das práticas jurídicas. Porém, em relação ao gozo, a Psicanálise dispõe de operadores para compreender essa nuança do existir humano.
O gozo é o que se obtém do resto sem serventia não capturável na rede de significantes sendo um excesso (FREUD, 1920/1976). O conceito de gozo é a baliza que comparece no estudo do assassinato que retrata o resquício de barbárie irremovível. Conforme aponta Lacan (1988, p. 240), no crime, temos o "gozo da destruição, a própria virtude do crime, o mal pelo mal".
Há, entretanto que situar os dois tipos de gozo: o absoluto, referido ao pai mítico, sendo da ordem do impossível, e o gozo parcial encontrado nos demais crimes. O gozo absoluto decorre da ferocidade do supereu que impele o homem a agir, de forma imperiosa, cumprindo um mandato em relação ao qual parece não ter nenhuma condição de negociação (DIDIER-WEILL, 1997).
A violência praticada pela exigência cega e obscena do supereu com fins da obtenção do gozo absoluto mostra-se com um elo frouxo que advém da dificuldade de amarração do sujeito ao tecido social, causada pela ausência ou por falha estruturante da anterioridade paterna, além de representar "a repetição do arcaico do sujeito no atual da estrutura deslocada pelo desejo" (ADAM, 1996, p. 18). Sendo assim, nessas circunstâncias, as insígnias transmitidas pela função paterna evidenciam a impulsão para matar, como um ato que funciona de modo a transpor uma barreira e com isso viabilizar o acesso ao gozo. Não há, nesse ato, qualquer movimento de identificação e sim comprovação da morte do pai e irreversibilidade do ato no triunfo da potência desenfreada da pulsão de morte.
O assassinato corresponde à adoção da atitude de insistência repetitiva, no campo das práticas destrutivas, de quem se autoriza "saber o que fazer com o gozo. Nesse ato, o homem não se sente dividido, pois o ato consiste em dividir o outro e fazê-lo fracassar" (LEGUIL, 1990, p. 11). No rastreamento das filigranas da memória dos agentes de ações criminosas encontra-se um vazio em relação à função paterna, ou seja, um pai que fracassou na condição de quem se encarrega da transmissão da lei. No entanto, o ato devastador pode ser considerado como um chamado ao pai, na esperança de encontrar um suporte para que o sujeito libere-se de culpa e afaste-se ou minimize a intensidade da exigência do supereu.
A série repetível de crimes pode representar a espera de uma punição que funcionaria como o limite da instância paterna que faltou em algum lugar, pois a imposição da lei recupera, para o sujeito, um limite que evita a dissolução ante-excesso da pulsão de morte. Eis o reconhecimento esperado pelo criminoso que, em razão de seu obscuro sentimento de culpa, comete um delito para expiá-la (FREUD, 1916/1976). Essa explicação fundamenta-se no fato de que o sentimento de culpa é o motor do crime. Porém, estamos no âmbito da neurose, em que a condenação representa o alívio para aplacar a exigência do supereu. Nesse sentido, a culpa sentencia o sujeito que, para aplacá-la, comete um crime.
Contudo, há a também a passagem ao ato, no campo da psicose, na matriz paranoica, em que o crime é praticado a partir de distorções na relação do sujeito com o semelhante, considerado como impostor. Eis a interpretação de Lacan (1987) que não contou com a memória de sujeitos que buscavam uma análise e sim com a determinação do saber jurídico que, de posse das indicações do saber médico, retira-lhes o direito à palavra, considerando-os inimputáveis. Não obstante, o que dizer do crime praticado por um sujeito que não é considerado inimputável, em função de um estado de morbidez psíquica; nem motivado por um obscuro sentimento de culpa e nem pelo delírio que o ordena a praticá-lo?
Os assassinatos dessa última categoria de praticantes de ações criminosas são narrados friamente, mas, ao que parece, fazem parte de um projeto bem mais amplo da tentativa de encontro do sujeito com a lei, principalmente se considerarmos a posição em que o sujeito se julga um deus, tendo "prazer nos atos de violência, sempre carregados de detalhes, repetições. A obsessão pelo ritual era tão grande que sempre deixava alguma pista que acabava por denunciá- lo" (ARRUDA, 2001, p. 70). Por isso, o projeto de vida é matar para, devido à obscuridade do vazio da falha da função paterna, tentar o encontro com a lei. Em relação a esse cenário, o psicanalista pode ser convocado em sua experiência clínica para empreender uma ampliação da escuta flutuante, de modo a incluir, conforme assinala Gondar (2001), além da atenção flutuante, um olhar flutuante, ou seja, atentar para pequenos gestos que são índices de impressões de experiências que permanecem na ordem do indizível que, como traços mnêmicos, compõem fenômenos de fronteira que se expressam juntamente com a realidade recalcada do inconsciente. Tais fenômenos devem ser considerados como filigranas na construção de arranjos subjetivos e também como recursos de elaboração de experiências traumáticas.
Conclusões
O homem mata e comete outros tantos tipos de crime pelos mais diversos motivos. São várias as formas de extrair satisfação e prazer de seus atos e pensamentos. Assassinar é um dos atos humanos vetados ao homem pela Tábua das Leis. Sexto dos Dez Mandamentos, escritos em pedra e entregues diretamente a Moisés por Deus, o mandamento "não matarás" é constantemente violado pelos personagens reais descritos, tanto na Bíblia quanto em tantos outros textos que versam sobre a existência e a história da humanidade. Os mandamentos divinos foram alçados à condição de leis. Escritas em pedras e inscritas a sangue e lágrimas nas histórias de gerações, no decorrer do processo civilizatório, as leis habitam a consciência crítica de homens banais. Romper quaisquer delas tem como consequência a produção de angústia que, nesses casos, oriunda do olhar crítico da consciência, levaria-nos a experimentar a culpa.
A culpa é tão imperiosa que faz o homem frear na inclinação à destruição por intermédio da prática do assassinato de outras formas de devastação. Dai então, podemos afirmar que uma das mais poderosas bases do edifício sobre o qual se ergue a civilização é o temor do castigo advindo da voz imperiosa da consciência. Assim, a indagação: por que o homem, afinal, mata? Poderia muito bem ser colocada em seu oposto: por que, afinal, o homem não mata? Qualquer um de nós hesita em relação ao assassinato, em determinados momentos, embora a vontade exista, porque tememos ser castigados, não tanto pelo mundo dos homens e de seus códigos, mas por causa dos suplícios gerados em nosso ser pelas ruidosas e acusadoras vozes que ecoam em nossa consciência, imperativo categórico que foi legado ao homem pelos seus ancestrais.
A voz imperiosa da consciência que impõe um dique à vontade do homem para a prática do assassinato não é uma premissa universal. Existem homens que recuam, temerosos a essas vozes; porém, existem outros que se arvoram a posições de semideuses, desafiando-as na busca de satisfação pelo assassinato a qualquer preço. Dai ser essa a diferença entre aqueles que matam e os que não se encorajam a fazê-lo: o temor aos desígnios da consciência crítica. Considerando a hipótese de que esse temor não seja sentido, encontramos naqueles que matam justificativas diversas; muitas delas com o objetivo de desculpabilização, em que o matar é atribuído a forças que o sujeito desconhece ou não dominam. Porém, existem aqueles que matam e produzem narrativas nas quais deixam, em linhas e entrelinhas, explicações sobre a motivação para o crime: matar por prazer. Se há prazer no ato de matar, consequentemente, há também satisfação. Então como podemos pensar em satisfação pela dissolução em um ato irreversível? Em princípio, pelo fato de que quem mata sente-se na condição de decidir pelo destino de alguém, colocando-se em uma posição superior. Em segundo lugar, a posição de domínio pode ser experimentada como altamente satisfatória. Em terceiro lugar, os ecos da consciência podem não ser ouvidos e então não haverá culpa.
Pensar o crime, articulando-o ao conceito de prazer, é dar um salto além do muro edificado pelas teorias sociais, tão importantes e também muitas vezes obstacularizantes ao pensamento que, em suas interpretações, concebem a violência que assola não só o nosso país, mas também o mundo, sob a mira do terror, em termos de explicações que não implicam diretamente os agentes criminosos em termos decisórios.
Outra linha de interpretação busca as causas para o crime, em um tipo de escolha livre do homem, e responsabiliza cada um pelo seu ato. Sabemos, com o legado genial do pensamento freudiano, que o homem, já em seu berço, eliminaria, se pudesse, cada ser ou coisa que o toma dos braços da fonte de seu gozo. Cada rival, para aquele que aspira alcançar a posição de poder absoluto, poderia, com a força do pensamento mágico, inexistir. Conviver com o semelhante é tarefa quase hercúlea, mas cada sujeito deve renunciar ao gozo para que, dessa renúncia, possa brotar o desejo, pelo qual deverá responsabilizar-se. O homicida, como provavelmente todo criminoso, não tolera o adiamento da satisfação, daí não ser afeito a renúncias. Em certo sentido, inventa uma forma possível de existir por intermédio de seu ato assassino, desprezando o processo civilizatório. Esse mesmo raciocínio pode ser aplicado a uma nação quando toma outra como inimiga ou um povo quando toma outro como diferente. A título de ilustração, eis o que depreendemos dos testemunhos de quem experimentou sobreviver em campos de concentração, como Primo Levi quando distinguiu dois tipos de homens em situação de confinamento absoluto: os afogados e os sobreviventes.
Entre os submersos e os salvos, descritos por Levi (2004), os primeiros foram aqueles que se entregaram ao horror da vida em um campo de concentração, enquanto os segundos inventaram múltiplas formas de manterem-se homens, na sua dignidade e lucidez, embora dilacerados pela dor. Os assassinos técnicos que cometem crimes em séries afastam-se dos dois tipos descritos por Primo Levi: posicionam-se do lado do carrasco, do senhor maquinal, dos militares que, como autômatos, dirigiam sua violenta indiferença ao prisioneiro, mas que poderiam aparentar serem dóceis criaturas fora daquele lugar. Estariam obedecendo a ordens, fazendo o que o mestre manda? Cada assassino justifica, assim, seu ato e se exime de sua responsabilidade tentando, a qualquer custo, edificar arranjos no contexto das relações sociais, justificados em razões difundidas como naturais e necessárias.
Enfim, para finalizar, trazendo a discussão sobre a violência para nossos dias, embora as carnificinas do século XX não estejam tão distantes, convém assinalar que uma sociedade que vive sob o império dos sentidos, na busca de um prazer ininterrupto que julga ser felicidade, não pode considerar com respeito o que significa ser prestar atenção ao outro como o seu semelhante, simplesmente por ver nele o obstáculo a todo o bem e concentração de todo o mal. Isso pode ser um homem, uma nação, um povo ou aquilo que for tomado como diferente.
Certamente, as perturbações da vida social originadas da pulsão de morte, presentificadas em tantos exemplos de sua manifestação destrutiva, devem ser consideradas em qualquer análise e reflexão da violência. É nesse sentido que a Psicanálise é convocada, como campo de saber, a pensar sobre essa nuança da condição humana.
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Endereço para correspondência
Francisco Ramos de Farias
e-mail: frfarias@uol.com.br
Tramitação Recebido em 04/08/2011
Aprovado em 12/04/2012
*Psicanalista, doutor em Psicologia/Fundação Getúlio Vargas, coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social/UFRJ.