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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.34 no.27 Rio de Jeneiro Dec. 2012

 

Entrevistas

 

René Roussillon

 

Entrevista concedida aos Cadernos de Psicanálise-CPRJ feita por Beatriz Pinheiro de Andrade, Pedro Salem e Perla Klautau.

Nota do editor. Pedro Salem e Perla Klautau realizaram esta entrevista como parte de suas pesquisas de pós-doutorado desenvolvidas no IPUSP/USP, sob a supervisão do professor Nelson Coelho Jr., com o financiamento da FAPESP.

 

Durante o 71° Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa (CPLF), realizado em Paris entre 2 e 5 de junho de 2011, tivemos a oportunidade de entrevistar um dos maiores psicanalistas em atividade na França: René Roussillon, membro da Société Psychanalytique de Paris (SPP) e professor de Psicologia Clínica e Psicopatologia na Université de Lyon 2.

Além da qualidade e quantidade de trabalhos científicos publicados, Roussillon se destaca pela vivacidade e clareza em transmitir suas ideias, frutos de um percurso clínico solidamente estruturado. Ao longo dos anos, ele vem desenvolvendo várias frentes de investigações enfatizando, constantemente, a importância dos primórdios da vida psíquica na constituição da subjetividade. Dentre suas diversas pesquisas, diferentes áreas de aplicação do conhecimento psicanalítico vêm sendo contempladas, destacando-se estudos voltados para a primeira infância, relações estabelecidas entre psicanálise e as neurociências, e questões ligadas à adolescência e à abordagem psicopatológica dos casos e situações- limite. Nosso interesse especial, na realização da entrevista, esteve ligado a essa última temática.

A problemática dos sofrimentos narcísico-identitários, com destaque para o que diz respeito às modificações realizadas no enquadre psicanalítico clássico, o modo de compreender o processo de simbolização e suas condições de possibilidade, foi o ponto de partida para nossa reunião e a busca de realização dessa entrevista. Apresentamos, portanto, os frutos do nosso esforço de aproximação deste vibrante psicanalista.

O Sr. pode descrever um pouco do seu percurso psicanalítico, indicando suas principais influências, filiações e como o Sr. se situa teoricamente no campo da psicanálise?

Eu me aproximei da psicanálise muito cedo, quando ainda nos tempos de colégio comecei a ler os primeiros livros sobre o tema. Na época, eu fazia estudos científicos e literários em uma grande escola de Lyon. Aconteceram algumas coisas depois do vestibular que tornaram a relação com meu pai muito complicada, e isso fez com que eu não pudesse mais me preparar para a faculdade de engenharia, que eu pensava em fazer. Eu me vi obrigado a me sustentar e a pagar meus próprios estudos. Foi nesse momento que me tornei inspetor em uma escola e o que era meu segundo interesse tomou-se prioridade; fui fazer estudos de psicologia imediatamente e iniciei uma análise pessoal. Isso se deu de uma forma um pouco complicada porque, na época, eu também dançava. Tinha então a opção de partir com um grupo de dança ou de me colocar em um divã de psicanálise. Escolhi o divã, o que fez com que eu iniciasse uma análise com um psicanalista de Lyon, tornando-me psicanalista em 1977/78, quando tinha 29 anos.

Paralelamente ao início da minha formação – inclusive em função da minha relação com meu pai –, eu fazia uma formação em psicodrama psicanalítico de grupo. No momento da morte do meu pai, vivenciei cenas de psicodrama com Didier Anzieu em torno desse acontecimento. Alguma ligação importante se criou com Anzieu; tive vontade de revê-lo e então recomecei uma análise com ele. Eis aí meu segundo analista.

Minhas primeiras influências? Freud. E certamente Didier Anzieu, além de Green, outra influência muito importante. Quando fazia minha análise com Anzieu, eu ia frequentemente a Paris e passava horas no trem, o que me dava a possibilidade de ter muitas horas de leitura. Winnicott foi um autor que me acompanhou muito nessas viagens, e foi outra grande influência. Evidentemente, li também os outros: Bion..., mas Winnicott foi para mim uma verdadeira revelação.

Eu me situo na grande tradição da teorização freudiana, mas com a preocupação de tentar integrar outros autores no pensamento de Freud. Quando leio Winnicott, não me torno "winnicottiano", mas tento ver como nós podemos integrá- lo no pensamento de Freud. Para mim, o grande organizador é a metapsicologia freudiana, e a ela tento relacionar tudo aquilo que trabalho em paralelo.

Também trabalhei muito tudo que dizia respeito à clínica e à psicanálise dos bebês, assim como tudo o que se relacionava às neurociências, à biologia moderna, às terapias sistêmicas e ao modo como essas disciplinas poderiam dialogar com o pensamento de Freud. Ao mesmo tempo, o que me interessa e me apaixona, também, é tudo o que pode consistir numa extensão da prática psicanalítica para além de um tratamento clássico. Em particular – e essa é uma outra versão –, esta é minha postura universitária: coordeno muitas pesquisas clínicas sobre bebês surdos, adolescentes delinquentes, assassinos (adultes meurtriers), adolescentes anoréxicas, etc. Parto do princípio de que devemos poder utilizar o instrumental psicanalítico, mesmo nesses casos de grande precariedade, mas sempre mantendo o rigor da psicanálise.

Procuro ampliar o pensamento freudiano a partir de sua própria lógica. O meu trabalho se apoia na ideia de que, se queremos que as extensões da psicanálise permaneçam rigorosas, então é preciso centrar nos aspectos fundamentais desta disciplina: os dispositivos ditos psicanalíticos, a regra fundamental, a associatividade, o funcionamento psíquico de base, o que se aplica igualmente à vida psíquica dos bebês.

Se entendemos bem, o senhor não vê problema no diálogo entre a psicanálise, as neurociências e a psicologia do desenvolvimento, desde que a psicanálise preserve suas fronteiras epistemológicas. Nesse aspecto, o Sr. não parece muito próximo de Green, certo? Nossa impressão é a de que ele era bastante rigoroso ao situar a psicanálise em um campo que não estaria em absoluto em diálogo com os pressupostos dessas outras disciplinas.

A posição de Green é, sem dúvida nenhuma, complexa. Penso que ele tem razão: é importante que não haja confusão entre a posição da clínica psicanalítica e a posição, por exemplo, da psicologia experimental. Estamos todos de acordo sobre isso. Mas penso, também, que Green tem grande conhecimento desses outros campos e que, consequentemente, isso tem uma influência sobre o seu pensamento, mesmo que não tenha sobre sua posição de psicanalista. Considero-me muito próximo a ele deste ponto de vista. E, além disso, entendo que atualmente a psicanálise é atravessada por várias correntes contraditórias e nem sempre compatíveis entre si e que, em um dado momento, somos obrigados a escolher. Então, o que nos permite escolher? A primeira coisa é a eficácia clínica; o que funciona e o que não funciona; o que um determinado modelo de pensamento produz. A segunda maneira é avaliar se um certo número de enunciados psicanalíticos é compatível com o que sabemos do funcionamento do cérebro e da vida psíquica dos bebês, por exemplo. Há uma quantidade de coisas que são ditas sobre a vida psíquica dos bebês que não são compatíveis com tudo o que se conhece dos bebês – e, em minha opinião, isto é um erro.

Em seus textos sobre a clínica, o Sr. propõe o conceito de "identificação narcísica de base". Poderia nos descrever suas principais características e em que este conceito se diferencia das noções de imitação e empatia? Qual o seu papel no encontro clínico?

Essa é uma questão muito importante. A ideia de identificação narcísica de base postula que temos um aparelho fundamental onde se inscreve aquilo que se passa com o outro, quer queiramos ou não. Isso pode ser dito em termos biológicos a partir dos neurônios-espelho. Mas os neurônios-espelho são apenas uma porta de entrada para uma grande questão, que é o fato de que em nosso cérebro há um sistema que iremos chamar de "sistema do mesmo"; ou seja, que em nosso cérebro há uma parte que está "em duplo" com o que se passa com o outro. Este funcionamento se traduz na imitação e oferece possibilidades de empatia. Mas falar de identificação narcísica de base não significa simplesmente dizer imitação ou empatia. É tentar trabalhar também as fontes libidinais e eróticas; isto é, o modo como esta potencialidade de imitação e de empatia é investida pela libido.

Por exemplo, minha hipótese não é simplesmente que a mãe está "em duplo" com o bebê, mas também que eles têm prazer de estar "em duplo", que eles se procuram, que eles buscam se colocar nessa situação. Não o tempo todo, mas fazendo com que essa dimensão exista. Acredito que essa identificação narcísica de base faz parte das funções maternas e também das funções fundamentais da psicanálise. No meu entender, não há prática psicanalítica sem essa identificação narcísica de base.

Penso que a prática analítica, tal como é definida, supõe essa identificação narcísica de base, que torna efetivamente possível um certo tipo de contratransferência graças à qual a análise pode se efetuar.

O Sr. acredita que se trate de algo que podemos desenvolver em nosso percurso psicanalítico?

Acredito que seja algo que devamos desenvolver em nosso percurso psicanalítico mas, para fazê-lo, precisamos ter encontrado um psicanalista que tenha, ele próprio, uma suficiente identificação narcísica de base.

A prática analítica pode ser feita a partir da criança pulsional e narcísica que existe em nós mesmos, por exemplo, quando tudo que o paciente diz na análise é tomado pelo analista como se fosse para ele. Se acontece algo ao paciente, o analista diria: "você fez isso para me....". Isso é uma posição de criança narcísica. Existe uma outra posição, que seria de superego culpabilizante: "você me escondeu tal coisa", "você tem tal desejo inconsciente", "você é hostil...". Isto é, coisas ditas a partir de uma posição de acusação. A interpretação é, de fato, uma forma de acusação mascarada. A terceira posição é efetivamente a da identificação narcísica de base, onde não intervimos a partir do superego ou da criança narcísica, mas a partir do eu. Nesse caso, tentamos compreender a que o sujeito se viu confrontado, como lidou com tais situações e como podemos ajudá-lo a sair dessa posição narcísica. Como ele reage ao objeto, como o objeto reage a ele, mas mantendo uma diferenciação entre o eu e o outro sujeito. Não simplesmente um objeto, mas um objeto como outro sujeito, isto é, com desejos, movimentos pulsionais, emoções e particularidades.

Isto também é uma coisa muito importante para mim: quando dizemos "objeto" em psicanálise, colocamo-nos sempre do ponto de vista da pulsão, o que caracteriza um ponto de vista narcísico. Ou seja, o outro é concebido apenas a partir da minha pulsão. Isso é importante, evidentemente, mas deixa de lado outro aspecto fundamental, que é o fato de que o outro é um outro sujeito, pulsional, desejante, que possui movimentos próprios com os quais devemos permanentemente compor.

Se partirmos da hipótese de que a pulsão é "mensageira", que ela se desenvolve e se transmite de acordo com três "linguagens" potencialmente articuladas entre si – a linguagem verbal, a linguagem do afeto, e a linguagem do corpo e do ato –, qual é a importância da escuta da "linguagem do ato e do corpo" na clínica dos sofrimentos narcísico-identitários?

Essa é uma questão sobre a qual tenho trabalhado muito nos últimos anos, porque é indispensável para todas as extensões da clínica. E ao trabalhá-la, tive uma surpresa. Percebi que a ideia de que a psicanálise deve se desenvolver unicamente a partir da escuta da associatividade verbal – ideia que em grande parte emergiu de Lacan – não é suficiente. A escuta também deve se dar a partir de uma certa formulação da regra fundamental da psicanálise e, quando examinamos a prática concreta de Freud, percebemos que ele próprio estava constantemente à escuta do corpo e dos afetos. A escuta da associatividade em Freud não é de modo algum unicamente a escuta da associatividade verbal, mas é uma escuta da associatividade na polimorfia dos modos nos quais ela se expressa.

Dito de outro modo, para Freud, a associatividade é uma escuta das formas de linguagem, mas esta não se resume à linguagem verbal. Da mesma maneira, a representação, para Freud, não é apenas a representação verbal. Ela é representação de coisa, ela é representação de afeto. A verdadeira questão da pulsão diz respeito a seus modos de representação. Existem três formas de representação que são, a meu ver, três tipos de linguagem cujas manifestações devem ser igualmente escutadas. Na psicanálise tradicional, entendemos que tudo aquilo que é ato, tudo o que é afeto, tudo o que é motor deve ser antes transferido para o visual e, em seguida, para representação de coisa. E que as representações de coisa sejam transferidas para o aparelho de linguagem. Aqui podemos usar a metáfora do trem. Imagine que você está num trem em movimento observando a paisagem. Você está em movimento – este é o campo dos afetos motores – e vê a paisagem passar à sua frente; este é o campo visual e você pode descrevê-lo a alguém que possa não o estar vendo com seus próprios olhos. Em outras palavras, ocorre uma transferência dupla. Uma transferência do campo motor em campo visual e uma transferência do campo visual para o campo da linguagem. Quando isso funciona, é ótimo. Mas o problema é que existem pacientes para os quais isso não funciona. Algo como: o trem está em movimento, mas não se vê paisagem, como se estivessem num túnel. Ou então o trem parece ter parado, gerando uma imagem fixa, que permanece sempre igual. Em outros termos, essas pessoas vão trazer para a análise algo que não irá passar para a linguagem verbal, mas que começará a se expressar sob forma de ato, sob forma de movimento, por exemplo, quando se levantam ou gesticulam durante a sessão. Atendo uma paciente que, sempre que tomo a palavra, coloca sua mão na boca e, se digo algo que a incomoda, ela pressiona sua mão com força para que nada entre. Se digo algo que ela aceita, retira então a mão e entreabre sua boca. Ela não me fala disso, mas me mostra. Mantenho então o olho/escuta, a sensibilidade afetiva/escuta. O que estou dizendo, em suma, é que existe uma polimorfia da associatividade e que é preciso ter uma escuta polifônica para escutarmos as diferentes modalidades de expressividade.

Ainda a respeito da linguagem do corpo e do ato, como podemos pensar essas linguagens não apenas como capacidades expressivas, tais como "porta-vozes" ou "narrativas associativas", mas também como defesas instaladas no corpo? E como podemos associar isso à ideia de repetição?

Vamos começar pela última parte da questão, relativa à associação com a repetição. Em 1920 Freud introduz a ideia de que há uma compulsão à repetição e, na época, ele a associa à pulsão de morte, à destrutividade, etc. Logo depois, as questões evoluem e, em 1938, ele sustenta uma nova proposição, que consiste em dizer que as experiências que mais se repetem são as experiências mais precoces. Freud diz que isso se explica em função da fragilidade da capacidade de síntese do eu precoce da criança. O que ele entende por experiência mais precoce? Em Construções em análise, quando ele fala da psicose, diz que são as experiências que precedem a aparição da linguagem verbal. Em outras palavras, quando as experiências mais precoces se repetem, elas o fazem na linguagem da época: a linguagem do corpo, a linguagem do ato, a linguagem do afeto, que são frequentemente linguagens mímicas, gestuais e posturais. Portanto, há uma ligação muito precisa entre a repetição e tudo aquilo que precede a linguagem verbal.

Será que essa linguagem é defensiva? Isso é uma questão importante. Por que essas experiências precoces não foram integradas pouco a pouco na linguagem verbal? Uma hipótese que é preciso considerar é que algo as impediu de se integrarem na linguagem verbal. Pode ser pelo fato de terem sido experiências de natureza traumática e desagradável, que teriam mobilizado mecanismos de defesa. Ou seja, eu não penso que sejam defesas, mas sim que há defesas ligadas ao fato de que as experiências às quais se referem são desagradáveis e de natureza traumática. Quando essas experiências retornam, o aparelho psíquico é ameaçado novamente por algo que ele sente como traumático. Então, recoloca em ação defesas contra o retorno das mesmas.

Para aprofundarmos esse ponto, é preciso trazer uma noção complementar importante, que é a questão da lembrança e das formas de memória. Sabemos atualmente, por razões neurobiológicas (mas já estava implícito no pensamento de Freud), que as experiências precoces não vão retornar sob forma de lembrança. Isso porque o aparelho cerebral não é construído de tal forma que ele possa representar isso como uma lembrança. Dito de outra forma, as experiências precoces vão voltar sob forma da memória que os biologistas chamam de procedural e que os analistas chamam de processual.

Quer dizer, sob a forma de processo, mais precisamente sob a forma de movimento, de afeto, de percepções, sensações... A partir desse momento, quando as experiências precoces retornam, elas não o fazem sob a forma de lembrança, mas sob uma forma de repetição direta da experiência tal como ela foi registrada. Essa repetição é amedrontadora para o sujeito, e é isso que coloca em ação os mecanismos de defesa.

O que torna algo traumático? O que é traumático é aquilo que não é bem compreendido pelo ambiente; é quando o ambiente não oferece um espaço para a metabolização dessas experiências. Essa é uma característica das experiências precoces: é como se tivesse havido um movimento da criança para tentar expressar algo e que esse movimento teria requerido uma atitude complementar do ambiente para ajudá-lo a compreender e permitir que isso se transformasse em linguagem, mas o ambiente não esteve presente.

Mas essa seria uma concepção do traumático diferente ou próxima da ideia de excesso?

Essa concepção se afina com a ideia de excesso, cujo problema é, em primeiro lugar, que ela esteja ligada à ideia de excitação. Observamos que, por várias vezes, a tradução para o francês (a partir da língua latina), do que Freud chamava impressão, foi excitação. Mas não é nada parecido: uma impressão e uma excitação. Além disso, a excitação não é um problema em si. O problema ocorre quando ela não está ligada, simbolizada, quando ela não é organizada. O que permite a excitação de se organizar, de se ligar e de ser simbolizada é precisamente a resposta do objeto. Se a resposta do objeto for inadequada, toda excitação é excessiva porque ela não consegue se ligar. Portanto, não é contraditório, mas a questão do excesso é apenas uma parte da questão.

Por que haveria excitações em excesso? Há excitações em excesso porque a função reguladora e introjetiva do ambiente não se deu de forma adequada para a criança. Então, voltamos a algo que concerne ao materno. Vemos muito na literatura psicanalítica a ideia de que a mãe deve ter uma função paraexcitante. Jamais encontraremos essa ideia em Freud. A paraexcitação não é da mãe; é da biologia. E a biologia entra em cena quando há muita excitação. E há muita excitação quando o ambiente não permite que essa excitação seja ligada. Em contrapartida, a função materna que Freud concebe é uma função iniciadora, isto é, uma função de introjeção. A função materna não é a de paraexcitar as crianças. Evidentemente ela não fará seu bebê dormir ao lado de um bate- -estacas (isso é um absurdo e precisamos estar de acordo sobre isso). Por outro lado, a função importante é a função de introjeção, de iniciação à sensualidade e de introjeção da sensualidade.

Isto quer dizer que esquecemos um pouco que o objeto tem uma função de ligação e que há duas maneiras de resolver o problema da excitação: ou reduzimos a excitação porque o problema é a excitação livre, ou a ligamos dentro de um sistema de representação, de um sistema de linguagem. Tudo o que se diz sobre o excesso de excitação, do meu ponto de vista, é apenas o testemunho de que há uma falência da função primitiva de ligação da excitação.

O Sr. afirma que "toda teoria que pretenda descrever o psiquismo deve levar em conta o campo da representação, da percepção e da alucinação". E no contexto das variações técnicas, o senhor poderia nos falar como essa ideia se articula à de "uso do objeto"?

Vou começar pela primeira parte da pergunta, pois se trata de uma oposição – percepção, representação e alucinação –, que não é uma boa oposição. Na psicanálise, continuamos a dizer: "é algo que não possui representação". Mas isso não quer dizer grande coisa, já que não é possível que algo não tenha representação. De um ponto de vista neurobiológico, nosso cérebro fabrica representações de tudo o que se passa e, portanto, não existe algo sem representação. Às vezes pode não possuir representação simbólica; outras vezes pode não possuir representações verdadeiramente integradas. Por exemplo: imagine que você esteja diante de uma situação traumática que provoque um medo intenso em função de um perigo de morte. Mas perigo de morte já é uma representação. Quando examinamos como nosso sistema perceptivo funciona, vemos que o cérebro decompõe o objeto percebido: ele toma forma e esta é processada num espaço do cérebro que trata das formas. O mesmo ocorre com a distância. Isso significa que decompomos os objetos e os processamos em pontos específicos do cérebro e, em seguida, ligamos todos esses pontos. Isso é uma representação. Em outros termos, a percepção é uma representação perceptiva. E devemos precisar o modo como nos referimos às representações: representação simbólica, representação especular ou representação perceptiva. Mas sempre há representação e não podemos funcionar fora dela. Com a alucinação ocorre o mesmo: é uma representação que é suficientemente investida para que se apresente à vida psíquica da mesma maneira que uma representação perceptiva. Em seguida, a questão do uso do objeto.

O que disse anteriormente é que possuímos diferentes tipos de memória, de acordo com as idades. Se o que se passa nos dois primeiros anos de vida da criança não é suscetível de ser rememorado sob forma de lembrança, retornará sob forma alucinatória, sob forma perceptiva ou sob forma de afeto disruptivo e transbordante. O que Winnicott diz a respeito do uso do objeto – cuja importância técnica é fundamental –, é que em um dado momento existem coisas na vida psíquica que não podemos tratar como se fossem projeções do sujeito. Há um registro primitivo do bebê em que se deve considerar que o objeto é um dado. Então não se trata de uma projeção do bebê, não é um objeto fruto de sua pulsão, é um objeto tal como se apresenta; o que chamei anteriormente de outro sujeito. Com relação à técnica psicanalítica, o que ocorre é que durante um longo tempo trabalhamos como se, a cada vez que o sujeito falasse de seus objetos, isso ocorresse em função de seus desejos. Winnicott disse: existem registros da vida psíquica que não funcionam dessa maneira. Não podemos funcionar como se fosse o desejo do sujeito, porque ele é confrontado a uma espécie de realidade do objeto; de ser ou não utilizável, com o qual pode ou não fazer alguma coisa. E acredito que, no trabalho analítico, é importante podermos reconhecer de algum modo a parte do objeto que não é utilizável (no sentido winnicottiano de "uso do objeto").

Isso representa uma grande revolução técnica, já que não podemos raciocinar apenas em termos da pulsão do sujeito. É preciso raciocinar em função da pulsão do sujeito e da resposta do objeto. Por exemplo: trabalho com uma paciente anoréxica que parece ter muito medo de sua vida pulsional, ela freia todos os seus impulsos. Quando pensa sobre si mesma, percebe que paralisa toda sua vida. Não compreende exatamente o motivo, mas apenas constata que é assim que acontece. Passamos a poder colocar isso em na sua relação com a indisponibilidade do objeto primário; com o fato de que seus movimentos nunca puderam ser recebidos ou acolhidos pelo objeto. Compreendemos então que o que freia seus impulsos de ligação é, efetivamente, que existe uma determinada resposta do objeto. Então não trabalharemos apenas sobre o desejo do sujeito e seus mecanismos de defesa, mas também sobre aquilo a que foi confrontado da perspectiva de um outro sujeito. Isso muda tudo em termos da técnica, pois nesse momento não consideraremos apenas os movimentos do próprio sujeito, mas aquilo a que foi confrontado e como isso se introduziu em sua vida psíquica.