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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
On-line version ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.38 no.34 Rio de Jeneiro June 2016
ARTIGOS
As melancolias e as depressões: o biopoder, as produções de sentido e de discursos
The melancholy and depressions: biopower, the meaning productions and speeches
Ana Rosa Gonçalves de Paula Guimarães*
Universidade Federal de Uberlândia - UFU - Brasil
RESUMO
O objetivo deste estudo é o de apresentar as produções de sentidos das melancolias e depressões, a partir de um breve histórico dos estudos psicanalíticos de Fédida (2009), Dunker (2015), Kehl (2009), entre outros. Para isso, partiu-se dos conceitos de história, discurso, construção social de sentido e vontade de verdade, propostos por Foucault (1979; 1995). Para fundamentar a leitura sobre o entendimento do que seria a depressão na atualidade, foi realizado um levantamento sobre o deslocamento semântico do termo, as ideologias permeadas pelos diagnósticos e medicalizações em excesso, assim como o contexto histórico-social da hipermodernidade, o qual circunscreve e nomeia alguns de seus sujeitos sociais como deprimidos.
Palavras-chave: Melancolia, Depressão, Discurso, História, Psicanálise.
ABSTRACT
The aim of this study is to present the productions of sense of melancholy and depression, from a brief history of psychoanalytic studies Fédida (2009), Dunker (2015), Kehl (2009), among others. For this, it started with the concepts of history, speech, social construction of meaning and truth of will, proposed by Foucault (1979; 1995). In support of reading about the understanding of it would be depression today, a survey was conducted on the semantic displacement of the term, ideologies permeated by excess diagnosis and excess of medication as well as historicossocial context of hyper, which circumscribes and names some of their social subjects as depressed.
Keywords: Melancholy, Depression, Speech, History, Psychoanalysis.
Introdução
A melancolia e a depressão fragmentam-se em uma proliferação de discursos, construídos pelo saber médico, pelo conhecimento psicanalítico e pelas ideologias contidas em cada estatuto da memória social, cultural, histórica e discursiva em dado processo histórico. Segundo Foucault (1979; 1995) as construções de sentido acerca da história e dos discursos dos objetos e situações, em que estão inseridos os sujeitos sociais, atravessam-se pelas rupturas e redistribuições de significância, uma vez que o micropoder subjuga demandas discursivas. Para Courtine (2008) o conhecimento da memória permanece como um investimento interpretativo de grande alcance, por meio de seu funcionamento, descontinuidade e esquecimento. Dessa forma, pode-se tentar compreender as melancolias e depressões no plural, levando-se em conta estas formulações.
Para isso, partiu-se de um breve histórico do que seria a melancolia e a depressão nas mais importantes épocas históricas, para, posteriormente, tentar compreender quais as ideologias que perpassam o excesso de diagnóstico e de medicalização do sujeito, nomeado com transtorno de humor depressivo, atualmente. Para tanto, também foi feito um panorama de quem deva ser o sujeito, que está inserido no contexto atual da hipermodernidade, de acordo com as contribuições de Lypovetsky (2007; 2011) e o que se espera desse sujeito no atual momento historicossocial.
As produções de sentido sobre a melancolia e a depressão no decorrer da história
No fundo da prática científica existe um discurso que diz: nem tudo é verdadeiro; mas, em todo o lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, à espera de nossa mão para ser desvendada (FOUCAULT, 1979, p. 113)
Ao longo dos séculos da civilização, toda a sua existência e tecnologias da verdade foram paulatinamente desqualificadas, redescobertas e expulsas pela prática científica e pelo discurso filosófico. Para Foucault (1979), a verdade não seria aquilo que se é, ou seja, à maneira com que é apresentada - mas, estaria condicionada a um processo de construção e parcialidade diante dos acontecimentos, uma vez que ela é relativa a posicionamentos. Deste modo, o aparato tecnológico da verdade, enquanto acontecimento que exige rituais e provas, permanece como núcleo irredutível ao pensamento científico.
Os procedimentos de saber acompanham as mutações essenciais das sociedades ocidentais, por meio das formas de "poder-e-de-saber", de "poder-saber", de acordo com Foucault (1979, p. 117), pois funcionam e se efetivam no nível da "infra-estrutura", que concedem lugar à relação de conhecimento sujeito-objeto como autoridade de saber. Os níveis de análises e o funcionamento do discurso se multiplicaram, permeados por histórias desordenadas, rupturas e redistribuições, as quais fazem o passado se parecer como múltiplos, sob a forma de encadeamentos, hierarquias de importância e diversas redes de determinações estabelecidas. De fato, portanto, as descrições históricas se ordenam pela atitude do saber, que se agregam com suas transformações (FOUCAULT, 1995).
Já que história não é do conhecimento, mas é perpetuada pela maneira com a qual se produz a verdade - "a vontade de verdade", ela toma formato e se impõe à norma do conhecimento. Uma crise, por exemplo, é concebida e exercida no momento em que sua natureza ascende à superfície e se deixa à mostra. Uma ação sobre a doença incide na revelação da verdade aos olhos da medicina, como também, ocorre para que a ciência possa produzir tal enfermidade, pois, segundo Foucault (1979, p. 118): "O hospital do século XVIII devia criar as condições para que a verdade do mal explodisse".
Uma vez que a constituição do sujeito é permeada pelo lugar da história e pelo lugar social, é relevante observar quais foram as construções sociais, efeitos de sentido discursados que se fizeram representáveis na realidade, dado cada contexto histórico-social, diante da melancolia e depressão, e quais os lugares de ideologias que transcorreram para sua continuidade e, posteriormente ruptura. Segundo Guilhaumou (2009) o acontecimento engendra o sentido produzido, uma vez que o enunciado também, por si só, é seu próprio contexto e, com isso, pode-se interrogar sobre o caráter imanente do acontecimento, formado por um conceito no interior de um dispositivo, que é posto, levando-se em conta, ao mesmo tempo, a sua dimensão interpretativa.
O termo melancolia (melancholia), de acordo Edler (2008), na Antiguidade foi vinculado à ideia de bile negra (melas, negro, chole, bile), que, em excesso, seria responsável pela tristeza. A expressão melancolia surgiu pela primeira vez na Grécia, no século IV a. C., coincidindo com as definições iniciais do homem enunciadas por pensadores gregos. Conforme essa concepção, segundo a qual a natureza compreenderia quatro estações, e a matéria, quatro qualidades fundamentais (o calor, o frio, o seco e o úmido), o homem era constituído por quatro elementos. No início do século IV a. C., Hipócrates formulou a teoria dos humores, que seriam igualmente quatro: o sangue, a linfa, a bile negra e a bile amarela. As condições de saúde ou de doença estariam, de acordo com a teoria humoral, relacionadas ao equilíbrio ou ao desequilíbrio dessas substâncias no organismo.
O corpo na medicina antiga, para Pigeaud (2009) é essencialmente poderoso, atravessado por uma finidade de cavidades, canais, nos quais circulam líquidos e ar. Esses líquidos são os humores. Entretanto, para o autor (2009), não se pode mesmo dizer que haja, em grego, um termo particular para designar os humores, as "espécies de líquido", como diz o texto hipocrático. Certos tratados utilizam, por exemplo, o termo ikmas, outros preferem chymos.
Segundo Aristóteles, também vinculado à Idade Antiga, existe um tipo de melancolia natural, devido à ação da mesma bílis negra, que tornaria seu portador genial. A melancolia é subentendida como condição de genialidade, pois seria responsável por características peculiares de muitos heróis e filósofos. Assim, a criação e a melancolia ficam associadas, pois o homem triste é também um homem profundo. Nos estudos de Pigeaud (2009), acerca do Problema XXX de Aristóteles, relata que todos os homens excepcionais no que diz respeito à poesia, filosofia e política foram melancólicos, como Sócrates e Platão. E ainda: a genialidade e a loucura teriam a mesma natureza, contudo a diferença estaria no grau, na intensidade de cada uma. É provável que Aristóteles tenha recebido a influência de um ensaio de Theophastus, Peri melancolias, que se extraviou (PERES, 2010).
Designando, inicialmente, apenas uma substância que faria parte do corpo, o nascimento da melancolia como doença, no entanto, foi conferido um estatuto jurídico e fundador ao 23º Aforismo do livro VI dos Aforismos de Hipócrates: "se a tristeza e temor duram muito tempo, tal estado é melancólico"; entendamos que tal estado depende do humor bile negra ou do caráter negro da bile (PIGEAUD, 2009, p. 118). Segundo a tradição, dysthymia pode ser entendida como tristeza; esse termo designa o abatimento, o mal-estar. O valor estrutural desse aforismo é deixar livre a interpretação. O autor contenta-se, em constatar a concomitância de um estado afetivo particular e de um estado fisiológico especifico. O legado do aforismo reside na articulação de dois sentimentos, temor e tristeza, com um humor bem preciso, que se poderia crer objetivamente analisável.
Entretanto, Peres (2010) afirma haver uma ambiguidade no uso da palavra melancolia, porque, de um lado, existiria um humor natural e não necessariamente patogênico e, por outro lado, uma doença mental produzida por um excesso ou desequilíbrio destes humores.
Os gregos deduziram a ideia de que uma mente sã produziria um corpo também são, conceito este, que foi retomado, adaptado e transformado pelos modernistas de que uma mente pouco sadia refletiria um corpo doente, e que as enfermidades da mente são interrelacionadas e interligadas à disfunção corporal. Galeno formulou seu elixir cordial, enquanto os astecas começavam a usar fortes drogas alucinógenas para prevenir a melancolia entre prisioneiros, pois eles acreditavam ser ela, um mau presságio. Aos cativos que deviam ser sacrificados era produzida uma bebida especial, a fim de impedi-los de se desesperarem, evitando assim que ofendessem aos deuses (SOLOMON, 2010).
O cristianismo, desde as suas origens, mantém um culto à melancolia. Se, por um lado, ela é panorama do pecado, por outro, pela via do mesmo cristianismo, é considerada um caminho que conduz a Deus, acesso este, que se intensifica na Idade Média sob a forma de acedia. Santo Agostinho declarou que a separação dos homens aos animais devia-se ao dom da razão e, a perda desta, reduzira o homem a um animal Os monges eram, especialmente, propensos a desenvolver acedia, manifestada neles através de exaustão, apatia, tristeza ou desalento, inquietação, aversão à cela e à vida ascética, anseio pelo refúgio com a família e pela vida interior. A Reforma Protestante, através de Lutero, seu principal representante, cultivou a melancolia, pelo fato de retirar das ações do homem a possibilidade de expiação das faltas.
As contribuições de Platão originaram o modelo de desenvolvimento que sugeriria que a infância de um homem poderia determinar a qualidade de seu caráter adulto, pois ele assinala o poder da autoridade familiar em predispor para o bem ou para o mal as atitudes políticas e sociais do homem no decorrer de sua vida. "Seu modelo tripartido da psique adulta - o racional, o libidinal e o espiritual - é estranhamente parecido com o de Freud. Na verdade, Hipócrates é o avô do Prozac; Platão é o avô da terapia psicodinâmica" (SOLOMON, 2010, p. 433).
O médico e alquimista suíço Paracelso, pertencente ao período da Idade Média, de acordo com Peres (2010) adotou a teoria médica baseada na concepção alquímica das correspondentes ou analogias entre as diferentes partes do corpo (microcosmo) e aquela do universo na sua totalidade (macrocosmo). Segundo esta teoria alquímica, que prega a transformação, adota a mítica da criação e as características emocionais, Adão foi o representante da tristeza e Eva, da alegria. As matérias contidas em Adão se misturaram com as incluídas em Eva, produzindo a homeostase e um ser uno.
Na Idade Média, a melancolia foi moralizada, pelo fato de ser vista como manifestação da cólera de Deus (SOLOMON, 2010). Entretanto, ainda neste período, através da ciência árabe, a teoria dos humores, ainda presente, ligou-se à astrologia, na medida em que vinculou a influência fatídica do astro Saturno à direção do funcionamento melancólico. Contudo, a potência de Saturno não afetava pessoas vulgares, ele escolhia os seres extraordinários. Solomon (2010, p. 432), com isso, destaca na Idade Média, quem eram os sujeitos afetados pela melancolia:
Na época em que Hamlet foi encenado, a melancolia era quase tanto um privilégio quanto uma doença. Numa peça de meados do século XVII, um moroso barbeiro queixa-se de sentir melancolia e é severamente repreendido. "Melancolia?" Nossa, que absurdo, melancolia é palavra para boca de um barbeiro? Você devia dizer pesado e tolo: "melancolia é o penacho das armas do cortesão!" Segundo as notas de um médico do período, 40% de seus pacientes melancólicos tinham títulos - apesar do fato de que boa parte de sua clínica era dedicada a cuidar dos lavradores e de suas esposas.
Ainda na Idade Média, a melancolia, que sofreu oscilações nas descrições como maldição ou eleição do astro Saturno; no Renascimento foi delineada como uma doença e uma qualidade inerente a um tipo de uma personalidade. Neste momento, houve a distinção entre a melancolia sublime e a melancolia vulgar, teoria atribuída a Marsilius Ficinus, médico florentino autor de Da vita tríplice. Ficinus reuniu quatro tradições de pensamentos: a hipocrática (teoria dos humores), a platônica (poesia e furor), a astrológica (Saturno e melancolia) e, por fim, a aristotélica. "Para Ficinus a melancolia é ao mesmo tempo um grande tormento, mas também a grande chance para os homens de estudo". Deve-se a Dürer a materialização dessas concepções em sua pintura A melancolia" (PERES, 2010, p. 16).
Nos séculos XVI, XVII e XVIII, período que corresponde ao classicismo, para Michel Foucault, produz-se uma passagem de uma causalidade sustentada pelas substâncias - ainda a teoria dos humores - para uma causalidade das qualidades. Surge a noção de uma transmissão de qualidades - solidão, inibição, amargura e tristeza (PERES, 2010, p. 17).
No período compreendido entre os fins do século XIV e início do século XVII, o Renascimento ostentou a melancolia, cuja apatia significava insight e a fragilidade embutida nela, era o valor atribuído à visão artística e a complexidade da alma. O barroco, estilo artístico que floresceu entre o final do século XVI e meados do século XVIII, é herdeiro do estado d´alma melancólico, pois o ensinamento, a autocontemplação exagerada, a culpabilização faziam parte desse íntimo universo artístico (PERES, 2010).
A Revolução Industrial foi um conjunto de mudanças que aconteceu na Europa, nos séculos XVIII e XIX, e para que o proletariado fosse oprimido com eficiência, os líderes da revolução que fossem melancólicos deveriam ser segregados:
Os melancólicos não podem liderar uma revolução, porque gente melancólica mal consegue sair da cama e calçar meias e sapatos. [...] os verdadeiros melancólicos não foram tornados invisíveis pelos asilos; eles têm sido sempre amplamente invisíveis porque sua própria doença faz com que cortem os contatos e ligações humanas. [...] A reação geral de outros membros do proletariado (ou, na realidade, de qualquer outra classe) às pessoas que estão gravemente melancólicas é de rejeição e o desconforto. [...] Dizer que os gravemente doentes foram "retirados" de seu contexto natural é negar a realidade de que seu contexto natural os rejeitou, como faz sempre que pôde até então (SOLOMON, 2010, p. 485).
No período romântico, que ocorreu no final do século XVIII, a melancolia era considerada uma condição que propiciava o sublime e a contemplação. A extrema emotividade, o pessimismo, a valorização da morte, o desejo de evasão, foram apenas algumas das formas do romântico revelar sua perplexidade ante a um mundo, cujos padrões e valores ficaram inaceitáveis, em especial a partir da eclosão da Revolução Industrial. Sob as fatalidades circunscritas na sociedade em que se vive o romântico, muitas vezes mergulhou na melancolia, na aceitação e até mesmo no cultivo de tal infelicidade, fato que, dado a demanda histórica, a melancolia funcionaria para a produção artística. Os discursos de Aristóteles sobre genialidade e melancolia, novamente são retomados e desconstruídos, entretanto, com o advento do capitalismo, neste mesmo período, a melancolia, de certa forma, vem capturada para o giro do capital e do mercado, a partir da publicação massiva de romances e poemas, que adotam uma atmosfera melancólica e evasiva.
Os séculos XVII a XIX compuseram a era das ciências, quando experimentos buscavam determinar a composição e função do cérebro e elaborar estratégias biológicas e sociais para refrear as mentes que saíam do controle. A era moderna começou no início do século XX e teve como marcos os estudos psicanalíticos de Freud e da psiquiatria com Krapelin. Através da passagem histórica, a clínica moderna no século XIX, foi marcada pela imagem de Auguste Pinel e pela ascensão do alienismo, cujo movimento da condição da loucura de problema moral, foi transportado a uma questão de natureza, conhecimento e poder médico.
Na percepção da psicanalista Kehl (2009) o melancólico até o Romantismo, foi representado como alguém que perdeu seu lugar junto ao Outro. Consumido em ruminações, arrependimentos, dúvidas e investigações, ele caminhava em busca de novas indicações que o ajudassem a responder de maneira adequada ao enigma do que o Outro e a sociedade esperavam dele. Nesse sentido, as antigas formas de melancolia podem ser entendidas como variações do sintoma social e representavam preciosos dados para compreensão das condições de inclusão dos sujeitos no laço social ao longo da história.
Entre os fatores introduzidos pelo contexto historicossocial presente no desenvolvimento da psicanálise sobre as relações do sujeito com seu meio externo e interno, com a demanda histórica e acontecimentos discursivos no final do século XIX, consta-se a perda das referências estáveis que, desde o feudalismo até antes do período das revoluções burguesas, condicionavam o pertencimento dos sujeitos ao ambiente de convívio. As sociedades modernas, caracterizadas pela mobilidade social e pela crescente liberdade de escolhas individuais, tornaram-se as condições da inclusão e as regras de relações cada vez mais abstratas. A complexidade das estruturas simbólicas, a partir dos primórdios do capitalismo, tornou um campo confuso e duvidoso aos sujeitos sociais. Ao parafrasear o escritor Machado de Assis, acerca da patologia chamada "O social", Dunker, (2015, p. 35) observa: "[...] toda forma de 'patológico' deve ser entendida desde o social, ou seja, como bloqueio, interrupção ou contradição não reconhecida nos laços sociais".
Atualmente, Peres (2010) expõe que o estatuto da melancolia cedeu espaço à depressão, que implica diminuição, recuo e decréscimo. A psiquiatria introduziu o uso desse vocábulo que melhor se aplica a um estado de doença do que à romântica melancolia. Conforme Solomon (2010) destaca, as p erturbações, anteriormente chamadas de melancolia, foram deslocadas para o termo estranhamente corriqueiro de depressão, que foi, inicialmente, usado em inglês para descrever desânimo em 1660, e entrou para uso comum em meados do século XIX e ampliou-se, extraordinariamente, durante o século XX e o início do século XXI.
Depressão (depremere), de origem latina, sugere o sentido semântico de pressão para baixo, achatamento, queda. O termo não é exclusivo da medicina ou da psiquiatria, visto que teria se originado na economia de mercado, que é oscilante, alternando ciclos de euforia e depressão. O termo depressão teria passado do campo da economia para a nomenclatura psiquiátrica, ganhando, a partir deste momento, o ingresso à linguagem comum (EDLER, 2008).
Desse modo, percebe-se, que o acontecimento não é mais redutível somente à situação nem ao contexto, ele é um momento genético da realidade, do lugar de sentido, é ao mesmo tempo espaço e gênese, sem, entretanto, dispor de uma dinâmica própria. Pode-se, a partir disso, considerar a "preestruturação histórica" da língua renovada permanentemente em acontecimentos linguísticos, co-extensivos aos acontecimentos de discurso, nos quais a singularidade da atuação dilata-se ou não à inovação linguística (GUILHAUMOU, 2009).
Atualmente, para o conhecimento psicanalítico, a melancolia é veiculada como um quadro psicopatológico ligado ao sujeito, que resulta em um mal-estar psíquico e que também ultrapassa a barreira do universo interno, na medida em que a vida social e econômica do sujeito sofre tais interferências. É um termo associado ao caráter depressivo, pois se caracteriza pelo desamparo, apatia, morbidez, desinteresse por atividades que anteriormente obtinha prazer, bem como pela desesperança e incerteza da condição de si no mundo. A depressão, por sua vez, é considerada uma modalidade de transtorno de humor - transtorno depressivo e tem a melancolia como um indicador do estado enfermo do doente, bem como amálgama outros sintomas e sinais em seus níveis psíquicos, orgânicos e sociais.
Assim, melancolia e depressão constituem um conjunto, cujo nomear poderia ser melancólico-depressivo, e seus limites são um tanto imprecisos para a psicanálise. Para a psiquiatria, o conceito de melancolia é reservado à doença espontânea e irreversível e na depressão, segue-se a união de tipos como a "psicótica" e "neurótica". Porém, ambas assemelham-se, pois a perda comum caracterizada por uma perturbação relacionada à falta de algo psiquicamente importante para o sujeito, sendo algo concreto ou alguma abstração, que ocupa espaço em seu ego. Portanto, depressão e melancolia têm a pluralidade que se atrelam a sintomas e sinais.
A partir da introdução dos medicamentos antidepressivos a depressão é potencializada na psiquiatria, bem como as prescrições medicamentos são generalizadas, contribuindo para a confusão desses equívocos. Em seus estudos, o psicanalista Fédida (2009) explica os motivos para tal dissolução entre melancolia e depressão: a depressão, atualmente, assola particularmente os países ocidentais mais ricos e onera aos sistemas de saúde, tal como a produtividade do trabalho. Por outro lado, os antidepressivos, como o nome indica, são teoricamente eficientes no tratamento da depressão, mas não antimelancólicos. É a partir da disseminação do consumo de antidepressivos por pacientes que estão em tratamento psicoterapêutico que se observa diferença entre depressão e melancolia.
Entretanto, alguns dos sentidos produzidos que marcam algumas desordens de humor, nas pesquisas do antropólogo Gananeth Obeyesekere, apresentam-se com outra acepção, como, por exemplo, no caso dos budistas do Sri Lanka, que encaram sintomas de desesperança, falta de sentido e tristeza como parte de uma filosofia de vida reconhecida culturalmente e, não como doença (HORWITZ; WAKEFIELD, 2010).
A depressão (tristeza) vigiada e punida
Para ser tratado de acordo com a medicina moderna, é preciso sofrer de acordo com ela ( DUNKER, 2015, p.10).
A transformação do discurso da tristeza normal intensa em transtorno depressivo ocorreu em diversas etapas, conforme as pesquisas de Horwitz & Wakefield, 2010. O início foi dado pela conversão de importantes critérios de pesquisa baseados em sintomas nos critérios de Feighner e no RDC. Esses critérios não se ampararam na avaliação contextual que tradicionalmente evitara que a tristeza intensa fosse diagnosticada como transtorno e, com isso, foi criado o potencial para diagnóstico "falso-positivos". Contudo, as pesquisas sobre depressão tinham como preocupação primordial, os pacientes hospitalizados e membros da comunidade gravemente aflitos que nitidamente apresentavam o transtorno. Nesse contexto, os critérios baseados em sintomas eram capazes de distinguir transtornos afetivos de outros transtornos graves e o potencial para diagnosticar "falso-positivos" não foi compreendido de imediato. O segundo passo ocorreu quando o DSM-III - O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais aplicou a lógica fundamentada pela sintomatologia à prática médica em geral, inclusive ao crescente número de pacientes atendidos em consultórios e clínicas comunitárias em que os terapeutas deparavam com as mais variadas formas de tristeza e de angústia. A aplicação de critérios descontextualizados a esse grupo homogêneo de pacientes aumentou as possibilidades de que os diagnósticos fossem atribuídos àqueles que sofriam de tristeza normal.
Sendo assim, o diagnóstico de uma doença grave, até mesmo da modalidade mais grave de depressão - o estupor depressivo, que imobiliza o sujeito, segundo os critérios arbitrários do DSM, por exemplo, não estaria restrita apenas às concepções clínicas e médicas, pois, segundo Dunker (2015), as enfermidades intensas tornam-se também, um fator econômico que respalda em rede, ou seja, apresenta dimensões que se transpõem ao doente, à família, aos serviços públicos e privados de saúde, bem como a moléstia abarca um significado de valência moral na cultura do paciente e em seu meio. O termo diagnóstico, para o autor (2015), seria um discurso sintetizado por alianças, efeitos e determinações do campo da autoridade, uma vez que, o ato de nomear algo, além de produzir um significado de efeito, expande-se como atos, estratégias, capazes de gerar coações, interdições, tratamento e, principalmente, para o "modelamento" dos sujeitos.
O ato de diagnosticar pelos "analistas simbólicos" tornou-se um empreendimento valorizado nas atuais formas de vida, visto que, o terceiro setor brasileiro e as políticas, baseiam-se na junção e fabricações de diagnósticos. "Coachings, mentorings e head hunters são práticas que diagnosticaram potenciais, dispositivos e qualidades para o planejamento e a reorientação da vida do trabalho" ( DUNKER, 2015, p. 20).
Os diagnósticos realizados, a fim de averiguar as doenças mentais, são baseados nos critérios do DSM, cujo pretexto interessa à razão secundária, à economia social do risco, aqueles que implicam a função do Estado, aqueles que segregam as crianças que não aprendem, aos não ajustados à lógica do consumo e do mercado. Ainda sobre os argumentos pautados no diagnóstico, Dunker (2015, p. 274) pontua:
O diagnóstico seja formal ou informal, clínico ou crítico, disciplinar ou discursivo, reconhece, nomeia e sanciona formas de vidas entendidas como perspectiva provisória e montagem híbrida entre exigências de linguagem de desejo e de trabalho. Substituímos, assim, o que Honneth chama de patologias da razão por patologias do social ou patologias que incidem em certas formas de vida. [...] O resssentimento social é um diagnóstico (deleuze-nietszcheano), a biopolítica é um diagnóstico (foucaultiano), a personalidade autoritária é um disgnóstico (adorniano), a vida nua é um diagnóstico (agambeniano), cultura do narcisismo é um diagnóstico (laschiano). São exemplos de diagnósticos parciais: da modernidade, do espaço público, da gênese de um discurso, da valência de um tipo social.
A psicopatologia apresenta-se por meio de um entendimento meramente funcional e descritivo dos sintomas e, de acordo com Horwitz & Wakefield (2010), a psiquiatria contemporânea confunde tristeza normal com transtorno mental depressivo, porque ignora justamente a relação entre os sintomas e o contexto em que eles aparecem. É imprescindível considerar tanto os valores culturais quanto o projeto funcional universal dos mecanismos de reação à perda para chegar a definições válidas de tristeza normal e transtorno depressivo. As perdas estão no cerne dos mecanismos da tristeza normal e do transtorno depressivo.
Freud, em Luto e melancolia (1917 [1915]), realiza algumas conexões e divergências relacionadas à psicodinâmica do sujeito, cujos sintomas e sinais referem-se às formas clínicas do luto e da melancolia. No luto, parte-se do princípio de que ocorreu, por exemplo, a perda de um ente querido, a morte de alguma abstração, ou algo muito importante para o eu, como se fosse um modelo, a qual ocupa um espaço, em virtude deste vazio deixado. Entretanto, essas ausências, requerem o trabalho psíquico diante da elaboração de uma perda. O indivíduo enlutado, portanto, imerge em um estado penoso e desinteressado quanto ao mundo externo, em decorrência de não existir mais seu objeto amado. Com isso, a perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor é compreendida através do dispêndio de tempo e energia catexial, cujo prolongamento psicológico da dor e sofrimento ascende a permanência do objeto perdido. A partir desses mecanismos, evidencia-se a consciência sobre o que foi perdido, sendo que, há inibição e escassez de interesse quanto às atividades, porque o trabalho de elaboração do luto despende energia, que é absorvida pelo ego.
O autor (1917 [1915]) esclarece, que o melancólico "sabe quem perdeu, mas não sabe o que perdeu", pois o objeto perdido constituía-se como objeto de amor e assegurador de seu ego. Tal dimensão da perda é desconhecida para o mesmo, embora haja um trabalho interno que, por sua vez, pelo seu enigma, transforma-se em inibição melancólica. No luto "o mundo se torna pobre e vazio", pois a morte do objeto amado causa prejuízos ao ego do sujeito em virtude do vácuo divergido ao mundo externo; já na melancolia "o ego se torna pobre e vazio", ou seja, desprovido de valor, moralmente desprezível e incapaz de qualquer realização. O melancólico deseja, com isso, ser punido, denotando, desta forma, delírio moral de inferioridade, em geral, pois o falecimento de seu objeto idolatrado converge para si. A recusa para alimentar-se, como na anorexia nervosa, reforça a idéia de perda libidinal, alojando também, autocríticas e autoacusações. As pessoas, com estes traços, descrevem-se como mesquinhas, egoístas e dignos de vergonha, pois ao sentir satisfação com o desmascaramento de si, confirma a falta de amor próprio, resultante da perda de seu objeto querido, cujos benefícios e gozos amalgamavam o ego, consequentemente assim, fragmenta-o relativamente. A insatisfação com este mesmo ego cogita as autorrecriminações arraigadas no objeto.
Se o mal-estar se mostra na finitude do corpo, na transitoriedade do tempo e dos acontecimentos, na precariedade dos vínculos humanos, na disposição à repetição e a angústia, resistindo à vagueza de sua nomeação, o sofrimento para Dunker (2010) determina-se pela narrativa e pelo discurso nos quais se inclui ou dos quais se exclui. O sofrimento se partilha e é função direta dos atos de reconhecimento que o determinam como tal . Ao contrário do adoecimento orgânico, que segue seu curso inexorável e é indiferente às nomeações, o sofrimento se altera conforme é designado.
A resposta de obediência exagerada aos discursos e verdades propostas é compreensível dada a espécie de resistência ao sofrimento, gerado pela alteração no modo de produção e pelo "sufocamento" do desajustamento dos sujeitos sociais, através da mídia e da cultura vigente. Assim, tudo o que permeia o humano é determinado exclusivamente pela cultura. Com isso, percebe-se que o contexto é importante para os critérios de diagnóstico, mas, é o que de fato, a psicopatologia e os critérios do DSM desprezam, como observado em A morte do caixeiro viajante, algumas décadas mais tarde, após sua reestreia:
A morte do caixeiro viajante , a clássica peça teatral de Arthur Miller, que teve como protagonista Willy Loman, provavelmente o personagem fictício mais representativo da vida americana nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Teve uma recepção diferente na ocasião de sua reestréia cinqüenta anos mais tarde. De acordo com um artigo do The New York Times intitulado "Get that man some Prozac" ["Dêem Prozac àquele cara"], o diretor da nova versão enviou o roteiro a dois psiquiatras, que diagnosticaram em Loman um transtorno depressivo. O autor da peça, Arthur Miller, discordou dessa caracterização, protestando "Willy Loman não é depressivo... Ele é oprimido pela vida. Há razões sociais para ele estar onde (como) está". A conclusão dos psiquiatras é um exemplo de nossa época assim como Loman era um exemplo da dele. O que nossa cultura um dia viu como reação a esperanças e aspirações frustradas, é hoje considerado uma doença psiquiátrica. A transformação de Willy Loman de vítima social em psiquiatria representa uma mudança fundamental na forma como vemos a tristeza (HORWITZ; WAKEFIELD, 2010, p.16).
A psicanálise iniciada por Freud e o biopoder formulado por Foucault nos ensinam a reconhecer com suspeita tais produções sociais, que acenam com uma região de extraterritorialidade protegida, um espaço abrigado onde se concentraria a realização do prazer retinto de liberdade. Ao estudar sobre a depressão no panorama atual, deve-se observar quais são os discursos construídos e discursados, através de formas de racionalização específicas, utilitarismos e verdades fabricadas. Tais discursos seriam aceitos por uma pluralidade de receptores e pelas conveniências sociais vigentes.
Entretanto, pode-se ressaltar, segundo os estudos de Dunker (2010), que os sintomas possuem uma transversalidade histórica que mantém a pertinência de descrições como as que Hipócrates (300 a. C) fez da melancolia ou que Krapelin (1883) fez da paranoia. É preciso, no entanto, considerar cada novo sofrimento como invenção e resposta às transformações no horizonte de dada época. O sofrimento não é sintoma, e sintoma não é mal-estar social. Há sintomas que parecem absolutamente imunes ao sofrimento, ou melhor, que produzem sofrimento real apenas aos outros. Por outro lado, há formas de sofrimento que parecem continuamente à espreita de um nome que enfim as capturará. É indeterminação entre o mal-estar do gozo e o saber-verdade do sintoma, pois a equivalência do sintoma com o valor de verdade é o que há de essencial no pensamento marxisista.
Separar a tristeza normal de transtornos depressivos pode ajudar a reconhecer a relação entre tristeza e condições sociais adversas e, assim, identificar intervenções sociais adequadas. Hoje, a psiquiatria tende a ver a depressão como uma importante causa de muitos problemas sociais, incluindo a dependência de programas de assistência social, a dependência de drogas químicas e a pobreza. A primeira ação costuma ser tratar a doença e então ajudar os indivíduos deprimidos a superar os outros desafios. A tristeza normal, entretanto, tem maior probabilidade de ser a consequência, e não a causa, de problemas sociais.
Foi através de Griesinger, que a depressão veio a ser completamente medicalizada, segundo o levantamento feito por Solomon (2010). Foucault (1979) sugeriu que na história da doença mental, os projetos para produzi-la e saná-la faziam parte de um amplo e obstinado plano de controle relacionado ao colonialismo e ao entrincheiramento da riqueza dominante contra uma classe inferior pisoteada.
O impressionante desenvolvimento da psicofarmacologia a partir dos anos 50 - possibilitado pela descoberta da clorpromazina - ofereceu à psiquiatria construir uma suposta legitimidade médica e científica. Com isso, para Birman (2012), a psiquiatria realizou seu sonho, calcado, desde seu início, no século XIX, de ser uma especialidade médica, de fato e de direito. Além disso, esta ciência, ainda poderia se vangloriar de ter seus fundamentos no discurso rigoroso da ciência biológica. A descoberta dos psicofármacos possibilitou a regulação do sofrimento psíquico, o "evitamento" e até mesmo, a "anestesia" da dor psíquica e de forma eloquente, produziu uma mudança significativa na relação dos indivíduos com seu pathos, até então incontroláveis pela intervenção medicamentosa.
Segundo Fédida (2009), a "remedicalização" atual da depressão é o resultado de um lento afrouxamento do trágico da experiência humana. A indústria farmacêutica, para Peres (2010), que se ampliou no século XX quando introduz os antidepressivos, é em grande parte responsável por esse incremento de diagnósticos que, rapidamente, pode transformar um luto ou uma simples tristeza em doença. A busca da pílula da felicidade é a droga que persegue homens e mulheres atualmente. A tristeza é um afeto presente na depressão, porém não pode com ela ser confundida. Vivemos numa época de paliativos crescentes, onde nunca foi tão fácil decidir o que sentir e o que não sentir. "[...] A depressão não pode ser varrida enquanto formos criaturas conscientes de nosso próprio eu. Na melhor das hipóteses, ela pode ser contida - e contê-las é tudo que os atuais tratamentos para depressão almejam" (SOLOMON, 2010, p. 18).
É possível capturar as relações ocultas e perigosas entre as ditas drogas pesadas e as supostas drogas medicamentosas, isto é, entre a indústria do narcotráfico e a grande indústria farmacêutica. É verdade que a primeira se inscreve numa rede mafiosa, embora apresente uma face legal e visível, enquanto a segunda é legalizada e permeada pelos valores humanistas da medicina. Entretanto, é evidente que as duas se complementam de maneira harmoniosa e quase perfeita, pois em ambas é a fuga de qualquer sofrimento psíquico pelo sujeito social que está em pauta, nas condições atuais do mal-estar na civilização (BIRMAN, 2012).
Ainda o autor (2012) diz que a busca de um suposto ideal de anestesia psíquica no sujeito, a normalização de seus humores intempestivos, é a finalidade nas práticas médicas e psiquiátricas. Assim, há um modelo evidente do que deva ser uma norma de sanidade a que os sujeitos devam se submeter e adequar. O imperativo que se funda no discurso da pós-modernidade, em que as noções da ética de alteridade e reconhecimento da diferença tendem ao desaparecimento no universo social voltado para a estetização da existência.
A psiquiatria da pós-modernidade se funda na direção definida de pesquisa e interesse clínico pelas perturbações funcionais do humor, na medida em que nestas perturbações, o sujeito não consegue ser cidadão da sociedade do espetáculo. Nesse contexto, a psicofarmacologia fornece os instrumentos básicos para que essas individualidades e subjetividades do sujeito social possam se inscrever nos brilhos da cultura do narcisismo. Os psicofármacos, pelo enorme efeito antidepressivo e tranquilizante, visam a transformar os sofredores em sujeitos efetivos da sociedade do espetáculo. Com isso, silenciam-se as ruminações interiorizadas dos deprimidos, e eles são transformados em pessoas adequadas ao do universo espetacular (BIRMAN, 2012).
Visto que a cultura dos sofredores e dos espíritos desesperados agora não faz sentido no atual panorama social, hoje, o que interessa é a estetização da existência e a inflação do eu, que promovem uma ética oposta à do sofrimento. A condição subjetiva de esvaziamento e perda de sentido, que caracteriza os estados depressivo pode, de alguma maneira, estar relacionada às mudanças que ocorrem rapidamente à nossa volta.
Atravessa-se um período de transição histórica, uma vez que tais mudanças não estariam relacionadas ou restritas a nenhuma área em particular, mas se estendem por toda parte. Para Edler (2008), o consumismo promete as mesmas coisas que o narcisismo deseja - charme, beleza e popularidade - através, do consumo dos tipos certos bens e serviços. Dessa forma, uma das consequências do capitalismo avançado seria uma inflação narcísica. Com uma oferta quase infinita de bens, o sujeito se deixa capturar por objetos de desejo, sonhos e consumo. O narcisismo, essa paixão da imagem, com os recursos oferecidos pela ciência hoje, atingiu sua culminância com a perspectiva do aparecimento dos clones: a geração de outras criaturas à nossa imagem e semelhança.
Segundo Lypovetsky (2011), atualmente, o mundo pode ser configurado pela hipermodernidade, determinada pelo efêmero e pela era dos excessos, em especial, do consumo. Neste cenário, os sujeitos sociais inseridos no mundo hipermoderno estão desorientados, inseguros, desestabilizados, não ocasionalmente, mas no cotidiano, de maneira estrutural e crônica. A cultura do divertimento provoca a infantilização dos adultos, a postura de uma vida à la carte, o hiperindividualismo, bem como o ceticismo, ocasionando também e paradoxalmente, a multiplicidade de alertas, em razão da amplitude dos danos humanos e culturais causados pela escalada do hiperconsumo narcísico e pueril. Vive-se em uma época em que os sujeitos estão infantilizados e passivos em busca do olhar do outro, uma vez que, o parecer se tornou sinônimo de existir.
O novo ideal do capitalismo é aquele em que se recusa a agir segundo sua idade, em que os adultos se vestem como os jovens e se deslocam de patins, por exemplo, de acordo com Lypovetsky (2011), em que a juventude se impõe como o centro da cultura de consumo, em que o único princípio diretor é o divertimento imediato. Na era hipermoderna, cada sujeito vive em um mundo à parte. A moda, o hedonismo, o nomadismo tecnológico e afetivo, o individualismo avassalador são coisas que a filosofia do consumo sustenta e promove a cada instante. Lypovetsky (2007, p. 25) afirma: "Saímos da era da moral do sacrifício e da obrigação do dever, que valoriza a rigidez, e entramos no sacrifício pela felicidade e pelo desejo" ou ainda "[...] A satisfação pessoal, estar bem consigo mesmo, gozar. Eis a máxima do hipermoderno: gozar".
A decepção e a perda, como quaisquer outros sentimentos, constituem uma experiência universalmente conhecida, cuja dicotomia entre a expectativa e o real, cria um vazio muito difícil de ser preenchido. "Toda a literatura moderna - de Balzac a Stendhal, de Musset a Maupassant, de Flaubert a Céline, de Tchecov a Proust - é pontilhada pelos temas do tédio, do rancor, da frustração, do fracasso, das 'ilusões perdidas', das agruras próprias da existência" (LYPOVETSKY, 2007, p. 5).
Entretanto, a sociedade hipermoderna é propriamente aquela que multiplica ao infinito as ocasiões de experiência frustrante, ao mesmo tempo em que deixa de proporcionar os antigos dispositivos institucionalizados para debelar esse mesmo mal. Quanto mais se multiplicam as vivências frustrantes, mais numerosos são os convites à reação e acessíveis as circunstâncias propícias à recreação e ao gozo, valoriza-se o incitamento contínuo ao consumo, à fruição, à mudança, às fórmulas paliativas, diversificadas e desreguladas, do universo individualista da livre-opção e do enquadramento. E não se adequando a oferta das possibilidades de vivências, o sujeito recorre a um profissional, a fim de averiguar que seu mal-estar seja diagnosticado - nomeado: "O que é que eu tenho? Qual é o nome dessa coisa que atrapalha minha vida, que transtorna minha maneira de amar, que é a razão do meu fracasso e a causa de meus desencontros?" (DUNKER, 2015, p.19).
Conforme as contribuições de Lypovetsky (2007), a fase hipermoderna está associada a uma espantosa disposição para a depressão e de mal-estar generalizado. O atual cenário é o de uma sociedade da decepção, a qual os sujeitos sentem dificuldade em admitir o próprio desapontamento ou insatisfação. Ainda segundo o autor (2007, p. 74): "Quanto mais frustrante é a sociedade, mais ela promove as condições necessárias para uma re-oxigenação da vida".
"A tristeza é vista como uma deformidade moral, cuja redução química é confinada ao médico ou ao psi" (KEHL, 2009, p. 31). Ao patologizar a tristeza, perde-se um importante saber sobre a dor de viver. Aos que sofreram o abalo de uma morte importante, de uma doença, de um acidente grave, a medicalização da tristeza ou do luto rouba ao sujeito o tempo necessário para superar o abalo e construir novas referências e até mesmo outras normas de vida, mais compatíveis com a perda ou com a eventual incapacitação.
Entretanto, sabe-se que a tristeza intensa após a perda é encontrada em todas as sociedades, em bebês e em nossos primatas mais próximos; está claro que tem raízes biológicas e não é meramente produto de normas sociais. As reações mesmo quando muito intensas, devido à gravidade da experiência são, certamente, parte da natureza humana. Entretanto, para não vivenciar tais reações ou emoções os antidepressivos e o nomear da depressão fazem-se presentes, tanto na vontade e verdade dos profissionais, como dos sujeitos que buscam por auxílio.
Desse modo, ao analisar o significativo aumento dos diagnósticos de depressões como as produções de sentido do sintoma do mal-estar social do século XXI significa dizer que o sofrimento dos depressivos funciona como sinal de alarme contra aquilo o qual a sociedade está produzindo. A tristeza, os desânimos, as simples manifestações da dor de viver parecem intoleráveis em uma sociedade que aposta na euforia como valor agregado a ao quantitativo em oposição ao que se refere ao qualitativo.
Referências
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Artigo recebido em: 17/08/2015
Aprovado para publicação em: 18/02/2016
Endereço para correspondência
Ana Rosa Gonçalves de Paula Guimarães
E-mail: anarosa.psi@hotmail.com
*Psicóloga/Universidade de Franca-UNIFRAN (Franca-SP-Brasil)), licenciatura Letras/Centro Universitário de Franca, especialista Saúde Pública/Universidade de Franca, mestranda Psicologia, Psicanálise e Cultura/Universidade Federal de Uberlândia-UFU (Uberlândia-MG-Brasil).