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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.40 no.38 Rio de Jeneiro Jan./June 2018

 

ARTIGOS

 

Assexualidade: um olhar psicanalítico para o futuro1

 

Asexuality: a psychoanalytical look to the future

 

 

Eduardo Rozenthal*

Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica - Brasil
Universidade Santa Úrsula - USU - Brasil
Universidade da Califórnia em Berkeley - USA

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, procuro mostrar que, sob a perspectiva da psicanálise, é possível, diferentemente da assexualidade como identidade e gênero sexual, estabelecê-la como singularidade do sujeito. Este deslocamento crucial eleva a assexualidade à força corporal da criação ou força de sublimação. Esta última é capaz de promover a estilização do sujeito, estilo tendo o sentido de força de ser o que o sujeito é. A sublimação afasta os ideais sociais e as consequentes disputas por reconhecimento, permitindo que sexualidades infinitas se aproximem no espaço público: a cada indivíduo corresponde, então, uma identidade sexual singular.

Palavras-chave: Psicanálise, Assexualidade, Singularidade, Identidade, Sublimação.


ABSTRACT

In this article, I try to show that, from the perspective of psychoanalysis, unlike asexuality as sexual and gender identity, it is possible to establish it as the singularity of the subject. This crucial displacement elevates asexuality to the bodily force of creation level or force of sublimation. This one is capable of promoting the stylization of the subject, style meaning force of being what the subject is. The sublimation removes social ideals and the consequent disputes over recognition, allowing infinite sexualities to approach in the public space:each individual corresponds to a singular sexual identity.

Keywords: Psychoanalysis, Asexuality, Singularity, Identity, Sublimation.


 

 

Introdução: pensamento das origens e singularidade

O tema da assexualidade apresenta fertilidade profunda. O volume bastante reduzido de literatura a respeito e as informações, ainda lacunares, contidas no blog AVEN (2001)2, mantido já desde o ano de 2001 pela comunidade dos assexuais, aponta para uma espécie de iceberg do qual somente a ponta diminuta aparece, deixando ainda submersa a enorme potência compreensiva, argumentativa e contextual que a temática exige. Trata-se, expressamente, no cenário das sociedades contemporâneas, da identidade assexual, do gênero daqueles que não desejam praticar a sexualidade e suas respectivas vicissitudes éticas, políticas e genealógicas.

Com efeito, a assexualidade como prática não é nova. Podemos dizer que sempre houve indivíduos que recusaram o exercício da sexualidade - a abstinência sexual dos padres da Igreja Católica é exemplo, ao mesmo tempo, notório e conturbado. Entretanto, o que está em jogo nas sociedades contemporâneas é outra coisa. O que se vê é a demanda, por parte de determinado grupo de pessoas, do reconhecimento social dos correlativos direitos à recusa de toda e qualquer prática sexual. Há, por conseguinte, produção social de identidade assexual que, ao mesmo tempo em que confere aos indivíduos correspondentes os seus pressupostos identitários, organiza-os enquanto grupamento de gênero.

Diante da concepção da identidade assexual como subjetividade, isto é, como produto de um processo de subjetivação ou de como tornar-se sujeito assexual, é necessário que o leitor se mantenha bem atento. Face às conjecturas a respeito das características da experiência corporal e psíquica dos assexuais, até o âmbito das políticas de identidade e da luta por reconhecimento, é preciso que a leitura seja cautelosa. Para o efetivo aproveitamento crítico e interpretativo da literatura disponível, bem como para o acompanhamento via Internet do AVEN (2001), será preciso, antes de tudo, que aquele que lê não confunda "história" da assexualidade com o encadeamento cronológico de eventos ou, ainda, de uma maneira geral, com relação causal de fatos.

Aos leitores caberá, por conseguinte, a produção de atentas dissociações dos eventos elencados pelos autores e a criação de descontinuidades causais de forma a evitar a consideração - fácil - de supostos fundamentos da assexualidade ou da identidade dos assexuais, buscadas em origens, sempre arbitrárias, construídas como divisores de águas, criadores de um "antes" e um "depois". Assim, por exemplo, a assexualidade que toma a biologia como a sua origem inquestionável admite o binário natureza/cultura como operador, como se a sexualidade nada mais fosse do que o conjunto de transformações culturais do biológico fixo, sendo este considerado independente do discurso. Deste modo, concluiremos que "antes" da sexualidade há um substrato biológico real, cuja organização necessária constitui a sexualidade.

Podemos notar, com mais luminosidade, o arbitrário da consideração epistemológica das origens ou da identidade quando apontamos para estados da sociedade anteriores à vigência de uma suposta lei. Por exemplo, em seu belo livro, escrito em meados dos anos 70, D'Eaubonne (1977), aborda o tema As mulheres antes do patriarcado - escolhido como título de sua obra -, isto é, espécie de estado de natureza, identidade fundamental das mulheres, anterior à lei, à linguagem e ao simbólico patriarcais. O artifício da divisão da história das mulheres em "antes" e "depois" do patriarcado mostra, com toda a exuberância, que a narrativa de algo anterior à lei da linguagem, ainda que como tentativa louvável de representação abrangente do feminino, é um estratagema do próprio dispositivo legislador do patriarcado. A proposta da antropóloga francesa é a de compreender o mundo das relações sociais, anterior ao domínio patriarcal, como ausência de rivalidades entre homens e mulheres e de cooperação entre os indivíduos. Contudo, trata-se de inequívoco arbítrio, afinal contraproducente, posto que a dita narrativa só pode ser edificada com as regras patriarcais da linguagem, valorizando, antes de mais nada, o próprio patriarcado em suas derivações.

Isto não quer dizer obviamente que tal período não tenha ocorrido. O que não se pode, contudo, é construir-lhe a narrativa. Claro que o "antes" só pode ser discursivamente produzido "depois", com as regras impostas pela lei simbólica o que, de forma intrínseca, reveste a lei com o atributo da necessidade. Ao impor um discurso ao tempo anterior à lei, acabamos por justificar, de maneira sub-reptícia, a existência desta, ao invés de admitir-lhe - ou o de qualquer outra lei - o caráter fortuito. Isto tampouco quer dizer que se pode prescindir da lei, ainda que a sua descrição seja sempre interessada e interesseira, vale dizer, moralizante, a serviço dos dispositivos de poder vigentes3.

É importante acrescentar, como o faz Butler (2016), que erigir uma identidade "mulher" acaba por elidir o conjunto inumerável das características que desaparecem quando se pretende pesquisar "a mulher" genérica, a partir de certas identidades centrais abrangentes originárias. Assim sendo, "a mulher" não existe, como insistia Lacan (1972-1973/1985), pois cada indivíduo do sexo genital feminino tem uma história que se vincula, para além da biologia, à cor da sua pele, ao nível socioeconômico no qual se insere, etc., afora é claro, o incontável cabedal de atributos singulares que o distingue. O que está em jogo não é a identidade genérica, senão as diferenças únicas de cada uma. Dá-se o mesmo com a identidade "assexual" e a busca de suas origens, quer na biologia deficitária, quer na psicologia de um desejo sexual insuficiente.

Somente o esforço constante no sentido de evitar o pensamento das origens poderá revelar os "acontecimentos", naquilo que eles possuem de únicos e de cortantes. Somente o pensamento da singularidade poderá desnudar as condições genealógicas a partir das quais a prática da assexualidade pode, no contexto social da atualidade, reivindicar, ainda que como formação sintomática, uma identidade e a instituição do respectivo gênero4.

Sob a perspectiva da psicanálise, é possível estabelecer, de forma díspar da assexualidade como gênero e identidade, a compreensão da assexualidade tomada na acepção da singularidade do sujeito. Esta última alternativa possui a capacidade de perpetrar um deslocamento decisivo, situando-nos frente à força de criação subjetiva apta a produzir todas e quaisquer identidades sexuais, considerando-as, outrossim, como produto único do processo de se tornar sujeito. Desta maneira, uma multiplicidade infinita de sexualidades singulares se colocaria no cenário das sociedades: a cada indivíduo, considerado em suas características singulares, corresponderia uma única e diferente identidade sexual. Identidade obtida no radicalismo da diferença, identidade não genérica - de um só, único e incomparável e diferença constitutiva, ou seja, aquela que nos consiste, a cada um, como absolutamente diferente.

 

Pensamento da representação e assexualidade como identidade e gênero

O processo de subjetivação em psicanálise designa o funcionamento da subjetividade que nos capacita a perceber o mundo e a nós mesmos, ao mesmo tempo em que pensamos e sentimos. Na primeira etapa da obra de Freud, ser e permanecer sujeito pode ser descrito como constante tomada de consciência, isto é, às percepções de si e do mundo associam-se determinadas representações conscientes, ou seja, aquelas revestem-se de um caráter subjetivo. Destarte, se constroem nossos pensamentos, bem como os sentimentos passíveis de nomeação e as sensações categóricas: eu sou assim, eu amo, eu sinto frio, etc. Trata-se, em última análise, de identificação, isto é, a dinâmica de agregar as percepções, fortalecendo a instância subjetiva do eu em suas determinações constitutivas cruciais, a saber, a identidade e a unidade (FREUD, 1914/1986).

A revolução do pensamento freudiano, no entanto, se apresenta pelo enunciado de que pensar e sentir é sempre mediado por representações inconscientes de desejo (FREUD, 1915/1986). Eis por que, para a humanidade, a psicanálise teria significado a terceira grande ferida narcísica. Após o descentramento da Terra, perpetrado pelas ideias de Copérnico e depois do deslocamento da origem divina do homem, levado a cabo pela teoria de Darwin, Freud (1917[1916]/1986) mostrará que a consciência - e com ela, a razão - não é senhora em sua própria morada. Ao adjudicar as percepções, pela via da tomada de consciência, associo-lhes uma representação de desejo, buscando sempre a sua realização prazerosa.

Por conta da inelutável intervenção do inconsciente, não podemos conhecer os objetos em sua existência insofismável. Não somos capazes da tomada de consciência da percepção do mundo propriamente dito, senão somente de sua interpretação a qual será, inexoravelmente, mediada pelo desejo e pelo "princípio de prazer". Para tanto, a interpretação procede por associação entre representações inconscientes de desejo e representações eu-oicas conscientes (FREUD, 1915/1986).

Baseados nesta descrição esquemática do processo de subjetivação de acordo com a teoria psicanalítica, pode-se argumentar que a assexualidade, a despeito do prefixo negativo que a introduz, quando considerada como identidade sexual, não designa nenhuma ausência de desejo. Ao contrário, para o indivíduo assexual, o que está em pauta são os respectivos investimentos subjetivos, plenamente desejantes. O desejo inconsciente se associa às representações eu-oicas determinativas da assexualidade, isto é, às características conceituais atribuídas a ela pela sociedade, com a finalidade última de fortalecer a identidade assexual, isto é, de fornecer ao eu, sua identidade (as)sexual.

Em tal contexto, a assexualidade seria, nada mais, nada menos, do que a qualidade dos indivíduos nomeados de assexuais e que nela se reconhecem. Reunindo-se as características que os identificam quanto à sexualidade, eles passam a pertencer ao correspondente grupamento genérico da sociedade. Do mesmo modo que aqueles que se identificam como heterossexuais, homossexuais, bissexuais ou transgêneros, a identidade assexual equivale, subjetivamente, a um rol de atributos genéricos do eu.

Atendendo à regulação do processo de subjetivação pelo princípio de prazer, o eu se esforça para manter as suas características centrais de identidade e unidade, principalmente quando estas correm risco face aos imperativos categóricos do assim denominado de "ideal de eu" (FREUD, 1914/1986). Diante deste, que futuramente seria chamado por Freud (1923/1986) de instância psíquica do supereu, a qual congrega, subjetivamente, os ideais sociais vigentes, o eu poderá ganhar um reforço identitário prazeroso ou, pelo contrário, ver aumentado o grau de dissociação que o ameaça e o faz sofrer.

Para o pensamento psicanalítico da "primeira tópica", o sofrimento subjetivo será maior ou menor, dependendo para tanto, inversamente, da menor ou maior proximidade semântica ou significativa entre as representações do eu e os ideais sociais, organizados no ideal de eu. Sofremos de dissonância cognitiva entre o que reconhecemos ser eu e o que a sociedade nos impele a ser! Somos acometidos de sofrimento pela ameaça à integridade do eu, representada pela condenação imposta pelos ditames das representações ideais às representações da identidade do eu. Quanto mais o sentido destas se afasta dos imperativos do Ideal, mais terríveis são as repreensões e ameaças de castigo que o eu irá enfrentar (FREUD, 1914/1986)5.

Ao identificar-se como indivíduo assexual e, por conseguinte, negando toda prática sexual, o respectivo eu agrega os atributos determinativos conceituais do grupo. Assim é que o assexual é reconhecido - e se reconhece -, como exceção ao grupo daqueles que praticam sexo, majoritariamente, ao dos que o praticam heterossexualmente. Com efeito, a exceção é o particular - não necessariamente, minoritário - que, ao se opor ao universal, se verá, de modo implacável, segregado face ao valor de excelência atribuído ao conjunto universal. Particular e universal se relacionam a partir de, pelo menos, um traço comum, sendo este, afinal, considerado a identidade universal (GARCIA, 2012).

É o caso dos assexuais em relação aos heterossexuais. A oposição entre eles os hierarquiza e, prontamente, discrimina os primeiros como anormais, deficientes, biológica ou psiquicamente. Por conseguinte, mirar-se no espelho dos ideais de cunho heteronormativo de nossas sociedades causará inequívoco sofrimento ao eu assexual, acarretando, por parte do indivíduo que lhe corresponde, a defesa intransigente do ameaçado direito ao reconhecimento social de não praticar sexualidade. Eis por que a respectiva identificação, ao fim e ao cabo, acaba por reforçar a condição do isolamento narcísico do sujeito.

Vale insistir que, para os assexuais, trata-se ainda do pleno exercício do desejo, considerando-se que sua implementação implica a escolha de representações do objeto de satisfação cuja nomeação não nos deve confundir. O objeto do desejo assexual, podemos chamá-lo de "não praticar sexo", o que não o torna menos objeto de prazer. A busca da sua realização de não praticar sexo, tão desejante quanto a dos demais grupos sexuais genéricos, encontra no reconhecimento social dos direitos à assexualidade, a preservação da identidade correspondente, ameaçada em sua integridade pelo intransigente ideal de eu.

Assim sendo, o que se descreve é a assexualidade que, malgrado o prefixo negativo, apresenta-se, ainda, como categoria da sexualidade representativa ou simbólica, ou seja, exercida politicamente. A assexualidade se vê, por conseguinte, codificada socialmente pela relação de oposição ao gênero hegemônico da heterossexualidade, mas também aos demais gêneros que, hoje em dia, possuem prestígio. Do mesmo modo que a comunidade dos homossexuais, dos bissexuais ou dos transgêneros, os assexuais procuram organizar-se como um novo grupamento de gênero.

Portanto, como as demais, a comunidade assexual reivindica o passaporte de cidadania social. As múltiplas estratégias, arquitetadas pelos diversos protagonistas emergentes da referida comunidade, sejam blogueiros e youtubers, acadêmicos e cientistas, militantes ou simpatizantes, visam a legitimação dos procedimentos de abstinência sexual vis-à-vis a heteronormatividade, em plena vigência no nosso ambiente cultural, como também frente aos homossexuais que lhes opõem sérios obstáculos.

Diante da segregação perpetrada, principalmente, pelo grupo majoritário dos heterossexuais que a coloca frente à negação dos respectivos direitos ao exercício de sua identidade sexual, a comunidade dos assexuais estabelece uma reação, simétrica à ação discricionária, isto é, com a mesma intensidade que esta, porém em sentido contrário. Neste confronto entre o particular e o universal, nada de novo se produz. O objeto do desejo de ambos os grupos é a preservação dos respectivos direitos identitários. Tal modalidade de oposição, de acordo com Lacan (1948/1987), é capaz apenas de gerar agressividade.

 

Pensamento da força e assexualidade como criação sublimatória

Recorramos à psicanálise com o intuito de abrir novas frentes para a compreensão da assexualidade, desta vez, porém, não mais como identidade, senão como singularidade do sujeito. Na segunda etapa de seu ensinamento, Freud (1920/1986) modifica e enriquece a descrição do processo de subjetivação, definindo a força motriz que o abastece. O pensamento psicanalítico se lança, então, sobre o problema da produção do desejo. Trata-se não mais dos destinos do desejo, isto é, do funcionamento associativo das representações subjetivas, mas sim da descrição da própria constituição da subjetividade.

A genealogia ou busca das condições de possibilidade da subjetividade, que Freud (1920/1986) denomina de "especulação", elucida que a produção do desejo, ao contrário da identificação, se efetua pela diferenciação do afeto, este último encerrando, às avessas das formas da representação, a dimensão amorfa da força (FREUD, 1923/1986, p. 27). Contudo, diferenciação não é desenvolvimento, nem evolução. Efetivamente, nestas modalidades de processo, o produto já está contido, ainda que enquanto possibilidade, no conjunto de origem. Diferenciação é outra coisa, quer dizer, designa a produção do inédito, de modo que o resultado, impossível à origem, apresenta-se como criação (DELEUZE, 1988, p. 339-342).

Da força, os enunciados de Freud (1915/1986) dirão que sua fonte e intensidade pertencem ao corpo. Contudo, não se trata, absolutamente, do corpo biológico. As forças produtoras do desejo são geradas nas chamadas "zonas erógenas" (FREUD, 1905/1986), espécie de cartografia potencial e imaterial, também nomeada de "corpo erógeno" que se imprime, pela via do encontro entre sujeitos, sobre a superfície da pele, onde as ditas forças afetivas circulam livremente (LECLAIRE, 1977).

Em resumo, acrescentando-se a "especulação" da segunda tópica ao já proposto por Freud, para a psicanálise, a subjetividade compõe-se de dois territórios representativos, isto é, desejante e consciente, que se associam, imantados pela força ou afeto inominável do corpo erógeno. Na fase final e mais abrangente da sua obra, tornar-se sujeito é, então, ser capaz da diferenciação do afeto amorfo - sempre a partir dos encontros entre sujeitos -, cujo produto são novas representações de desejo. Estas, finalmente, associam-se às representações conscientes, dando ao afeto a forma eu-oica de pensamentos racionais, de sentimentos e de sensações determinadas. Afastamo-nos, anos luz, do sofrimento enquanto pura dissonância cognitiva entre representações. Sofrimento agora é impossibilidade de diferenciação, também chamada por Freud (1926[1925]/1986) de angústia automática.

Neste ponto, é preciso ressaltar que, segundo os enunciados psicanalíticos, há dois diferentes destinos para o processo de subjetivação (FREUD, 1914/1986). Por um lado, coloca-se a idealização, que se articula à identificação, cujos efeitos de isolamento narcísico já mencionei. No caso do assexual, a idealização das benesses do poder das quais os heterossexuais usufruem, ao primeiro, induz-lhe a pretensão identificativa de ser, ele próprio, o detentor do poder.

Quando procede por idealização, o assexual que demanda o reconhecimento de seus direitos de não exercer a sexualidade acaba incorrendo em "petição de princípio" o que, neste caso, significa encaminhar a respectiva demanda sob a forma de reação, de maneira tão impositiva e intransigente quanto a ação segregativa do grupo dominante. É forçoso prever, por conseguinte, que se o direito de se abster sexualmente for reconhecido enquanto desejo pela sociedade, o dito reconhecimento viria a induzir práticas sociais assexuais as quais, ainda que em oposição à heteronormatividade, acabariam por agregar-se a esta, modificando, por conseguinte, o caráter normativo da sociedade, o que não o tornaria, em absoluto, menos normativo.

Há, contudo, um segundo destino subjetivo possível no horizonte do processo de subjetivação em psicanálise. Refiro-me à sublimação. A sublimação não diz respeito às representações de desejo, suas associações e dissociações recalcantes (FREUD, 1914/1986). Com efeito, sublimação não é idealização e, portanto, tampouco corresponde ao mecanismo da hipervalorização dos ideais socialmente consolidados do então denominado, com todas as letras, de supereu (FREUD, 1923/1986). Por conseguinte, na situação sublimatória, a dinâmica da subjetividade não passa pela identificação conservadora da identidade e da unidade do eu.

De fato, a sublimação denota um processo atinente ao afeto, isto é, à força que corresponde à condição da subjetividade e do desejo. Este afeto não conhece a identidade. Ao contrário, o território afetivo é a singularidade ou diferença radical, isto é, diferença entre diferentes e não, diferença entre semelhantes, ainda nomeada de diferença relativa, posto que a sua condição é a identidade. A diferença relativa o é em relação à identidade fundamental e originária.

O resultado da sublimação se resume na produção de inéditas representações de objeto do desejo. Isto quer dizer que, ao invés de identificação, o sujeito procede a uma diferenciação da singularidade ou, simplesmente, criação de, por assim dizer, novos desejos, tornando-se, então - em que pese o aparente paradoxo -, diferente de si mesmo. Diferenciação e sublimação referem-se ao estilo de sermos aquilo que somos, ainda que diferentes a cada momento.

A sublimação e o estilo acarretam a autoria, isto é, o ato sublimatório, como por exemplo, a obra de arte, adere ao sujeito, sem, no entanto, buscar qualquer espécie de ideal comum ou bem genérico pelo qual se tem de querelar, provocando o afastamento entre os sujeitos. O eu não procura o cumprimento do mandamento do ideal de eu. Diferenciação não é identificação. Ao contrário, a diferenciação e a diferença permitem a convivência das singularidades incomparáveis, aproximando os sujeitos pela via da sublimação, enquanto potência aberta do grupo. Com efeito, a sublimação não trata do desejo, mas sim da força motriz que, para além do desejo, em suas representações, o coloca em cena.

Baseado na descrição da sublimação, bem como nas teses posteriores do pensamento de Freud, vejo-me autorizado a ampliar o conceito de assexualidade para propô-lo alternativamente como força do corpo erógeno, o que equivale a admiti-la como a própria força de singularidade do sujeito. Neste novo quadro, deve-se aceitar a sublimação como destino possível para a assexualidade, a partir da qual dá-se a produção de características inéditas da sexualidade do sujeito.

Neste caso, a assexualidade equivale, de fato e de direito, à ausência de desejo, uma vez que, passível de diferenciação, ela é o pressuposto para a criação de qualquer modalidade de desejo sexual. A assexualidade que assim se concebe não pode constituir-se enquanto identidade sexual genérica, pois, sendo da ordem da força amorfa - e não da representação -, não existe a possibilidade daquela se conformar a nenhuma representação supereuoica de ideal social. Podemos dizer que, enquanto força constituinte, a assexualidade não se coloca como reação. Ao contrário, devemos atribuir-lhe as características da resistência, no sentido que lhe dá Foucault (1977), o que, neste caso, quer dizer que esta assexualidade não estabelece nenhuma espécie de oposição, senão que estamos diante da criação da sexualidade singular, qualquer que seja ela.

De forma diversa da relação binária que opõe os assexuais aos heterossexuais, ao modo do particular que se mede pelo universal, a assexualidade enquanto singularidade do sujeito não interpela, simplesmente, a suposta naturalidade dos heterossexuais. Em movimento de extrema envergadura, a assexualidade como força ocasiona uma nova definição de universal, que poderá, então, ser descrito na ausência de uma identidade determinante. Em oposição direta ao universal fechado pela identidade - que não é outro, senão o da ciência ou da matemática clássicas -, o novo universal, desta feita, aberto e ilimitado, abarca todas as possibilidades de sexualidades que, em suas singularidades, não apresentam qualquer semelhança que legitime a constituição de um gênero. De fato, o singular é o "um" único, disjunto do conjunto universal (GARCIA, 2012).

Uma vez que a presença de uma identidade universal heterossexual, à qual se agrega valor, não mais se coloca como primordial, a assexualidade como singularidade, ao avesso do particular, não se presta a descrições predicativas. De fato, estas só servem para alijar e desvalorizar os assexuais em grupo, considerando-os como exceção que, no entanto, apenas confirma a regra, isto é, a reputação hegemônica do continente universal. De toda uma outra maneira, o singular se insere numa nova lógica, necessariamente não discricionária, uma vez que, neste caso, não é possível estabelecer qualquer exceção. Certamente não há exceção, posto que todos são excepcionais (ibidem).

A assexualidade como singularidade pode ainda ser considerada como a diferença que distingue, de modo radical, a sexualidade do sujeito. Com efeito, não há identidade capaz de alocar esta assexualidade em um gênero que lhe corresponda, uma vez que não existe nenhum traço de semelhança em comum às singularidades. Conclui-se que a dinâmica da comparação é incompatível com a assexualidade quando se a reputa como singularidade, só lhe sendo possível remeter-se a si mesma. Eis por que a diferenciação, na medida em que modifica o sujeito, sem, no entanto, robustecer-lhe a identidade, torna-o diferente de si mesmo.

Em um campo totalmente diverso, podemos observar a força do universal aberto e ilimitado, composto de singularidades que não se comparam. Lembremos das "manifestações", iniciadas em junho de 2013 no Brasil, deflagradas sob o pretexto do "Movimento Passe-Livre" das tarifas dos transportes públicos, mas que, rapidamente, deixaram de apresentar qualquer motivação evidente. Quanto aos manifestantes, efetivamente, não se lhes pode supor qualquer tipo de inclinação genérica, não havendo nem ideal, ideologia ou idealismo estruturando-lhes a vontade. Eis por que toda e qualquer instituição, fossem partidos políticos, fossem organizações sindicais, não eram bem-vindas por esses jovens. O potencial aberto de que se trata emana das forças dos desejos dos participantes, em suas singularidades múltiplas, não sendo possível subsumi-lo a nenhuma identidade universal organizadora e aglutinadora (ROZENTHAL, 2014)6.

Pois bem, para além dos destinos do desejo, há o domínio das forças subjetivas que, a bem dizer, dá-se na ausência de todo e qualquer desejo, até porque o dito domínio é a própria condição do desejo. A contrapelo dos objetos de satisfação do desejo que são representações associadas, o domínio da singularidade é composto pelas linhas de força que imantam o desejo. Para opor a singularidade aos objetos de satisfação do desejo, Lacan (1962-1963/2005) chamou as forças singulares de "objeto a" ou, ainda, de "objeto-causa" do desejo, enquanto os objetos de satisfação nada mais seriam do que representações.

 

Considerações finais

É preciso admitir que a diferença radical da singularidade nos lança a quilômetros de distância da diferença relativa a qual implica a comparação entre representações, por um lado, e a identidade do eu, por outro, e que se reflete no espelho do ideal supereuoico. De modo totalmente reverso, a assexualidade como força operativa da singularidade, sob nenhuma hipótese, dá-se à subjetivação, mas, é ela a condição desta. Por conseguinte, trata-se do afeto que não admite nenhuma espécie de representação, ou seja, de sentimentos impassíveis de nomeação e de sensações não categóricas. Em 1920, Freud (1920/1986) chamou-o de "pulsão de morte".

Para a assexualidade como afeto, a sublimação é um destino possível. Longe da idealização e das identidades consideradas universais, que levam ao isolamento narcísico e à compulsão, as práticas sublimatórias possuem o condão de, pela via da criatividade e da criação, recolocar o sujeito no âmago das relações sociais. Destarte, a diferenciação da assexualidade seria capaz, afinal, de propiciar a vivência individual da sexualidade de maneira singular. Colhendo a força do corpo erógeno que emerge dos encontros que estabelece, o indivíduo que lhe corresponde se veria, só então, habilitado a exercer a sexualidade de acordo com as suas características singulares, para além de todo o gênero preestabelecido.

A singularidade do sujeito pode, com efeito, ser compreendida como "modo de ser" ou, finalmente, estilo da subjetividade. À operação das ditas forças da assexualidade, podemos relacioná-la ao que Foucault (1984, p. 27-31) denomina de "estilística da existência", isto é, a sublimação como produção de renovados modos de exercer a sexualidade. A estilização das forças acarreta o estabelecimento de um novo modo singular de viver a sexualidade, seja qual for a identidade sexual.

Para além dos gêneros já consagrados, isto é, dos heterossexuais, mas também dos homossexuais, dos bissexuais ou dos transgêneros e, mesmo que se acrescente o novo gênero dos assexuais, a assexualidade como singularidade se colocaria para além, como potência imanente para a produção de toda e qualquer identidade sexual. Valorizar a assexualidade como singularidade nos remete afinal para o futuro de uma verdadeira democracia sexual na qual se inscreveria a multiplicidade infinita de sexualidades: a cada sujeito, uma identidade sexual singular.

No atual cenário, em que adentramos o terceiro milênio, nos encontramos diante de uma profusão de questões atinentes à sexualidade que nos deixam perplexos. Demandas sociais por parte das minorias sexuais, problemas éticos referentes às uniões conjugais e aos filhos e, ainda, cirurgias de modificação do sexo genital se veem elevadas à enésima potência pelas possibilidades que emergem do desenvolvimento tecnológico de ponta. Neste contexto, a leitura atenta, advertida, crítica e criativa da literatura a respeito da assexualidade, assim como o acompanhamento regular do blog AVEN (2001) é contribuição inestimável.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 17/02/2018
Aprovado para publicação em: 16/04/2018

Endereço para correspondência
Eduardo Rozenthal
E-mail: eduardorozenthal@icloud.com

 

 

*Psicanalista, membro titular da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica, doutor em Saúde Coletiva/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor do Curso de Especialização em Psicanálise/Universidade Santa Úrsula (USU), professor visitante na Universidade da Califórnia em Berkeley. Co-organizador do livro Psicanálise: uma prática teorizada (2007), autor do livro O ser no gerúndio: corpo e sensibilidade na psicanálise (2014), ambos pela Companhia de Freud.
1Para a ilustração deste texto, baseei-me na coletânea de artigos que deverão compor o livro, ainda no prelo, cujo título provisório é A assexualidade, organizado pelos professores Paulo Victor Bezerra da Universidade Estadual de Londrina e José Sterza Justo, da Universidade Estadual Paulista. Os artigos, de autores de diversas nacionalidades e áreas de atuação diferentes, cujas contribuições compõem o livro, desenvolvem hipóteses variadas, porém todas no esforço de compreensão do exercício de uma assexualidade genérica, isto é, fundada na identidade assexual.
2The asexual visibility and education network (Rede de visibilidade assexual e educação).
3Para uma discussão semelhante a respeito da identidade de "mulheres" como sujeito do feminismo, recomendo Butler (2016), especialmente o capítulo 1.
4Sobre as diferenças entre a história e a genealogia, bem como a respeito das características do acontecimento, ver Foucault (1979).
5Para as características do supereu, sucessor do ideal do eu, ver Freud (1923/1986).
6Para detalhes, ver Rozenthal (2014).

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