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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.41 no.40 Rio de Jeneiro Jan./June 2019

 

ARTIGOS

 

O laço social e o sujeito paralisado pela tetraplegia

 

The social bond and the subject paralyzed by tetraplegia

 

 

Patrícia Rosa BalestrinI*; Simone Zanon MoschenI, II**

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil
IIAssociação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho realiza uma articulação entre trauma e desejo a partir da escuta de pacientes tetraplégicos que sofreram eventos traumáticos e precisaram encontrar na nova configuração de seu cotidiano algo que lhes possibilitasse se recolocar na vida (re)enlaçando-a ao desejo. São tecidos conceitos da psicanálise freudo-lacaniana a elementos advindos de dois filmes, bem como de fragmentos da escuta de dois casos de tetraplegia, acompanhados desde o acometimento pelo "acidente", no contexto hospitalar, dando continuidade até a ida para casa e a vivência do enfrentamento das dificuldades acarretadas por essa contingência sofrida no corpo.

Palavras-chave: Psicanálise, Tetraplegia, Corpo, Trauma, Desejo, Laço social.


ABSTRACT

This study makes articulation between trauma and desire from the listening of quadriplegic patients who suffered traumatic events and had to find in the new configuration of their daily life something that allowed them to put themselves back in life (re)linking it to the desire. Freudian-Lacanian Psychoanalysis concepts are related to elements derived from two movie pictures, as well as fragments from the listening of two cases of tetraplegia, accompanied since the impairment by the "accident", in the hospital context, continuing until the trip home and the experience of facing the difficulties caused by this contingency suffered in the body.

Keywords: Psychoanalysis, Tetraplegia, Body, Trauma, Desire, Social bond.


 

 

Este trabalho realiza uma articulação entre trauma e desejo a partir da escuta psicanalítica de pacientes tetraplégicos que sofreram eventos traumáticos e precisaram encontrar na nova configuração de seu cotidiano algo que lhes possibilitasse se recolocar na vida (re)enlaçando-a ao desejo. No escopo deste artigo, teceremos conceitos da psicanálise freudo-lacaniana a elementos advindos de dois filmes, Mar adentro (2005) e O escafandro e a borboleta (2007) bem como de fragmentos da escuta de dois casos de tetraplegia, acompanhados desde o acometimento pelo "acidente", no contexto hospitalar, dando continuidade até a ida para casa e a vivência do enfrentamento das dificuldades que acarretaram essa contingência sofrida no corpo1.

A tetraplegia é uma lesão na medula espinhal que afeta o movimento e a sensibilidade dos membros superiores e inferiores. Essa lesão acarreta alterações significativas no aparelho urinário, sexual, gástrico e respiratório e, nos casos mais graves, o paciente vive ligado a um respirador, o que diminui ainda mais sua mobilidade devido aos cuidados necessários nas transferências da cama para a cadeira de rodas para não incorrer no risco de desconexão desse aparelho. A tetraplegia pode ocorrer ao nascimento ou por causa adquirida devido a um trauma como mergulho seguido de batida de cabeça, ferimento por projétil de arma de fogo, acidente automobilístico e motociclístico.

Neste artigo compartilhamos elementos da escuta de pacientes que viram suas vidas se transformarem radicalmente de uma hora para outra por conta de lesões adquiridas. Quando um acontecimento da ordem do traumático desacomoda o sujeito de forma brutal, como nesses casos, e transforma suas vidas de forma irreversível, eles são tomados por um assombro como que diante de uma catástrofe, demandando-lhes muito trabalho psíquico para que simbolizem (re)tecendo seu lugar na malha simbólica que sustenta seu acontecimento como sujeitos. Eles se veem de frente com a morte e diante desse desabamento terão que buscar em sua história, no ponto em que ela permitir uma (re)amarragem ao Outro, algo que os ligue novamente à vida.

Poderíamos dizer que o sujeito passa a ter duas vidas, a vida de antes da tetraplegia e a vida de depois da tetraplegia, já que seu cotidiano altera-se consideravelmente. As manifestações clínicas variam conforme o tipo e o grau da lesão na medula e demandarão cuidados médicos, fisioterapêuticos, de enfermagem, uso de tecnologias assistivas2 e, em muitos casos, assistência pessoal em tempo integral para as atividades mais rotineiras, como higiene, alimentação, mudança de posição e transferência da cadeira de rodas para a cama.

O sujeito que é acometido pela tetraplegia vive um luto, um luto pelo que perdeu da "primeira vida"3. Ele tangenciou a morte e dela retornou para uma vida cheia de limitações que comprometem a funcionalidade de seu corpo. Diante de uma quase morte, repentinamente acorda numa quase vida. Como viver com a sombra de outro corpo nessa nova configuração que se estabelece? O sujeito de desejo encontrará uma fresta em meio à objetalização produzida pela própria patologia? Lembremos que nesses casos há uma demanda de que o corpo do outro entre em cena para fazer a suplência daquilo que a lesão impossibilita ou dificulta realizar - aproximando muito a experiência àquela vivida pelo bebê diante do Outro Primordial.

 

Tetraplegia no cinema: verso e reverso de caminhos possíveis

O cinema nos brinda com duas trajetórias que abrem, em seus extremos, uma miríade de intermediários possíveis. Ramón Sampedro viveu para morrer após ter sofrido o acidente que o deixou tetraplégico; dedicou sua vida a antecipar sua morte. Jean-Dominique Bauby viveu até morrer. Dedicou sua vida para testemunhar de sua condição de clausura em um corpo imóvel, reduzido ao movimento do olho esquerdo e à audição.

Ramón Sampedro, aos 22 anos, embarcou como mecânico em um navio mercante norueguês e percorreu quarenta e nove portos dando a volta ao mundo. Essa experiência fez uma profunda marca em sua vida e em sua memória. Com 26 anos, fez um mergulho mal calculado no mar, que resultou em uma fratura na sétima vértebra cervical e consequente tetraplegia. Ramón dispensou o tratamento de reabilitação, deixando-se atrofiar dia após dia em cima de uma cama. Foi no seu quarto que ele viveu as amizades, as fantasias amorosas e as relações familiares. Não aceitou utilizar cadeira de rodas porque entendia que estaria aceitando migalhas do que foi sua liberdade. A tecnologia assistiva que mais utilizou foi uma prancha inclinada ao lado de sua cama, com papéis, onde realizava seus escritos com a boca.

Ramón escreveu para fazer valer sua individualidade e sua liberdade (AMENÁBAR apud SAMPEDRO, 2005), escreveu para conquistar o direito à morte pela justiça, já que não considerava digna a vida no estado em que se encontrava e não podia praticar o suicídio sem ajuda de outra pessoa devido à limitação do corpo. Era um homem inteligente, bem-humorado, afetuoso e querido pelas pessoas que o rodeavam e que conviviam, algumas sem entender, outras sem aceitar, com seu firme propósito de pôr fim à vida. Acompanhando sua trajetória, entendemos que só foi possível viver tetraplégico durante 29 anos, alguns meses e dias, porque sustentou a vida na esperança de ter uma morte digna. Ramón disse no poema "¿Por qué morir?":

¿Por qué morir?
Porque a veces el viaje sin retorno es el mejor amor y respeto hacia la vida
Para que la vida tenga una muerte digna.
(SAMPEDRO, 2005, p. 50)

Ramón Sampedro, interpretado por Javier Bardem em Mar adentro (SAMPEDRO, op. cit.), tinha uma lesão bem menos incapacitante do que o filme retrata. Sua lesão permitia que tivesse condições de fazer uso de cadeira de rodas e assim adquirir alguma mobilidade e autonomia. Ao se preparar para a morte, não tendo conquistado o direito a ela por meios legais, deixou um depoimento em vídeo dizendo da sua infelicidade em todos os anos que viveu com tetraplegia e solicitou que não houvesse culpabilização alguma das pessoas que o auxiliaram a consumar seu suicídio preparando cianeto de potássio e o colocando ao alcance de sua boca para que sorvesse por um canudo. Ele diz: "A ideia foi totalmente minha".

O filme lança-nos à pergunta sobre a eutanásia, sustentada por Ramón como legítima na medida em que somente ele poderia saber o que estava vivendo como tetraplégico e que tipo de vida caberia dentro de sua história impossível de ser levada como lhe era suportável, estando confinado a uma cama ou a uma cadeira de rodas. Ramón estava sempre viajando, em contato com a natureza. Ao não poder circular com autonomia pelo mundo, a sensação era de ter sido solapado no que o ligava à vida. Escutamos na demanda de suicídio assistido de Ramón o desejo de valorar aquilo que lhe foi possível construir como o que conferia sentido a sua vida: a liberdade de viajar pelo mundo com as próprias pernas.

Jean-Dominique Bauby, jornalista, editor-chefe da revista Elle, aos 42 anos estava fazendo um passeio com um de seus três filhos quando sofreu um acidente vascular cerebral. Ele adquiriu a "Síndrome locked-in"4, conhecida como "Síndrome do encarceramento", um transtorno neurológico raro que ocorre em diferentes níveis, sendo que em comum tem por característica a paralisia completa dos músculos de todo o corpo, à exceção de músculos que controlam alguns movimentos verticais dos olhos. Na síndrome clássica, incompleta ou total, o sujeito preserva a consciência, e a capacidade de se comunicar depende da possibilidade de movimentação dos olhos. Jean-Do, forma pela qual era chamado pelos íntimos, manteve a audição e se comunicava por meio de um código estabelecido por sua fonoaudióloga Henriette, em que piscar o olho uma vez significava "sim" e duas vezes significava "não". Além disso, para que pudesse compor palavras e frases, seus interlocutores citavam letras em ordem de maior para menor frequência na língua francesa e Jean-Do escolhia, piscando o olho esquerdo (único olho em funcionamento), a letra desejada.

Em um encantador fragmento do filme O escafandro e a borboleta (2007), Jean-Do fala daquilo que avistava nos passeios pelo hospital onde vivia e arredores:

Mas a minha visão favorita é o farol. Alto, robusto e tranquilizador, com suas listras vermelhas e brancas. Eu me coloco sob sua fraterna guarda protegendo não só os marinheiros, mas os enfermos cujo destino os deixou à margem da vida.

Repetimos: à margem da vida. Em um quarto ou em um hospital, a experiência vivida por esses dois sujeitos que, de formas e em momentos diferentes, veem como solução para si a morte, é o que nos convoca a pensar nos caminhos que vão percorrendo para permanecerem vivos, e não só vivos enquanto sobreviventes, mas vivos e desejantes. Como não pensar na morte, diante de tamanha limitação? Como não se ligar à vida, diante da infinidade de possibilidades que se pode encontrar para engatar o desejo? Esse é um paradoxo em que também aqueles que acompanham a luta de Ramón Sampedro e Jean-Dominique Bauby se enredam ao conhecer suas histórias.

Jean-Do recebeu, em seus primeiros dias de nova vida, a visita de Pierre Roussin, um homem a quem cedera seu assento em um voo a Beirute. O voo resultou em um sequestro de quatro anos em que Pierre teve que viver numa adega, com muita dificuldade de respirar. Pierre lhe disse que ter sido mantido como refém não foi muito diferente daquilo que Jean-Do estava passando, e que o que o manteve ligado à vida foi agarrar-se ao que tinha de mais humano dentro de si. Conhecedor de vinhos, atribuiu sua capacidade de se manter são ao fato de classificar, todos os dias, os melhores vinhos Bordeaux da safra de 1855. Jean-Do pensa, com a ironia que caracteriza o prisioneiro, descrito por Freud em O humor (FREUD, 1927/2014)5: "Parece fácil."

Jean-Do quis morrer, teve pena de si, até que decidiu escapar da prisão imposta pelo corpo utilizando o que não havia paralisado: a imaginação e a memória. Com elas pôde sair do que chamava de seu escafandro, viajar, estar com a mulher que amava e voar como uma borboleta.

Uma pessoa, em sua história, foi peça-chave para seu destino: a jovem fonoaudióloga Henriette, que construiu seu código de comunicação, o trabalho mais importante que estava realizando até aquele momento em sua carreira. Ela afirmou a Jean-Do o desejo de que permanecesse vivo em consideração a todos que ali estavam trabalhando para dar suporte à sua vida e sustentou esse desejo ao resgatar e tornar viável um projeto dele de escrita de um livro. Publicado dez dias antes de sua morte, O escafandro e a borboleta (2009) foi ditado letra a letra para Claude Mendibil, profissional que vinha diariamente ao hospital para registrar a história que Jean-Do criava a partir das imagens que construía, das fantasias, dos sonhos e esperanças. Sua prosa tem como marca o humor e o lirismo.

De algum modo o desejo da fonoaudióloga Henriette e da rede que se formou em seu entorno para viabilizar sua vida e dar concretude a seu livro produziu em Jean-Do a possibilidade de um engate à vida. A estreita janela pulsional aberta para o mundo foi colocada em circuito pelo desejo daqueles que o cercavam. Essas pessoas localizavam potência nele, viam-no com um olhar que não se encarcerava em seu corpo enclausurado - não recuavam do trabalho diário de dar ressonância à pergunta sobre o que pode um corpo quando algo do pulsional ali é enlaçado. A história de Jean-Do opera em nós uma transmissão e reverbera, ao sentirmo-nos convidados e até mesmo convocados a seguir fazendo ressoar aquilo que a dureza da experiência o impulsionou a criar - um livro. Jean-Do fez borda ao excesso do corpo paralisado ao escrever/ditar: deu-se um corpo novamente no corpo da escrita.

São dois filmes que nos comovem por vias diversas. Jean-Do nos fala da questão metonímica do desejo abordada por Lacan em seus seminários sobre o desejo (LACAN, 1958-1959/2002) e sobre a ética (LACAN, 1959-1960/1988). A dimensão essencial do desejo é inscrever-se em uma relação de segundo grau: desejo de desejo (LACAN, 1958-1959/2002, p. 24). Nesses seminários essa perspectiva adquire toda a sua força permitindo o enunciado do aforisma: o desejo é o desejo do Outro.

Quando viemos ao mundo precisamos ser acolhidos por um outro/Outro que nos socorre, que nos dá guarida, amor, alimento, cuidados e nos investe de uma forma diferencial, traçando, com seu olhar, a antecipação de percursos de vida desejáveis, caminhos de vida possíveis. A partir dessas linhas introdutórias, poderemos traçar nossas próprias linhas. Mas elas precisam existir, porque se não encontrarmos um lugar no desejo do Outro estaremos fadados a sucumbir.

A condição da tetraplegia recoloca em causa a posição alienada e dependente a/de um Outro/outro que socorre, própria ao ingresso na vida. Ao recolocar essa posição em causa, demanda, dos que cercam o paciente, a sustentação de um investimento diferencial dirigido a ele, e do sujeito em questão, a localização dos elementos que lhe permitiram o engate primordial ao simbólico para que, acionando-os, possa encontrar as vias de enunciar, nessa nova condição, algo do desejo que o constitui.

 

Escuta da tetraplegia: sonho, trauma e desejo

Fresta, aos 23 anos, levou um tiro numa tarde em que jogava futebol com os amigos no campinho de uma praça de sua cidade. Um vizinho embriagado e entorpecido aproximou-se de uma das goleiras para depredá-la. Fresta conversou com ele e quando imaginou que o tinha acalmado para fazê-lo recuar de suas intenções, virou-se para continuar o jogo e foi atingido pelas costas. Ele ficou tetraplégico, e um menino que estava por perto foi também alvejado, mas teve mais sorte e se recuperou. Fresta tem somente o pai e cinco irmãos, porque a mãe já faleceu. Com ele e seu pai vive na casa o mais novo, de 15 anos. Seus outros irmãos, a maioria, moram por perto e convivem bastante com ele, auxiliando, inclusive, nas transferências de seu corpo de um lugar para outro. Fresta trabalhou em obras, com mecânica de automóveis e viajando com o pai para fazer entrega de mercadorias. Estudou até a quinta série. Ele depende de ventilação mecânica, o que limita suas saídas de cadeira de rodas devido aos cuidados necessários na transferência da cadeira para a cama e vice-versa. Vive, portanto, a maior parte do tempo deitado na cama. Por via judicial, o pai de Fresta garantiu o direito do filho ao atendimento de home care em horário integral por uma empresa que é contratada pelo Estado. Após três anos e meio de lesão, começou a frequentar um Centro de Reabilitação da Rede SUS, porém em frequência pequena, devido às dificuldades de deslocamento - necessita de ambulância para isso e seu município não tem, nem o município vizinho. Nas poucas vezes que foi, até agora, utilizou uma ambulância que foi incluída nos custos do home care. Demos esse nome ao paciente por que de sua escuta decantou a força de sua posição frente à blindagem do corpo: ele é incansável em cavoucar aberturas que lhe apresentem caminhos para se conduzir na direção de ter uma vida em que reconheça a possibilidade de realização de algo que valorize.

Marco, por sua vez, tem 33 anos, e estava em um riacho brincando com seu pai e seu filho de 11 anos, quando mergulhou e bateu fortemente com a cabeça em uma pedra. Ficou sem se mover imediatamente debaixo d'água e foi salvo pelo filho, que o tirou dali muito rapidamente. A batida na cabeça provocou uma lesão na medula que o deixou tetraplégico. Além desse filho do primeiro casamento, Marco, quando ainda internado, aguardava a chegada do segundo filho, da atual esposa. A lesão de Marco resguardava a possibilidade de recuperar movimentos de braços e mãos. Marco podia contar com o auxílio da esposa, dos cunhados e da sogra. Era filho único, não tinha mais mãe e seu pai faleceu de um infarto assim que Marco teve alta do hospital. Marco já havia trabalhado como mestre de obras, e seu último emprego, à época do acidente na água, foi em um supermercado, na seção de produtos hortifrutigranjeiros. Foi chamado à reabilitação um ano após a lesão. O nome de Marco lhe foi conferido por sua determinação em solicitar a interrupção de uma intervenção operada pelo psicólogo que o atendia no hospital com o objetivo de que esquecesse o acontecimento que ocasionou a lesão, repetido em sonho inúmeras vezes.

Entre 1900 e 1901, Freud publica A interpretação dos sonhos e Sobre os sonhos, dois volumes de textos em que aborda extensivamente o assunto, trazendo, especialmente, uma noção fundamental que rompe com o que se propunha sobre esse tema até então. Freud inicia seu tratado com uma longa revisão acerca dos modos de operar a interpretação dos sonhos até então - tema que habitava, por excelência os textos míticos e religiosos. Nestes, propunha-se a existência de chaves fixas para a interpretação do sonho, estabelecendo uma relação biunívoca entre sonho e significado. Se, por um lado, essa significação poupava aquele que sonhava de pensar sobre seu sonho, por outro conferia ao interpretante - sábio, oráculo, místico - o poder da interpretação. Freud fará um giro nessa tradição e colocará o sonhador em posição central no trabalho de interpretação, convocando-o ao trabalho de estabelecer as indicações sobre os pensamentos oníricos que atuaram no psiquismo e se apresentaram na linguagem do sonho através de condensações e deslocamentos. Para Freud (1900/1972) aquilo que parece material absurdo e sem nexo no conteúdo do sonho, assim se mostra por mecanismos de defesa psíquica que disfarçam o conteúdo que se apresenta para o sonhador. Caberá ao produtor do sonho o trabalho investigativo, utilizando-se da associação livre, de restabelecer os elos entre as imagens que compõem o sonho e o desejo que nele se enuncia.

A condensação é um mecanismo que, como o próprio nome diz, condensa sentidos, tornando breve, insuficiente e lacônico o sonho em comparação com a gama e a riqueza dos processos oníricos (FREUD, 1900/1972). Uma cena ou uma palavra do sonho, portanto, porta a abertura a inúmeras significações. Existem vários tipos de condensação, dentre eles a condensação por omissão, em que os elementos do conteúdo manifesto aparecem sobre determinados, remetendo a uma pluralidade de materiais latentes, e a formação compósita, na qual elementos com características em comum se fundem aparecendo no conteúdo manifesto num único elemento. O deslocamento, por sua vez, consiste em transferir a intensidade psíquica de um conteúdo para outro aparentemente de baixo valor psíquico, operando um disfarce no material que ali procura se enunciar.

Há, portanto, uma linguagem cifrada no sonho. E nele a palavra e a imagem comparecem imbricadas. Quando o contamos a um interlocutor, o convocamos a assistir a uma cena, porém fazemos esse convite através de um texto, de uma escrita. Como nos alerta Lacan, no Seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (LACAN, 1954-1955/1985), devemos prestar atenção ao texto do sonho e ao que pode decantar a partir de sua escuta. Lacan dedica duas lições desse seminário ao sonho da injeção de Irma, um sonho de Freud que ele denomina o sonho dos sonhos, porque foi o primeiro a ser decifrado, ponto a ponto, com a nítida intenção de demonstrar seu método de escuta e de trabalho a partir das associações do artesão do sonho, o sonhador. Um sonho legado à formação dos analistas.

Para indicar algo desse trabalho com o texto que o sonho carrega, trazemos o sonho de um paciente cego, um menino de 8 anos. Ele conta: "Estava deitado na cama com meu pai assistindo ao jornal na televisão e, no final, o jornalista se despediu e disse: 'a seguir teremos a novela na programação e você não pode ver'". É um sonho curto que apresenta uma imagem, constrói uma cena que, ao ser contada por um menino cego, dela se destaca: "você não pode ver". O sonho introduz na fala do menino sua condição de cegueira até então não abordada por ele, somente por sua família. Mas também situa aquilo que deve permanecer fora dos olhos - também dos que enxergam -, afinal, se trata de um dito que lhe chega quando está "deitado na cama com meu pai". O sonho opera uma abertura no significante cegueira introduzindo-o no discurso do menino em diferentes camadas: as que se relacionam à deficiência física e as que se relacionam à transmissão de uma Lei - "você não pode ver".

Voltemos a Irma: ela é paciente de Freud e amiga de sua família. Freud se percebe com dificuldades de conduzir essa análise e tem esse sonho após ter interrompido o tratamento de Irma e escutado o comentário de um médico e amigo, Otto. Ele lhe dá notícias de que Irma não está muito bem, e Freud toma sua fala como uma desaprovação à direção por ele dada para esse tratamento. É a partir disso que ele sonha: enuncia seu desejo de uma "boa solução" (LACAN, 1954-1955/1985, p. 192) para o caso de Irma. "Solução" é um significante que aparece no início do texto do sonho, quando Freud repreende Irma "por não haver ainda aceito a solução" (Ibid., p. 190). A solução alude tanto a um medicamento que se injeta quanto à resolução de um conflito. A escolha por essa palavra - solução - abre, no texto do sonho, a polissemia que produz diversas bifurcações na cadeia associativa do sonhador e, ao percorrer os caminhos abertos pela associação, permite a ele a produção de diferentes planos de sentido ao texto enunciado. Ao terminar a análise desse sonho, Freud anuncia que por meio dele realiza o desejo de que sua paciente se tornasse permeável às suas interpretações - o que lhe parece seria a "solução". E conclui, a partir dessa experiência, que os sonhos são realizações de desejo (FREUD, 1900/1972).

Em nossa escuta de pacientes tetraplégicos, localizamos em Marco e Fresta a peculiaridade de trazer os sonhos em suas falas. O primeiro sonhou inúmeras vezes com o evento traumático que ocasionou sua lesão, o mergulho com a batida de cabeça. Ele sonhava evocando a cena que tanto o angustiava. Estava com seu pai e seu filho em um açude numa cidade praiana, local que já haviam frequentado algumas vezes. Num determinado momento da brincadeira, ele mergulhou e não retornou à superfície ficando ali sem forças, sem respirar, sufocando-se, até que o filho se deu conta, pulou na água e foi ao seu encontro, trazendo-o à tona. Esses segundos de desespero o acompanharam por algum tempo durante a internação, especialmente o fato de ficar sem respirar debaixo da água.

O psicólogo do hospital que o acompanhava preocupava-se em utilizar uma técnica com ele para que essa cena se apagasse de sua memória, já que ele considerava que os sonhos de Marco faziam com que se angustiasse e não conseguisse sustentar sua respiração por muitas horas sem ajuda dos aparelhos, o que determinava sua permanência na UTI e, consequentemente, um adiamento de sua alta. Não nos detivemos em descobrir em que consistia essa técnica, mas nos chamou atenção no relato do psicólogo, quando comentávamos sobre o andamento do caso, que Marco pediu a ele para parar com essa técnica em um dos encontros. O único comentário que julgamos importante fazer naquele momento foi que os sonhos eram uma tentativa de elaboração do traumático e que eles tenderiam a cessar somente quando fosse possível dar lugar a esse trabalho de elaboração.

Para Freud, os sonhos que se repetem e que remetem ao traumático diferem daqueles que são realizações de desejo. Ele postula essa distinção em Além do princípio do prazer (FREUD, 1920/2010), ao anunciar a compulsão à repetição e a pulsão de morte. Os sonhos traumáticos são abordados quando Freud discute as neuroses traumáticas prevalentes a partir da Primeira Guerra Mundial. Os combatentes da guerra, ao retornarem, traziam consigo a vivência da repetição em sonho do horror que sofreram nos campos de batalha. Freud diz que o mesmo acontece em situações de acidente com risco de vida, quando o acidentado precisa lidar com algo repentino para o qual não havia se preparado. Ele se pergunta por que o psiquismo coloca em cena, por meio do sonho repetitivo, aquilo que trouxe tanto desprazer. Que mecanismo estaria aí operando na direção contrária do princípio do prazer - até então concebido como operador princeps do aparelho psíquico? Que forças são desviantes desse propósito e nos colocam no rumo da repetição?

Freud nos leva para o caminho de pensar que há algo que insiste, algo que parece um destino a perseguir o sujeito, com um poder que o supera. Ele nomeia esse algo de "eterno retorno do mesmo" (FREUD, 1920/2010, p. 182). Essa compulsão à repetição pode ser identificada não somente nos sonhos traumáticos, mas na vida cotidiana, no fenômeno da transferência e no impulso que leva as crianças a brincar. Isso que empurra a repetir ele denominou de pulsão de morte. Existe algo, portanto, que nos conduz para além do princípio de prazer e o sobrepuja de forma a instá-lo a seu serviço.

Freud estabelece, a partir desse momento, um novo dualismo pulsional, entre pulsão de vida e pulsão de morte. Como "o objetivo de toda vida é a morte", diz Freud (1920/2010, p. 204), a pulsão de vida se encarrega de fazer giros cada vez mais complicados até chegar à meta da morte. Assim, a pulsão de vida e a pulsão de morte aparecem sempre amalgamadas (JORGE, 2010) e agem uma na contramão da outra em nossas vidas.

Voltemos aos sonhos traumáticos para pensar a função que eles operam no psiquismo. Eles têm a função, portanto, de produzir um enfrentamento do traumático e alavancar um trabalho de elaboração do trauma por parte do sonhador. A cada vez que o sonho se repete, é fundamental que o sonhador o conte, que tenha uma escuta que dê ao texto do sonho um lugar de valor, na tentativa de estabelecer, pelas marcações da escuta, os pontos de engate entre o texto do sonho e a cadeia significante que se presentifica no trabalho de associação livre e que pode, em sua polissemia, abrir espaço para a potência de diferir que caracteriza o significante.

Ao nomear, ao construir uma narrativa sobre o traumático, o que se apresenta sob a forma de angústia poderá encontrar algum asilo na linguagem, algum contorno na palavra, e, por consequência, um espaço na subjetividade, operando, assim, um deslocamento do sonhador da posição de sofredor do sonho para a posição de formador do seu sonho. Além disso, Freud enuncia que a cada vez que o sonho é contado, a força do traumático vai perdendo seu vigor e dá lugar à intervenção das fantasias (RUDGE, 2016), que religam o sujeito ao mundo e ao laço social através de seu esforço simbólico e imaginário de apaziguar o que chega como invasão bárbara e inassimilável (JORGE, 2010).

No mesmo texto em que aborda os sonhos traumáticos, Freud (1920/2010) relata a experiência que viveu ao observar seu netinho quando estava com um ano e meio. O garoto brincava com um carretel e repetia inúmeras vezes o que o avô nomeou de brincadeira do fort-da ou brincadeira de "ir embora" (FREUD, 1920/2010, p. 172). A atividade consistia em lançar para longe o carretel que estava preso em uma linha e, ao fazê-lo, dizer "o-o-o-o-o", o que Freud traduziu por fort ou "foi embora"; posteriormente, o menino trazia de volta o carretel e pronunciava "a-a-a-a-a", que recebeu a tradução de da ou "está aqui". Tratava-se de uma brincadeira de desaparecimento e de reaparição em que, apesar de o jogo ser mais incisivo no lançamento para longe, o prazer maior estava na segunda parte, na recuperação do brinquedo.

Freud, ao analisar o que estava em causa nessa repetição, formula que, através dessa brincadeira, o menino operava uma torção em sua posição passiva frente à saída da mãe na medida em que, transformando-a em mãe-carretel, ele a lançava ativamente para fora de seu campo de visão e a tinha de volta quando assim o desejasse ao puxar o fio para perto de si. O menino, assim, encenava de tal forma a ausência da mãe sofrida por ele, que aquilo que experimentava passivamente como desprazer, a sua saída, era colocado em cena de forma ativa, podendo, com isso, ter o domínio da sua ausência. Todo esse jogo era acompanhado pela vocalização o que, de alguma forma, constituía um detalhe no trabalho de produção do deslocamento da posição passiva à posição ativa. É através da palavra, forma princeps de presentificar o ausente, que o menino brincava de desconstruir a maquinaria psíquica capaz de transformar desprazer em prazer. Através da simbolização aberta pela assunção da palavra transformava sua posição diante do distanciamento da mãe: de objeto passava a produzir-se como sujeito dessa/nessa distância. Os sonhos de Marco, tal como a brincadeira do fort-da, tentavam constituir, através de seu trabalho de produção, um mínimo lugar de sujeito na cena em que ele se viu totalmente alijado dessa condição, bem como procuravam encontrar as vias de enunciar o que, no lugar de objeto, experienciou.

Os sonhos de Fresta se apresentavam de outra maneira. Ele sonhava que acordava pela manhã, levantava-se da cama e ia caminhando pela rua até a casa de suas tias para visitá-las. Sonhava também que estava jogando futebol, seu passatempo favorito - em determinado momento quase se tornou atividade profissional, não fosse uma lesão no joelho que o fez recuar.

Os sonhos apresentam a peculiaridade de não se caracterizarem, a princípio, por terem um conteúdo distorcido ou disfarçado. São sonhos que se assemelham ao devaneio - as fantasias que cultivamos acordados - e lembram os sonhos das crianças pequenas. A realização do desejo parece estar enunciada de forma direta. O primeiro sonho diz do desejo de se locomover e de sair pela rua liberto da cadeira de rodas e da cama. O segundo também é bem claro: voltar a jogar futebol. Ele se pergunta: "Será esse um sinal que Deus está me enviando? Será que conseguirei novamente fazer tudo isso?".

Sabemos que pelo desenvolvimento da medicina, até hoje, é provável que esse sonho não se torne realidade nos próximos anos. Mas isso não quer dizer que, com o andar das pesquisas, estejam fechadas completamente as possibilidades de alcançar um ganho de movimento em seu corpo. Mas o que foi importante destacar para ele girou em torno da fenda que esse sonho abria, já que, por meio dele, conseguiu levantar, caminhar, visitar e jogar. Não estariam todas essas ações apontando um desejo de futuro, ao contrário de um resgate do passado?

Ou melhor: nessas imagens de corpo sonhadas e transformadas em palavras, o que estaria cifrado? Em qualquer um desses verbos podemos encontrar uma polissemia, e é assim que eles adquirem seu sentido simbólico (LACAN, 1954-1955/1985). Levantar pode significar também ter ânimo, animar-se; caminhar pode ser ir de um lugar a outro, isto é, mudar de posição como sujeito; visitar pode ser também ver algo novo; jogar pode ser entrar em cena para uma disputa, apostar. O sonho guarda um texto em que Fresta se empurra para frente, para se lançar na vida.

Fresta chama sua analista de volta nesse dia com um barulho que faz com a boca para chamar as pessoas, um "tsc, tsc", já que sua voz não é audível devido à traqueostomia6. Quando ela está se despedindo e se dirigindo à porta do quarto, faz com que retorne e diz: "Vamos continuar sonhando". Ela repete, tal como um eco, em seu pensamento: "Vamos..." Essa frase lhe chega com muita força por dois motivos. Em primeiro lugar porque ele está dizendo que continuará a sustentar seu desejo de encontrar frestas. Em segundo, porque a inclui em seu desejo quando diz "vamos", tal como seu pai que está sempre a lhe perguntar o que mais é possível buscarem para que o filho se sinta vivo e com potência para encontrar, mesmo que nas pequenas coisas do cotidiano, algo que coloque em cena sua energia vital, sua libido.

 

Quando a política do desejo roça a política pública

Se a dimensão nodal do desejo é sempre desejo ao segundo grau, desejo de desejo, podemos dizer que Fresta "lê" na escuta da analista e em suas intervenções na pólis (aqui nos referimos às políticas públicas de saúde, educação e obras que foram articuladas para que se tornassem efetivas para ele), tal como Jean-Do "lê" em Henriette, o desejo de que encontre aberturas, oportunidades para se reinventar em seu novo corpo. E, de outro lado, se a analista é "empurrada" a se lançar a todos esses movimentos, é também porque seu desejo de analista se constitui a partir da escuta do desejo de Fresta, nesse encontro mediado pela transferência.

É importante ressaltar um aspecto que se revelou imprescindível ao longo da escuta na sustentação da transferência junto a esses pacientes. Como é possível avaliar, em sua breve apresentação, Fresta e Marco são pacientes que dependem exclusivamente do que lhes é garantido como direito pelas políticas públicas para o acesso à saúde, educação, obras, transporte, entre outras. De famílias em condições econômicas precárias, eles têm nessas políticas a chance de encontrar alternativas para a continuidade da vida, o resgate da escolaridade, a obtenção de condições de mobilidade na rua/bairro/cidade, para citar ao menos algumas fundamentais. O que ocorre é que mesmo com a Lei Brasileira da Inclusão (BRASIL, 2015), que garante às pessoas com deficiência7 o acesso a todas essas políticas, esse acesso só se tornou efeito nesses casos por obra da intervenção e do monitoramento constante, de quem os escutou, junto às Secretarias de Estado e Municipais. O paciente com tetraplegia ainda é visto no lugar de morto apesar das pesquisas (ALMEIDA, D.; MILANO, J., 2013) que revelam que vive em torno de trinta anos após ter ficado com as sequelas inerentes ao quadro. É como se pudéssemos pensar que a paralisia de um corpo produz uma paralisação especular no outro/Outro e as inúmeras demandas não se operacionalizam a não ser que haja alguém que resista/persista para que isso aconteça. Como estamos tratando de um sujeito que não pode percorrer a rede pelo seu grau de imobilidade (inclusive para usar um telefone) e, junto a ele, uma família que está bastante paralisada pela situação, já que precisou se reorganizar em seu espaço e em seu dia a dia para viabilizar os cuidados necessários ao tetraplégico e não encontrou nenhuma facilidade de acesso àquilo de que necessita - ao contrário, somente portas fechadas -, faz-se fundamental a intervenção de alguém, um técnico de referência que funcione como ponto-de-estofo em cada caso, conectando a escuta do paciente com aquelas políticas públicas que podem tornar viável a colocação em cena de uma energia vital. Aqui a posição de quem escuta o sujeito é chamada a uma extensão de seu lugar.

Fresta saiu do hospital com assistência integral de home care, garantida por via judicial, já que o juiz que analisou seu caso determinou que permanecesse internado no hospital até o fim dos seus dias como se isso fosse o que restasse para ele, a manutenção do organismo vivo. Por que ninguém teria pensado em sua reabilitação? Que conceito é esse de reabilitação que restringe um corpo a sua capacidade de movimentação desconsiderando o arsenal de tecnologias com que contamos hoje que permitem fazer suplência a algumas funções corporais? Recorrendo à médica da UTI que se encarregou dele du rante a internação, chama atenção o discurso de antecipação da morte do paciente tetraplégico: "Dificilmente eles sobrevivem, especialmente no caso dele, que vive ligado a um respirador. E se continuar vivendo, o que poderá fazer?". Ainda que isso se comprovasse, contrariando as pesquisas que apontam uma média de vida de 30 anos (ALMEIDA, D.; MILANO, J., 2013) quando os pacientes têm os cuidados necessários, anunciar a morte antes dela acontecer é mortífero para um sujeito que quer sair vivo do hospital porque tem esperança de reconstruir a sua vida. Ele precisa que o seu entorno (em outras palavras, o social) acolha-o numa aposta de que haverá algo em que possa se engatar, algo que permita a suspensão, ao menos por alguns momentos, de seu corpo tão presentificado pela situação traumática que atravessou e pela lesão que nele se instalou. Como já foi dito anteriormente, só conseguimos habitar o mundo se houver nele um lugar sonhado para nós no desejo do Outro.

Assim que Fresta chegou em casa e que fomos marcar a primeira entrevista em sua residência, o pai pergunta ao telefone: "Mas o que vamos fazer com ele agora?". Essa pergunta nos anuncia na transferência uma demanda de movimento e nos posiciona como agente de articulação das políticas públicas. Uma vez que o filho não poderia se mover, que movimentações nossas seriam necessárias para que sua vida seguisse? Não se tratava somente de se alimentar adequadamente, urinar, evacuar, respirar, tomar banho, dormir e assistir à televisão, mas como poderia continuar tendo a possibilidade de colocar em cena algo da ordem do desejo? Como poderia colocar em circuito as estreitas janelas pulsionais que estavam potencialmente preservadas? Em outras palavras: o que poderia lhe trazer satisfação apesar de habitar um corpo inerte? Haveria algo que funcionasse como motivo para querer acordar novamente no dia seguinte, algo que o lançasse no amanhã, capaz de recolocar em circuito a pulsão?

Tornava-se preciso pensar quais políticas públicas poderiam fazer o acolhimento desse sujeito que, resgatando as palavras do pai, necessitaria de uma rede para sustentar seu desejo pela vida. "O que vamos fazer?". Repetimos as palavras do pai. E escutamos "vamos" como um chamado para construirmos juntos, um chamado que aponta para uma especular paralisia psíquica "do corpo técnico" quando o assunto é a paralisia do corpo físico, já que a cada demanda de assistência e de acesso às políticas públicas a família só encontrava entraves. Como em toda vida humana (e com Fresta não é diferente), são necessárias muitas pessoas para que seja possível dar um contorno à existência. Talvez a sua condição de imobilidade nos apresente com toda radicalidade essa constatação.

A escuta de Fresta foi articulando o resgate da escolaridade como um projeto possível. Ele havia deixado a escola pela necessidade de se dedicar ao trabalho junto ao pai para contribuir com o sustento da família. Através da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva8, implementada em 2009, e depois de inúmeras tratativas que fizemos para que ela se efetivasse em seu caso, foi contratada uma professora pela Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul para conduzir seus estudos domiciliares no Ensino de Jovens e Adultos (EJA), já que ir à escola com frequência regular seria impossível devido aos riscos que implicavam a desconexão do respirador.

Marco, por sua vez, com bem mais possibilidades de mobilidade devido ao uso cotidiano de cadeira de rodas em sua residência, teve seus entraves para chegar ao Centro de Reabilitação, bem distante de sua casa. Ele se deparou com inúmeros problemas com o transporte desde sua alta no hospital. Ficava aguardando em casa a van que o levaria para as consultas e repetidamente ela não chegava, nem comunicava antecipadamente sua impossibilidade de vir, tampouco o motivo de sua ausência. Cansado de tamanho descumprimento de seu município, decidiu interromper seu tratamento de reabilitação e concentrar suas forças no que podia fazer em casa, com a família (incluindo os exercícios de fisioterapia que foi aprendendo ao longo do caminho). Marco não tinha motivação alguma para voltar a estudar, nunca havia gostado, apesar de estar começando a apreciar a realização de algumas leituras. Ele encontrou no trabalho como mestre de obras a potência que havia perdido, recuperou essa atividade que tinha desenvolvido no começo da vida laboral ao ser convocado, pela família, a trazer sua contribuição com os conhecimentos adquiridos nessa área começando pela reforma/ampliação da própria casa. Se tomarmos o corpo como a casa em que habitamos, temos nessa metáfora da reforma/ ampliação da casa-corpo o caminho que Marco pôde percorrer para suportar sua transformação e a nova condição colocando em cena um desejo enlaçado ao desejo da família que apostava na sua capacidade de reconstrução.

Decantamos da escuta desses pacientes a importância de uma antecipação no social que funcione como um alargamento das possibilidades de enunciação de um desejo singular por parte desses sujeitos9. Explicamos melhor começando por Freud (1921/2011). Ele chama atenção, no início de Psicologia das massas e análise do eu, para a interface entre psicologia social e psicologia individual:

Na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e portanto a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado. (FREUD, 1921/2011, p. 14).

Lacan retoma essa colocação em várias passagens de seus seminários. Para citar algumas, lembremos o seminário O desejo e sua interpretação (LACAN, 1958-1959/2002), em que ele diz que o desejo se funda a partir do Outro; e uma passagem do seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, na qual trata da operação de alienação, delineando-a como a "primeira operação essencial em que se funda o sujeito" (LACAN, 1964/1988, p. 199). Sua retomada das letras de Freud buscam sustentar a relação inextrincável entre o que está antecipado no Outro como possibilidade de enunciação e aquilo que o sujeito, em sua singularidade, conseguirá sustentar, recortando de forma ímpar o tecido linguageiro que o antecedeu.

O outro que faz função materna, portanto, aquele que nos inaugura no laço social, age como protetor e constituinte de nosso psiquismo. Esse laço só é possível por meio da linguagem, o que quer dizer que entre um e outro, entre o bebê e o cuidador, está o Outro da linguagem, uma ordem radicalmente anterior e exterior a eles, da qual dependem. O outro que faz função materna tem, então, a função de introduzir o bebê na ordem da linguagem, apresentando-lhe seu substituto social (RASSIAL, 2006), a cultura/civilização/laço social10.

Assim, é a partir de uma faísca inaugural provocada pela convocação do desejo do outro/Outro que o sujeito emerge em sua posição desejante. Quando o sujeito se encontra com um desejo opaco, fica entregue ao desamparo, sem encontrar recursos para desejar (como nos casos de melancolia). Somente quando o sujeito encontra um lugar no Outro é que ele pode fazer uma afirmação sobre si, sobre seu desejo.

Relembramos aqui um pouco da história do movimento social das pessoas com deficiência. A Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência (2011), da ONU, foi um marco fundamental para uma mudança de conceitos sobre deficiência. A pergunta "O que a pessoa com deficiência pode fazer para se reabilitar e ter vida social e laborativa?" foi modificada para "O que a cultura pode fazer para dar condições para que esse sujeito tenha novamente oportunidade de vida social e produtiva?". O novo conceito aponta para a limitação do social, que constrói barreiras arquitetônicas, atitudinais e de comunicação, produtoras de deficiência.

Pensamos que as pessoas com deficiência e suas famílias tomaram uma posição política ao ganharem as ruas, em 1981, "Ano internacional das pessoas deficientes", para se afirmarem como cidadãos, sujeitos de direitos e não meramente indivíduos dignos de compaixão. Seu grito fez eco e inaugurou um momento de saída de uma posição inibitória, apontando a importância do social nessa travessia. Mas ainda temos muito que avançar para romper as barreiras impostas a essas pessoas, especialmente em casos mais graves, como a tetraplegia.

Assim, julgamos fundamental que o campo do Outro possa resguardar a aposta em um sujeito ali onde o organismo encontrar-se enclausurado, pois é naquilo que se antecipa no Outro que o sujeito pode engatar algo da singularidade de seu desejo. Se ele não encontrar uma aposta no outro/Outro, poderá estar fadado a ocupar uma posição sempre vacilante na vida, o que inviabiliza ou minimiza a chance de conseguir dar um contorno ao traumático para dele encontrar uma saída desejante.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 26/11/2018
Aprovado para publicação em: 28/03/2019

Endereço para correspondência
Patrícia Rosa Balestrin
E-mail: patbalestrin@gmail.com
Simone Zanon Moschen
E-mail: simoschen@gmail.com

 

 

*Psicóloga, psicanalista. Doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
**Psicanalista. Professora do Programa de Pós-Graduação Psicanálise, Clínica e Cultura e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Porto Alegre, RS, Brasil.
1Parte dos achados reunidos neste artigo constam da tese de doutorado intitulada Vamos continuar sonhando: um corpo, um enigma, a tetraplegia no laço social, defendida no Programa de Psicologia Social e Institucional da UFRGS no ano de 2018.
2"Tecnologia Assistiva é uma área do conhecimento, de característica interdisciplinar, que engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social". Disponível em: <http://www.assistiva.com.br/tassistiva.html>.
3O tema do luto foi abordado no artigo Considerações sobre o luto na vida de pessoas com tetraplegia, de Patrícia Rosa Balestrin e Simone Zanon Moschen. Disponível em: <http://www.portaldeacessibilidade.rs.gov.br/uploads/1512061517E_book___Novembro_2017___final. pdf>. p. 54-63.
4Disponível em: <http://www.med1.com.br/artigos/sindrome-do-encarceramento-o-que-e-essa-rara-sindorme-neurologica>.
5No texto sobre o humor, Freud lembra a história de um condenado que está sendo levado para a forca numa segunda-feira, quando diz: "É, a semana começa bem" (FREUD, 1927/2014, p. 323).
6"A traqueostomia é um procedimento cirúrgico por meio do qual se cria um orifício na frente do pescoço que dá acesso à traqueia permitindo uma ventilação mecânica prolongada naqueles casos em que a ventilação espontânea é impossibilitada. Em termos mais populares, é um 'buraco na garganta para permitir a passagem de ar'. [...] é um recurso que a medicina usa para contornar uma obstrução das vias aéreas superiores ou outras impossibilidades de respirar que não podem ser tratadas por meios mais simples. Ao mesmo tempo ela ajuda na remoção de secreções brônquicas, na manutenção da ventilação mecânica por longo prazo, na aspiração de conteúdos orais ou gástricos e na substituição do tubo das intubações endotraqueais que não pode ser mantido por longos períodos de tempo" (TRAQUEOSTOMIA..., 2017).
7"Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas" (BRASIL, 2015).
8Resolução nº 4 de 02 de outubro de 2009 do MEC/CNE/CEB. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb004_09.pdf>.
9Comentário da Profa. Dra. Simone Zanon Moschen na disciplina "A ética e as ficções" (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2016/1).
10"Cultura" e "civilização" são termos utilizados por Freud, e "laço social", por Lacan, aqui agrupados conforme sugere Betts (1990).

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