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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.22 no.2 São Paulo Aug. 2017

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v22i2p339-353 

ARTIGO

 

O que se passa na infância não fica na infância: sobre o respeito pelo outro nas relaçoes sociais

 

What happens in childhood does not stay in childhood: respect for others in social relations

 

Lo que ocurre en la infancia no es en la infancia. Por respeto a los demás en las relaciones sociales

 

 

Junia de VilhenaI; Maria Inês Garcia de Freitas BittencourtII; Joana de Vilhena NovaesIII; Carlos Mendes RosaIV

IPsicanalista. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (Lipis) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIProfessora aposentada do Departamento de Psicologia e pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (Lipis) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIIProfessora da Universidade Veiga de Almeida. Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (Lipis) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IVProfessor da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Pesquisador associado do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Bolsista de produtividade da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Miracema, TO, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho propõe um olhar sociológico e psicanalítico acerca da formação psíquica da infância na contemporaneidade, colocando em evidência a importância do acolhimento nos primórdios da vida como condição essencial do processo de amadurecimento da criança. O texto dá relevância às relações alteritárias e ao reconhecimento subjetivo que leva ao sentimento de pertencimento a uma sociedade, apontando que a confiança no afeto do outro é fundamental para a criança se sentir no direito de expressar suas opiniões e afetos. Em oposição, seres marcados pelo desamparo, se não receberem cuidado, desestruturam-se, definham e perdem o sentido do viver.

Descritores: infância; acolhimento; alteridade; reconhecimento subjetivo.


ABSTRACT

This work proposes a sociological and psychoanalytic view on childhood's psychic formation in contemporary times. It highlights the importance of caring in early life as an essential condition of the child's growing process. The text gives relevance to alteritarian relations and the subjective recognition that lead to the feeling of belonging to a society. It points out that trusting the affection of others is critical for the child to feel allowed to express their own opinions and affections. In the other hand, if children who have known by helplessness do not receive proper care, they will become troubled, wither and lose desire for life.

Index terms: childhood; reception; other; subjective recognition.


RESUMEN

Este trabajo propone una mirada sociológica y psicoanalítica sobre la formación psíquica de la infancia en la contemporaneidad, destacando la importancia de la acogida durante los primeros días de vida como una condición esencial para el proceso de desarrollo del niño. El texto da relevancia a las relaciones de alteridad y al reconocimiento subjetivo que conducen al sentimiento de pertenecer a una sociedad, señalando que la confianza en el afecto del otro es fundamental para que los niños se sientan en el derecho de expresar sus opiniones y afectos. En contrapartida, los seres marcados por el abandono, si no reciben el cuidado, se desestructuran, languidecen y pierden el sentido de la vida.

Palabras clave: infancia; acogimiento; otredad; reconocimiento subjetivo.


 

 

"A cena moral primordial, a reunião moral de dois, é o terreno em que se cultiva toda responsabilidade para com o Outro, e o terreno de aprendizado para toda a ambivalência necessariamente contida na pressuposição dessa responsabilidade. Sendo assim, parece plausível que a chave para um problema tão vasto quanto a justiça social reside em um problema tão (ostensivamente) diminuto quanto o ato moral primordial de assumir responsabilidade para com o outro próximo, a pequena distância – para o Outro enquanto Rosto."

(Bauman, 1998, p. 90).

 

Introdução

Refletindo sobre a justiça social, Lévinas (1988) afirma que o mundo moral estende-se entre o eu e o Outro, espaço onde se encontra o berço da ética e todo o alimento de que o ser ético necessita para se manter vivo. Tomando como base o trabalho desse filósofo, Bauman (1997) acentua que a preocupação com os direitos humanos é um apelo à humanidade que o Estado ainda não consumou. Trata-se, segundo o autor, de um apelo ao excedente de caridade, a algo maior que qualquer letra da Lei.

A justiça administrada pelo Estado nasce da caridade gerada e preparada dentro da situação ética primeira, e só pode ser administrada se reconhecida como permanente perseguição de uma meta continuamente esquiva: "a recriação, entre os indivíduos e cidadãos, da singularidade do Outro como Rosto... e se sabe que não pode igualar a bondade que a deu à luz e a mantém viva" (Bauman, 1997, p. 67). Por sua vez, Honneth (2003) afirma que a capacidade de confiar no outro, enquanto provedor daquilo que necessitamos ou queremos, constitui uma pré-condição para nossa autorrealização em qualquer contexto cultural.

Identificando nessas concepções filosóficas uma proximidade com as ideias desenvolvidas por Winnicott no campo psicanalítico sobre a função do ambiente como fundamental nos processos de subjetivação, propomos colocar em evidência neste trabalho a importância do acolhimento, dos cuidados e do olhar nos primórdios da vida, condições essenciais para a capacidade do sujeito inserir-se mais tarde, positivamente, na vida social em seus múltiplos aspectos: compartilhamento de experiências, reconhecimento e respeito pelo outro, senso de justiça, contribuições para a cultura etc.

Nesse sentido, acreditamos, com base nas contribuições de Winnicott, que as nossas primeiras relações, inauguradas com o ambiente/mãe, são a delicada base para as relações subsequentes. Inicialmente, com o eixo familiar, e logo também com os círculos que vão se ampliando ao longo da infância, sendo posteriormente estendidos aos diferentes grupos sociais. Em circunstâncias favoráveis, a vida social pode atualizar os sentimentos de segurança, de mutualidade e de potência que o indivíduo experimentou nos primórdios da vida. "Um ambiente favorável torna possível a progressão continuada dos processos de maturação" (Winnicott, 1960/1990, p. 80).

O sujeito nasce, portanto, a partir da unidade mãe-bebê vivida inicialmente pelo bebê como um todo indistinto, onde o eu e o não-eu não são discriminados e as experiências intersubjetivas se dão na modalidade sensorial. Mais tarde, quando o bebê começa a poder tolerar a separação da mãe/cuidador, e havendo condições ambientais facilitadoras (como o respeito ao tempo de separação tolerável para o bebê, que progressivamente vai se ampliando), inicia-se a percepção discriminada do eu e do outro e a constituição de um interstício, espaço onde ocorrerão, de forma cada vez mais complexa, as trocas com o mundo externo (Winnicott, 1953/ 1975a, p. 29).

No decorrer do processo de amadurecimento, é de suma importância a forma como são vividos os primeiros momentos relacionais com a figura materna. A maneira como o ambiente respeita as necessidades do bebê, sob a forma de acolhimento, presença e cuidado, leva à aquisição gradativa da capacidade do sujeito confiar e respeitar o mundo reciprocamente. Assim, a saúde psíquica do adulto e sua capacidade de inserir-se na vida social dependem essencialmente da qualidade, do ritmo e da intensidade da presença do outro nos primeiros tempos.

Ancorados nesses pressupostos e dialogando com as contribuições de outros autores, nos deteremos em alguns pontos importantes do processo de amadurecimento do ser e de sua inserção no humano, pontuando o sentido ético contido nesse termo.

 

Nos primórdios do psiquismo: a ética do cuidado nas primeiras relações

A recepção de um recém-nascido no mundo é marcada por uma trama complexa de acontecimentos, que estabelecem as condições de seu vir a ser humano. Para além das diferenças culturais, algumas questões parecem universais. Concordamos com a afirmação do filósofo e sociólogo Honneth (2003), de que a integridade do corpo, associada à necessidade de amor e cuidado, é um ponto que abrange algo importante, transcendendo as diferenças entre contextos históricos e culturais. Simultaneamente, subentende-se que a capacidade de confiar no outro, enquanto provedor daquilo que necessitamos ou queremos, constitui pré-condição para a autorrealização em qualquer comunidade humana.

Conforme nos lembra Figueiredo (2009, p. 121), os rituais iniciais, como batismo ou circuncisão, são práticas de "salvação" que "retiram o ser das trevas", inaugurando uma sequência de ritos de passagem que ocorrerão ao longo da vida. A estes se aliam frequentemente práticas ligadas ao bem-estar, à saúde, à higiene etc, onde também é possível identificar procedimentos que visam dar sentido a separações e ligações. Sendo assim, o "bem" só pode ocorrer se o "mal" for afastado. Mas o autor destaca ainda, como de suma importância, uma dimensão de cuidado presente nas práticas de recepção e inserção no mundo. Situado no plano da ética, o cuidado destina-se à criação da possibilidade da vida e suas vicissitudes fazerem sentido ao longo do tempo, do nascimento à morte. Fazer sentido equivale a uma experiência integrada, constituindo "um solo humano para a existência, um lugar humano para existir – um ethos" (Figueiredo, 2009, p. 124).

Nas condições da vida contemporânea, os laços sociais se encontram frequentemente esgarçados, permeados pela competição e pelo ódio, submetidos às desigualdades, às injustiças ou à barbárie mais crua, como têm sinalizado diversos observadores dos efeitos do individualismo, do consumismo e outros fenômenos, tais como Zygmunt Bauman (1997), Alain Ehrenberg (2010) e Slavoj Zizek (1997/2005). Na contramão desta tendência, que condições favoráveis poderiam possibilitar a um sujeito desenvolver sentimentos de gratidão e consideração pelo outro?

Propomos, para começar, pensar essa questão relacionando-a ao conceito de viver criativo encontrado na obra de Winnicott (1952/1969). O conceito está vinculado a uma teoria do amadurecimento, tendo como centro a necessidade de uma experiência concreta e contínua de relação com um ambiente facilitador no início da vida, para que a completa dependência seja ultrapassada, e o bebê possa, gradativamente, adquirir autonomia.

A constituição do sujeito, nessa perspectiva, dar-se-á a partir de sua inclusão na dimensão da temporalidade, estando esta, por sua vez, estreitamente vinculada à experiência do corpo e da alteridade. Em relação à presença imprescindível do outro nesta etapa inicial da vida, Winnicott (1971/1975b, p. 99) resume suas características essenciais, contidas na formulação do ambiente facilitador. Em primeiro lugar, mais do que qualquer "técnica materna erudita", é fundamental, no processo em questão, a presença de uma pessoa viva, que conceda ao bebê a possibilidade de acesso completo a seu corpo. Em segundo lugar, a mãe é necessária para apresentar o mundo ao bebê, por meio de uma atenta presença, do holding (sustentação) e dos cuidados. A alimentação se coloca como paradigma do cuidado, enquanto dispositivo de criação de sentido, na inserção do bebê no mundo. A partir da necessidade (fome), o bebê está pronto para criar uma fonte de satisfação. Não existe, todavia, uma experiência prévia para lhe mostrar o que deve esperar. Se, nesse momento, a mãe coloca o seio onde o bebê está pronto para esperar algo, o bebê então poderá "criar" justamente o que já existe para ser encontrado. Caso contrário, se a mãe não corresponder à necessidade do bebê, a experiência da alimentação será vazia, mecânica ou intrusiva, sem o sentido criado e veiculado pela sensação de prazer.

Loparic (1996), leitor de Winnicott, afirma que, embora nunca completamente obturável, a relação com o vazio e o desamparo pode ser modulada pelo enraizamento no mundo, a partir do qual uma história pode ser construída. De acordo com Loparic, é somente a partir da experiência de ser acolhido, reconhecido e cuidado, em sua relação constitutiva com o vazio, que o bebê humano adquire o sentido de realidade e existência.

Winnicott (1971) enfatiza que é preciso que a mãe reconheça o bebê como uma emergência, ou seja, como um potencial em vias de atualização, e corresponda a seu gesto espontâneo originado por suas necessidades de ser alimentado, olhado, etc., para que cuidados como segurar, manejar e apresentar objetos adquiram uma conotação inapreensível, mas absolutamente real e necessária, que os transforme numa ocasião para a "criação" de um mundo particular, de alguém precioso por sua singularidade. A experiência de mutualidade através do olhar ou de outras trocas entre corpos vivos é uma necessidade urgente, base do sentimento de confiança em si mesmo e no mundo, mas, sobretudo, responsável por viabilizar no sujeito o sentimento de que a vida tem sentido e vale a pena ser investida. Nas palavras de Winnicott (1971):

O mais adequado que pode ser oferecido a uma criança é o desejo adulto de tornar os imperativos da realidade suportáveis até que se possa suportar o impacto total da desilusão, e até que a capacidade criadora possa desenvolver-se, através de um talento amadurecido, e converter-se em contribuição para a sociedade (p. 102).

No processo de amadurecimento evocado na citação acima, Winnicott ressalta ainda a necessidade de estabelecer-se uma ponte entre realidade interna e realidade externa/compartilhada, de modo que o indivíduo possa lidar com o princípio de realidade, adequando seu mundo interno às exigências da vida real.

Colocando em evidência o lugar da criatividade (que para Winnicott se refere a um modo de viver com autenticidade) no embate com a realidade, Winnicott (1953/1975a) defende a necessidade de uma concepção da natureza humana em termos de um triplo enunciado, e o faz inserindo, entre a realidade interna e a externa, uma "terceira parte da vida". Parte essa que constitui uma área intermediária, de experimentação, lugar de repouso para o indivíduo, empenhado na perpétua tarefa de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas. O lugar da experiência cultural, assim como do brincar, é o espaço transicional. Este espaço potencial se encontra, diz ainda o autor, na interação entre "nada- haver- senão- eu" e a existência de objetos e fenômenos fora do controle onipotente ilusório que caracterizaria os primórdios da relação com o não-eu, ainda indiscriminado. A criatividade implicará a capacidade de transitar pela orla num espaço entre a ilusão e o mundo real (Winnicott, 1953/1975a, p.15):

Estou, portanto, estudando a substância da ilusão, aquilo que é permitido ao bebê, e que na vida adulta é inerente à arte e à religião, mas que se torna marca distintiva de loucura quando um adulto exige demais da credulidade dos outros.

O que é vital no caminho em direção à maturidade e à independência que, na verdade, nunca são alcançadas em totalidade, não é, portanto, uma continuação da fantasia de onipotência característica dos primórdios da vida, que desconhece limites, mas uma continuação da capacidade de ser autêntico, capaz de conferir um sentido à vida. A experiência da criatividade é definida por Winnicott (1971/1975b, p. 95) como uma sensação de que "a vida é digna de ser vivida".

Por outro lado, na teoria winnicottiana, o fracasso em adquirir a possibilidade de ser criativo é relacionado à incapacidade da mãe ir inicialmente ao encontro da onipotência do bebê para torná-la significativa, satisfazendo as necessidades da criança do modo menos frustrante possível, para só depois, progressivamente, ir introduzindo ao bebê situações de frustração na medida de suas possibilidades de tolerância. Não podendo cumprir essa função, o ambiente falha, impossibilitando uma futura abordagem criativa dos fatos.

Nessa situação de fracasso, diversas defesas podem ser construídas na tentativa de proteger o self das "ansiedades impensáveis" relacionadas a sentimentos de ameaça a própria integridade da vida (Winnicott, 1963/1994), ou, em casos extremos, servindo de anteparo para encobrir a própria inexistência de um "eu" consistente. Essa é a origem de um conjunto artificial de relações, que poderão seguir dois caminhos opostos, mas igualmente inadequados: uma violenta oposição ou uma excessiva obediência às exigências do ambiente (Winnicott, 1960/1990). Essas defesas têm em comum o fato de implicarem uma dissociação entre a existência psicossomática e a atividade intelectual. Quando o gesto espontâneo primitivo é frustrado em suas demandas, quando falha o sentimento de confiança na fidedignidade materna, não se constrói um espaço potencial para abrigar a criação de produções simbólicas, que possibilitam a experiência de si mesmo e a contribuição positiva do sujeito à vida social.

 

O outro como espelho

Relacionada à questão da emergência do eu em relação ao outro, a função especular humana tem importante papel na construção das subjetividades. Doin (1985) estende a teoria winnicottiana da função de espelho da mãe, pontuando que acontecem outras relações especulares ao longo da vida. O autor recorre a conceitos relacionados aos processos de comunicação e percepção, assim como a diversos conceitos psicanalíticos. Bittencourt e Ferreira (2015) lembram as palavras de Doin (1985, p. 7): "a função especular destina-se ao conhecimento de si mesmo, à aquisição e consolidação da identidade e à integração mental, por intermédio de outra pessoa". Por meio da função especular humana integradora primária, em condições de afeto, compreensão e autenticidade suficientemente boas, o bebê se identifica e aprende a se reconhecer em sua imagem projetada na mãe e refletida por ela. De forma lenta e oscilante, a criança desenvolve a autopercepção e a autoestima, autenticando o que é "eu" (Bittencourt & Ferreira, 2015). Ainda segundo Doin, a partir da vivência ilusória da fusão com a mãe-espelho, a criança vai aos poucos percebendo as diferenças que demarcam a representação do eu em relação às representações da mãe; em um ambiente com condições favoráveis, surge uma nova forma de função integradora, relacionada ao narcisismo secundário. Este se realiza ao longo da vida por meio de todos os níveis da comunicação humana, nos encontros com outros diferenciados que, reconhecendo e respeitando as características individuais, organizam e refletem uma imagem razoavelmente fiel da pessoa, que com ela se identifica.

Em circunstâncias desfavoráveis, a aquisição de vivências de vitalidade, continuidade e individualidade não pode se realizar, deixando um saldo de insatisfações e angústias narcísicas de aniquilamento e desvitalização, assim como uma autoestima reduzida. Doin (1985) refere-se, neste caso, a uma função especular não integradora.

Freud (1926/1976) concebe o estado de desamparo, no início da vida, como protótipo da situação traumática, e o sinal de angústia como a reação afetiva frente à ameaça de perda do objeto de amor, que protege do desamparo, metáfora da catástrofe, da queda no "nada". Por seu turno, Green (1983, p. 234) relaciona o sentimento de queda vertiginosa, observado em certos pacientes, a uma experiência de falência psíquica da mãe, comparável a um desmaio no plano do corpo físico. Neste sentido, indagou uma paciente de Winnicott (1967/1975c, p. 162): "Não seria terrível se a criança olhasse para o espelho sem que nada visse?"

A perda do objeto/espelho capaz de alimentar a ilusão narcísica de plenitude produz um esvaziamento do eu que deixará marcas tão mais profundas quanto mais precoce e radical tiver sido a ausência, podendo dar origem, inclusive, a diversas formas patológicas, entre as quais o comportamento antissocial. Os efeitos da incapacidade da mãe em possibilitar ao bebê a experiência de si mesmo levam a uma espécie de percepção do mundo concreta e desprovida de sentido, que toma o lugar da apercepção (criativa) do que "poderia ter sido o começo de uma troca significativa com o mundo, um processo de duas direções no qual o autoenriquecimento se alterna com a descoberta do significado no mundo das coisas vistas" (Winnicott, 1967/1975c, p. 154).

Neste sentido, Winnicott (1963/1994) descreve como a falha na experiência de si mesmo (relacionada às falhas do espelho materno) impede que o indivíduo reconheça nos outros aspectos que são seus, visto que estes permanecem irrealizados, desconhecidos ou accessíveis apenas numa vida interior, secreta e irreal. Sendo assim, se o espelho materno não foi capaz de refletir o amor contínuo da mãe, então o outro/espelho não poderá integrar, confirmar ou reabilitar a identidade pessoal. Ou, por seu turno, poderá ser vivenciado como algo ameaçador, a ser eliminado e destruído.

Nesses casos, surgem indivíduos privados da referência do outro, que não têm acesso à possibilidade de autointegração. Em compensação, desenvolvem defesas que os levam a se perderem de si mesmos, seja alienando-se no turbilhão das imagens que povoam o mundo do consumo ou se destruindo no uso de drogas. O mundo da convivência se apaga, como se não existisse mais, sem expressividade, sem sentido.

Podemos reforçar aqui a constante necessidade da construção de laços – "destinos pulsionais", como se diz em psicanálise – ao longo da existência para que um sujeito possa se sustentar perante o outro e diante de si mesmo. Kehl (2003, p. 4) sinaliza que a existência em si mesma é desprovida de significado, e afirma que, a rigor, o eu que nos sustenta contra esse pano de fundo de nonsense, solidão e desamparo, é uma construção imaginária, que depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo.

 

Caráter estruturante do reconhecimento social

Buscando novas formas de compreender o sentimento de vazio implícito nas patologias contemporâneas, Safra (2004, p. 40) propõe ir além das formulações psicanalíticas atuais, acrescentando uma dimensão cultural à compreensão do processo de construção do sujeito. Tendo como ponto de partida as ideias de Winnicott sobre a importância da presença de um outro para que "o acontecimento humano possa se dar", Safra introduz o conceito de sobornost, uma noção ontológica que aborda um evento "pré-subjetivo e pré-reflexivo". Trata-se, pois, de algo que, segundo o autor, permeia a compreensão tradicional sobre a vida na cultura russa, e se encontra no pensamento de diversos autores das áreas de filosofia, teologia e psicologia. Condição fundamental para o acontecer humano, sobornost é um termo que denota uma unidade comunitária. Nesse contexto, cada ser humano pode ser entendido como a singularização da vida de seus antecessores e o pressentimento dos que virão depois. Para Safra, o sentido de si é um fenômeno ontológico comunitário: "evento transgeracional, vindo da história em direção ao futuro. A verdade de si mesmo acontece e se revela somente pelo reflexo do rosto do outro" (Safra, 2004, p. 43).

Sendo assim, cada ser humano está ligado ao Outro enquanto "representante da humanidade" e carrega em si as dimensões do mistério, do contemporâneo, do ancestral, do descendente, da natureza, das coisas mensageiras do Outro (Safra, 2004, p. 50). O outro, assim compreendido, permite o estabelecimento do ethos humano.

Nesse sentido, Honneth (2003), utilizando como referencial o pensamento de Winnicott, enfatiza o nexo entre a experiência de reconhecimento e a relação consigo próprio no processo de construção social da identidade. Para este autor, há um entrelaçamento das categorias de identidade pessoal e de respeito social, estabelecendo-se três formas de reconhecimento para a formação da identidade: a relação primária (amor e amizade), a relação jurídica (direito) e a comunidade de valores (solidariedade).

Para Honneth (2003), a vida social existe através do reconhecimento do outro como destinatário social. Isso significa reconhecimento subjetivo e a valorização de si por meio do outro, o que deve sempre ocorrer de forma recíproca. A necessidade da realização desse ato afeta o funcionamento social, assim como as lutas políticas, pois estas implicam a tentativa de um grupo ser reconhecido e valorizado por outros grupos.

A definição de amor apresentada pelo autor é mais ampla do que o uso que o senso comum costuma fazer do termo, restringindo-o ao amor romântico ou sexual. Aqui, o amor é apresentado sob a forma de todas as relações primárias, sejam quais forem, na medida em que constituam ligações afetivas fortes. Na concepção de Honneth, assim como na psicanálise, o outro só tem importância para o sujeito enquanto objeto de investimento libidinal. Toda forma de relação com este outro é, portanto, apenas um desdobramento das pulsões libidinais.

Nessa perspectiva, tanto as patologias psíquicas quanto o desrespeito social se constituem em conflitos intersubjetivos na resolução do relacionamento com o outro. A reciprocidade, quando malsucedida, faz com que as ligações afetivas ocorram de modo distorcido. Da mesma forma que é possível perceber a importância que o outro tem para a formação do ego do sujeito, pode-se perceber a importância que o reconhecimento recíproco tem para a esfera social.

De forma análoga, o padrão utilizado para as relações amorosas se aplica às relações do direito. É necessário perceber-se como portador tanto de direitos quanto de obrigações para que surja, no sujeito, o sentimento de pertença a uma sociedade. O direito, porém, ainda que seja dito universal, não é igualmente aplicável a todos. É sempre feita uma interpretação sobre como e a quem a lei será aplicada.

Ainda segundo Honneth (2003), essa suposta igualdade inclui também o reconhecimento da autonomia do sujeito. É preciso implicá-lo, conferindo-lhe reponsabilidade e capacidade de decisão racional sobre seus atos/ações. O que, trocando em miúdos, equivale a atribuir imputabilidade aos indivíduos. Quanto maior é a esfera de reconhecimento dos sujeitos, mais pressupostos surgem na formação dos direitos subjetivos.

Isto acontece, principalmente, na luta de certos grupos por reconhecimento. Com ela, características antes excluídas passam a integrar os universais dos direitos humanos. Cada nova classe de direitos advém da inclusão do sujeito como membro de igual valor na sociedade. É preciso assegurar que seus direitos serão respeitados, assim como garantir sua participação na vida pública.

O reconhecimento jurídico permite ao sujeito entender suas ações como manifestações de sua autonomia. Isto é chamado de autorrespeito, e ocorre quando o sujeito é compreendido e identificado, desejando partilhar com todos os outros as propriedades necessárias para a participação pública.

Assim como a confiança no afeto do outro é fundamental para a criança se sentir no direito de se manifestar, a segurança de ser merecedor de respeito do outro leva ao respeito de si próprio. Tal fenômeno, entretanto, não costuma ter sua existência notada, ainda que muitas vezes possa ser flagrado nas relações sociais e percebido em sua forma negativa, ou seja, quando é negado ao sujeito o direito de ser merecedor de respeito.

A terceira e última forma de reconhecimento recíproco refere-se à solidariedade, que diz respeito à estima social conferida a cada um. Para isso, é necessário haver valores intersubjetivos que sejam compartilhados entre todos, como a capacidade de empatia ou compaixão, pois só é possível haver estima mútua quando se sabe de sua importância para a vida do outro. Nessa situação, tal processo depende das particularidades, das diferenças entre cada um, e não daquilo que é comum a todos, como no direito.

As capacidades individuais são julgadas de forma subjetiva, de acordo com os símbolos culturais da sociedade em questão, que assim determina os critérios de julgamento a serem utilizados. Isso também quer dizer que o modo como se dá o reconhecimento recíproco depende de um determinado contexto social, no qual os valores são definidos de acordo com um objetivo em comum. Quanto maior é a esfera de valores, maior é a abrangência da escala de hierarquias, pois assim esta não se restringe apenas a alguns grupos.

Assim como o reconhecimento jurídico, a estima social também se constitui através da evolução histórica. Nesse caso, a categoria aplicada é a da honra, que indica a conduta adequada a cada individuo, de acordo com o seu papel social. Dessa forma, a estima se dá por meio dos mesmos padrões dentro de cada grupo.

A estima dirigida a um sujeito, apesar da importância de sua biografia individual, diz respeito à coletividade. Ele é reconhecido através das propriedades comuns a seu grupo. A honra é coletiva. A solidariedade surge então na estima recíproca, ou simétrica, como diz Honneth (2003). Em situações extremas de guerra, exemplo dado pelo autor, é comum que através do sofrimento surja o interesse solidário.

Da estima coletiva, parte-se para a individual, pois, ao estar dentro de um grupo seleto e estimado, o sujeito já atribui a si próprio o respeito de que goza. Surge então o sentimento do próprio valor, a autoestima.

Para Santos (2014), o estudo do Ser deverá estar para além de uma psicologia do eu imperial, ensimesmada, e, portanto, para além de uma ontologia puramente egoica e de um conceito aditivo de nós. Para o autor, toda psicologia deve ser relacional; por isso, acreditamos que toda clínica e, mais, todas as nossas relações devem ser pautadas pelo cuidado, pela gentileza, pela delicadeza no reconhecimento do Outro. Ou, nas palavras de Lévinas (1988, p. 92):

Trata-se de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da responsabilidade, isto é, a partir da posição ou da deposição do eu soberano na consciência de si, deposição que é precisamente a sua responsabilidade por outrem. A responsabilidade é o que humanamente me incumbe, não posso recusar. Este encargo é uma suprema dignidade do único. Eu... sou apenas na medida em que sou responsável.

 

Considerações finais

Lembrando que em sua raiz etimológica "curar" remete a "cuidar" (cure and care), finalizamos citando um trecho do trabalho de Winnicott (1967/1992) intitulado justamente "A cura", em que o autor sugere

que encontremos, no aspecto "cuidar-curar" de nosso trabalho profissional, um contexto para aplicar os princípios que aprendemos no início de nossas vidas, quando éramos pessoas imaturas e nos foi dado um "cuidar-curar" satisfatório, e uma cura, por assim dizer, antecipada (o melhor tipo de "medicina preventiva") por nossas mães satisfatórias e por nossos pais. É sempre importante descobrir que nosso trabalho se vincula a fenômenos inteiramente naturais (p. 114).

Cuidado significa desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Cuidar é entrar em sintonia com o outro, perceber empaticamente seu ritmo e afinar-se com ele. É conviver. Trata-se de um modo de ser no mundo, de criar vínculos e relações com todas as coisas a partir de uma ética de convivência, e não de dominação ou tutela. Mais que um ato expresso num momento de atenção, de zelo ou desvelo, a ética do cuidar pressupõe uma atitude de ocupação, preocupação e envolvimento afetivo com o semelhante.

Seres marcados pelo desamparo, frutos da imaturidade biológica e das impressões precoces originárias, se não receberem cuidado desde o nascimento até a morte, os indivíduos – humanos entre humanos, em sua condição fundamental – desestruturam-se, definham e principalmente perdem o sentido do viver e do existir. Sobrevém, então, se não a morte física, a morte psíquica.

A palavra "cuidar", de origem latina, implica uma relação e um fim, um "para quem". Todo cuidado deve ser demonstrado concretamente, tornando-se, desse modo, um ato público: cuida-se de alguém que não é o próprio sujeito. Cuidar de alguém demanda, então, um contexto histórico-social concreto, assim como a atenção aos princípios de uma bioética: o sujeito deve ser respeitado em sua autonomia, assumindo esse processo de reconhecimento de sentido de alteridade como condição preliminar a qualquer possibilidade de cuidado.

Na esteira de Freud (1926/1976), afirmamos que todo sujeito necessita de amparo e atenção para se humanizar. Todos precisam de modelos para construir suas redes identificatórias. Se a noção de singular entre o plural não estiver salvaguardada, nenhuma criança, com ou sem privilégios materiais, se constitui como sujeito responsável, individualmente e na vida em sociedade. Na psicanálise, o sujeito só pode ser pensado no interior da cultura. A cultura é o Outro do sujeito e não há maneira de pensar sobre ele para além dela.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em fevereiro/2017.
Aceito em maio/2017.

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