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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2019

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i1p32-40 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i1p32-40

DOSSIÊ

 

Para uma abordagem do desejo do professor: angústia e fantasma como vias de acesso

 

Hacia un abordaje del deseo del profesor: angustia y fantasma como vías de acceso

 

For an approach to the desire of the teacher: anguish and phantom as access routes

 

 

Perla ZelmanovichI

IProfessora Doutora da Faculdad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso), Buenos Aires, Argentina. E-mail: zelmanovichperla@gmail.com

 


RESUMO

A análise dos efeitos gerados em um dispositivo para a formação de professores nas escolas secundárias é apresentada em uma universidade pública. Argumenta-se de que modo isso facilita a sintomatização da angústia quando o fantasma em que se encontra o desejo do professor é desestabilizado, e o ato educativo se interrompe. É mostrada a maneira como cada professor pode colocar em seus próprios termos os desconfortos que emergem em sua prática cotidiana diante do inabordável do trabalho com adolescentes. Adverte-se sobre a potencialidade de velar o real com os conceitos (da psicanálise), com a escrita e a leitura particularizada, em um dispositivo que põe em funcionamento o enigmático de uma cena para o qual aquele que escreve não tem respostas. Mostra-se a possibilidade de encarnar desde a formação o semblante de "objeto a" via transferência, que se torna especialmente relevante ao acompanhar a produção e sustentação do vínculo educativo com os adolescentes.

Palavras-chave: desejo do professor; adolescente; fantasma; angústia; transferência.


RESUMEN

Se presenta el análisis de los efectos generados en un dispositivo para la formación de profesora/es de escuelas secundarias, en una universidad pública. Se argumenta de qué manera facilita la sintomatización de la angustia cuando se desestabiliza el fantasma en el que se sostiene el deseo del profesor, y se detiene el acto educativo. Se expone la forma como cada docente puede poner, en sus propios términos, los malestares que emergen en su práctica cotidiana ante lo inabordable del trabajo con adolescentes. Se advierte la potencialidad de velar lo real con los conceptos (del psicoanálisis), con la escritura y la lectura particularizada, en un dispositivo que pone en marcha lo enigmático de una escena para la cual quien escribe no tiene respuestas. Se muestra la posibilidad de encarnar desde la formación el semblante de "objeto a" vía transferencia, en que cobra especial relevancia a la hora de acompañar la producción y el sostenimiento del vínculo educativo con adolescentes.

Palabras clave: deseo del profesor; adolescente; angustia; fantasma; transferencia.


ABSTRACT

The analysis of the effects generated in a device for teacher training in secondary schools is presented in a public university. It is argued in which way it facilitates the symptomatization of the anguish when the phantom in which the desire of the teacher is held is destabilized and the educational act stops. It shows the way in which each teacher can put on their own terms the discomforts that emerge in their daily practice in the face of the inability to work with adolescents. It warns about the potentiality of veiling the real with the concepts (of psychoanalysis), with writing and particularized reading, in a device that puts to work the enigmatic of a scene for which the writer has no answers. It shows the possibility of embodying from the formation the "object a" semblance via transference, which becomes especially relevant when accompanying the production and sustaining of the educational bond with adolescents.

Keywords: desire of the teacher; adolescent; phantom; anguish; transference.


 

 

Um dispositivo de formação de professoras/es orientado pela psicanálise encontra sua potencialidade na abordagem da angústia e na oportunidade de sua subjetivação, que – sintomatização mediadora a partir de um processo de escrita sob uma temporalidade lógica (ver, compreender, concluir) – pode encontrar sua saída no ato educativo (Zelmanovich, 2017).

Essa hipótese foi pensada em outros momentos de trabalho, quando pusemos em foco um tratamento possível da angústia que se apresenta sob diferentes modalidades nas práticas das/os docentes, tais como o nojo, o desprezo, a estigmatização ou a fuga através das ausências ou enfermidades, entre outras manifestações. Indicar que a angústia é um de seus motores permite reafirmar nossa orientação de trabalho até a saída da angústia, afrontando-a, o que neste campo de práticas se traduz no ato educativo.

Um possível aporte de uma clínica sócio-educativa orientada pela psicanálise contribui a velar o real com os conceitos, com a escrita e a leitura e uma escuta particularizada em um dispositivo que parte de colocar em trabalho o enigma (uma cena para a qual não se tenha resposta) que contribui a encarnar por parte de quem leva adiante o trabalho de formação, o semblante de "objeto a" via transferência. (Zelmanovich, 2017, pp. 250-251)

Deixamos situada essa última articulação como enigmática, como incentivo para continuar nossa investigação para seu desdobramento em outro trabalho.

 

Uma nova chave de leitura: o fantasma

Recentemente avançamos nessa linha de indagação e elaboração a partir do encontro com outra clave que nos oferece a psicanálise: a lógica na qual se sustenta o fantasma, com a qual cada um chega à cena educativa, tanto docentes como estudantes. Esse achado permitiu nos aprofundarmos na pergunta sobre os efeitos que se produzem a partir desse dispositivo.

Encontrar que na emergência da angústia está em jogo o fantasma nos levou a indicar que o dispositivo de formação que idealizamos pode contribuir para trabalhar sobre o impossível e o possível da educação, e advertir sobre os limites e as possibilidades que introduz a operatividade do fantasma no exercício da função docente. Verificamos nas produções de estudantes de magistério e outros profissionais que interferir na lógica totalizante da instituição escolar, com a lógica do não-todo advertindo os pontos de impossibilidade, produz alívio para o mal-estar e reconduz os agentes a amparar-se no desejo propiciador do próprio discurso entendido como laço no qual se sustenta a prática cotidiana.

O fantasma e sua operatividade nos confrontam com o não-todo da educação, enquanto nos recorda que sua configuração permite ao sujeito defender-se da angústia que suscita o desejo do Outro e lhe possibilita subtrair-se de cair preso como puro objeto de seu gozo.

Agora, de que maneira se apresentam essas defesas com respeito ao desejo do Outro nas cenas que se colocam a trabalhar no dispositivo de formação? Como se apresentam as subtrações para não cair preso no gozo do outro de ambos os lados do vínculo educativo? Por que assumir o semblante de "objeto a" na transferência que sustenta o vínculo educativo entre professores e estudantes e entre nós, como analistas, e os professores, ou candidatas/os a sê-lo, contribui para relançar o ato educativo ali onde se produziram os impasses?

Elcira, Joaquim e Armando transitaram em nosso dispositivo de formação entre agosto e dezembro de 2017. Elcira é professora de biologia e, ao final do recorrido, adverte que pretender que as coisas andem mais ou menos à sua maneira lhe valeu cenas de prantos e sua própria angústia traduzida em desconcerto e nojo. Girar para outro discurso no qual pôde encontrar-se com outro semelhante a fez dizer que isso lhe abriu outras saídas possíveis, permitindo-lhe superar situações nas quais se mantinha detida, ainda que confesse que lhe parece mais fácil encontrar-se com o que agora pode chamar de "Discurso do mestre". "É mais cômodo, ainda que paradoxalmente me gere muitos incômodos na aula".

Joaquim já trabalha como professor de matemática e desdobra a cena de seu aborrecimento com uma estudante que "sempre tem que ter a última palavra". No transcorrer de sua escrita, embora desdobre a cena e a pense com alguns conceitos, reconstrói que na última aula, quando sua aluna voltou a interpelá-lo, isso lhe causou graça, ele riu para si mesmo e recordou: "mas claro, se eu era assim como adolescente, sempre queria ter a última palavra". Ele comenta a aula a propósito de seu trabalho: "É certo, a mensagem volta em forma invertida. O mais próprio de minha maneira de ser, o via encenado ali fora, na aula com essa garota, e isso ativava a tensão agressiva, me vinha em um espelho no qual não queria me ver".

Armando cursa o magistério de física, mas não exerce ainda a docência, e coloca para trabalhar uma cena como estudante de secundário. Mostra vivamente em sua escrita os avatares de seu padecimento com seus companheiros, as brigas, o sentir-se excluído por aquele que fora seu melhor amigo. Pergunta-se se agiu corretamente quando deixou claro frente à professora de história que o único que havia trabalhado para a tarefa grupal tinha sido outro companheiro. Transitou por nosso dispositivo de trabalho de maneira muito interessada pelos conceitos e, em particular, deteve-se na ferramenta que brinda a psicanálise para pensar as ambivalências que se colocam em jogo no laço fraterno.

Sua argumentação lhe permitiu desarmar a cena em seus matizes, encontrar luzes e sombras em cada um dos atores intervenientes, surpreender-se com variáveis que estavam operando e que "jamais tinha pensado", digo, como é o papel que joga a visão e a sanção dos adultos na disputa entre os pares. Mesmo assim, sobre o final, volta sobre a pergunta que insiste e resiste para agora se colocar de outro modo na confrontação: "sigo perguntando a mim mesmo quem dos dois atuou corretamente".

O fantasma por um lado é propiciatório, já que organiza o mundo e as relações que ali se produzem, mas também aporta essas cotas de gozo que fixam o sujeito a certas inércias existenciais.

O que é um fantasma? É uma pequena novela em edição de bolso que alguém transporta todo tempo consigo e que pode abrir em qualquer lugar sem que nada o advirta, no trem, na cafeteria e com frequência em uma relação amorosa. Pode suceder que essa fábula interior se volte onipresente e, sem que nos demos conta, interfira nas relações que mantemos com aqueles que nos rodeiam. (Nasio, 1994, p. 11)

Essa pequena novela de bolso que todos transportamos, sem estarmos conscientes disso, também se apresenta sem aviso prévio nas cenas escolares, interferindo no vínculo educativo em sua dupla configuração, operando no que resiste e ao mesmo tempo no que sustenta. Advertir sua possível emergência do lado daqueles com quem levamos adiante o dispositivo de formação e transferir nosso trabalho com essa advertência às/aos cursantes pode contribuir para interferir na dialética entre onipotência e impotência pela qual transitam as práticas docentes, com a cota de padecimento que lhe corresponde. Essa dialética também atravessa a própria posição de psicanalistas no campo das práticas educativas, como é o caso da formação de professoras/es.

Poderíamos arriscar que Elcira, Joaquim e Armando se puseram a jogar a estrutura de suas próprias novelas em suas cenas do mal-estar, e seu trânsito pelo dispositivo lhes permitiu pensarem-se de alguma maneira nelas, como protagonistas, jogando um papel armado com um livreto próprio. Isso mostrou as fixações e os movimentos em que cada um/a pôde transitar durante o curso. Elcira advertida de sua fixação por uma modalidade; Joaquim recuperando uma maneira de responder ao que desperta agressividade; e Armando, por sua vez, resistindo com uma pregunta que não cessa no momento em sua fixidez.

Se entendemos que o fantasma é essa tela protetora com a qual filtramos a realidade, a maneira com que cada sujeito se ajusta para lidar com as coisas do mundo e com os outros, podemos inferir que as manifestações de angústia revestidas de explosões e inibições comentam que algo desse marco, dessa janela para ver o mundo, se desestabilizou, se desestruturou e deixou de ser operativa, seja para um/a docente ou para um/a estudante.

Esse marco que configura o fantasma se constitui a partir de uma determinada maneira na qual um sujeito, um sujeito dividido, o sujeito do inconsciente ($), se relaciona com sua falta, com a indeterminação de quais são os objetos com os quais poderá satisfazer-se, com sua incerteza acerca da maneira de relacionar-se com os outros. É produto da marca de origem de nossa condição humana, enquanto, à diferença de outras espécies, os objetos de satisfação e as relações com os outros não estão predeterminados, mas dependem de como fomos interpretados por aqueles que encarnam o Outro de quem dependemos desde nosso nascimento: chora porque tem fome, ou porque saiu com gênio difícil como seu avô, ou porque dói sua barriga, dirá esse Outro encarnado a quem cumpre a função materna. Essa indeterminação, essa falta de objeto e de modalidade pré-definidos pode ser ocupada por qualquer elemento, ao que Lacan nomeará com uma letra: "a". Paradoxalmente, essa indeterminação que vem do Outro é a que vai sustentar o desejo do sujeito e a que vai empurrar o movimento para ir ao encontro de um modo de satisfazer-se.

Cada um vai estabilizando uma determinada maneira de relacionar-se com os objetos que vêm ocupar essa falta de objeto predeterminado. É por isso que Lacan (2009) vai grafar o fantasma – esse marco, essa janela pela qual olhamos, nos estabelecemos e nos movemos no mundo – com a fórmula: $ <> a.

A indeterminação, a não harmonia, a incerteza que deu origem a essa armação, a essa lógica que nos permite transitar na vida de certa maneira, com certa modalidade singular de satisfação no vínculo com os outros, retorna sob a forma de angústia quando essa operação de mútua implicação, representada pelo signo (<>), se desestabiliza diante de determinadas contingências. Quando o fantasma vacila, retorna ao gozo do Outro – que não pode ser velado com o fantasma – sob a forma de angústia. É uma pergunta que não alcança sua formulação com respeito ao que quer o Outro de mim. A interpelação e o pranto de seus estudantes para Elcira ("como querem que estejamos bem neste novo trabalho se nos colocam no grupo com os quais sempre nos damos mal?"); a última palavra com que sempre quer ficar a jovem estudante para Joaquim; e a exclusão do grupo de pares para Armando fazem vacilar seus marcos, as janelas com as quais confrontam a realidade.

Chegar à compreensão de como é essa armação para cada um não é tarefa de um dispositivo de formação. Apenas se trata de estar advertida/o de que se está operando algo muito singular, resistente, potente e necessário para a estabilidade – paradoxal – de um sujeito, uma armação do $<>a que pode ser mais ou menos rígida de acordo com a fragilidade de cada constituição subjetiva, pela qual terá que operar com prudência.

Nossa prudência no dispositivo de formação se traduz na consideração do tempo subjetivo profissional (Zelmanovich, 2017), uma temporalidade lógica retroativa, que vai ressignificando as próprias ações e pondo nos próprios termos seus efeitos.

Cabe retomar a essa altura de nossa argumentação que na constituição do fantasma, dessa maneira singular de montar a relação $<>a, intervieram esses outros que nos interpretaram a partir de seu próprio desejo. É por isso que o fantasma é um modo de localizar-se na relação com o desejo do Outro, e é a partir dessa localização que poderá emergir o próprio desejo e, também, constituir-se a própria modalidade de gozo, além de ser uma maneira de não cair capturado nele. Elcira talvez com sua maneira de buscar que as coisas andem, Joaquim com sua necessidade de ter a última palavra, e Armando com sua prevenção a respeito do semelhante.

O fantasma é um ponto de vista que o ser falante adota para subjetivar sua falta-a-ser. É uma ficção fabricada para responder ao interrogante do desejo do Outro, resolve a radicalidade de um vazio absoluto e protege de um efeito arrasador de dessubjetivação. A satisfação da pulsão habita no coração do fantasma e, posto que o fantasma determina o marco de sua própria realidade, o sujeito não goza senão de seu fantasma, ou melhor dito, não só de, senão com seu fantasma.

No campo das práticas que nos ocupam, o desejo do Outro está encarnado na/o docente para as/os estudantes. Dali que localizamos a relevância que tem o desejo do professor, por entendermos que este terá seus efeitos no desejo do sujeito da educação, desejos que têm na cultura um fator de encontro.

A questão do desejo cobra relevância nas coordenadas do pseudodiscurso capitalista em cujo marco a educação se desenvolve na atualidade, enquanto o que prima é opor ao desejo um gozo sem travas. "Impossible is nothing", reza a propaganda de uma marca de sapatilhas muito conhecida, destinada a impactar a faixa dos 12 aos 24 anos de idade para a venda de seus objetos de consumo. Quanto à hiperprodução de objetos de consumo e ao empuxo à satisfação imediata, podemos pensá-los como um fantasma de época que busca sua estandartização para todas/os, cuja eficácia se radica no fato de que ele engata com essa necessidade estrutural subjetiva de contar com objetos que venham a ocupar o lugar da falta.

O gozo sem travas busca a satisfação imediata, e em contrapartida o desejo requer o Outro e um tempo diferido. Também nas aulas o empuxo a um gozo sem travas compete com o desejo, tensão que se apresenta sob a modalidade de desinteresse, apatia, explosões, entre outras manifestações: os objetos culturais não chegam a converter-se em satisfações substitutivas e, face à impotência do lado de quem encarna o Outro, emerge a angústia.

 

A sintomatização da angústia

A sintomatização da angústia é a maneira como cada docente pode colocar em seus próprios termos os mal-estares que emergem em sua prática cotidiana quando se desestabiliza o fantasma no qual se sustenta seu desejo de professor e o ato educativo se detém.

Elcira declara ter saído muito perturbada naquele dia, sem ter podido dormir naquela noite, e sem poder entender o que estava se passando. Joaquim comenta o ódio que lhe gerava essa estudante, e Armando as vontades de matar seu companheiro. A angústia é esse afeto difuso que não tem objeto definido e que se percebe no próprio corpo.

Cada um/a responde com sua janela, marco, novela de bolso que paradoxalmente, já que implica sofrimento, lhe permite ajustá-las com o que ali se sucede: colocando-se firme, querendo anular o outro ódio mediante, ou fantasiando matá-lo a golpes.

Quando nos colocamos como propósito a sintomatização da angústia estamos no terreno de trabalhar sobre as modalidades de resposta frente a ela. Sintomatizar requer abrir perguntas sobre aquilo que parecia óbvio e que volta o olhar sobre o próprio agir. Poderíamos dizer que isso intervém no processo de subjetivação, de implicar-se nos efeitos produzidos pelos próprios atos, de assumir o próprio papel na novela de bolso. "O que tive a ver com a dificuldade e o pranto de meus alunos?".

Quando dizemos ato educativo como saída, damos um passo a mais, que consiste em atender a esses efeitos, a um concluir que se verifica em ato, que é aquele ao qual pode advir o processo de sintomatização do mal-estar: Elcira tentando girar para outro discurso; Joaquim sem se afetar quando sua aluna fica com a última palavra, privilegiando o trabalho dela com a matemática; Armando tentando compreender as molas de sua exclusão.

Quando desenvolvemos que na modalidade de resposta intervém o fantasma com sua dupla configuração é porque por um lado há uma modalidade, um axioma, um argumento, um livro de bolso sustentando a posição docente e, por outro, fixando-o ainda ali onde as coisas deixam de andar. Podemos pensar que o dito popular "cada professorzinho com seu livrinho", que circula na Argentina para conotar que lhe ocorre ser impermeável às propostas de mudança e de formação, alude à insistência dessa pequena novela que cada um transporta todo o tempo consigo e que pode abrir em qualquer lugar sem que ninguém o advirta – nesse caso, na aula.

A angústia sintomatizada, subjetivada, supõe, então, poder perguntar-se pelas consequências dos próprios atos, dessa resposta automatizada que no dispositivo se vai produzindo durante o tempo de compreender com determinados aportes da teoria psicanalítica, muito selecionados para a ocasião desse campo de práticas. Não é teoria per se, senão a teoria como ferramenta. Assim desdobra Elcira:

Na cena que escolhi analisar hoje posso me dar conta de que, ao haver feito tão explicitamente frente a toda a classe, que esses estudantes não haviam aprovado esse TP1 e, portanto, deveriam fazer um trabalho sobre esse mesmo tema, confrontei-os com uma imagem de seu próprio espelho, que não era a que se queria ver, já que face ao curso os expunha frente a um lugar de inferioridade ou estigmatização. Como bem se mencionou na apartada imago e espelho na cena, eu me encontrava ancorada em um discurso que só pretendia impor a lei-discurso do mestre.

 

 

 

Como se observa no algoritmo, o agente (ou seja, eu como docente) foi ocupado pelo S1, o significante do mestre. Hoje posso me dar conta de que, no momento no qual me posicionei nesse discurso, a única coisa que busquei foi estabelecer uma ordem, para que as coisas andassem . . . não reconheci plenamente o saber desses estudantes, já que a imago que lhes impus previamente foi muito mais forte que o "saber fazer" sobre o qual eu estava me baseando para que os estudantes realizassem sua tarefa . . . . Para que o sujeito se constitua deve existir um desejo, o qual já nasce perante uma falta (mãe faltosa – função materna), donde logo esse desejo é canalizado na busca de outros objetos que supram essa falta. É ali onde o docente ingressa, já que é através dos conteúdos (nunca completos) que se permite que o sujeito opere e os tome como próprios, nunca estabelecendo o agente um saber absoluto, já que, se assim fosse, aquela falta/vazio tão necessária para que se produza o desejo do sujeito impossibilitaria a transferência entre agente e sujeito. (Informação verbal, estudante de magistério de Ciências Exatas e Naturais da Universidade de Buenos Aires, novembro de 2017)

Retomamos, na hora de fechar, que velar o real com os conceitos, com a escritura e a leitura particularizada, em um dispositivo que parte de colocar em trabalho o enigma a partir de uma cena para a qual não se tenham respostas, acompanha a possibilidade de encarnar, por parte de quem leva adiante o trabalho de formação, o semblante de "objeto a", via transferência. Do mesmo modo, Elcira pode assumir transitoriamente sob transferência o semblante de objeto faltante escorada por um dispositivo que contempla o tempo subjetivo-profissional com suas escansões de ver, compreender e concluir.

Temos avançado neste trabalho a partir desse ponto, provendo-nos de algumas arestas desse outro articulador teórico que é o fantasma e que nos permite trabalhar o que chamamos de o desejo do professor.

 

Colocar em relação quatro formalizações

A partir das coordenadas que temos desdobrado, avançamos em situar a potencialidade que há em colocar em relação quatro formalizações: a do fantasma e do algoritmo da transferência; o discurso do mestre e o discurso do analista.

 

 

 

Se o "objeto a" vem a ocupar o lugar da falta no fantasma, a transferência quando se coloca em função a partir de um significante qualquer (Sq) – em nosso caso: conte sua cena, coloque-a para trabalhar – supõe um sujeito debaixo da barra, que emerge entre significantes, quer dizer, emerge o sujeito do inconsciente, grafado no discurso do mestre que se provê de um determinado fantasma para sustentar-se (no piso inferior).

Quando esse fantasma tropeça é o giro pelo discurso do analista, recorrendo ao semblante da falta, o que relança a possibilidade de reinstalar-se no discurso educativo. O título que elegeu Elcira para seu trabalho ao final do recorrido foi: "Quando o agente não supõe sujeito em seus estudantes". Poderíamos desenvolver neste ponto a colocação em função do discurso universitário, mas o aprofundamento dessas articulações fica em aberto para o próximo trabalho.

Podemos afirmar, a essa altura de nossas elaborações, que o dispositivo de trabalho permite advertir que o Outro é falho, dividido, que não é garante absoluto da verdade. A castração é que o Outro tampouco tem resposta, mas está atravessado pelo sistema significante. Isso cobra especial relevância na hora de acompanhar o trabalho das/os professoras/es com as/os adolescentes.

Trata-se de abordar isso que o neurótico nunca quer: pagar com sua angústia, que surge quando nos vemos como objeto em mãos do desejo do Outro – para Elcira encarnado em seus estudantes, para Joaquim na jovem que o desafia, e para Armando em seu companheiro. Isso ocorre nas cenas escolares em dupla via: do docente para o estudante e vice-versa, a partir de uma leitura de seus efeitos. O dispositivo de formação contribui para trabalhar os avatares segregativos do não querer saber, que recai tanto nas possibilidades de aprender por parte das/os estudantes como no desejo do professor no qual se sustenta a função.

Aos docentes oferecemos situações e objetos como destinos alternativos da pulsão. O sujeito que aprende não está isolado, mas encontra-se em um contexto que o interpela e que pode dar lugar a diversos avatares. Isso junto com o "sintoma" me leva a repensar sobre aqueles estudantes que por "x ou y" motivos não se apoderam de conteúdos disciplinares, ou têm dificuldades no laço social-institucional. Aprendi que os "x ou y" motivos deveriam ser minha preocupação, e não a eliminação daquilo que me incomoda... (Informação verbal, estudante de magistério de Ciências Exatas e Naturais da Universidade de Buenos Aires, novembro de 2017)

[O dispositivo] me permitiu me dar conta de que muitas de minhas ações tinham uma razão de ser (que um estudante me tire, me enoje etc.) e que minhas ações e as dos estudantes se emolduram numa rede muito mais complexa que a que só se observa na aula (dimensão subjetiva, sócio-histórica e cultural-institucional), o Real, Imaginário, Simbólico (Lacan). (Informação verbal, estudante de magistério de Ciências Exatas e Naturais da Universidade de Buenos Aires, novembro de 2017)

 

À guisa de corolário

No momento de finalização deste trabalho, em seu momento de concluir, soubemos que o grupo de WhatsApp inventado pelo conjunto de pessoas pelo qual transitaram Elcira, Joaquim e Armando foi batizado coma hashtag "# LA FALTOSA", para apoiarem-se mutuamente com uma teoria (psicanálise) muito alheia às suas próprias (as ciências exatas e naturais).

 

Referências

Lacan, J. (2009). El seminario 14: La lógica del fantasma, 1966-1967 (R. E. Rodríguez Ponte, trad.). Buenos Aires: Escuela Freudiana de Buenos Aires. Recuperado de https://es.scribd.com/document/260886350/El-Seminario-14-La-Logica-Del-Fantasma-Version-Critica        [ Links ]

Nasio, J. D. (2007). El placer de leer a Lacan. Barcelona: Gedisa. (Trabalho original publicado em 1994).         [ Links ]

Zelmanovich, P. (2017). Considerações sobre a angústia como obstáculo e oportunidade para lidar com o segregativo na formação de professores. In M. R. Pereira (Org.), Os sintomas na educação de hoje: que fazemos com "isso"? (pp. 241-252). Belo Horizonte, MG: Scriptum.         [ Links ]

 

 

Recebido em novembro/2018 – Aceito em fevereiro/2019.

 

 

1 Trabalhos Práticos (TP) são atividades que os estudantes realizam na oficina de escrita sobre a cena que será trabalhada ao longo de todo o curso.

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