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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.16 no.spe São Paulo  2013

 

ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE

 

Trabalho, humana atividade

 

Work, human activity

 

 

Daisy Moreira Cunha1

Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo compreender os sentidos assumidos pelos termos "trabalho" e "atividade" na abordagem ergológica, identificando neles especificidades e interpelações mútuas evidenciadas em várias passagens na obra de Yves Schwartz. Esses termos, que não se recobrem completamente, pois todo trabalho tem razões socioeconômicas e políticas na sua gênese, também não podem, na ergologia, ser entendidos separadamente, já que é sempre necessário compreender que experiência faz a atividade humana no desenvolvimento do trabalho em foco.

Palavras-chave: Trabalho, Atividade, Abordagem ergológica.


ABSTRACT

The purpose is to understand the meanings given to the terms "work" and "activity" in the ergologic approach, identifying specificities and mutual interpellations evidenced in several passages in the writings of Yves Schwartz. These terms, which are not completely overlie because every job has its socio-economic reasons and political factors in its genesis, also cannot, in ergology, be understood separately, since it is always necessary to understand that experience makes human activity in the development of work focus.

Keywords: Work, Activity, Ergologic approach.


 

 

Introdução

Não seria necessário lembrar aqui, pelo menos aos brasileiros, por que, na conjuntura de abertura dos anos 1980, os pesquisadores em educação teriam se alinhado às lutas dos trabalhadores desejando pensar numa perspectiva classista. Nessa tradição, bem latino-americana, Marx e marxistas de todas as linhagens contribuíram e vêm contribuindo para consolidar um dos pilares do pensamento educacional brasileiro: nenhum pensamento educacional que se preze pode estar alheio às formas e aos processos de produção e reprodução da vida pelo trabalho e aos elementos materiais da formação humana. Assim é que, dentro dessa linhagem marxista, autores bem diferentes têm sido interlocutores importantes para pesquisas na área de trabalho e educação: Antônio Gramsci, Georges Lucaks e E. P. Thompson, para citar exemplos. Com tais autores, a produção acadêmica brasileira aprendeu a religar trabalho e formação humana, além de encontrar vias concretas entre ação coletiva, identidade operária e construção de novas configurações históricas.

Transformações recentes no trabalho têm nos exigido dialogar com pistas abertas por novas abordagens do trabalho na contemporaneidade. E as perspectivas clínicas trazem de volta dimensões antes negligenciadas por abordagens mais gerais e globalizantes dessa relação homem/trabalho/formação. é nesse confronto crítico com abordagens clínicas sobre trabalho produzidas em língua francesa que aparecem as bases para um conceito de trabalho encarnado, no curso da ação aqui e agora.

Vários caminhos podem ser trilhados se considerarmos os termos do título2. Em quaisquer desses caminhos, definir "trabalho" e "atividade" implica muito esforço para desembaraçar uma rede conceitual infinita na qual esses termos ganham sentido. No bojo das várias disciplinas em que eles se ancoram, será necessário compreender os "cortes" no processo de definição dos objetos vislumbrados por cada uma delas, em linguagens que, muitas vezes, se expressam por metáforas, denominam diferentemente a mesma situação e se misturam enormemente ao termo-chave "trabalho", embaralhando nosso entendimento. Como pano de fundo, está o dilema fundador das chamadas ciências humanas: os processos do vir a ser humano.

Nosso desafio aqui é compreender a elaboração conceitual desenvolvida por Yves Schwartz sobre as possibilidades do conceito de "trabalho" e suas relações com o de "atividade". Outros tantos caminhos se abrem. Por exemplo, cotejar, em sua tese Expérience et connaissance (1988), o contraponto crítico com a conceituação marxista sobre trabalho, ou confrontá-lo com as novas abordagens clínicas contemporâneas. Outra possibilidade seria comparar os termos do título com outras noções do patrimônio filosófico: produção, ação, prática, práxis-poièsis etc. Mas o tempo e o espaço deste artigo são exíguos para quaisquer dessas tarefas, e esse caminho é trilhado por Schwartz no exercício de seu métier de filósofo. Pensar sobre trabalho e atividade no pensamento desse autor equivale a querer discutir trabalho concreto/trabalho abstrato na obra de Marx, já que Schwartz passa em revista boa parte do patrimônio das ciências humanas, num processo de construção/desconstrução do que seria, para suas várias teorias, o trabalho.

Este artigo apenas explora sentidos assumidos por um e outro desses termos do título em algumas passagens do complexo conceitual desenvolvido por Schwartz na abordagem ergológica do trabalho, pontuando alguns de seus aportes mais fundamentais. Para tanto, utilizamos vários conceitos/instrumentos de análise da ergologia, registrando-os em itálico ao longo do texto e indicando, para alguns deles, leituras de aprofundamento.

 

Humano trabalho

Se o conceito de "prática teórica" – através do qual Louis Althusser definiria conhecimento como "produção" – é uma ideia muito justa que poderia ser aceita por Schwartz, a concepção muito pobre do trabalho produtivo que nutria o anti-humanismo teórico althusseriano impediria a abordagem ergológica de compreender o que seria a verdadeira obra do conhecimento3. Coube a Georges Canguilhem, indicado por Althusser, a tarefa de ilustrar a ciência como trabalho do conceito às novas gerações da Escola Normal Superior, onde Schwartz estudava pelos idos dos anos 1960. Nessa perspectiva, a disciplina do conceito científicoimplicava estudar um setor do saber para extrair nele o trabalho de conceituação de termos-chave ao longo de sua história. Esse esforço demandaria aos filósofos incursões nos domínios mais diversificados das atividades humanas. Canguilhem exprime esse esforço necessário ao trabalho filosófico pela frase: "A filosofia é uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha serve, ou diríamos mesmo para a qual só serve a matéria que lhe for estranha" (1995, p. 15); e ele mesmo encontrará nas ciências médicas um terreno propício para desenvolver seu ofício de filósofo. Esse ensinamento instruirá Schwartz no exercício filosófico a partir de problemas concretos que perpassam a experiência de trabalho humana em situações laborais.

Essa perspectiva revela-se na participação de Schwartz na obra Je, sur l'individualité (1987). A intenção que motivava o coletivo dos autores nessa coletânea era a recomposição do campo concreto das atividades humanas como terreno do "Je", o trabalho figurando como campo de pesquisa privilegiado. Em resenha sobre o livro, publicada pela revista Révolution4, Jean-Paul Jouary se exprime sobre o artigo inédito Travail et usage de soi:

Exame da subjetividade, mas concretamente centrada nos lugares de trabalho: na linhagem de suas pesquisas, Yves Schwartz rejeita de vez toda abordagem puramente especulativa do 'sujeito', do 'eu', do 'moi', para inseri-lo no terreno da produção social. E Yves Schwartz descobre essa contradição viva que une a execução do 'trabalho prescrito' e a pesquisa pelo sujeito de recentramento de seu uso em torno de normas que ele teria instituído por si mesmo"; contradição que, às vezes, porta as potencialidades autogestionárias reais e proíbe toda visão eterna do estado das coisas existentes (1987, p. 16)5.

Nessa perspectiva, convergem os esforços dos autores da coletânea, que, longe de uma afirmação abstrata quanto à importância da experiência laboral na formação humana, resgatam o trabalho como locus em que sujeitos e suas dimensões subjetivas estão à prova do real. O "Je" é convocado por essa experiência como um momento de sua história. Assim,

toda especulação não mutilante sobre o trabalho seria, de alguma maneira, uma porta de entrada para questões da subjetividade e do psiquismo. Quem diz "recentramento" diz "deslocamento, escolha, articulação e retrabalho permanente entre 'projetos herança'6 e 'negociação de eficácia sobre as operações'". Fomos levados a falar do trabalho – humano, socializado – como "uso de si", mas no sentido de ele ser sempre, em algum grau, "uso de si por outros" e "uso de si por si" (Schwartz, 2000, p. 294).

é esse uso industrioso de si em relação às formas do trabalho como experiência de vida individual e social que é apontado como um caminho para compreender as mutações socioeconômicas e culturais em curso; é a partir dele que se engendram em permanência novas possibilidades que podem ser captadas pela análise clínica do estado de sua dialética.

Poderíamos, então, retomar passagens de Expérience et connaissance du travail (1988) nas quais Schwartz observará uma decomposição das diversas conceituações de "trabalho", quando confrontadas com a experiência realizada pela atividade em meios laborais. Trabalhar não é um fenômeno físico suscetível de medida a uma dimensão, pelo intermédio da qual sua definição reenviaria a uma combinação de unidades fundamentais (tempo, comprimento, massa):

o trabalho não poderia ser "heterodefinido" por conjuntos conceituais que lhe delimitariam os contornos ou que seriam os instrumentos de sua medida e análise. Contestamos que os processos agindo nas atividades de trabalho possam ser, desse modo, sem prejuízos, ignorados, em benefício de uma "cobertura conceitual" exógena suficiente para lhe apreender o movimento (1988, p. 408).

Mas o que vem a ser trabalho, para que possamos afirmar que o homem faz um uso de si nessa experiência? Em resposta a essa questão, Schwartz pondera que

houve, é certo, representações dominantes, eficazes socialmente, mas elas seriam "implícitas", quer dizer, jamais asseguradas em bases conceituais completas, pois a questão do trabalho não pode escapar a uma espécie de debate, este, jamais fechado: porque é como usar de si mesmo para transformar seu meio de vida (o qual não é, aliás, jamais estável, nem transparente) (Schwartz, 2000, p. 306).

Não podemos definir o que seja o trabalho, essa experiência cujos contornos conceituais e históricos não podem ser delimitados, não só em cada um de nós, mas também na humanidade. Ao mesmo tempo, podemos observar elementos fundamentais de toda atividade que atravessam a história da humanidade, e é preciso articular as dimensões antropológicas e históricas para localizar o que muda, o que está em crise na experiência do trabalho. Mesmo fazendo face à necessidade premente de caracterizar o que muda no trabalho na contemporaneidade entre emprego/desemprego, produção/serviços, trabalhar/gerir etc.

Desde os anos 1980, quando se iniciou o dispositivo APST7, para Schwartz, "o trabalho jamais começou e, ao mesmo tempo, ele se refaz, sem cessar sua juventude" (1994/2000, p. 310). Nesse processo, cada "um recorta a noção de trabalho na medida de sua filosofia ou de sua antropologia, por vezes, de sua ideologia" (1997/2000, p. 317).

O trabalho não seria uma realidade simples, historicamente datada, suscetível de caracterização unilateral. O trabalho também não poderia ser confundido com emprego remunerado, "enquadrado por estatutos, convenções, lugares identificados de negociações ou de antagonismos nos termos dessa troca" (1997/2000, p. 315) – trabalho stricto sensu na forma capitalista de assalariamento. E, se questionado sobre as mutações em curso no trabalho contemporâneo, afirmará que, se

nenhuma categorização "totalitária" do trabalho pode corresponder às realidades históricas e nenhuma forma concreta pode eliminar as outras na sincronia, as formas dominantes conservam em memória a diversidade das heranças anteriores (Schwartz, 2000, p. 311).

E explicita, já em 1988, a tarefa que tomaria para si no ofício filosófico:

A extrema dificuldade é produzir um modo de conhecimento do trabalho que conserve dessa intenção de conhecimento a ambição de conceituação que lhe é própria, sem jamais se fechar num campo que mutilaria seu espaço indefinido de capilaridade. Quer dizer, articular, num mesmo esforço a ambição de dimensionamento e a pressão ao desdimensionamento da atividade concreta dos homens no trabalho (Schwartz, 1988, p. 409).

Portanto, dimensionar o trabalho implica poder pensá-lo sem encerrá-lo em contornos rígidos. Assim, a abordagem ergológica do trabalho estaria exigindo a construção de conceitos que respeitem uma epistemicidade própria quando se trata das atividades humanas.

 

Não há descontinuidade absoluta entre trabalho e atividade

Na perspectiva ergológica, o desafio é, portanto, pensar continuidades/ descontinuidades entre essas noções, pois,

entre uma ação humana qualquer – trabalho para si, trabalho doméstico, atividade lúdica, esportiva – e um trabalho economicamente qualificado, não existe descontinuidade absoluta: todos os dois são comensuráveis a uma experiência, aquela de uma negociação problemática entre normas antecedentes e normas de sujeitos singulares, sempre a redefinir o aqui e o agora. Assim como, aliás, entre tempo de trabalho assalariado e tempo "privado", existe circulação de valores e de patrimônio (2000, p. 307).

O autor aponta, portanto, para uma fertilização mútua entre o que se sabe dos dois termos, sempre confrontando trabalho stricto sensu, atividade industriosa e atividade.

[...] não existe, para nós, descontinuidade, ruptura entre a atividade específica, sob a lei do mercado, que chamamos hoje "trabalho", e uma dimensão muito mais geral, genérica, da existência do que chamamos "atividade" (de onde vem o termo "ergológico"). E nada disso que é dito da atividade pode estar ausente do "trabalho", mesmo se este aqui veicula determinantes e problemas específicos, particularmente ricos e críticos hoje (2000, p. 47).

Ao discutir as competências no confronto com as ideias de Antônio Damásio sobre os casos clínicos Eliot e Gage, Schwartz é levado a explicitar novamente seu entendimento de trabalho stritcto sensu e de atividade como exercício da normatividade pelo corpo-si face ao meio. Nesse sentido, as competências no trabalho não seriam mais que um momento das competências para viver, em circunstâncias de prestações remuneradas vividas no bojo de sociedades mercantis e de direito. Para o autor, a

competência no trabalho deve ser reintegrada numa disposição muito mais fundamental do ser vivente humano, para captar informações, fazer arbitragens, tomar decisões que a vida real impõe. Disposição em relação dialética – mas somos nós que formulamos assim – com o debate de normas que o meio convoca. As competências no trabalho não fazem mais que colocar em tensão essas disposições, num meio tendencialmente distinto que chamaremos "meio de trabalho", com seus debates de normas próprios. Mas seria tão absurdo procurar na gestão dos recursos humanos grades de avaliação individualizada das competências quanto pensar estabelecer para cada indivíduo a cartografia personalizada da "misteriosa constelação de processos" (Damásio, p. 116) neurobiológicos pelos quais se operam a tomada de informação, a cooperação entre sites integrativos, a sincronização entre subsistemas, as ligações entre sua memória de trabalho e sua memória social... (2000, p. 678).

Desse modo, o trabalho em sociedades mercantis e de direito seria também retrabalhado ou dinamizado por dinâmicas próprias de todas as formas de atividade humana. Pois o trabalho, em sua forma assalariada, é também "um lugar e um momento de vida onde a pluralidade de normas, as contradições parciais entre valores afloram em todas as circunstâncias" (2000a, p. 35).

Numa outra passagem, Schwartz chamará atenção para a impossibilidade de ignorar a dialética universalidade/ressingularização ao discutir e apresentar o espaço tripolar.8 O autor lembra que a normatividade é universal, mas as normas em debate são fundamental e indefinidamente plurais, por serem singulares. A exigência ergológica impõe que trabalhemos nessa injunção – em que se revelam as dramáticas do uso de si – buscando compreendê-la, claro, sempre a partir de nossos saberes disponíveis, mas sem anular a historicidade, esses modos de "ser" no singular. Esse subtítulo chama a atenção para o contexto que está discutindo ao falar das quatro exigências da profissionalidade ergológica:

situações de trabalho nesta configuração histórica de toda maneira especificada, aquela de certa época na sucessão das civilizações, que são nossas sociedades mercantis e de direitos, nas quais o trabalho mercantil, o trabalho "stricto sensu", e, particularmente, o assalariado são predominantes (2000, p. 688).

Denominação que não significa, prossegue o autor, nem julgamento de valor nem ignorância quanto à proliferação de outras formas de emprego e de uso das capacidades humanas – configuração histórica relativamente estável e flutuante, se levarmos em conta as transformações em curso.

No contexto dessa reflexão, diante da configuração histórica relativamente estável que dá forma ao trabalho stricto sensu, encontra-se a atividade – trabalho de ressingularizações permanentes, encontradas no coração dessas situações laboriosas, no coração das sociedades modernas, entre as normas antecedentes e as renormalizações possíveis.

Como podemos constatar nessas passagens, não há substituição de um dos termos pelo outro nem assimilação entre ambos, mas, confrontando os usos de si nas situações de trabalho em sociedades mercantis e de direito – sociedades em transformação na atualidade –, Schwartz propõe pensar a atividade de trabalho, incluindo-a num conjunto mais vasto e enigmático da atividade humana, denominando-a atividade industriosa. Para o filósofo, que se interroga sobre a vida para pensar a experiência de trabalho, é o movimento entre pensar a vida e pensar o trabalho que engendra chaves para "pensar as matrizes de historicidade, mas incitando a múltiplas aprendizagens para aproximação das situações históricas reais" (2000, p. 276).

Mas é esse mesmo movimento que exige especificar o que seja o trabalho denominado aqui por stricto sensu como prestação remunerada numa sociedade mercantil e de direito:

Entre a atividade em geral e a atividade de trabalho, nós encontramos, com o mesmo problema, o mesmo cuidado de uma postura dialética quanto à categorização, essa relação entre incomensurabilidade relativa e comensurabilidade genérica [...] a propósito da relação entre culturas (2000, p. 276).

A denominação stricto sensu nos convida a pensar, a refletir sobre as rupturas, os bloqueios, pois a subsunção propriamente econômica do trabalho sob a categoria "assalariado", uma vez que reúne perda de iniciativa, racionalização imposta aos modos operatórios (em diversos níveis de precisão e hierarquia), subordinação a um maquinário, separação dos tempos sociais (o trabalho vem a ser a quantidade de tempo trocada por salário), o torna uma experiência cuja definição é aparentemente óbvia, acarretando um subdimensionamento social, cultural e filosófico da mesma.

Assim, interessa mais a tentativa de redescobrir no trabalho – como objeto teórico no qual vale a pena investir – o que é viver para a espécie humana (2000, p. 276) do que o debate teórico sobre o fim do trabalho numa sociedade assalariada e/ou a denúncia – importante – sobre as mazelas e os desequilíbrios dos usos que fazem os homens de si nessa experiência.

 

Atividade

Para Schwartz, o conceito reemerge hoje no universo linguageiro e intelectual como "flácido", "sem fundo", um pouco "passa-muralha", sem interesse, sem concatenação em redes nocionais no direito, na economia, nas neurociências e, principalmente, em ergonomia quando esta se refere à análise do trabalho, em que vem sendo matriz de debates epistemológicos importantes.

Numa perspectiva analógica, o termo também aparece associado à ação, à prática, à produção, à técnica, ao trabalho, ao emprego e à execução. Para Schwartz, apesar dessa condição de não teorização, o termo possui um passado filosófico. Essa condição tem mesmo uma razão de ser, ligada à história das ideias filosóficas, na intenção de decompor o contínuo das experiências e os atos humanos em função dos poderes ou das faculdades que os constituem; há uma desarticulação do que hoje ele denomina corpo-si.

Tal como pensado pela ergologia, essa atividade do corpo-si no trabalho é marcada por um debate de normas convidando a redispor as démarches de saber e as démarches gestionárias e políticas, apesar e em razão de seus "contornos indistintos". E, por isso mesmo – por seus contornos indistintos, por ela ser transgressora e mediadora entre as dimensões macro/micro, corpo/espírito, público/privado –, ela não poderia ser objeto de nenhuma disciplina isoladamente.

As renormalizações, as gestões de variáveis, os recentramentos que eu acabo de evocar podem ser imperceptíveis e diretamente geridos pela maquinaria neural, como podem mais claramente se instrumentalizar desta quando os debates de normas são mais explícitos, atravessando o psíquico, o cultural, o social. Todas as continuidades são possíveis. No "simples" exemplo de uma orientação do olhar, eficaz para gerir uma situação de vida ou de trabalho, o neurologista, o ergonomista, o etnólogo podem tentar compreender como seus níveis de exploração específicos se instrumentalizam, reciprocamente, se hierarquizam, transgredindo o biológico e o cultural. Nesse sentido, o corpo-si é história, a história dessas instrumentalizações e dos circuitos múltiplos, desses adestramentos de e no uso de si; o que reforça a tese de que toda situação de atividade, de trabalho, é sempre, em parte, singular, porque gerida pelo corpo-si, quer dizer, síntese de história em ato, com todas as implicações potenciais, por exemplo, em matéria de gestão dos homens (Schwartz, 2000b, p. 23).

Mas a proposta não é utilizar o termo "atividade" em detrimento de "trabalho", tal como convida, muitas vezes, a literatura. Isso não seria sem consequências para o entendimento desses termos. A proposta é muito mais encarar a experiência de trabalho do ponto de vista da atividade humana que ela requer.

Poderíamos pensar que, via conceito de atividade, tal como pensado pela ergologia, Schwartz teria encontrado um instrumento teórico que tornasse possível pensar o trabalho como processador da história, e a história, como operadora de diferenciações do trabalho? Mas, antes de especular sobre essa questão, vamos perscrutar fundamentos antropológicos do termo na abordagem ergológica do trabalho.

 

Do antropológico no trabalho

O termo "atividade" possibilita – segundo Schwartz, mais do que o item "trabalho" nos complexos teóricos em que apareceu tratado – exprimir as continuidades com as exigências imemoriais de vida e saúde.

Ao pontuar que uma heteronomia total é invivível na condição humana, o filósofo enraíza o trabalho no prolongamento da vida, bem como na história humana. Assim, vai fundando o trabalho como atividade numa perspectiva biosocioantropológica, ao mesmo tempo em que recoloca o quanto o meio é marcado, por um lado, pelas opções feitas anteriormente e que figuram como normas antecedentes a toda atividade, bem como, por outro, esse meio é produto da história, dos valores e dos saberes anteriormente produzidos.

Mas o importante é menos constatar essa feliz compatibilidade entre esse impossível e esse invivível e mais mostrar como eles se alimentam num ciclo gerador de história: se, mesmo no regime taylorista, essa uniformização é impossível, essa lacuna requer centros de decisão vivos a geri-la. Assim, a lacuna irredutível de normas antecedentes, quaisquer que sejam as situações, exige escolhas, critérios, verdadeiros "dramas de uso de si", posto que cada um é reenviado, em parte, a ele mesmo para tratar esses "vazios de normas", essas variabilidades. Essa gestão do instante como cópia, não conforme o geral, supõe, por exemplo, escolhas bem delimitadas de atenção, de vigilância, de relações preferenciais com os outros, escolhas de transmissão ou comunicação, breve, a criação de esboços de mundos e bens comuns em pleno coração das atividades, mesmo as mais enquadradas pelas normas técnicas, econômicas, regulamentares, hierárquicas, jurídicas... (Schwartz, 2000b, p. 21).

Se há na ergologia uma compreensão do gesto, do ato no trabalho, ele é considerado um híbrido em que se articulam gestual corporal, sínteses cognitivas e manipulação de instrumentos. Ele é encarado, nessa articulação dialética entre a memória, as heranças antropológicas e a novidade que os usos de si introduzem, como inusitado na história, que dá à atividade industriosa seu poder infraestrutural de matriz da história.

Nessa perspectiva teórica do trabalho como atividade, não faz sentido confundir os dois conceitos, mas distingui-los, articulando-os de modo inextricável, dando relevância às suas interpenetrações, às suas capilaridades mútuas. Assim, a emergência do trabalho como simplificável em termos operacionais e como mercadoria no século XVIII não elimina, mas, ao contrário, complexifica o quanto essa experiência é marcada pelas heranças imemoriais de emancipação humana em relação ao meio (homo-faber-sapiens e neolítico), ainda que acumulando novas amarras na concretude do cotidiano do trabalho contemporâneo. Isso, num meio marcado por variabilidades provenientes de diversas fontes (instrumentos, materiais, disposições organizacionais etc.), impossibilita sua padronização ou tipificação, pois são também fruto das escolhas de gestão macro/micro com base em valores e na história locais. Mesmo aqui, no trabalho contemporâneo, nos seus modelos e nas formas mais taylorizadas, não haveria total subsunção do trabalho real ao capital. é o que comprova a ergonomia da atividade de língua francesa, propedêutica para a abordagem ergológica, que, ao defrontar com a atividade de trabalho, cunhou o epíteto trabalho prescrito/trabalho real observando o recentramento do ser vivo sobre suas próprias normas nos meios de trabalho tayloristas.

 

Da dimensão antropológica do trabalho na história

Schwartz inicia o capítulo 17 do livro Expérience et connaissance exprimindo sua enquete de uma perspectiva teórica que permita dimensionar genericamente o trabalho, mas que o faça a partir da potência diversificadora da história como fonte dos motivos e das modalidades do agir (1988, p. 524), o que traduz em duas questões: 1) Como a história atravessa o trabalho? 2) Em que medida "fazemos história" quando trabalhamos? (2003, p. 22). A tarefa que o autor coloca é, então, "encontrar uma conceituação em que o trabalho seria processador de história, e a história, operadora de diferenciações do trabalho" (1988, p. 524-525). Nesse aspecto, o debate com Hegel e Marx mostra-se fundamental, visto que cada um desses autores associa, à sua maneira, trabalho e história. Mas se do primeiro Schwartz reterá a ideia do trabalho como uma experiência que faz a humanidade no curso de sua história, do segundo guardará que toda consideração da história requer a inteligibilidade das formas pelas quais a humanidade desenvolveu seus meios de existência – "a maneira como o trabalho se realiza é a espinha dorsal de inteligibilidade das civilizações" (1988, p. 529).

Alguns anos mais tarde, Bernard Bourgeois9 o interrogará (Schwartz, 2000b, pp. 36-37) sobre o quanto a ergologia teria uma visão limitada do aspecto negativo, insistindo, preferencialmente, nas continuidades, e não nas descontinuidades. Bourgeois faz referência à dimensão do negativo na dialética hegeliana, que, apropriada por Marx, será utilizada para, através da noção de contradição, introduzir a ideia de rupturas/descontinuidades revolucionárias no curso da história. Schwartz afirmará, então, que não possui visão da história, mas que considerar o ato industrioso sugere pensar por que existe história (2000b, p. 39). é pelo conceito de atividade industriosa – imbricada num trabalho dos saberes e dos valores nas situações de trabalho – que Schwartz (2003) vislumbrará a imanência da história no coração do trabalho.

Para além dos epítetos concreto/abstrato (Marx) e prescrito/real (ergonomia da atividade), a abordagem ergológica do trabalho problematiza a relação vida humana/normas/meio, na qual a vida implica a tentativa de renormalização de seu meio de ação. Nessa perspectiva, ancoram-se o argumento da impossível heterodeterminação total dos usos que fazem de si os humanos em situação de vida e trabalho e a impossibilidade de antecipação total dos fatos da história.

Assim, não podemos verificar um sentido na história a partir daqui, mas há uma contribuição para compreendermos em que o trabalho faz história ao se dar visibilidade às dramáticas perante as normas e os valores em jogo nas situações de trabalho, o que pode também dar novo sentido político à vida em comum.

Entre essas perspectivas, no exame que fazem do trabalho, avaliando trabalho como atividade e associando antropologia e história, é que Schwartz é levado a defender, para além de todos os essencialismos e os dogmatismos, a impossibilidade de uma definição clara do que seja o trabalho e a pressupô-lo como unidade enigmática e, portanto, geradora de desconforto intelectual nos modos e nos regimes de produção de saberes.

Nesse ponto de nossa argumentação, podemos compreender o interesse de dispositivos que possam tratar e retratar os valores e os saberes em jogo nas situações nas quais intervimos, as quais estudamos e/ou temos a pretensão de gerir. Pois, para compreender as tendências e as aberturas no cenário que analisamos, seja na dimensão de uma situação de trabalho, seja num plano macroscópico de conjunturas sociopolíticas, será necessário instituir a colaboração interdisciplinar. Além disso, nosso aparelho conceitual deve se colocar permanentemente "em experiência", à prova das situações analisadas diante do enigmático ponto de vista da atividade. Nesse aspecto, o diálogo com as Comunidades Científicas Ampliadas de Ivar Oddone10 foi profícuo e fundamental.

 

Em aberto

Os aportes da abordagem ergológica do trabalho, bem como os das novas abordagens sobre trabalho como atividade, inscritas na tradição francesa – algumas delas, debatidas neste periódico –, não são sem consequências para pensar a formação dos trabalhadores jovens e adultos no país de Paulo Freire, na pedagogia brasileira engajada na transformação social ou nas profundas raízes da educação popular na América Latina.

Ao mesmo tempo, somos convocados à colaboração interdisciplinar e à confrontação permanente com a experiência real de trabalho. As implicações éticas, políticas e epistemológicas são importantes para a transformação dos regimes de produção de saber.

Mas permanece em aberto, sem que se defenda uma perspectiva obscurantista, uma questão muito importante para latino-americanos, num contexto socioeconômico e político de democratização recente, de ações coletivas em torno da luta por direitos do trabalho, pela demarcação de terras por camponeses e indígenas, da luta pela vida em geral: se é verdade que parte da crise nos movimentos sociais, principalmente aqueles originados no trabalho, ocorre pela ausência de uma compreensão do trabalho como atividade humana numa perspectiva clínica, como passar, então, de uma ampliação das reservas de alternativas nos locais de trabalho às transformações sociais necessárias à emancipação humana a partir da experiência de trabalho contemporânea? Como passar do microscópico singular das renormalizações infra a outras possíveis no macroscópico universal? De algum modo, esses movimentos sociais – alguns deles marcados por abordagens clássicas do trabalho e preocupados com o problema da construção de novas hegemonias – nos lembram de que a distância entre compreender e transformar é abissal e quase intransponível, tal como a existente entre o prescrito e o real, entre o conceito e a experiência.

 

Referências

Bertrand, M., Casanova, A., Clot, Y., Doray, B., Hurstel, F., Schwartz, Y., Sève, L. & Terrail, J.-P. (1987). Je, sur l'individualité: approches pratiques/ouvertures marxistes. Paris: Messidor/éditions Sociales.         [ Links ]

Jouary, J.-P. (1987). Le tour du sujet. Journal Révolution "nous vivons le temps des révolutions". Paris, 17 de julho, 385.         [ Links ]

Oddone et al., Rédecouvrir l'expérience ouvrière. Paris: Editions Sociales, 1981.         [ Links ]

Schwartz, Y. (1988). Expérience et connaissance du travail. Paris: Messidor/Editions Sociales.         [ Links ]

Schwartz, Y. (2000a) Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulouse: Octarès.         [ Links ]

Schwartz, Y. (2000b). Phisolophie et ergologie. Bulletin de la Société Française de Philosophie, 94 (2).         [ Links ]

Schwartz, Y. (2003). Trabalho e saber. Revista Trabalho & Educação, 12 (1).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
daisy-cunha@uol.com.br

Recebido em: 21/08/2012
Revisado em: 26/04/2013
Aprovado em: 08/05/2013

 

 

1 Coordenadora do Pograma de Pós-Graduação em Educação Conhecimento e Inclusão Social da Faculdade de Educação da UFMG. Linha de pesquisa: Trabalho, Política e Formação Humana.
2 Título de mesa-redonda no Colóquio Clínica da Atividade, na Universidade Federal de São João Del-Rei, em outubro de 2010.
3 Para uma compreensão do posicionamento crítico de Schwartz vis-à-vis ao de Althusser, cf. Schwartz (1988).
4 Revista ligada ao Partido Comunista Francês, editada até fins do século passado.
5 Todas as traduções das citações cujo original está em francês são de responsabilidade da autora do artigo.
6 Cf. Capítulo 15 do livro Expérience et connaissance du travail, de 1988.
7 Dispositivo de formação, pesquisa e intervenção de Análise Pluridisciplinar sobre Situações de Trabalho, que culminou na criação do Departamento de Ergologia da Universidade de Provence, em 1998. Cf. www.ergologie.com, acessado em 21/11/2011.
8 Sobre o termo, ver item "a" da conclusão geral do livro Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe, 2000, p. 689.
9 Professor de História da filosofia Alemã na Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Publicou inúmeras obras e artigos sobre Hegel.
10 Cf. Oddone (1981).