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Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva
Print version ISSN 1517-5545
Rev. bras. ter. comport. cogn. vol.8 no.1 São Paulo June 2006
ARTIGO DIDÁTICO
Uma introdução ao conceito de autocontrole proposto pela análise do comportamento1
An introduction to the self-control concept proposed by the behavior analysis
Robson Nascimento da Cruz2
PUC Minas - Unidade São Gabriel
RESUMO
O presente trabalho é um texto didático introdutório ao conceito de autocontrole, numa perspectiva analítico-comportamental. Pretende-se neste trabalho fazer uma diferenciação entre o conceito usado no senso comum e aquele desenvolvido pela análise do comportamento, demonstrando que as explicações mentalistas usadas no cotidiano e na própria psicologia dificultam a investigação científica do comportamento de autocontrole. Também tem como objetivo discutir o uso desse conceito e suas possíveis implicações e aplicações por uma ciência do comportamento. Por fim, ressalta a importância de estudar o autocontrole, considerando-se que este pode ser de fundamental importância para a resolução de inúmeros problemas relativos ao futuro de nossa sociedade.
Palavras-chave: Autocontrole, Análise do comportamento, Causas internas.
ABSTRACT
The present work is an introductory didactic text on the self-control concept in a behavioral-analytic perspective. It is intended in this work to do a differentiation among the concept used in the common sense and that developed by the behavior analysis, by demonstrating that the mentalist explanations used in the daily life and in psychology itself may hinder the scientific investigation of the self-control behavior. It also aims to discuss the use of this concept and its possible implications and applications by a science of behavior. Finally, it points out the importance of studying self-control, considering that this may be of fundamental importance for the resolution of several problems related to the future of our society.
Keywords: Self-control, Behavior analysis, Inner causes.
A concepção tradicional de autocontrole na cultura ocidental não é nova e nem desconhecida da maioria das pessoas. Autocontrole é geralmente sinônimo de força de vontade, capacidade de enfrentar situações difíceis, ter um poder interior, conseguir resistir a tentações, ser emocionalmente forte, entre outros. As concepções que apontam para esses sinônimos, de alguma maneira, tentam explicar o comportamento de autocontrole através de um agente iniciador interno.(Castanheira, 2001; 1993; Skinner, 1989/1991).
No entanto, para Skinner (1953/2000), a necessidade de um agente interno (força de vontade, poder interior, desejo, vontade, etc) para explicar qualquer comportamento, incluído o comportamento de autocontrole, não é útil para uma análise científica do comportamento, porque desvia sua atenção das variáveis ambientais das quais o comportamento realmente é função. Neste sentido, o comportamento de autocontrole deve ser analisado como qualquer comportamento operante, ou seja, por meio da análise da relação da resposta do organismo com as variáveis ambientais.
Skinner (1953/2000), ao definir pela primeira vez o conceito de autocontrole em seu livro "Ciência e Comportamento Humano", diz que:
Com freqüência o indivíduo vem a controlar parte de seu próprio comportamento quando uma resposta tem conseqüências que provocam conflitos - quando leva tanto a reforço positivo quanto a negativo. (Skinner, 1953/2000, p.252.).
Assim, Skinner afirma que o comportamento de autocontrole está diretamente relacionado a uma escolha de respostas concorrentes: pode ser que o indivíduo tenha que escolher entre duas respostas que levem a conseqüências com o mesmo valor, ou a uma resposta que seja reforçada imediatamente e punida em longo prazo, ou vice versa. Isto implica que o comportamento de autocontrole vai ser caracterizado como aquele decorrente de contingências conflitantes, nas quais o indivíduo tenha que escolher entre duas respostas que têm diferentes conseqüências. Exposto desta forma, o autocontrole pode ser inicialmente definido como a manipulação do ambiente, por uma pessoa, de maneira a alterar seu próprio comportamento em função de uma determinada conseqüência. (Nico, 2001; Skinner, 1953/2000).
Análise funcional e tríplice contingência
Antes de continuarmos a elucidar o conceito de autocontrole, faz-se necessário mesmo que de maneira breve, esclarecer a noção de análise funcional e tríplice contingência, assim como o próprio Skinner (1953/2000) o fez, para depois definir o conceito de autocontrole. De acordo com ele:
A noção de controle está implícita em uma análise funcional. Quando descobrimos uma variável independente que possa ser controlada, descobrimos um meio de controlar o comportamento que é uma função dela. Este fato é importante para propósitos teóricos. Provar a validade de uma relação funcional por meio de uma demonstração real do efeito de uma variável sobre outra é o coração da ciência experimental. (Skinner, 1953/2000, p.227)
Ao fazer tal afirmação Skinner destaca que a importância de uma análise funcional é: demonstrar na prática a relação de interdependência que a resposta de um organismo mantém com as diferentes variáveis ambientais. Para Skinner (1953/2000), essa relação é observada quando há manipulação experimental de variáveis que modificam o padrão da resposta esperada. Por meio desse processo de manipulação de variáveis externas, torna-se possível a modificação e manutenção do comportamento.
Para se realizar uma análise funcional, é imprescindível o uso do conceito de contingência, ou mais especificadamente tríplice contingência. A tríplice contingência é uma ferramenta de análise que busca sempre, pelo menos, por três termos envolvidos no momento em que uma resposta operante é emitida. São eles: a partir dessa resposta operante (o primeiro termo) busca-se sua(s) condição(ões) antecedente(s) (estímulo discriminativo), e sua(s) conseqüência(s) (estímulo reforçador ou punitivo). A condição antecedente (SD) tem como função estabelecer uma ocasião que aumente a probabilidade de ocorrência de uma resposta semelhante àquela que foi reforçada no passado em um determinado ambiente. Isto significa, que uma resposta tem mais chances de ser efetivamente reforçada em certas ocasiões do que em outras, mas é importante notar que o (SD) ao invés de eliciar ou disparar uma resposta, estabelece a ocasião na qual essa resposta tem maior probabilidade de ser emitida e, portanto reforçada (Skinner, 1938).
Nessas considerações sobre análise funcional e tríplice contingência, está implícita a noção de determinação do comportamento presente na análise do comportamento. Esta concepção demonstra que o indivíduo interage com o ambiente, modificando-o e sendo modificado pelas conseqüências que ele produz nesse mesmo ambiente. Contudo, essa concepção sofre de enormes incompreensões e críticas. Dentre elas podemos citar a recorrente idéia de que o behaviorismo radical e sua ciência, a análise do comportamento, apresentam uma concepção de homem passivo, que sofre as pressões do ambiente, de forma unilateral. Com Carrara (1998/2005) observamos um ótimo esclarecimento dessa questão freqüentemente tão mal compreendida.
Com relação ao behaviorismo em geral, a crítica tem com freqüência se referido a ele como sendo uma abordagem que adota o caráter passivo dessa relação, ou seja, o organismo ficaria simplesmente à mercê das influências ambientais. Embora o behaviorismo clássico de Watson tenha dado a entender essa posição, uma análise acurada mostra que essa não é, de modo nenhum, a compreensão de Skinner. Sua linha (análise do comportamento) adota um modelo interagente, ou seja, de um inter-relacionamento entre organismo e ambiente. De modo simplificado, tome-se como exemplo qualquer seqüência de relações de contingências, ligadas entre si, e ver-se-á que a ocorrência de um comportamento é seguida de uma conseqüência, diante de um estímulo discriminativo que aumenta a probabilidade de ocorrência de um certo comportamento. O comportamento muda as condições do meio (ele opera alterando o ambiente) e este, por sua vez, altera o comportamento.(p.231)
Embora os esclarecimentos acima não deixem margem de dúvidas sobre o homem concebido pela análise do comportamento não ser passivo (um receptáculo de estímulos ambientais), podemos nos perguntar mesmo assim como é possível o comportamento ser controlado (determinado) pelo ambiente, e ao mesmo tempo ser controlador de parte desse mesmo ambiente? Como é possível falar de autocontrole dentro dessa concepção? Estas perguntas caracterizam uma tensão existente entre a noção de determinismo e a idéia de autocontrole na obra de Skinner. Parece haver uma contradição na idéia de que o indivíduo tenha autocontrole e, ao mesmo tempo, que seu comportamento seja determinado ou controlado por variáveis ambientais.
O que devemos notar antes de analisarmos essa questão, é que a idéia de um agente iniciador (vontade, desejo, inconsciente, etc), que causa o comportamento, é algo muito arraigado em nossa cultura. Por isto, muitas vezes não é notado que não há uma cisão entre o que o organismo faz e o ambiente; parece inconcebível pensar que o homem possa ser controlador do ambiente e ao mesmo tempo seja por ele controlado. No entanto, para análise do comportamento isso é possível: ter autocontrole significa meramente que, por meio da manipulação de variáveis ambientais das quais seu comportamento é função, o homem controla também parte de seu próprio comportamento. Isto quer dizer que, em última instância, os determinantes do comportamento se encontram no ambiente, mas isto não impede que o homem seja capaz de determinar parte de seu comportamento, como veremos claramente em um exemplo mais adiante. Um dos principais fatores que provavelmente dificulta compreender essa noção está vinculado à dificuldade de observarmos o comportamento como um processo e não como um produto. Para Skinner (1989/1991):
Talvez porque vemos o comportamento humano, mas percebemos muito pouco do processo através do qual ele se origina, sentimos necessidade de um eu criativo.(Skinner, 1989/1991, p.43).
Epstein (1997), ao analisar essa possível tensão entre autocontrole e determinismo, sugere uma análise de dois casos extremos. Primeiro, devemos imaginar um sujeito que não tenha nenhum repertório comportamental de autocontrole. O comportamento desta pessoa está sob o controle de estímulos que ocorram ime-diatamente após sua emissão. Quando a pessoa vir um doce, ela come; se ela tiver um cigarro próximo, ela fuma; se estiver perto de uma garrafa de bebida alcoólica, ela bebe. Ela está sendo totalmente controlada pelos estímulos ambientais que se seguem imediatamente às suas respostas.
Em outro extremo, imaginemos um indivíduo que possua um hábil repertório de autocontrole. Ele formula objetivos de longo e médio prazos e tem ampla habilidade para executálos. Ele resiste à presença de poderosos reforçadores, como, por exemplo, alimentos que são prejudiciais a sua saúde. Essa pessoa identifica condições que afetam seu comportamento e altera as variáveis ambientais das quais seu comportamento é função.
Os dois casos são extremamente diferentes. O primeiro sujeito está totalmente sob o controle do ambiente imediato que o cerca. O segundo está sob o controle de conseqüências atrasadas.
Então denominamos o primeiro sujeito de compulsivo, fraco, incapaz de controlar os próprios impulsos. E o segundo indivíduo é chamado de responsável, capaz de controlar sua própria vida. No entanto, o que acontece nestes casos é que nem o primeiro e nem o segundo indivíduo estão isentos de controle pelo ambiente. Na realidade, o primeiro sujeito está totalmente sob o controle de estímulos imediatos, o que acaba por facilitar a observação pública de tal controle, o que leva as pessoas a identificarem mais "facilmente" as supostas causas do comportamento compulsivo, de comer, por exemplo. O segundo indivíduo, por sua vez, está sob o controle de conseqüências atrasadas (estudar para passar em um concurso, por exemplo). O segundo caso dificulta a observação e identificação pública de quais são os estímulos que estão controlando o comportamento, porque as conseqüências são atrasadas e, portanto os estímulos ambientais que controlam esse comportamento não são observados imediatamente. E é justamente este motivo (dificuldade de observação pública das fontes de controle) o que torna propício o surgimento de explicações espúrias do comportamento que colocam o autocontrole como uma característica interna do sujeito.
Isto posto, podemos afirmar que ambos os comportamentos (compulsividade e autocontrole) são determinados por fatores ambientais, e devem ser analisados a partir da história de reforçamento do indivíduo e do ambiente onde o comportamento foi emitido.
Com isso, o conceito de autocontrole proposto pela análise do comportamento parece dissolver uma possível contradição entre determinismo e autocontrole, o que denota que o autocontrole nesta concepção não é independente da relação de controle entre indivíduo e ambiente. E mais, deixa-se clara a possibilidade de falarmos de um homem que determina parte do seu comportamento sem precisar recorrer a um agente interno.
A origem do autocontrole
Skinner, inicialmente, (1953/2000) ao definir o autocontrole como um comportamento que tem sua origem vinculada a contingências conflitantes, identifica dois tipos de respostas para esse comportamento: a resposta controladora (RC) e resposta controlada (Rc). Na relação entre essas respostas vão estar envolvidas conseqüências positivas e negativas que interagem de maneira específica: a resposta controladora age sobre as variáveis de modo a alterar a probabilidade da resposta controlada. Segundo Skinner (1953/2000):
As conseqüências positivas e negativas geram duas respostas relacionadas uma à outra de modo especial: uma resposta, a controladora, afeta variáveis de maneira a mudar a probabilidade da outra, a controlada. (P.253).
A resposta controladora é responsável por manipular as variáveis externas que mudam a probabilidade da resposta controlada, sendo, portanto, inúmeras as formas de autocontrole, considerando que são diversas as variáveis ambientais que podem ser manipuladas.
Como exemplo, para compreender melhor como essas respostas se relacionam, vamos imaginar o seguinte comportamento de um estudante em determinada contingência: "matar aula" para ir ao bar com os amigos. Este comportamento é seguido por diversas conseqüências; a presença dos amigos, a música que está tocando no bar, as bebidas, descontração, etc. Essas são conseqüências que têm como efeito aumentar a probabilidade de emissão do comportamento em uma ocasião similar no futuro e são chamadas de reforçadores positivos. Mas há outros tipos de conseqüências: este estudante pode perder pontos num trabalho, o professor pode ter ensinado naquele dia uma matéria que será importante no decorrer da disciplina, dentre outras conseqüências semelhantes que podem ser qualificadas como aversivas. Esses eventos podem ter como função diminuir a probabilidade do comportamento de "matar aula" ocorrer no futuro.
Essa contingência torna-se, então, conflitante já que apresenta tanto estímulos reforçadores imediatos que aumentam, quanto conseqüências aversivas atrasadas que diminuem a probabilidade de a resposta vir a ser emitida em uma nova ocasião. Mediante isso, é provável que quando o estudante citado no exemplo for convidado para ir ao bar novamente, respostas emocionais de arrependimento, culpa e ansiedade, poderão surgir emparelhadas com a contingência e seus reforçadores positivos, presença dos amigos, bebidas, descontração, etc. Neste caso, podemos supor que as respostas emocionais de culpa e arrependimento, decorrentes das conseqüências aversivas, podem competir e chegar a enfraquecer a probabilidade do comportamento de "matar a aula", e conseqüentemente "tirar a vontade" do estudante de ir ao bar. A apresentação do estímulo aversivo condicionado nesta situação enfraquece a probabilidade de emissão da resposta "matar aula". Todavia, é importante notar que o comportamento que enfraquece o comportamento de ir ao bar com os amigos é automaticamente um reforçador negativo, porque tem como resultado evitar a estimulação aversiva.
Posto que o comportamento que diminui a probabilidade de o aluno ir ao bar é reforçado negativamente, dizemos que este é um caso de comportamento de esquiva. O comportamento de esquiva pode ser definido como aquele comportamento que tem como função evitar (esquivar) uma estimulação aversiva (Sidman, 1989/2001). Por exemplo, o aluno pode desligar o telefone celular (resposta controladora) para que os amigos não consigam chamá-lo para ir ao bar (resposta controlada). De acordo com Skinner:
O organismo pode tornar a resposta punida menos provável alterando as variáveis das quais é função. Qualquer comportamento que consiga fazer isso será automaticamente reforçado. Denominamos autocontrole estes comportamentos. (Skinner, 1953/2000, p.253).
Este exemplo, apesar de simples, demonstra que não precisamos recorrer a um agente iniciador, como a força de vontade, por exemplo, para explicar o comportamento de autocontrole, pois o estudante citado no exemplo acima não precisou fortalecer sua vontade interior, mas sim rearranjar seu ambiente externo, fortalecendo, deste modo, respostas de esquiva. Isto aponta, entre outras coisas, para as vantagens em voltar nossa atenção para contingência de reforçamento ao analisar o comportamento de autocontrole, ao invés de procurar causas internas que expliquem a capacidade do indivíduo de controlar parte de seu comportamento: neste caso, o estudante saberia exatamente o que fazer para evitar a ida ao bar.
Outro aspecto essencial a ser notado na discussão sobre autocontrole, está entre o conflito da imediação do reforço positivo e ao atraso na punição. Assim, no caso do exemplo acima, "matar aula" e ir ao bar com os amigos produzem primeiramente conseqüências reforçadoras positivas imediatas, mas como visto, esses mesmos comportamentos produzem conseqüências punitivas atrasadas, que acabam por se tornar estimulações aversivas contingentes ao comportamento de "matar aula". Então, em ocasião futura em que apareça a possibilidade do comportamento de "matar aula" para ir ao bar com os amigos, surge também a possibilidade de autocon-trole.
Mas é preciso ressaltar que o surgimento de uma contingência conflitante não leva neces-sariamente a pessoa a emitir o comportamento de autocontrole. Esta afirmação é feita com base no poderoso efeito de alguns reforçadores naturais (ou primários), como, por exemplo, sexo e comida. Para o surgimento do autocontrole em casos nos quais a conseqüência do comportamento esteja relacionada a esses tipos de reforçadores, muitas vezes somente estimulações aversivas poderosas são capazes de originar um conflito suficiente para a emissão do comportamento de auto-controle. Como aponta Nico (2001), a existência do conflito entre conseqüências positivas e negativas é necessária para que haja a probabilidade de emissão do comportamento de autocontrole; contudo, ela não é o sufi-ciente para manter o comportamento de autocontrole. Visto que, em alguns casos, as primeiras etapas da resposta controlada não estão mais condicionadas a estimulações aversivas, progressivamente a resposta controladora pode deixar de produzir conseqüências reforçadoras que a mantêm, o que permite a extinção da resposta controladora. Segundo Skinner (1953/2000; 1974/2002), Sidman (1989/2001) e Nico (2001), quando ocorre a extinção neste caso, é alta a probabilidade de o comportamento anteriormente controlado voltar a ser emitido, posto que não há mais conflito, mas somente possibilidade de con-seqüências reforçadoras positivas. Deste modo, por exemplo, é provável que aquele estudante (citado no exemplo acima) que parou de "matar aula" para evitar as conseqüências aversivas deste comportamento, volte a "matar aula" novamente, já que ele não mais está experimentando conseqüências aversivas em função de tal comportamento.
Concepção tradicional e comportamentalista radical do conceito de autocontrole
Após o exposto até o momento, é possível notar que a noção do comportamento de autocontrole formulada por Skinner (1953/2002) é discrepante da noção tradicional. Para esse autor, tradicional é considerada toda formu-lação de autocontrole que não seja semelhante à formulada por ele, ou seja, o adjetivo "tradicional" refere-se a formulações internalistas e mentalistas.
Algumas das objeções de Skinner (1974/2002) à concepção tradicional de autocontrole estão vinculadas à idéia de que, nessas explicações, deixa-se explícita uma circularidade: para se explicar o comportamento de uma pessoa autocontrolada, recorre-se à idéia de força de vontade, por exemplo, e para explicar a força de vontade, recorre-se ao autocontrole da pessoa. Tal argumento implica numa estagnação no que diz respeito à possibilidade de uma investigação que nos leve a identificar os determinantes do comportamento. Segundo Skinner, a circularidade das explicações mentalistas desviam a nossa atenção dos determinantes ambientais do comportamento e voltam-se para dentro do organismo, como se o autocontrole fosse algo pertencente à personalidade, ao self do indivíduo. Além disso, Skinner (1968/1972) diz que o uso de uma característica para descrever ou explicar um comportamento é insuficiente para nos mostrar como ele foi adquirido e como alterá-lo. Noutras palavras, dizer simplesmente que um sujeito tem muita ou pouca força de vontade, além de não demonstrar praticamente nada, pouco ajuda na aquisição e/ou manutenção do comportamento de autocontrole.
As explicações tradicionais sobre o comportamento de autocontrole também parecem não ter sido úteis para o bom desenvolvimento educacional em nossa sociedade. De acordo com Skinner (1953/2000): "A concepção tradicional do que acontece quando um indivíduo se controla nunca foi bem-sucedida como um instrumento educacional. Dizer a um homem que deve usar seu poder de vontade ou seu autocontrole ajuda muito pouco". (p.264). De acordo com Skinner, utilizar-se do apelo e recorrer à força de vontade pode até tornar o comportamento de autocontrole mais provável de ser emitido em algumas situações, mas será pouco eficaz e terá provavelmente suas conseqüências vinculadas à estimulação aversiva adicional e contingente à resposta de autocontrole. Por exemplo, podemos fazer com que uma criança faça seu dever escolar sob forte ameaça de punição. Mas de forma alguma isso possibilita que o comportamento de fazer o dever de casa fique mais provável de ser emitido no futuro; ao contrário, é provável que essa criança, sempre que possível, esquive-se de uma contingência semelhante a essa.
Contudo, é necessário esclarecer que Skinner não está descartando o uso de termos tradicionais na linguagem coloquial. De acordo com Chiesa (1994), Skinner chama a atenção para o fato de que conceitos e termos derivados de explicações tradicionais e/ou da linguagem ordinária não devem ser adotadas pelo analista do comportamento sem uma análise crítica.
Autocontrole e cultura
Mischel (1971), ao citar a importância do auto-controle para nossa cultura, alega que a socialização e a própria cultura seriam praticamente impossíveis se não houvesse atraso de gratificações auto-impostas, ou seja, sem auto-controle. Assim, chegamos a um ponto fundamental que envolve o autocontrole como um comportamento importante também para o grupo e não apenas para o indivíduo.
Podemos ir até além, e afirmar que o auto-controle é na verdade um produto social à medida que o grupo pune, em diversos casos, comportamentos que produzam reforçadores imediatos para o indivíduo e estimulação aversiva atrasada para o grupo. Por exemplo, quando um indivíduo polui o meio ambiente, não experimenta conseqüências aversivas imediatas e muitas vezes nem atrasadas ori-undas desse comportamento. Mas esse comportamento pode trazer enormes male-fícios para o grupo. Por isto, o grupo arranja contingências que têm como função punir tais comportamentos, o que acarreta na diminui-ção ou extinção dos mesmos.
De acordo com Skinner (1981/1984), umas das explicações para o conflito entre o interesse do grupo e o do indivíduo tem sua origem em uma falha da seleção natural. Segundo Skinner, algumas disposições filogenéticas, como produto de contingências de sobrevivência da espécie, desenvolvem-se em períodos muito longos (milhares de anos), e ocorrem falhas, uma vez que o comportamento foi selecionado para ser adaptado num ambiente que não existe mais, já se transformou. Assim de acordo com Skinner (1971):
O valor de sobrevivência muda conforme as condições se alteram. Por exemplo, uma forte suscetibilidade a reforçamento por certos tipos de alimento, contato sexual e dano agressivo já foram extremamente importantes. Quando uma pessoa gastava grande parte do dia procurando por comida, era importante que rapidamente aprendesse onde encontrá-la ou como pegá-la, mas com o advento da agricultura, da lavoura animal e de modos de estocar alimentos, a vantagem foi perdida e, agora, a capacidade de ser reforçado por comida leva ao comer excessivo e à doença. (P.167).
É devido justamente a esta falha que a cultura acaba por delinear práticas que têm como função diminuir e/ou moderar os poderosos efeitos de alguns reforçadores. Uma das formas pela qual a cultura, na maior parte das vezes, arranjou de levar o indivíduo a controlar parte de seu comportamento, foi por meio do uso da punição, o que não significa que esta seja a única forma e nem a mais eficaz de estabelecer o autocontrole.
Apesar dessas considerações sobre o papel da cultura no surgimento do autocontrole, muitas vezes de maneira paradoxal, podemos também observar que a própria cultura reforça inúmeros comportamentos que são prejudiciais tanto para o indivíduo quanto para o grupo. O paradoxo está no fato de que essa mesma cultura que reforça comporta-mentos imediatistas e prejudiciais, exija autocontrole por parte das pessoas em relação a diversos comportamentos mantidos por reforçadores condicionados, como, por exemplo, o consumismo exagerado, a exploração inadequada de fontes de energia, entre outros. Essa exigência paradoxal geralmente é feita por meio do apelo à responsabilidade pessoal, como se o autocontrole fosse inerente ao ser humano, ou seja, coloca-se o sujeito como totalmente responsável por comportamentos que foram modelados e reforçados pela própria cultura. Um bom exemplo de como esse tipo de paradoxo acontece em nossa sociedade é apresentado por Nico (2001) ao citar uma condição típica do ambiente escolar.
(...) a escola estabelece as condições que promovem conflito e depois, espera que o surgimento 'espontâneo' do autocontrole sirva como grande prova de que seus alunos adquiriram o verdadeiro senso de dignidade e liberdade. Assim, os alunos que chegam a emitir respostas controladoras como forma de diminuir a probabilidade de respostas punidas, ou seja, que chegam a exibir autocontrole como forma de se esquivar de certas punições, o fazem por contingências absolutamente acidentais. (Nico, 2001, p. 160-161).
Talvez porque a cultura se exime praticamente de toda e qualquer responsabilidade sobre o comportamento que é prejudicial ao grupo e ao indivíduo, grande parte das pessoas aprende o comportamento de autocontrole de forma acidental. Para a explicação e a valorização cultural do comportamento de autocontrole, a cultura recorre ao uso de explicações mentalistas tanto para o comportamento do sujeito que não tem autocontrole (chamado de irresponsável), como para aquele que emite tal comportamento (o indivíduo tido como responsável).
Por sua vez, Skinner sugere uma análise das variáveis externas que se relacionam com o organismo e afirma que o seu ponto de vista:
(...) entra em conflito com os tradicionais tratamentos da matéria, é claro, os quais se preocupam especialmente em citar o autocontrole como um exemplo importante da operação da responsabilidade pessoal. Mas uma análise que apele para variáveis externas torna a pressuposição de um agente originador e determinante desnecessária. As vantagens científicas dessa análise são muitas, mas as vantagens práticas bem podem ser ainda mais importantes. (1953/2000, p. 264)
Conclusão
A dificuldade em se comportar para obter conseqüências futuras pode ser a explicação para inúmeros problemas sociais, como, a violência, doenças, uso de drogas, preservação do meio ambiente, de nossas fontes de energia, entre outros. Esses problemas não deixam margem de dúvida para a importância que o comportamento de autocontrole desempenha em nossa cultura.
De acordo com Kerbauy (1972), esses problemas comportamentais, em muitos casos, ocorrem em decorrência de um déficit de aprendizagem específica. Déficit que poderia ser amenizado pelo planejamento de contingências de ensino que promovessem o comportamento de autocontrole. Isto significa tornar a sociedade voltada para a sobrevivência da cultura através de práticas que visem esse objetivo. De acordo com Epstein (1997):
O ensino de práticas de autocontrole servem a duas importantes funções para sociedade: criar cidadãos que cumpram seu potencial e assim estejam em posição de fazer grandes contribuições para o grupo, e dar à sociedade um mecanismo que irá assegurar que os indivíduos respeitem o interesse do grupo a longo prazo. (P.563)
O estudo do comportamento de autocontrole apresenta-se como mais um importante instrumento para a resolução daqueles problemas comportamentais que envolvem tanto o interesse dos indivíduos quanto do grupo no qual estão inseridos.
Nessa exposição do conceito de autocontrole, não tivemos a intenção de esgotar ou definir este conceito em termos finais, mas fazer uma breve apresentação introdutória de tal conceito e algumas de suas possíveis implicações, lembrando sempre que a definição de qualquer conceito na análise do comportamento e no behaviorismo radical deve ter o amparo da análise experimental do comportamento (Hanna e Todorov, 2002). E apesar de não termos enfatizado os estudos experimentais de autocontrole na presente discussão, devemos assim como Hanna e Ribeiro (2005) dizer que os modelos experimentais de autocontrole são essenciais para a melhor compreensão deste complexo comportamento. Outra questão fundamental diz respeito ao cuidado que o analista do comportamento deve ter ao lidar com conceitos tão amplos como o autocontrole em uma ciência do comportamento. Disso decorre que o seu emprego exige do usuário, seja ele acadêmico ou clínico, o conhecimento mais claro possível para sua aplicação.
Por fim, vale lembrar que Skinner (1953/2000) foi o primeiro psicólogo a dedicar um capítulo de livro ao tópico autocontrole (Pilgrim, 2003), e que para isso ele recorreu aos conceitos básicos da análise experimental do comportamento. No entanto, Skinner não estudou experimentalmente o comportamento de autocontrole, o que não o impediu de formular um conceito para tal comportamento baseado nos dados de sua ampla pesquisa experimental e de sua ampla observação do comportamento social e cultural. Isso torna claro, dentre outras coisas, que o conceito de autocontrole exposto pela análise do comportamento é um ótimo exemplo de interpretação comportamental de conceitos mentalistas. Interpretação essa que não está comprometida e nem precisa recorrer à mente ou a um agente interno para explicar as causas do comportamento.
Referências
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Recebido em: 17/11/2004
Primeira decisão editorial em: 22/05/2005
Versão final em: 06/04/2006
Aceito em: 20/05/2006
1 Trabalho apresentado na Sessão Primeiros Passos XIII Encontro da Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental e na II Conferência Internacional da Associaton for Behavior Analysis. O autor agradece pelas críticas e sugestões realizadas pelo editor e consultores desta revista.
2 E-mail: robsonncruz@ig.com.br
Questões de estudo
1) Estabeleça a diferença entre o uso da expressão autocontrole nas explicações tradicionais e na Análise do Comportamento.
2) Explique quais são as principais características do autocontrole de acordo com a análise do comportamento.
3) Explique porque uma explicação mentalista do autocontrole dificulta a investigação desse comportamento.
4) Quais são as objeções que uma ciência do comportamento sofre ao propor estudar o comportamento humano?
5) A concepção de determinismo concebida pela Análise Experimental do Comportamento pode ser compatível com a idéia de um homem ativo na construção de seu mundo? Explique.
6) Discorra sobre a importância do autocontrole na resolução de questões importantes em nossa sociedade. Dê exemplos.