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Revista Mal Estar e Subjetividade
Print version ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.1 Fortaleza Mar. 2011
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
A avaliação psicológica, psicopatologia e as psicoterapias na formação do profissional de saúde para o SUS: um estudo dos currículos dos cursos de Psicologia
The psichological assessment, psicopathology and psychotherapies in the degree of health professional for the SUS: a study of the psychology curricula
Neuza Maria de Fátima GuareschiI; Carolina dos ReisII; Gisele DheinIII; Thais BennemannIV; Denise Santos MarchyV
IPhD pela University of Wisconsin Madison, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação. End.: Rua General Souza Doca, 270/301. Bairro Petrópolis. CEP 90630-050. Porto Alegre/RS. Email: nmguares@gmail.com
IIGraduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Mestranda do Grupo de Pesquisa Estudos culturais e Modos de subjetivação no Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. End.: Av. Grécia 1100/1205. Bairro Passo D'Areia, Porto Alegre - RS, CEP 91350070. Porto Alegre/RS
IIIGraduada em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2006). Mestre em Psicologia, área de concentração Psicologia Social, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010). Experiência em pesquisa nas áreas de saúde coletiva, políticas públicas, gênero e clínica. End.: Rua Guilherme Alves, 901/214. Bairro Petrópolis. CEP 90680-001. Porto Alegre/RS Email: gidhein@gmail.com
IVGraduada em Psicologia pela Pontifícia niversidade Católica do Rio Grande do Sul. Residente da Saúde e daFamília no Grupo Hospitalar Conceição. Vinculada ao Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação. End.: Silva Jardim, 627/309. Bairro Mont'Serrat. CEP 90450071. Porto Alegre/RS Email: thais.bennemann@gmail.com
VGraduanda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e vinculada ao Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação. End.: Rua Veranópolis, 805. Bairro Passo D'Areia. CEP: 90520-530 Porto Alegre/RS Email: denise.giz.degidi@gmail.com
RESUMO
Este artigo é resultado de uma pesquisa que teve como objetivo visibilizar de que forma os currículos de cursos de Psicologia do estado do Rio Grande do Sul estão apresentando indicativos de movimento para formar profissionais da saúde para o SUS. Este trabalho foi desenvolvido a partir da análise dos programas das disciplinas, destacando e discutindo os direcionamentos tomados pelas ementas, conteúdos e bibliografias e adotando como balizadores os princípios e diretrizes presentes nas políticas de saúde do SUS. O trabalho toma como foco em especial o estudo das disciplinas direcionadas para os conteúdos de Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapia. Para o desenvolvimento dessa discussão analisamos a entrada da Psicologia na área da saúde coletiva e as contribuições desta para a construção da nova política de saúde através da formação acadêmica. Essa discussão é pautada pelas principais ferramentas e conceitos teóricos discutidos na área da saúde coletiva, tais como a ampliação do conceito de saúde, o princípio da integralidade, a política de humanização e a perspectiva do cuidado integral na atenção à saúde. A partir da análise que realizamos, apontamos para a necessidade de problematizar a construção do sujeito psicólogo, que profissional da saúde que os currículos de Psicologia vêm produzindo, e os efeitos que podem vir a operar no cotidiano dos serviços de saúde.
Palavras-Chave: Graduação em Psicologia. Formação de Profissionais de Saúde. Processos de Subjetivação. Políticas de Saúde. SUS.
ABSTRACT
This paper has stemmed from a research aiming at showing how curricula of Psychology courses in Rio Grande do Sul have shown signs of moving towards education of health professionals for SUS. This work has been developed from the analysis of the program of academic subjects, both highlighting and discussing the directions provided by programs, contents and bibliographies, having the principles and guidelines of SUS health policies as its axis. The paper has a special focus on the study of academic subjects that approach the contents of Psychological Assessment, Psychopathology, and Psychotherapy. To develop this discussion we analyzed the input of Psychology in the collective health area and the contributions of this to the construction of the new health policy through the academic formation. This discussion is pointed by the principal tool and theoretical concepts discussed in the collective health area, such as the broadening of the health concept, the principle of integration, the policy of humanization and the comprehensive care perspective in the health care. From the analysis, we have pointed out the need for problematizing the construction of the psychologist subject, a health professional that has been produced by Psychology courses, as well as the effects that might be felt in the daily routine of health services.
Keywords: Undergraduate course in Psychology. Health Professionals Education. Subjective Processes. Health Policies,.SUS.
RESUMEN
Este artículo es el resultado de una investigación que tuvo como objetivo visualizar como los currículos de los cursos de Psicología del estado de Rio Grande do Sul están mostrando indicios de movimiento para hacer la formación de los profesionales de la salud para el Sistema Único de Salud. Este trabajo fue desarrollado a partir del análisis de los programa de las disciplinas, poniendo de relieve las orientaciones adoptadas por los menús, los contenidos y la bibliografía y tomando como guía los principios y directrices actuales de las políticas de salud del SUS. El trabajo tiene como enfoque especial el estudio de disciplinas con los contenidos de Evaluación Psicológica, Psicopatología y Psicoterapia. Para el desarrollo de esta discusión se analiza la entrada de la psicología en la salud colectiva y la contribución de esta a la construcción de la nueva política de salud a través de la formación académica. Esta discusión es guiada por los principales instrumentos teóricos y conceptos discutidos en el área de la salud pública, tales como la ampliación del concepto de salud, el principio de la integridad, la política de humanización y la perspectiva de atención integral en el cuidado de la salud. A partir del análisis que realizamos, que apuntan a la necesidad de problematizar la construcción del sujeto psicológico, qual és el profesional de la salud que han estado produciendo, y los efectos que pueden operar en los servicios de salud todos los días.
Palabras clave: Licenatura en Psicología. Formación de Profesionales de la Salud. Los procesos de Subjetivación. Políticas de Salud. SUS.
RÉSUME
Cet article est le résultat d'une recherche qui avait comme objectif viabiliser la façon dont les programmes du cours en psychologie de l'État du Rio Grande do Sul sont montre indicatifs de mouvement pour faire la formation des professionnels de la santé pour le SUS. Ce travail a été elaboré a casse de l'analyse sur les programmes des disciplines, en soulignant et en discutant les directions que prend les menus, les contenus et les bibliographies et en adoptant comme un guide les principes et les actuelles orientations politiques de santé pour le SUS. Ce travail prend comme un foyer particulier l'étude des disciplines qui sont direcione pour les contenus de l'évaluation psychologique, la psychopathologie et la psychothérapie. Pour le développement de cette discussion, nous analysons l'entrée de la psychologie dans le branche de la santé publique et les contributions pour la construction de cette nouvelle politique de la santé par la formation académique. Cette discussion est guidée par les principaux outils et concepts théoriques que sont aborde dans le branche de la santé publique, comme l'élargissement du concept de santé, le principe de l'intégralité, la politique d'humanisation et la perspective d'un attencion integral pour la santé. De l'analyse que nous effectuons, nous soulignons la nécessité de problématiser la construction du sujet psychologue, quelle est les professionnels de la santé qui les programmes en psychologie ont produisent, et les effects que peuvent opérer au quotidien dans les services de la santé.
Mots clés: Diplômé en psychologie. La formation des professionnels de la santé. Les processus subjectifs. Les politiques de santé. SUS.
Introdução
A construção do Sistema Único de Saúde (SUS) representou um grande marco de mudança no que se refere à redemocratização do país. As modificações das formas como o SUS passa a abordar as questões da saúde implicam um novo olhar sobre o sujeito, indo além das preocupações sanitárias e abrangendo as diversas áreas de vida da população e o próprio exercício da cidadania. Diante desse novo paradigma inaugurado na área da saúde, passam a surgir demandas de mudança de perfis profissionais que possam produzir uma prática condizente com essa perspectiva de cuidado. Dentre esses redimensionamentos, salienta-se a aproximação da Psicologia das necessidades sociais e, em decorrência disso, a inserção dessa área de formação profissional na saúde e para o SUS, conforme determinado pelos Ministérios da Saúde e da Educação no ano de 2005. A partir dessas mudanças, o SUS passa a ser considerado um campo de atuação da Psicologia nos diferentes setores da saúde, e não somente naqueles voltados aos serviços de atenção direta à população. Portanto, abordar o SUS na formação em Psicologia é uma importante forma de inserção da profissão na realidade brasileira e na luta do movimento sanitarista para o desenvolvimento da saúde coletiva.
Este artigo1 é parte de uma pesquisa que teve como objetivo analisar os currículos dos cursos de graduação em Psicologia frente a essa nova demanda de formação de profissionais para atuar junto ao SUS. Foram analisados os currículos de seis cursos de Psicologia do Rio Grande do Sul, escolhidos por serem cursos de Psicologia que já existem há mais de dez anos, o que implica que tenham formado profissionais no modelo anterior às Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Psicologia de 2004, evidenciando, assim, um movimento2 para atender à demanda colocada pelos Ministérios da Saúde e Educação. O foco foram as disciplinas que abordavam, mesmo que indiretamente, temáticas relacionadas à saúde, como detalharemos mais adiante. A partir das análises, essas disciplinas foram divididas por temáticas em três grandes áreas, por nós denominadas: Área das Biomédicas, Área da Psicologia Social e Comunitária e Área da Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapia. Para apresentar as análises aprofundadas dessas três áreas, foram produzidos três artigos; os dois primeiros trabalhos podem ser acessados em Guareschi et. al. (2010) e Guareschi et. al. (2011).
Analisamos, neste, a entrada da Psicologia na área da saúde coletiva e as contribuições desta para a construção da nova política de saúde através da formação acadêmica. A partir disso, trazemos as discussões produzidas pela pesquisa, enfocando, nesse debate, as disciplinas direcionadas para a área de Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapia. Essa discussão é pautada pelas principais ferramentas e conceitos teóricos discutidos na área da saúde coletiva, tais como a ampliação do conceito de saúde, o princípio da integralidade, a política de humanização e a perspectiva do cuidado integral na atenção à saúde. Por fim, apresentamos alguns apontamentos sobre os efeitos que a atual configuração dos currículos disciplinares pode produzir na formação do profissional psicólogo para a área da saúde.
A Formação em Psicologia e as Políticas em Saúde
No ano de 2005, o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde, através da portaria interministerial nº/ 2.118, firmaram parceria para cooperação técnica na formação e desenvolvimento de recursos humanos na área da saúde. Essa associação é resultado de discussões prévias que vêm desde a construção e o planejamento do Sistema Único de Saúde (SUS). A partir da crescente demanda de formação profissional para o SUS e da incorporação da formação para a saúde como uma das ênfases nas Diretrizes Curriculares Nacionais, os cursos de graduação vêm se redimensionando no sentido de formar novos perfis profissionais para atuar nos serviços de atenção à saúde da população brasileira.
A partir da Constituição de 1988, com a implantação do SUS, a concepção de saúde passa a ser entendida como direito do cidadão e dever do Estado - como uma questão integral e plural, e não mais como ausência de doença ou de sintomas, mas como uma questão coletiva, e não pública. Isso porque o público remete a modelos de programas assistencialistas, e a saúde coletiva objetiva a promoção das condições de vida com a participação social. Embora os termos "saúde pública" e "saúde coletiva" sejam empregados muitas vezes como sinônimos, ambas se constituem como campos não-homogêneos. A saúde pública se construiu no final do século XVII, marcando o investimento da medicina nas enfermidades (BIRMAN, 1991); tem como estratégia básica o esquadrinhamento estatístico da epidemiologia no espaço urbano, adotando medidas sanitárias para combater as epidemias. A saúde coletiva, em direção oposta à da saúde pública, "se constituiu através da crítica sistemática do universalismo naturalista do saber médico" (BIRMAN, 1991, p.9). Está intimamente associada à entrada das ciências humanas na saúde, que passam a criticar categorias universalizantes da saúde pública, destacando as dimensões simbólicas, éticas e políticas, de forma a relativizar o discurso biológico.
Relacionando-se à saúde coletiva, o Sistema Único de Saúde é orientado por três princípios básicos prioritários3: Universalidade - considera-se que todas as pessoas têm direito de acesso aos serviços de saúde, independentemente de características sociais ou individuais, e é dever do Estado proporcionar isso; Integralidade - compreende-se que cada cidadão é um ser integral submetido às mais diversas situações e deve ser atendido de tal forma, sem compartimentalização das ações de promoção, proteção e recuperação; Equidade - há igualdade de direitos entre os cidadãos, e estes devem ser atendidos pelos serviços de saúde conforme suas necessidades. Além de essa política operar com os princípios, estabelece também três diretrizes principais: descentralização - principalmente no que se refere ao primeiro nível de atenção, o que permite às prefeituras municipais uma melhor identificação das necessidades regionais de saúde; atendimento integral - pautado pelo princípio da integralidade; e participação da comunidade - que vai desde a responsabilidade pela saúde individual até a composição do controle social na formulação e vigilância sobre as políticas de saúde. Assim, a saúde passa a ser compreendida como direito do cidadão na promoção das condições de vida e relaciona-se aos modos de ser e estar no mundo, ou seja, saúde como um dispositivo dos modos de subjetivação, conforme coloca o artigo 196 da Constituição Brasileira.
Art.196 - "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (BRASIL, 1988).
Medeiros, Bernardes e Guareschi (2005) enfatizam a importância, para as práticas psicológicas, de entender a saúde como dispositivo na produção de modos de subjetivação a partir do novo conceito de saúde proposto pelo SUS. Essa importância é destacada, uma vez que o conceito de saúde não existiu nas teorias e práticas da Psicologia desde seu início enquanto campo de saber científico. De acordo com as autoras, devemos operar com a ideia de que saúde nas práticas psicológicas não é algo que independe de seu modo de acesso e de significação. Assim, a inserção do profissional de Psicologia nas práticas de saúde coletiva deve tornar-se uma atenção prioritária para a formação nessa área, pois, na história da constituição desse saber como ciência, o conceito de saúde foi sendo integrado às suas teorias e práticas.
A formação de profissionais na área da saúde, na qual também se encontra a Psicologia, ainda se volta para a abordagem clássica, em que o ensino é tecnicista, preocupado com a sofisticação dos procedimentos e do conhecimento dos equipamentos auxiliares do diagnóstico, tratamento e cuidado, e organizado por áreas de especialidade (CECCIM e FEUERWERKER, 2004). Entretanto, já se observa um movimento nacional no sentido de normatizar a formação e o trabalho dos profissionais da saúde brasileiros, cumprindo a determinação de que a competência para ordenar a formação de recursos humanos na área da saúde é do SUS (CF/88, art.200, inciso III).
É parte desse movimento a criação, em 1997, em decorrência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB, das Diretrizes Curriculares Nacionais - DCN dos cursos de graduação, em oposição ao formato dos currículos mínimos. As Diretrizes Curriculares Nacionais, incluindo o Curso de Psicologia, incentivam a maior flexibilização dos desenhos curriculares, a liberdade para organizar as atividades de ensino e a diversidade das formações pela ampla participação nas realidades locais de saúde e ativa participação estudantil (CECCIM e CARVALHO, 2005). Entre os anos de 2001 e 2004, foram aprovadas as diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação da área da saúde, firmando nacionalmente que a formação do profissional de saúde deve contemplar o sistema de saúde vigente no país, o trabalho em equipe e a atenção à saúde. A formação em Psicologia define a atenção à saúde como participação na prevenção, promoção, proteção e reabilitação em saúde, segundo referenciais profissionais. A Psicologia definiu a atenção à saúde como seu objetivo específico, além daqueles próprios de um egresso da educação superior. Atualmente, o efeito desse direcionamento na formação em Psicologia pode ser evidenciado na porcentagem de disciplinas e atividades de estágio voltadas diretamente para o ensino de disciplinas relacionadas ao processo saúde/doença, perfazendo uma média entre as seis Universidades estudadas de 42,17% em relação ao total das disciplinas dos currículos.
No ano de 2005, a partir da já citada portaria interministerial, o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde ampliaram a abrangência do programa PRÓ-SAÚDE para outros cursos da área, antes restritos aos cursos de Medicina, Odontologia e Enfermagem. Dentre os novos cursos, a Psicologia entra para o desafio colocado à formação de graduar profissionais capazes de promover ações de saúde integral. Ceccim e Feuerwerker (2004) destacam que a integralidade da atenção deve ser norteador das necessidades de mudança na formação dos profissionais dessa área de conhecimento e contribuir à formulação de uma política do SUS para a mudança na graduação das profissões de saúde.
Construção da Psicologia: produção de conhecimento e as práticas psicológicas
De acordo com Foucault (2002), a Psicologia, a partir do século XIX, passou a preocupar-se fundamentalmente em adequar seu método às ciências da natureza e em encontrar no homem o prolongamento das leis que regem os fenômenos naturais. A metodologia utilizada baseava-se na mensuração, na quantificação e controle dos processos psíquicos. Essa aproximação com o conhecimento do positivismo amparou-se em dois postulados:
Que a verdade do homem está exaurida em seu ser natural e que o caminho de todo o conhecimento científico deve passar pela determinação de relações quantitativas, pela construção de hipóteses e pela verificação experimental (FOUCAULT, 2002, p.133).
A Psicologia, para obter o status de ciência, inicia seu percurso construindo conhecimento para medir e quantificar o comportamento humano. Para isso, produziu medidas, testagens e previsões. Esse movimento faz uma escolha clara pela racionalização dos processos psíquicos. O intuito era a classificação dos indivíduos em modelos predefinidos para se buscar o estado de normalidade e a cura do desvio (HÜNING E GUARESCHI, 2009).
A formação "psi", em geral, traz certas características modelares, instituídas e bem marcadas; como, em nossa formação, predomina o viés positivista em que se tornam hegemônicos os conceitos de neutralidade, objetividade, cientificidade e tecnicismo e onde, nos diferentes discursos/práticas, o homem, os objetos e o mundo são apresentados como "coisas em si", abstratos, naturais e não produzidos historicamente (COIMBRA, 1999, p.01).
A cientificidade experimentada pela Psicologia situou o psicólogo numa posição de descobridor da realidade psíquica. A objetividade e a neutralidade fizeram com que a Psicologia se preocupasse em buscar a essência psicológica dos sujeitos; tais verdades afastavam a noção de cultura, sociedade e contexto histórico da análise (HÜNING E GUARESCHI, 2009). A Psicologia, como ciência moderna, intervém de forma a criar movimentos de privatização da existência e da experiência. Ao mesmo tempo, opera-se um movimento de publicização da interioridade psíquica, que deve ser exposta como modo de se curar o cidadão (MEDEIROS, BERNARDES e GUARESCHI, 2005).
Na década de 1970, nota-se uma conversão considerável de psicólogos para o campo da assistência à saúde pública (DIMENSTEIN, 1998). É principalmente com o movimento de desospitalização e de extensão dos serviços de saúde mental à rede básica de saúde que se dá a inserção do psicólogo na saúde (SPINK, 2003). A entrada do psicólogo no setor público de saúde dá-se ao mesmo tempo em que o modelo médico-assistencial privatista se encontra no auge, mas também em franco esgotamento. Criticava-se o modelo asilar, e dava-se ênfase à formação de equipes multiprofissionais (DIMENSTEIN, 1998).
Em 1986, a VIII Conferência Nacional de Saúde, evento que definiu as bases do projeto para a construção do Sistema Único de Saúde, serviu para incrementar o processo de ampliação da diversidade de profissionais no campo da saúde. Com esse movimento, pela primeira vez, a saúde deixa de ser concebida como estado biológico abstrato de normalidade ou de ausência de doença e passa a ser concebida como resultado de um conjunto de condições coletivas de existência, como expressão ativa de um direito de cidadania (DIMENSTEIN, 1998). Spink (2003), seguindo essa linha, define a Psicologia Social da Saúde como comprometida com os direitos sociais a partir de uma ótica coletiva, portanto, fugindo das perspectivas tradicionais ou intraindividuais e dialogando com teorias e autores que pensam as formas de vida e de organização na sociedade contemporânea. Assim, a Psicologia Social da Saúde tende a atuar nos serviços de atenção primária, em contextos comunitários, em problemas de saúde em que pesam a prevenção à doença e a promoção à saúde, atuando em conselhos de saúde, comissões e fóruns de elaboração de políticas públicas e saúde coletiva.
A saúde coletiva constitui um importante campo de atuação do psicólogo na atualidade, no entanto, a formação em Psicologia pouco se orienta para a discussão dos princípios do SUS. Embora essa retomada histórica da entrada da Psicologia para o campo da saúde pública possa parecer ultrapassada e superada em alguns contextos, posto esses movimentos de mudanças acompanhados por alguns atores da Psicologia dentro do campo da saúde coletiva, um olhar atento aos currículos dos cursos de graduação evidenciam que essas estratégias produziram poucas alterações em relação às formas como as disciplinas, especialmente àquelas relacionadas à Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapia estão formuladas dentro da formação acadêmica, como evidenciaremos mais adiante no trabalho. Na Psicologia, bem como nas demais profissões da área da saúde, predomina o referencial positivista, centrado no modelo orgânico, voltado para a intervenção assistencial em detrimento da intervenção preventiva e promotora de saúde. A maioria dos cursos continua formando profissionais como se fossem trabalhar nos EUA ou no Brasil dos anos 80, num modelo de saúde que não é público e que intervém sob o princípio de saúde como ausência de doença (CAMPOS, 2006). A ausência de discussão das políticas públicas de saúde na formação em Psicologia deve ser colocada em questão por vários motivos:
Primeiro, era (é) a oportunidade de transformações no perfil de formação em Psicologia, rompendo com modelos individualizantes; segundo, tendo em vista as modificações nas demandas de trabalho que vêm ocorrendo, é importante que o psicólogo se prepare já em sua graduação (vale dizer que o público não se restringe ao estatal); terceiro, refletir criticamente sobre as políticas públicas e o saber-agir da Psicologia atende aos anseios de profissionais que já trabalham com essa questão, além do anseio de usuários dos serviços (BERNARDES, 2006, p.4).
A formação de recursos humanos para atuar no SUS foi um dos temas centrais da 3ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Brasília, março de 2006), realizada pelo Ministério da Saúde e Conselho Nacional de Saúde. A Conferência teve como referência que as instituições formadoras devem responsabilizar-se no âmbito da produção científica e qualificação de quadros profissionais e também se tornar parceiras do SUS; devem, ainda, efetivar a máxima interação entre o mundo do ensino e o mundo do trabalho, consolidando os compromissos públicos e a relevância social da formação, especialmente em saúde, onde existe mandato constitucional para a ação conjunta (BRASIL, 2006).
Da mesma forma, o Sistema Conselho de Psicologia e a Associação Brasileira de Ensino em Psicologia (ABEP) criaram oficinas para discussão realizadas em todo o país durante o ano de 2006, visando a problematizar a formação do psicólogo para atuar no sistema de saúde brasileiro. O "XI Encontro da Regional Sul ABRAPSO: Tecendo Relações e Intervenções em Psicologia Social" (9 a 12 de outubro de 2006) discutiu amplamente, em seus simpósios e conferências, a interface entre Psicologia e Políticas Públicas e a necessidade de mudanças na formação em Psicologia. Nesse encontro, foram apresentadas diversas experiências de trabalho do psicólogo e de estudantes de Psicologia no SUS.
Na discussão teórica sobre Psicologia como ciência, formação acadêmica, práticas psicológicas e transformações do conceito de saúde junto às políticas em saúde coletiva, apresenta-se um cenário nacional de revisão dos rumos do fazer-Psicologia e do fazer-saúde em direção ao projeto de consolidação dos ideais da Reforma Sanitária que estão colocados na legislação federal através da criação e institucionalização do SUS.
Os Currículos dos Cursos de Psicologia e a Análise das Disciplinas
A regulamentação da profissão do psicólogo em 1962 acontece em um contexto em que a Psicologia se caracterizava por um viés tecnicista e individualizante. A partir da década de 1980, com o crescente empobrecimento da população, a Psicologia passa a repensar seu modelo de intervenção e, em consequência, de formação. Esse percurso de alterações nos currículos para se adequar às demandas sociais se fortalece com o documento chamado "Carta de Serra Negra". Este documento foi base para a construção das Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Psicologia, aprovadas no ano de 2004 (BERNARDES, 2006).
Alguns cursos de Psicologia, para ir ao encontro das ênfases descritas nas diretrizes curriculares, vêm inserindo nos currículos mudanças no sentido de contemplar a formação em saúde, tomando como parâmetro a política de formação proposta pelo SUS. Este artigo propõe-se a apresentar uma análise dos currículos de seis cursos de graduação do Estado do Rio Grande do Sul, de duas instituições confessionais, duas federais e duas comunitárias. Como situamos anteriormente, a escolha dessas universidades se deu pelo fato de esses cursos de Psicologia existirem há mais de dez anos, o que implica que tenham formado profissionais no modelo anterior às Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Psicologia de 2004.
O processo de análise aconteceu em três etapas. Na primeira, realizou-se o mapeamento das grades curriculares dos cursos de Psicologia selecionados, onde foram identificadas as disciplinas que, a partir da nomenclatura, remetem direta ou indiretamente às temáticas da saúde. Os materiais dessa primeira etapa foram os programas das disciplinas, retirados dos portais da Internet das universidades selecionadas, entre os anos de 2008 e 2009. Para dar conta desse critério de exclusão, entendemos saúde, a partir de seu conceito ampliado, como o conjunto das condições de vida dos sujeitos. Nesse sentido, ficaram abarcadas por esse conceito todas as disciplinas que se direcionavam para um fazer da Psicologia que estivesse implicado nessas formas de cuidado, ficando excluídas das disciplinas obrigatórias: Estatística, Introdução à Psicologia, História da Psicologia, Moral e Ética, Cultura Religiosa, Metodologia de Pesquisa, Informática, Expressão Escrita (voltada para o ensino da expressão escrita para os alunos da graduação) e Trabalho de Conclusão de Curso (embora os estudantes possam desenvolver trabalhos voltados para a área da saúde, as ementas dessas disciplinas não fazem nenhuma menção à temática, inviabilizando a inclusão na análise). Além dessas, algumas disciplinas eletivas não vinculadas à Psicologia, como línguas estrangeiras, também foram retiradas. As atividades de estágio e de prática foram todas incluídas a partir das ênfases oferecidas.
Na segunda etapa, realizamos o levantamento nas bases de dados de periódicos científicos de materiais bibliográficos que indicavam aspectos teóricos e históricos de como as disciplinas da Psicologia foram sendo inseridas nos currículos de formação da área. Essa análise teórica e histórica possibilitou encontrar alguns pontos para a organização das disciplinas em três áreas do conhecimento: área da Psicologia Social e Comunitária, área da Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapia e área das Biomédicas. Como já referido, este artigo trata somente da análise dos programas das disciplinas denominadas aqui como Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapia.
Assim, na área da Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapia, a análise baseou-se em artigos científicos que falam sobre a história da formação da Psicologia como ciência e profissão e de seu processo de envolvimento com as questões de saúde a partir da produção e valorização dos testes e da avaliação psicológica, da formulação de saberes que atuam na produção das noções de normal versus patológico, dos processo de formação da personalidade e da formulação de práticas terapêuticas dentro da construção da Psicologia como campo de saber e também na estruturação das grades curriculares. Nesse sentido, consideramos importante destacar que, ao situarmos as disciplinas de Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapias dentro de uma mesma área de análise, não objetivamos afirmá-las como homogêneas, mas procuramos evidenciar a partir dos textos analisados de que forma essas disciplinas no seu momento de entrada para os currículos dos cursos de Psicologia o fazem por uma mesma via, que é a identificação de doenças e sua diferenciação de processos saudáveis. Ao darmos relevância ao momento de construção da Psicologia enquanto campo de formação vinculado à saúde, entendemos que esse movimento auxilia a compreender algumas heranças ainda fortemente presentes nas formações acadêmicas que invisibilizam nas grades curriculares os movimento de mudanças em relação à forma de se pensar saúde no SUS e o lugar da Psicologia nas Políticas de Saúde. Para tanto, os textos referenciados foram: A Clínica, Entre Saber e Poder e A Physis da Saúde Coletiva, de Joel Birman; O conceito de saúde e suas implicações nas práticas psicológicas, de Patrícia Medeiros, Anita Bernardes e Neuza Guareschi; A cultura profissional do psicólogo e o ideário individualista: implicações para a prática no campo da assistência pública à saúde, de Magda Dimenstein; e As relações entre saber e poder em testes psicodiagnósticos a partir de M. Foucault, de Monica Caron.
Nos artigos referidos, evidencia-se que a emergência e a relevância que os testes de avaliação psicológica, as psicopatologias e as psicoterapias vão adquirir no reconhecimento da Psicologia como área do saber sobre a saúde e a doença psíquica e também sua importância em outras práticas psicológicas, justificam sobremaneira a incorporação, no currículo dos cursos de Psicologia, de técnicas e métodos que sustentam essas disciplinas e passam a ter prioridade de investimento nessa área. A manutenção desta prioridade na formação em Psicologia fica evidente ao compararmos a quantidade de créditos das disciplinas dessa área em relação às demais nas Universidade analisadas:
Elencamos, então, a partir dos textos estudados, quatro pontos que entendemos como aqueles que sustentam esses conteúdos na formação em Psicologia.
O primeiro diz respeito à identificação dos testes psicológicos como sendo aquilo que confere identidade à profissão, uma vez que são de uso exclusivo do psicólogo, de acordo com o Art. 4º do Decreto no. 53.464, de 21 de novembro de 1964, que define: são funções do psicólogo utilizar métodos e técnicas com o objetivo de diagnóstico psicológico, orientação e seleção profissional, orientação pedagógica e solução de problemas de ajustamento.
O segundo ponto refere-se à noção de que os testes conferem cientificidade à Psicologia através da experimentação de forma objetiva e quantitativa, o que lhe atribui o mesmo status científico das Ciências Naturais e Exatas. O terceiro ponto está relacionado à importância que os testes psicológicos vêm exercer no período pós-guerra, quando adquirem grande visibilidade, passando a ser uma ferramenta central na identificação dos perfis individuais mais adequados para a reorganização da sociedade, fortalecendo as instituições e contribuindo nos mecanismos de regulação de condutas e/ou adaptação dos sujeitos às instituições. Já o quarto ponto está relacionado com a entrada da Psicologia na Saúde, inserindo-se, por meio do psicodiagnóstico, no cuidado à saúde das populações a partir de dois focos principais: a saúde do trabalhador e a saúde materno-infantil.
Com isso, a Psicologia passa a incrementar o desenvolvimento de instrumentos4, práticas e saberes que, em conjunto com a medicina social, irão colaborar no estudo epidemiológico de identificação de patologias e doenças descritivas e na identificação de grupos de risco e de populações vulneráveis, ainda sob o efeito do Movimento Higienista que se desenvolveu no Brasil durante o século XIX e teve seu ápice nas primeiras décadas do século XX. De acordo com Silva (2003), o Higienismo estimulou o desenvolvimento da Psicologia no Brasil, uma vez que tinha por meta a preservação da ordem frente aos distúrbios mentais, propondo-se a atuar em todos os aspectos da vida social e privada, requisitando conhecimento de várias ciências. Assim, o Movimento Higienista entendia que a desorganização social e o mau funcionamento da sociedade eram causas das doenças, cabendo à Medicina, Psicologia e demais ciências sociais atuar sobre seus componentes naturais, urbanísticos e institucionais. Servindo ao desenvolvimento da sociedade capitalista, a Higiene Mental objetivava o ajustamento da personalidade humana desviada das suas finalidades sociais e procurava aquisição ou recuperação do equilíbrio e da tranquilidade. Ao situarmos aspectos teóricos deste período, não pretendemos estabelecer uma relação de causa e efeito que fundamente a manutenção das disciplinas nas grades curriculares na atualidade, mas buscamos através disso evidenciar em que momento histórico se configurou um determinado conjunto de condições de possibilidade para a emergência de uma certa racionalidade que, esta sim, ainda se mantém presente enquanto fundamento para as práticas psicológicas e para a formação acadêmica na contemporaneidade.
Consideramos importante destacar aqui que as psicoterapias e as psicopatologias não pode ser confundida com os testes psicológicos, nem tomadas como sinônimo destes. Conforme proposto na transformação do conceito de saúde, entendemos que o trabalho do psicólogo é o de promover as condições de vida dos sujeitos, independentemente da formulação de um diagnóstico psicológico. Sobre essa questão, Caron (2005) destaca que os testes psicológicos estão fundamentados em uma concepção de sujeito em que este é entendido como um objeto descritível e analisável, o que permite, por consequência, a criação de instrumentos pautados por um sistema comparativo de medidas e fenômenos globais. Os testes se pretendem como uma medida exata, calculável, das condições internas dos sujeitos e do funcionamento de suas estruturas neurológicas, psicológicas e motoras. Assim, ao utilizar esses instrumentos, o trabalho do psicólogo está implicado na crença de que tais aspectos humanos são concretos e palpáveis. Retira-se a possibilidade de compreender esse sujeito dentro da complexidade e multiplicidade pretendidas por uma visão pautada pela integralidade, que em nada se parece com a outra descrita anteriormente.
Caron (2005) ainda afirma que, como resultado dos testes, são produzidos os psicodiagnósticos, através dos quais são introduzidas as anomalias e identificadas as psicopatologias5. Segundo a autora, esse mecanismo, na grande maioria das vezes, serve para oficializar o fracasso em vez de permitir que o sujeito conheça suas dificuldades e possa, então, lidar com elas. Ao desconsiderar as complexidades dos contextos de vida e de expressão dos sujeitos, os psicodiagnósticos operam rotulando os indivíduos com suas incapacidades, atuando como um mecanismo de poder que silencia as questões culturais e históricas.
No entanto, é sobre essa perspectiva que a Psicologia vai criando raízes no campo da saúde no momento da entrada nessa área. Destacamos que a identificação de distúrbios e transtornos, na qual a Psicologia se deteve nesse período, está relacionada prioritariamente aos estudos epidemiológicos e nosográficos, que mais tarde deram origem aos manuais de diagnóstico, como o CID-10 e o DSM-IV. Contudo, o desenvolvimento dos estudos das psicopatologias em escolas teóricas como a Psicanálise ou a Cognitivo-Comportamental, por exemplo, também vai colaborar para a construção desse paradigma em que se fundamenta a entrada da Psicologia na área da saúde, que enfoca o estudo da compreensão e tratamento de doenças, em detrimento do olhar sobre as histórias de vida dos sujeitos.
Por fim, na terceira etapa, realizou-se uma discussão sobre o modo como as disciplinas da área da Avaliação Psicológica, Psicopatologias e Psicoterapias foram sendo inseridas nos currículos de Psicologia, com o auxílio de bibliografias específicas. Através dessa discussão, buscamos problematizar como essa formação vai sendo estruturada no campo da saúde psicológica e da saúde pública. Para finalizar, discutiremos quais são os direcionamentos tomados pelas ementas, conteúdos e bibliografias dos programas das disciplinas, atentando para a temática da saúde na formação acadêmica em Psicologia, mais especificamente para a formação do profissional para atuar no SUS. Através dessa análise, no que se refere à área da Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapia, aqui em destaque, emergiram três enfoques dentro dessa área, intitulados: Teorias e Técnicas, Avaliação Psicológica e Diagnóstico e Psicopatologia e Tratamento.
A Avaliação Psicológica, Psicopatologia e a Psicoterapia nos currículos dos cursos de Psicologia
Apresentamos a seguir a análise e discussão desses três enfoques e os possíveis efeitos que podem produzir na formação do profissional de Psicologia para atuar no SUS.
Teorias e Técnicas: a dicotomia entre teoria e prática
Neste primeiro enfoque temático, estão inseridas as disciplinas da área de Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapias voltadas para o estudo teórico de conceitos que deverão, posteriormente, ao longo dos currículos dos cursos, fundamentar o ensino do desenvolvimento das técnicas e das práticas de psicoterapia na formação do psicólogo. O processo de ensino focado na aprendizagem das técnicas mostra-se, de maneira geral, caracterizado por um viés mais tecnicista. Essa lógica direciona os currículos no sentido de privilegiar o ensino dos conteúdos que fundamentam a aprendizagem de técnicas e práticas de psicoterapia. Se tomarmos como exemplo a disciplina de Teorias e Técnicas Psicoterápicas em Psicanálise6, veremos que são elencados conteúdos que se referem ao estudo teórico das especificidades da psicanálise com crianças e adolescentes e a conceitos como o de transferência e o de sintoma. Esses conteúdos aparecem no programa sempre ao lado de expressões como a construção do campo clínico ou a clínica com crianças, direcionando o estudo desses conceitos, ou seja, a aprendizagem para a aplicação dessas práticas psicoterápicas.
Esse mesmo direcionamento evidencia-se na disciplina de Teorias e Técnicas Psicoterápicas em Cognitivo7; na relação de conteúdos, aparece o estudo de conceitos como o de pensamentos automáticos e crenças centrais e, ainda, dos modelos teóricos: cognitivo racionalista, cognitivo construtivista e cognitivo pós-racionalista. Esses conteúdos são seguidos de outros, voltados, então, para o estudo da técnica, ou seja, para a aplicação dessa técnica na prática terapêutica: Processo Terapêutico: entrevista inicial, setting terapêutico, estrutura das sessões, Relação Terapeuta - Cliente, Terapeuta: pessoa e papel.
Embora os conceitos sejam estudados visando à aprendizagem para a aplicação da técnica, na grande maioria, as disciplinas propõem pouca ou nenhuma interação com as vivências práticas e/ou com experiências profissionais, isto pode ser percebido pela organização dos currículos dos cursos que estão dispostos, de forma que primeiro sejam estudadas todas as disciplinas teóricas, para que, somente depois, na inserção dos alunos em estágios profissionais, eles vivenciem essa interação. Geralmente, nos currículos, as disciplinas de estágio iniciam a partir do sexto ou sétimo semestre, quando as disciplinas teóricas já foram concluídas, evidenciando um distanciamento entre a teoria e a prática, o que vem reforçar uma dicotomização no processo de aprendizagem e formação. Essa lógica dicotomizada exposta nos currículos pode levar a pensar na manutenção e reprodução do conhecimento, uma vez que as teorias são colocadas como aquilo que deve ser largamente estudado, para posteriormente poder ser aplicado na prática. A maioria dos conceitos é ensinada a partir de autores clássicos, mostrando a ausência de bibliografias mais contemporâneas que possam propor outras reflexões sobre esses conceitos. Os autores atuais, quando trazidos, na maior parte são os que dão continuidade e aprofundamento ao trabalho dos grandes pensadores. Um exemplo onde isso ocorre é a disciplina de Teorias e Técnicas Psicoterápicas em Psicanálise, cuja bibliografia básica traz autores como Sigmund Freud, Melanie Klein e Françoise Dolto.
Se, por um lado, se reconhece a importância do estudo dos conceitos que deram origem à Psicologia e da leitura de autores clássicos para a formação profissional, por outro, nos programas das disciplinas, os conteúdos são apresentados de forma naturalizada, isto é, são ensinados como portadores de uma verdade a respeito da construção psíquica dos sujeitos, carecendo de uma discussão sobre o processo histórico e cultural que mostrem as possíveis transformações desses conteúdos. Os conhecimentos transmitidos parecem permanecer em um lugar de verdade, advindos de um determinado tempo histórico, sem que sejam questionados ou confrontados com outros enfoques teóricos de outros momentos históricos. Ao contrário, o que os conteúdos dos programas parecem objetivar é uma aprendizagem de conceitos de forma naturalizada quanto à necessidade destes no processo de formação, principalmente no que diz respeito à aplicação e operacionalização para o exercício da técnica e outras práticas.
Avaliação Psicológica e Diagnóstico: a patologia como foco do olhar sobre os sujeitos
O segundo enfoque temático aqui discutido, da Avaliação Psicológica e Diagnóstico, mostra uma continuidade em relação ao enfoque temático anterior, das Teorias e Técnicas, no que diz respeito ao fato de aquele primeiro ser o que serve de base teórica para este segundo. Nos conteúdos dos programas das disciplinas relacionadas aos dois enfoques temáticos, são apresentados tópicos para o ensino de teorias, acrescidos de outros tópicos voltados mais diretamente para a aplicação de técnicas. Estas disciplinas são: Avaliação Psicológica: Técnicas Projetivas, Avaliação Psicológica: Psicomotricidade8, Fundamentos da Entrevista Psicológica, entre outras. Nessas disciplinas, também são apresentados os estudos teóricos que fundamentam as técnicas ensinadas. Em geral, esses estudos são os já vistos nas disciplinas teóricas dos semestres anteriores, que situamos no primeiro enfoque temático como sendo os conteúdos ensinados nas teorias clássicas da Psicologia. Na disciplina de Fundamentos da Entrevista Psicológica, por exemplo, estudam-se os fundamentos teóricos do processo de entrevista clínica e o campo de fenômenos específicos derivados da construção da situação clínica, tendo nas referências autores como Freud e Laplanche. Posteriormente ao ensino dos fundamentos teóricos dos instrumentos e métodos, os conteúdos desse enfoque temático direcionam-se ao ensino da utilização e aplicação das técnicas propriamente ditas.
O enfoque temático da Avaliação Psicológica e Diagnóstico reúne, ainda, o conjunto de disciplinas voltadas para o ensino do processo de avaliação psicológica e das técnicas e instrumentos de testagem que caracterizam o diagnóstico psicológico, tais como: Avaliação Psicológica I, II e III, Fundamentos e Medidas, Psicodiagnóstico, Técnicas Psicométricas, Avaliação Psicológica: técnicas de manchas de tinta, etc. Essas disciplinas em geral apresentam bibliografias compostas, prioritariamente, pelos manuais dos testes psicométricos e projetivos que são ensinados e alguns textos sobre o processo de avaliação psicológica que têm o mesmo objetivo dos manuais, ou seja, a aprendizagem de como fazer, o que inclui todos os procedimentos, desde a entrevista inicial, passando pela composição das baterias de testes de acordo com a demanda, até como prosseguir com a entrevista de devolução e o encaminhamento quando necessário.
O que fica evidenciado na ordem como são apresentados os conteúdos para essa aprendizagem é um ensino fundamentado em uma perspectiva mecanicista que busca a automatização do conhecimento levando a uma lógica linear. Essa linearidade no ensino dos conteúdos parece buscar uma precisão na aplicação das técnicas e testes com vistas a um resultado certo e objetivo. Coimbra e Nascimento (2001) destacam que a Psicologia, como campo do conhecimento, faz parte do projeto de ciência inaugurado pela modernidade, segundo o qual se acredita ser possível a apreensão da realidade de forma imparcial, tornando-a mais precisa. A organização dos conhecimentos no currículo de Psicologia para serem ensinados, especialmente os testes psicológicos, parece assumir um caráter objetivo, na tentativa de garantir a esse saber um estatuto de verdade.
A organização estruturada de forma linear, que parte do estudo dos conceitos teóricos que capacitam para a aplicação das técnicas, dentre elas, a de avaliação psicológica e psicodiagnóstico, visa também a sustentar a aprendizagem do diagnóstico através da identificação daquilo que não é da ordem ou do normal, ou seja, da psicopatologia, seguida da indicação de um tratamento específico, neste caso, geralmente a psicoterapia. Essa linearidade pode ser observada na disciplina de Diagnóstico de Aprendizagem9, que inicia trabalhando as dimensões do processo de aprendizagem, portanto, um conteúdo teórico baseado nas teorias da aprendizagem, mas que se propõe a estudar os fatores fundamentais que levam aos transtornos de aprendizagem e a identificação de transtornos de aprendizagem, isto é, passa para a Avaliação Psicológica/Psicodiagnóstico; por fim, chega ao Diagnóstico e tratamento dos transtornos de aprendizagem, contemplando, assim, a busca por um conhecimento específico direcionado ao tratamento daquilo que for constatado como desvio, problema ou distúrbio.
Dentro dessa linearidade, as disciplinas do enfoque intitulado Diagnóstico, junto com as da Avaliação Psicológica, são as responsáveis pela capacitação do aluno para a identificação de transtornos. Dentre esses transtornos, destacam-se, os Diagnósticos de Aprendizagem e de distúrbios ditos característicos da adolescência, como o Transtorno de Personalidade Borderline, Depressão, Drogadição e Transtornos Alimentares, estes perfazem um total de 15% de disciplinas que podem ser identificadas como aquelas direcionadas especificamente para a adolescência.
Assim, o que está implicado nos programas das disciplinas da Área de Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapia de um modo geral e especialmente nas disciplinas desse enfoque temático é uma perspectiva de ensino que toma como foco central a doença - é a partir dela que são ensinados modos de agir e técnicas de tratamento, em detrimento de conteúdos que privilegiam a escuta do sujeito e as singularidades das histórias de vida. É pela busca da identificação precisa dos diagnósticos que as disciplinas dessa área se organizam. Portanto, está posta aqui uma inversão de prioridades, que coloca a doença e as técnicas antes de uma determinada escuta da história de vida dos sujeitos, indicando justamente o oposto daquilo que o SUS propõe ao fundamentar as políticas de cuidado em um conceito de saúde que intenciona privilegiar, antes de tudo, a promoção das condições de vida e a compreensão do sujeito dentro do contexto histórico, político, social e cultural em que está inserido.
Psicopatologia e Tratamento: a doença como paradigma da formação acadêmica
Como apontamos acima, a inserção das disciplinas da Área da Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Psicoterapia nos currículos dos cursos de Psicologia tem como disparador a psicopatologia, ou seja, ao situarmos a organização dos conteúdos das disciplinas dessa Área, a patologia emerge como o paradigma inserido no aprendizado desses conteúdos na formação em Psicologia. Nesse caso, poderíamos pensar que a psicopatologia seria o fio condutor da linearidade descrita no enfoque temático anterior. Destacamos que, ao nos referirmos à psicopatologia como fio condutor das disciplinas dessa área, não estamos nos referindo à quantidade de disciplinas ou conteúdos voltados à esta como uma temática, mas, conforme evidenciamos no enfoque anterior, nos referimos a presença da psicopatologia como um paradigma que baliza as propostas dos programas das disciplinas dessas área.
A maioria das disciplinas do enfoque temático que intitulamos como Psicopatologia e Tratamento estão voltadas para o ensino da identificação e desenvolvimento de psicopatologias dentro de diferentes escolas teóricas, com destaque para a descritiva, psicanalítica e a cognitivo-comportamental. No entanto, ainda que existam diferentes escolas teóricas nas quais se debruçam os estudos das patologias, todas elas estão fundamentadas neste mesmo paradigma, ou seja, a Psicopatologia. Nesse sentido, os conteúdos pouco ou nada propõem de reflexão sobre o processo saúde/doença, como, por exemplo, a maneira que isto está relacionado aos modos de vida da contemporaneidade, e não somente a preocupação do que é considerado normal ou patológico.
É significante a relação dos conteúdos nos programas das disciplinas do enfoque temático da Psicopatologia e Tratamento com a categorização e classificação de distúrbios, doenças, desvios, perturbações. É grande a quantidade de transtornos a serem estudados a cada semestre pelos alunos, se contadas as disciplinas desta área que referem nas ementas e conteúdos as palavras transtorno, síndrome, distúrbio ou que nomeiam o estudos de determinadas doenças específicas, estas compreendem 66% do total de disciplinas, nos outros 33% ainda estão compreendidas disciplinas de avaliação psicológica que não referem explicitamente essas palavras, mas que podem se direcionar para esses estudos. Novamente, pontuamos aqui o possível conflito entre o enfoque de aprendizagem fundamentado majoritariamente em patologias e a concepção de saúde proposta pelo SUS, a qual se sustenta essencialmente no princípio da integralidade.
Como um fio condutor evidenciado por uma linearidade e naturalização de conteúdos, o enfoque temático das psicopatologias leva, por fim, à aprendizagem do tratamento destas. As disciplinas que apresentam conteúdos direcionados às patologias aparecem adicionadas ao ensino de técnicas de psicoterapias voltadas para o tratamento das patologias, ou seja, oferecendo modelos de tratamento específicos para cada doença. Isso se observa, por exemplo, na disciplina de Psicologia e Psicoterapia Cognitivo-Comportamental, que se propõe a ensinar estratégias e técnicas cognitivo-comportamentais para o que intitula como principais transtornos mentais, sendo estes os comportamentos dependentes, os transtornos alimentares, as disfunções sexuais e os transtornos de personalidade. Essa mesma busca por uma especificidade no tratamento de acordo com cada doença aparece também na disciplina Clínica Psicanalítica Lacaniana, em que se estuda a especificidade da clínica lacaniana e a direção do tratamento em diferentes estruturas clínicas e as entrevistas iniciais em psicanálise: o paciente psicanalítico e o paciente psiquiátrico.
Portanto, o que fica evidenciado nos conteúdos dos programas, tanto na disciplina de Psicologia e Psicoterapia Cognitivo-Comportamental quanto na de Clínica Psicanalítica Lacaniana, é uma diferenciação no tratamento, tomando-se por base uma diferenciação na doença. No caso da disciplina de Clínica Psicanalítica Lacaniana, parece que existem conteúdos de Técnicas de Entrevista especificados para um determinado tipo de paciente, ou seja, os pacientes psicanalíticos e os psiquiátricos. Portanto, haveria uma forma de entrevista para cada uma das duas categorias; independentemente do número de pacientes, estes sempre vão ser categorizados em dois tipos, definidos pelas doenças que os caracterizam.
Ao criar tratamentos cada vez mais específicos para cada patologia, a Psicologia busca uma precisão e uma coesão cada vez maiores nas suas teorias e técnicas, procurando a eficácia na aprendizagem destas, o que vem caracterizar o ensino deste conhecimento para a psicopatologia que evita permitir o encontro com o inusitado, prevendo, identificando e modificando comportamentos a partir de padrões previamente determinados. Esse determinismo, evidenciado por uma cadeia de conteúdos - sintomatologia, tipo de tratamento, resultado -, corrobora a manutenção do status da Psicologia dentro de uma perspectiva de ciência de ordem e certeza características da Modernidade. Para Nascimento, Manzini e Bocco (2006), "salvo algumas exceções, a formação em Psicologia vem sendo frequentemente regulada por esse modelo, primando pela produção de especialistas sem se preocupar em construir dispositivos que coloquem em análise tal paradigma" (p.15). Mais uma vez, o que se tem aqui é a doença colocada em evidência; é em função dela que os tratamentos se especializam, mas também que a produção de doenças aumenta. Essa perspectiva de aprendizagem, em grande parte, deixa de lado o olhar para o sujeito como um ser biopsicossocial e passa a reconhecê-lo como o portador de uma doença, e não a prática psicológica como forma de eliminar os sintomas e doenças.
Considerações Finais: A Psicopatologia como moldura para o retrato da Formação Acadêmica
A aproximação da Psicologia com a saúde é um movimento que necessita de estranhamento dentro do campo da construção do conhecimento e das práticas psicológicas em saúde. Uma vez que a Psicologia lida com a diversidade, com a multiplicidade das histórias de vida e dos modos de singularização, necessita capturar os diferentes marcadores culturais que circundam o campo social e não colaborar na fragmentação da vida coletiva. Dessa forma, apontam-se neste momento quatro principais questões pelas quais se percebe que a Psicologia pode fazer a diferença. Ao mesmo tempo em que esses pontos podem ser potencializadores para se pensar em novas práticas, alguns deles, conforme o olhar que se der, podem capturar e cristalizar a diversidade com que a Psicologia se depara.
A primeira questão diz respeito à dicotomização do psíquico e do físico. Vê-se, ainda, nos currículos de Psicologia, a prevalência de disciplinas direcionadas ao aprendizado de métodos e técnicas de psicodiagnóstico e avaliação psicológica, fator que contribui para uma formação que não se volta aos princípios do SUS, principalmente da integralidade e equidade. De acordo com o princípio da equidade, os sujeitos devem ser respeitados no que se refere às suas individualidades; é a garantia do direito à diferença. Já a integralidade é a afirmativa de que os sujeitos devem ser compreendidos como um todo biopsicossocial. Estabelece-se, assim, a necessidade de um trabalho em equipes transdisciplinares, uma vez que as diversas áreas do conhecimento terão que dialogar para se chegar ao entendimento de atenção em saúde que o SUS propõe. Nesse sentido, uma Psicologia fundamentada no estabelecimento de padrões de comportamento descritivos, que regulamenta o que é o normal e o desviante, assume uma postura disciplinadora de condutas e não tem como dar conta de um olhar voltado para o respeito à alteridade, que compreende as condições de produção de vida de cada indivíduo.
A integralidade, desse modo, representa muito mais do que a soma de olhares especializados e efetiva-se somente através da composição de um trabalho em equipes transdisciplinares. A construção de uma proposta como essa exige a desconstrução das barreiras das especificidades das áreas do conhecimento e o rompimento das fronteiras identitárias. Os testes psicológicos, por serem regulamentados como exclusivos para uso dos psicólogos, irão auxiliar na construção dessa identidade. Ao se apropriar desses instrumentos e da produção de saberes sobre eles, a Psicologia afasta a possibilidade de que outras áreas do conhecimento se apropriem do saber desses instrumentos. Isso pode ser entendido como uma estratégia para manter uma identidade através da qual o psicólogo possa se reconhecer como tal.
A questão que levantamos aqui não é a de que essas disciplinas devam ser excluídas dos currículos, e sim o foco da discussão que elas se propõem a realizar. Os conteúdos programáticos ainda se voltam a um entendimento de sujeito "psíquico" deslocado do seu contexto e de outros entendimentos. A proposta do SUS, em contraponto à formação que a Psicologia vinha realizando até a implementação das novas diretrizes curriculares, é de contemplar em seu quadro profissional, além da Psicologia, outras áreas das Ciências Humanas. Assim, entramos em outra questão, que diz respeito à naturalização do conceito de saúde com o qual operamos. O SUS visibiliza uma concepção de saúde pautada na promoção das condições de vida dos sujeitos, lançando um olhar integral que abarca os diversos contextos sociais e culturais em que eles estão inseridos, o que caracteriza a saúde coletiva.
Por outro lado, o que fica evidenciado a partir da análise das disciplinas voltadas para o estudo da Avaliação Psicológica, da Psicopatologia e da Psicoterapia é que existe um paradigma que transversaliza os currículos, que é a Psicopatologia. Ao nos referirmos à Psicopatologia como paradigma, apontamos para a forma como o estudo e a busca da identificação e tratamento das doenças vão dando forma e orientando a organização curricular das disciplinas dessa área. O que ficou visibilizado é a linearidade na maneira como essas disciplinas estão dispostas, seguindo uma lógica que coloca em primeiro lugar o estudo das teorias, isto é, antes da aplicação técnica dos conteúdos aprendidos. Por fim, a partir dos estudos das psicopatologias, é possível a busca e indicação de um tratamento específico. Esse tratamento organiza-se em torno da doença identificada, colocando o sujeito como um mero possuidor de uma determinada patologia. Essa linearidade descrita poderia ser pensada como nesta sequência: Diagnóstico, Técnicas, Tratamento.
Portanto, desde o ensino dos fundamentos teóricos, o olhar está direcionado para a psicopatologia, e não para o sujeito. O que se evidencia é uma incompatibilidade dessa perspectiva com o caráter assumido pela Psicologia, voltado para o diagnóstico preciso dos transtornos psiquiátricos, que, muitas vezes, acaba reduzindo as possibilidades de vida dos sujeitos àquilo que diz respeito à sua doença, sem um olhar para a diversidade e multiplicidade das histórias de vida e singularidades.
Entendemos, dessa forma, que os pontos que levantamos para a discussão do currículo de Psicologia não se esgotam. Levantamos alguns e sabemos que haveria vários outros para serem discutidos. No entanto, entendemos que estes que trouxemos nos auxiliam a pensar de que forma está se dando o diálogo da Psicologia com o SUS e, principalmente, de que forma a Psicologia vem se posicionamento ética e politicamente na atualidade.
Notas
1 Este artigo e mais outros dois (um que discute as disciplinas da área das Biomédicas e outro que aborda a área de Psicologia Social e Comunitária) resultam de uma mesma pesquisa. Por isso, os três artigos possuem em comum grande parte da discussão teórica e dos procedimentos metodológicos.
2 De acordo com o exposto na Lei 8.080, o sistema de saúde vigente no país deve ser orientado por treze princípios, dentre eles, os destacados acima são aqueles apontados pelas produções científicas da área como os mais relevantes para a efetiva compreensão ampliada do conceito de saúde.
3 Esse movimento também levou em consideração o fato de esses cursos de Psicologia já possuírem egressos em formação nas Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS) no Rio Grande do Sul.
4 Pontuamos a inserção da Psicologia na saúde a partir dessa questão do desenvolvimento dos testes psicológicos, pois entendemos que estes são incoerentes com a nova perspectiva de saúde adotada pelo SUS, que preconiza o entendimento do indivíduo em sua integralidade, com o olhar direcionado para a promoção das condições de saúde, e não para a identificação de um diagnóstico descolado de um contexto sociocultural e de uma história de vida.
5 Destacamos aqui que ao trazemos esses estudos sobre os testes psicológicos não objetivamos fazer uma crítica ao usos dos teses em si em qualquer contexto, mas a sua aplicação no âmbito da saúde coletiva e no interior de políticas públicas intersetoriais que dialogam diretamente com esta como a educação, assistência social e justiça.
6 Os nomes das disciplinas e os conteúdos destacados em itálico são trechos retirados de forma literal dos programas das disciplinas disponibilizados pelas Universidades. As descrições dos conteúdos das disciplinas, ainda que pareçam breve, estão explicitados de forma integral, excluídas as repetições em disciplinas de uma mesma nomenclatura, tal qual o material fornecido.
7 Em alguns dos programas disponibilizados pelas Universidade as ementas das disciplinas eram descritas como conteúdos a serem abordados, ficando agregados os itens ementas e conteúdos.
8 Relembramos que os nomes das disciplinas em itálico, foram retirados de forma literal dos programas das disciplinas. Para evitar equívocos, destacamos que a inclusão da Psicomotricidade como uma disciplina da Avaliação Psicológica não foi uma seleção feita na pesquisa, a própria disciplina intitulava-se Avaliação Psicológica: Psicomotricidade.
9 Novamente, para que o leitor possa ter acesso às informações de forma integral, destacamos em itálico neste parágrafo os conteúdos da disciplina descrita conforme disponibilizado pelas Universidades estudadas.
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Recebido em 05 de Fevereiro de 2010
Aceito em 13 de Julho de 2010
Revisado em 02 de Setembro de 2010