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Revista Mal Estar e Subjetividade
Print version ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.1 Fortaleza Mar. 2011
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Corpo e responsabilidade: efeitos da psicanálise sobre portadores de doenças degenerativas1
Body and responsibility: the effects of psychoanalysis over degenerative sickness bearers
Claudia Rosa Riolfi
Psicanalista, Professora da FE-USP. Co-coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Produção Escrita e Psicanálise- GEPPEP. Membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana - IPLA e colaboradora da Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano. End: Av. da Universidade, 308. Cidade Universitária. São Paulo, SP. CEP: 05508-040. Tel: (11) 3091-3099. Ramal: 260. Cel: (11) 7164-8889. E-mail: riolfi@usp.br
RESUMO
O presente trabalho toma como seu objeto os efeitos de quinze primeiras semanas de tratamento psicanalítico pautado na segunda clínica de Jacques Lacan gerados na vida de portadores de doenças degenerativas que tiveram sua condição confirmada no Centro de Estudos do Genoma Humano - USP. Apoia-se, portanto, na possibilidade do psicanalista incidir sobre o modo de gozo de um sujeito, levando-o a poder experimentar novas modalidades gozosas desvinculadas do prazer masoquista. Visa a responder a seguinte questão: quais transformações ocorrem quando o psicanalista é bem sucedido na operação de separar o sujeito do significante ao qual ele estava alienado? Para tal fim, foram analisados sete fragmentos de casos clínicos, escolhidos dentre um corpus composto por 51 casos, registrados parcialmente em vídeo e em relatórios escritos. Foi possível concluir principais efeitos obtidos: 1) A alteração da interpretação que o paciente dá para sua doença; 2) A convocação da singularidade de quem recebe uma resposta insólita frente à banalidade do modo como ele encara a própria vida; 3) A construção de uma ética pautada pelo princípio responsabilidade; 4) O estabelecimento de um estatuto ético ao corpo como resultado de um modo singular de interpretar as contingências da vida; e 5) A reinserção da dimensão do sexual, sem padrão, no dia a dia do paciente. Se, ao menos na esfera dos fenômenos passíveis de comprovação empírica, uma psicanálise não incide sobre a matéria orgânica, é digno de nota que portadores de doenças para as quais não há remédio estejam, mesmo assim, declarando se sentir mais felizes após um curto período de psicanálise. Parece-nos que este fato abre caminho para outras pesquisas que visem a estudar as correlações entre corpo e linguagem.
Palavras-chave: Psicanálise. Corpo. Clínica do Real. Doença Degenerativa. Singularidade.
ABSTRACT
This paper takes as its object the effects of first fifteen weeks of psychoanalytic treatment guided by the so-called Second clinic of Jacques Lacan generated in the lives of degenerative diseases bearers that had their status confirmed at the Center for Studies of the Human Genome, CEGH - USP. It rests therefore; over the possibility of the analyst make a difference on the mode of enjoyment of a person, permitting him to be able to experience new ways of joy, disconnected from the masochistic pleasure. It seeks to answer the following question: what changes arise when the analyst is successful in the operation to separate the subject of the signifier to which he was alienated to? In order to answer our question, seven fragments of clinical cases, chosen from a corpus composed of 51 cases, partially recorded on video and in written reports were analyzed. It was possible to conclude that the main effects obtained were the following ones: 1) A change in the interpretation that the patient makes for the own disease; 2) The convocation of the uniqueness of the one who receives an unusual response for the banality of the way he sees his own life; 3) The construction of an ethics guided by the Responsibility Principle; 4) The establishment of an ethical status to the body as a result of a unique way of interpreting the contingencies of someone's life; and 5) the reintegration of the sexual dimension, with no default, into the patient's day-by-day. If, at least in the sphere of phenomena capable of empirical verification, psychoanalysis is not concerned with organic matter, it is noteworthy that patients with diseases for which no remedy is still found, are declaring that they feel much happier after a short period psychoanalysis. It seems that this fact opens the way for further research aiming to study the correlations between body and language.
Keywords: Psychoanalysis. Body. Real Clinic. Degenerative Sickness.Singularity.
RESUMEN
Este trabajo tiene por objeto los efectos de las primeras quince semanas de tratamiento psicoanalítico, basado en la segunda clínica de Jacques Lacan, generados en la vida de personas con enfermedades degenerativas que habían confirmado su condición en el Centro de Estudios del Genoma Humano - USP. Se funda, por lo tanto, en la posibilidad del psicoanalista incidir en la manera de goce de un sujeto, llevándolo a poder experimentar nuevas modalidades de goce, desvinculadas del placer masoquista. Pretende responder a la pregunta siguiente: ¿qué transformaciones surgen cuando el psicoanalista es exitoso en la operación para separar el sujeto del significante al cual él se alienaba? Para eso, siete fragmentos de casos clínicos fueron examinados, elegidos entre un corpus compuesto por 51 casos, parcialmente registrado en vídeo e informes escritos. Fue posible concluir que los principales efectos obtenidos fueron: el cambio de la interpretación que da el paciente para su enfermedad; 2) la convocatoria de la singularidad de quien recibe una respuesta rara delante de la banalidad de como el sujeto encara la propia vida; 3) la construcción de una ética basada en el principio responsabilidad, 4) el establecimiento de un estatuto ético para el cuerpo como resultado de un modo singular de interpretar las contingencias de la vida; e 5) la reinserción de la dimensión sexual, sin estándar, en la vida diaria del paciente. Si, al menos en el ámbito de los fenómenos que son comprobados empíricamente, un psicoanálisis no afecta a la materia orgánica, es digno de mención que los portadores de enfermedades para las cuales no hay ningún remedio están, aún así, declarando sentirse más felices después de un corto período de psicoanálisis. Nos parece que este hecho abre el camino para futuras investigaciones destinadas a estudiar la correlación entre el cuerpo y el lenguaje.
Palabras clave: Psicoanálisis. Cuerpo. Clínica del Real. Enfermedad Degenerativa. Singularidad.
RÉSUMÉ
Ce travail prend comme objet les effets des quinze premières semaines de traitement psychanalytique font à partir de la seconde clinique de Jacques Lacan qui ont été faits dans la vie des porteurs des maladies dégénératives qui ont eu leur condition confirmée par le Centre d'Études du Genome Humain - Université de São Paulo. Il s'appuie, donc, dans la possibilité du psychanalyste tomber sur le moyen de jouissance d'un sujet, de manière à le mettre à essayer nouvelles modalités de jouissance, séparés du plaisir masochiste. Il vise à répondre à la question suivante : quelles sont les transformations qui déroulent quand le psychanalyste est bien succédé dans l'opération de séparer le sujet du signifiant auquel il était aliéné ? Pour cette finalité nous avons analysé sept fragments de cases cliniques, choisis entre un corpus composé par 51 cases, registrés partiellement en vidéo et en rapports écrits. Il a été possible de conclure que les principaux effets obtenus ont été les suivants: 1) L'altération de l'interprétation que le patient donne à sa maladie ; 2) La convocation de singularité de celui que reçoit une réponse insolite au moyen banal de percevoir sa propre vie ; 3) La construction d'une éthique basée sur le principe responsabilité ; 4) Établir un statut éthique au corps comme résultat d'un standard, dans la vie quotidienne du patient. Si, au moins dans la sphère des phénomènes passibles de prouver empiriquement une psychanalyse ne tombe pas sur la matière organique, il est digne surligner que les porteurs des maladies par lesquelles il n'y a pas de médicament, ils soient, quand même, à déclarer se sentir plus joyeux après une courte période de psychanalyse. Il nous semble que ce fait ouvre la possibilité pour autres recherches qui visent étudier les corrélations entre corps et langage.
Mots clé: Psychanalyse. Corps. Clinique du Reél. Maladies Dégénératives. Singularité.
Introdução
O presente trabalho toma como seu objeto o alcance que as primeiras quinze semanas de tratamento psicanalítico pode ter em portadores de doenças degenerativas. Partindo do pressuposto de que a psicanálise torna quem dela se beneficia permeável aos encontros com as contingências da vida, visa a elucidar os efeitos que podem ser obtidos quando o psicanalista é bem sucedido na operação de impossibilitar que uma pessoa continue a se proteger das surpresas por meio da alienação a um significante estável, que fornece a quem sofre de sua condição clínica uma matriz de sentido não questionada para interpretar tudo o que lhe acontece na vida a partir do prisma de sua doença.
Para tanto, aproveitando-nos do corpus utilizado em um projeto de pesquisa maior, intitulado Desautorizar o Sofrimento Socialmente Padronizado, do qual participam biólogos e psicanalistas, partimos de sete fragmentos clínicos colhidos no âmbito da experiência na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano, fundada em agosto de 2006. Trata-se de um serviço de atendimento psicanalítico oferecido à população (preferencial, mas não exclusivamente portadores de doenças degenerativas) por meio de uma parceria entre o Instituto de Psicanálise Lacaniana - IPLA, presidido por Jorge Forbes (psicanalista) e o Centro de Genoma Humano da USP, dirigido por Mayana Zatz (bióloga).
Assim sendo, cumpre, em primeiro lugar, dar uma notícia a respeito do funcionamento do projeto de pesquisa do qual extraímos os dados que são aqui tomados como objeto de análise. Sob a coordenação geral de Forbes e Zatz, uma equipe de vinte pessoas, da qual a autora deste trabalho faz parte, reúne-se semanalmente para estudar os casos e para acompanhar o seu andamento, sucessos e impasses. Até o presente momento, uma casuística composta de 51 dossiês clínicos foi estudada coletivamente.
O paciente mais novo desta população tem 13 anos e o mais velho 63. Trata-se de pessoas de ambos os sexos, que exercem profissões diversas e são de classes sociais diferentes. São ou familiares (pais, mães e irmãos) ou portadores de nove tipos diferentes de distrofias, a saber: 1) Ataxias progressivas; 2) Atrofias espinhais progressivas; 3) Ataxia de Friedreich; 4) Distrofia miotônica de Steinert; 5) Distrofias musculares do tipo cinturas (DMC); 6) Distrofia muscular do tipo fácio-escápulo-umeral; 7) Distrofia de Becker; 8) Distrofia de Duchenne; e 9) Miopatias congênitas estruturais.
O objetivo geral do projeto de pesquisa Desautorizar o Sofrimento Socialmente Padronizado é verificar a possibilidade de dissociar a condição física dos portadores de doenças degenerativas da alienação do paciente a um sofrimento prêt-à-porter, cuja forma de expressão pode facilmente ser encontrada em seu convívio social (FORBES, 2008a e 2008b). Para tanto, o seguinte método investigativo é aplicado. A equipe clínica do Centro do Genoma Humano faz uma triagem inicial e encaminha o caso para a participação no projeto. O critério utilizado pelo clínico responsável pela triagem para indicar a inclusão de um paciente no projeto costuma ser o surgimento ou o agravamento de sintomas psíquicos que, em sua avaliação, parecem ter correlação direta com o recebimento de um diagnóstico de ser portador de uma doença degenerativa. Os problemas mais comumente relatados são: a depressão, a perda de vontade de viver, o abuso do álcool, o uso de drogas, os pensamentos suicidas e o afrouxamento dos laços sociais.
Forbes e Zatz conduzem uma ou mais entrevistas visando a verificar o quanto é possível implicar o paciente nos sintomas dos quais se queixa, estabelecer as especificidades do caso, decidir se o paciente vai ou não participar de fato do projeto e a direção do tratamento. Não chega a 1% da população os casos nos quais a adesão não foi imediata.
Após a discussão com a equipe clínica, um colaborador, cujo perfil é considerado mais compatível com aquele tipo de caso, é escolhido para dar sequência aos atendimentos por aproximadamente quatro meses. Dez diferentes psicanalistas, incluindo-se a autora deste trabalho, vêm se revezando no atendimento clínico dos pacientes, sempre sob a orientação dos coordenadores do trabalho. Após este tempo, Forbes e Zatz recebem-no novamente, visando a verificar em que medida a desautorização do sofrimento foi obtida e a elucidar como este processo se deu em cada um dos casos. De novo, não chega a 1% da população os casos nos quais o analisando desistiu antes do término do tratamento. As entrevistas preliminares e finais são gravadas em vídeo, e o andamento da análise foi registrado por meio de relatórios escritos.
Mesmo enfrentando dificuldades de locomoção acentuadas, em muitos casos agravadas pelas financeiras, as faltas e os atrasos em sessões dão-se apenas em ocasiões excepcionais. Pode-se dizer, portanto, que, mesmo sabendo que a medicina ainda tem pouco alcance neste tipo de caso, o paciente adere ao tratamento psicanalítico, do qual espera, inclusive, uma melhora orgânica.
Se, ao menos na esfera dos fenômenos passíveis de comprovação empírica, uma psicanálise não incide sobre a matéria orgânica, é digno de nota que portadores de doenças para as quais não há remédio estejam, mesmo assim, declarando se sentir mais felizes após um curto período de psicanálise. No que segue, mostraremos o que ocorre quando este efeito é obtido.
Diferentes interpretações para uma mesma doença
Nada é mais temível do que dizer algo que possa ser verdadeiro. Pois logo se transformaria nisso, se o fosse, e Deus sabe o que acontece quando alguma coisa, por ser verdadeira, já não pode recair na dúvida.
(LACAN, 1958/1998, p.622)
Os sujeitos que recebem o diagnóstico de portadores de doenças degenerativas podem adotar duas posições bastante diversas com relação à sua condição física. Ao se encontrar com uma doença grave, uma minoria prossegue sua vida em regime normal. Faz o que é necessário para se adaptar às condições concretas impostas pelo seu quadro clínico e age como se isso fosse um detalhe como outro qualquer, um acidente de percurso entre tantos outros que a vida nos oferece.
Já a maioria se agarra à doença como se ela fosse tábua de salvação. Quando falam do encontro com o diagnóstico genético, parecem quase agradecidos pelo fato de terem sido agraciados com algo que põe fim às suas dúvidas. Em outras palavras, a condição de ser portador da doença x, y ou z dá-lhes uma identidade que, mesmo gerando sofrimento, os protege de uma angústia ainda maior, aquela gerada pela surpresa dos sintomas de uma doença degenerativa. O cotejamento da história narrada ao psicanalista por dois irmãos, Nilson e Diana, pode tornar a diferença entre uma e outra posição mais clara.
Enquanto narrava ao médico a história de seu encontro com a distrofia muscular do tipo cinturas, Nilson sorria maroto. O protagonista da saga era um nordestino 'arretado', lutando contra todas as secas e os desafios impostos pela vinda à cidade grande para criar sua família. A trama tinha de tudo: emoção, aventura, amor, coragem. Só não tinha final feliz: aos cinquenta e quatro anos, Nilson estava confinado em uma cadeira de rodas por causa da evolução de uma doença degenerativa.
Só que, surpreendentemente, não tinha nem um pingo de tristeza em sua voz, nadinha de autocomiseração em suas palavras. Não que o homem fosse indiferente às doenças ou que não gostasse dos finais felizes; é que, para ele, sua história estava muito longe de ter terminado. Em seu primeiro contato com a psicanálise, mais parecia um menino travesso olhando brinquedo novo. O mundo era vasto e sua curiosidade ainda maior.
Quando o psicanalista solicitou que ele se lembrasse de cada detalhe da evolução de sua doença, nem se incomodou. Esbanjando simpatia e loquacidade, contou de tudo um pouco, sem se eximir de relatar os exames dolorosos, os diagnósticos incertos, os comentários maldosos por parte de profissionais da saúde, a dificuldade de esclarecer a origem de seus sintomas. Ele disse:
Em 86, eu fiz uma biópsia. Quando fui pegar o resultado, o médico ficava batendo a caneta no canto da mesa. Parecia mais nervoso do que eu. Eu disse: pode dizer o nome. Ele respondeu que eu tinha uma "distrofia". Para mim, tanto fazia esta palavra. Podia ser Pedro, Paulo, qualquer nome, para mim, era a mesma coisa (risos). Eu insisti para que ele dissesse se era grave ou não. Preferi saber: eu sou uma pessoa cabeça feita.
Era mesmo "cabeça feita". Não era o sofrimento o que Nilson privilegiava. Estava mais interessado em partilhar as soluções encontradas para se adaptar à progressiva perda dos movimentos do que na perda de movimentos em si. Orgulhava-se da sua virilidade nordestina, que lhe dava tanta tenacidade quanta inventividade. Ele não havia desistido de nada: trabalho, amigos, sexo, casamento, relação com os filhos, estava tudo bem. A vida tinha lhe dado uma doença grave e ele tinha interpretado este encontro como uma chance de se reinventar todos os dias.
Com sua irmã Diana era bem diferente. Mesmo dez anos mais jovem, bem mais magra e ainda livre da cadeira de rodas, ela parecia estar muito pior. Tinha vindo acompanhada por familiares e por um marido zeloso, mas exalava desamparo e desarvoramento. Ela, que tinha tido sonhos, não havia conseguido realizar nenhum. Estava acabada, usando a expressão "tá difícil" como se fosse vírgula para pontuar suas frases.
Alegava sonhar fazer uma faculdade, mas, em toda sua vida, mal ela conseguia uma vaga em um banco escolar, se desencontrava do sonho. Sua vida acadêmica registrava uma série infindável de desistências e de fracassos. Tinha progredido de tentativa em abandono até encalhar na dificuldade. Diana não sabia de mais nada, pois, para ela, só uma coisa era certa: o prognóstico de sua doença. Via, em Nilson, seu futuro. A existência do irmão mais velho lhe dava a certeza de que o banco reservado a ela era a cadeira de rodas.
Por enquanto, sua doença, seu destino. Estávamos ainda longe do momento em que, como efeito do início de sua análise, Diana deu-se conta de que a maioria de suas dificuldades se relacionava com sua distrofia quase nada. "Eu estou parada há mais de vinte anos. Tive tudo nas mãos e não fiz nada por mim" -, ela pôde perceber, ao mesmo tempo em que alterava a situação descrita.
Por que trouxemos aqui parte da história dos dois irmãos? Por que, observando o modo como eles viviam antes de Diana se submeter ao tratamento psicanalítico, percebe-se, de maneira bastante clara, que, mesmo na presença de um mesmo diagnóstico, pessoas diferentes experimentam diversos graus de sofrimento psíquico, não diretamente correlacionado com a progressão da doença. Enquanto Nilson, já bastante comprometido, se organizava para viver da melhor maneira possível, sua irmã, mesmo ainda saudável, mantinha-se imóvel frente aos desafios da vida. Tomando as palavras de Lacan, por serem verdadeira, já não podia recair na dúvida sua interpretação a respeito da dificuldade de sua existência.
Assim, Diana será para nós o paradigma para a progressão de nossa reflexão. Não se trata aqui de discutir a dor que, muito provavelmente, é imposta pela progressão de uma doença grave. Trata-se, ao contrário, de discutir o que ocorre quando o psicanalista leva alguém a duvidar de sua capacidade de ter apreendido a verdade de sua existência. Posto que não somos médicos neurologistas, Diana não nos interessa enquanto alguém que sofre de uma doença degenerativa, mas, sim, como quem sofre por acreditar, de forma não questionada, que "tá difícil".
Sem parâmetros, mas com princípios
Não é mágica, essa mudança, é psicanálise.
(FORBES, 2004, p. 81)
No âmbito do trabalho que serve de pano de fundo para esta reflexão, apostamos que é possível levar quem vive como Diana a adotar a posição de quem vive como Nilson. Para tanto, é necessário oferecer-lhes um tipo de tratamento cujo principal efeito é a máxima separação possível entre o sujeito vivo e a sua doença. Se podemos fazer pouco com relação à doença em si, podemos fazer com que o vivente altere sua relação com a doença, incidindo sobre a sua expressão e sobre seu prognóstico.
Como estamos obtendo esta separação? Por meio de uma clínica psicanalítica orientada pela leitura que Jorge Forbes vem fazendo da segunda clínica de Jacques Lacan. Como seu cerne é a singularidade, consideramos se tratar da abordagem mais propícia para acolher casos cuja principal característica é o fato de o sujeito portar traços que o convocam a sustentar um tipo de vida que excede ao padrão social.
Nesta direção, é importante nos aproximarmos do documentário Diogo e Fátima: desautorizando o sofrimento (da Audiovisual Quark), feito para mostrar o modo pouco corriqueiro com que uma mulher chamada Fátima e seu filho Diogo inventam o seu cotidiano em face à diferença genética do rapaz, portador de uma miopatia geneticamente mediada do tipo Duchenne. Realizado entre os anos de 2006 e 2008, nas cidades de São Paulo e de Natal, essa produção, cuja duração é de vinte minutos, foi dirigida por Sérgio Zeigler e teve como assistente de direção Mariana Amaral. O roteiro é de Jorge Forbes, e a trilha sonora de Arvo Pärt e de Cliff Martinez.
Quando nos aproximamos do caso de Fátima, por meio de seu estabelecimento no documentário, não resta muita dúvida de que encontramos uma mulher que está à altura dos desafios impostos pela vida dos tempos em que ela vive. O filme deixa claro que, se Diogo consegue criar um modo de viver que não se restringe ao sofrimento padronizado, isso se deve, em grande medida, à interpretação que Fátima deu às particularidades de seu filho. Por não se assustar com a excentricidade de seu desejo frente à moral social, ela se responsabiliza por seu gozo, sustentando a singularidade de suas decisões e assumindo o risco de suas ações.
Em trabalho anterior (ROCHA et alii, 2009), no qual estudamos a posição que Fátima ocupa na relação com seu filho, mostramos que esta relação permitiu que Diogo pudesse estabelecer um estatuto ético ao corpo como resultado de um modo singular de interpretar as contingências da vida. Para homenagear aquela mulher tão digna de nota, nomeamos este estabelecimento de Efeito Fátima, efeito este que, em última instância, é o que queremos obter no tratamento psicanalítico dos portadores de doenças degenerativas.
Como Fátima gerou uma configuração familiar na qual seu filho encontrou lugar para levar uma vida produtiva, não se limitando às formas de sofrer prêt-à-porter? Estando à altura da lógica de seu tempo, no qual a ordem é horizontal e as identidades perderam seus pontos de referência, como se vê a seguir:
Nosso mundo organizava-se por um eixo vertical das identificações - um homem queria ser igual ao seu pai, ou ao seu superior no trabalho, por exemplo. Padrões ideais orientavam as formas de satisfação, de amor, de trabalho, de aproximação e de separação, de ter e educar filhos, de fazer política. Havia uma predeterminação de modelos no mundo vertical. A globalização, porém, conduziu essas formas ao excesso, à multiplicidade de modelos sem hierarquia predeterminada. Hoje as relações sofrem influências globais. As referências se contrapõem, são múltiplas, invalidam-se. (FORBES, 2005, p. 5)
Por estar à altura de seu tempo, Fátima não se sente mal por ter um filho cujo corpo não corresponde ao modelo de homem esperado por muitos. Ela toma a exceção como regra, não como anomalia a ser combatida. Destaca-se o seguinte fragmento de sua fala: "Compreendo que existem jeitos diferentes de ser, de estar, de conviver, de fazer. Não necessariamente todos do mesmo jeito, tudo igualzinho. Nem que a gente queira, nem para os ditos normais".
A história de Fátima ilustra uma solução espontânea para um problema grave, visto que ela encaminhou a relação com seu filho de modo muito satisfatório sem se beneficiar de uma psicanálise. Como levamos as pessoas que não tiveram a mesma oportunidade a deixar de sofrer de modo padronizado? Praticando uma psicanálise não mais exclusivamente referenciada ao Complexo de Édipo como o único ordenador possível. Trabalhamos com a interpretação na vertente do equívoco, do humor, do ressoar; buscamos o surgimento de "significantes novos", da consequência, da responsabilidade e do intratável do sintoma. Não se trata mais de interpretar um significante qualquer, remetendo-o ao passado do sujeito, mas especificamente ao cenário edípico, mas sim, de enfraquecê-lo, tirar sua consistência.
Como, desde 1964, aprendemos com Lacan que grande parte do padecimento do sujeito se deve à sua alienação a um significante que o fixa no campo do Outro, buscamos sistematicamente explodir o sentido atribuído ao significante no qual ele se aliena para liberá-lo da carga de sofrimento que é conseqüência desta submissão. É tão grande a perplexidade do paciente que recebe uma resposta insólita frente à banalidade do modo como ele encara parte da própria vida que, neste momento, convoca-se a singularidade (LACAN, 1964/1985).
Um exemplo: Tereza, 63 anos, julgava ter perdido os motivos para continuar viva. Portadora de ataxia espinocerebelar, trazia consigo uma longa história de sucessos para contar, mas, aos prantos, em sua primeira entrevista com o psicanalista preferia lembrar-se dos fracassos. "Eu fico chorando o leite derramado", descreveu sua situação. Evidentemente, o analista conhecia o sentido desta expressão idiomática, mas, se tivesse aderido a ela, perguntando, por exemplo, do que ela se arrependia, teria legitimado o sofrimento de Tereza. Por este motivo, ao invés de inteirar-se das desgraças da sua paciente, perguntou se ela não tinha um gato para evitar que o leite coalhasse. O efeito foi imediato. Tereza parou de chorar, abriu um sorriso e passou a narrar, com grande vivacidade e beleza, como tinha se passado seu encontro com a poesia, quando ela tinha seis anos e morava no interior da Bahia.
Posto isso, uma primeira amarração é possível, pois já podemos fazer uma analogia entre a função paralisante de um sintagma nas vidas de Diana e de Tereza. Em certo sentido, "ficar chorando o leite derramado" é sinônimo de "tá difícil". Evidentemente, não nos referimos ao sentido destas expressões no vernáculo, mas sim, à função que exercem junto a quem sofre. Tanto uma quanto outra forma de dizer, nomeando um estado permanente da paciente, sustentavam a sua petrificação. Dando sentido a certa modalidade de gozo, o sintagma o mantinha, certeiro, na vida das duas mulheres.
Para nós, portanto, mudar suas vidas passa por esvaziar o sentido destas expressões, de modo a abrir espaço para a surpresa, não deixar que o paciente tente encobri-la com respostas tão cômodas quanto nefastas. Assim, nesta psicanálise que praticamos, trata-se, acima de tudo, de construir outra ética, mais especificamente, aquela que Hans Jonas (1979/2006) nomeou Princípio Responsabilidade.
Pautar sua ética pelo princípio responsabilidade
Digamos que o que posso solicitar como resposta é da ordem de um apelo ao real não como ligado ao corpo, mas como diferente. Longe do corpo, existe a possibilidade do que chamei, da última vez, de ressonância ou consonância. É no nível do real que esta consonância pode ser achada. Em relação a esses pólos que o corpo e a linguagem constituem, o real é o que faz acordo.
(LACAN, 1975-1976/2007, p. 40)
Aos cinquenta e oito anos, Carlos esbanjava simpatia e loquacidade. Corretor de imóveis por necessidade e vocação, ele parecia ser daquele tipo de homem que, de tão convincente, poderia vender qualquer coisa para qualquer um. Ao longo da vida, tinha vivido um grande amor e cultivado muitos amigos.
Sua existência feliz só tinha lhe reservado uma pequena surpresa: descobrir que a mulher que ele tinha escolhido para dividir uma vida tinha ataxia espinocerebelar. Esforçando-se para criar a filha em um ambiente normal, tinha primeiro testemunhado todos os percalços da doença da esposa, e, depois, da filha, que muito cedo apresentou os sintomas. Esforçava-se para tratar das duas do melhor modo possível.
Ao enviuvar, tinha passado a cuidar exclusivamente de sua filha, já confinada à cadeira de rodas. Foi ela quem primeiro procurou uma análise e, por este motivo, seu pai vinha semanalmente trazê-la à Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano. Enquanto a moça era atendida, ele a aguardava na sala de espera. Foi assim que começaram os problemas.
É habitual que os pacientes compartilhem suas experiências na sala de espera, em especial quando se encontram semanalmente. O mais corriqueiro é que relacionem sua doença aos desígnios de Deus, como se vê, por exemplo, nesta fala do dentista Mendel, de 40 anos: "De repente, notei que a dor acontece de propósito, para ficar mais perto de Deus. Isso vira um carma, uma missão que a pessoa tem que cumprir". Trata-se de pessoas que, na leitura de Jorge Forbes, são regidas pelo princípio divino, aquele segundo o qual não cabe nem compreender nem questionar os desígnios de Deus.
Não era o caso de Carlos. Ele pensava que os portadores de doenças degenerativas e seus familiares deviam se preparar estudando o prognóstico da doença de modo a antecipar racionalmente o advento dos sintomas. Por este motivo, fazia o que julgava ser um serviço de utilidade pública: estudava todas as doenças na internet e informava a todos os pacientes do Centro do Genoma Humano com quem fazia amizade o que lhe ocorreria em breve. Não demorou para que alguns pacientes viessem pedir para incluir o Sr. Carlos no projeto Desautorizar o sofrimento socialmente padronizado.
Combatendo as visões religiosas, Carlos tentava implantar a sua ética junto aos pacientes do Genoma. Ele pensava que, para ser responsável, era necessário aprender a fazer o que racionalmente era certo, a se pautar por critérios lógicos e passíveis de serem explicados e compartilhados com nossos pares. Pautava-se pelo princípio racional.
As consequências disso para a sua vida e para a da filha eram funestas. Quando sua análise iniciou, mesmo sem ser portador de uma ataxia, mal tinha acabado de se recuperar em uma longa estada na cadeira de rodas. Segundo ele, estava com a cabeça no ar, e, assim, sem motivo algum; quando foi visitar o túmulo da esposa tropeçou em uma raiz e quebrou o quadril. Assim, ele e a filha tinham permanecido, durante as últimas semanas, isolados em casa, cada qual em sua cadeira de rodas. Segundo Carlos, ele tinha finalmente podido compreender melhor como as mulheres de sua vida se sentiam.
A primeira entrevista de Carlos foi fundamental para superar este quadro. Didática e pacientemente, o analista mostrou-lhe que sua queda imotivada se relacionava com sua falsa crença segundo a qual só se responsabiliza por algo que se conhece bem. Não foi numa árvore que o senhor tropeçou, foi na sua emoção, disse-lhe. Explicou-lhe, ainda, que se ele não compreendesse que as pessoas costumam se identificar aos fatos ruins para se defender da surpresa, iria continuar a reproduzir em si os sintomas de sua filha.
Ao fazê-lo, o analista estava manejando o tratamento para levar Carlos a se pautar por uma nova ética. Sem forçá-lo a retroceder para o princípio divino, que ele combatia, levou-o a compreender que era necessário inventar um novo modo de viver para superar os efeitos que o fato de pautar-se pelo princípio racional estavam gerando em sua vida: um modo de viver regido pelo princípio da responsabilidade, formulado, em 1979, pelo filósofo Hans Jonas (JONAS, 1979/2006).
Ao compreender que o homem atual foi afetado pela tecnologia de maneira inédita, o filósofo organiza sua reflexão a partir da sua crença de que houve uma profunda alteração da relação do homem com a natureza. Em sua avaliação, não é mais possível se acomodar à ideia de que, não importando o que façamos, a terra vai, novamente e sempre, se regenerar. Graças às vertiginosas inovações tecnológicas, hoje é possível fazer com que a terra não se renove mais, o que obriga a humanidade a fazer um contrato não-recíproco com o homem que ainda vai nascer.
Acreditando que o homem só age a favor de um objeto qualquer quando tem esperança da possibilidade de garantir a continuidade de sua existência, Jonas define responsabilidade como sendo o cuidado reconhecido como obrigação em relação a outro ser, que se torna "preocupação" quando há uma ameaça à sua vulnerabilidade (p.352). Assim, em certo sentido, poder-se-ia dizer que Carlos adotava uma posição responsável com relação aos portadores de doenças degenerativas, posto que visivelmente se preocupava com sua existência.
Entretanto, também se poderia afirmar que, antes de se submeter a uma psicanálise, ele pautava sua ação pelo princípio responsabilidade? Não parece ser o caso. Por medo do desconhecido, ele julgava dever conhecer o futuro para se responsabilizar por ele. Estava o tempo todo se certificando de que dominava todas as informações a respeito da doença da filha para guiar a sua ação do melhor modo possível. A cada passo, tinha medo de errar. O filósofo Hans Jonas, ao contrário, não crê que o medo seja o princípio mais adequado para levar as pessoas a lutar a favor da conservação de algo. Ao medo, ele opõe o princípio responsabilidade, como se vê a seguir:
Os homens experientes sabem que um dia podem desejar não ter agido desta ou daquela forma. O medo de que falo não se refere a esse tipo de incerteza, ou ele pode estar presente apenas como efeito secundário. Com efeito, é uma das condições para a ação responsável não se deixar deter por esse tipo de incerteza, assumindo-se, ao contrário, a responsabilidade pelo desconhecido, dado o caráter incerto da esperança; isso é o que chamamos de "coragem para assumir a responsabilidade" (JONAS, 1979/2006, p. 351).
Aproximando a citação de Jonas para o contexto dos portadores de doenças degenerativas e seus familiares, podemos perceber, portanto, que, quando a análise progride, o sujeito substitui a certeza da morte pelo desconhecimento da vida. Abre-se para o encontro com o que, nas palavras de Agamben (2007, p. 5), é o monograma que sanciona sua libertação com relação à linguagem. É fora dela que encontra o seu gozo, não capturado pelas palavras, pelo qual ele que passa a se responsabilizar. Assim, podemos já adiantar que, nesses casos, deixar de sofrer se relaciona com a possibilidade de entabular outra relação com o corpo próprio, dispensar-lhe outro tipo de cuidados além dos meramente biológicos.
Compreender que uma pessoa tem um corpo
É que somos zomens.
(LACAN, 1976/2006, p. 560)
Só faltava a foice para que José evocasse a figura utilizada para representar a morte nos desenhos animados quando chegou à Clínica de Psicanálise do Genoma Humano. Magro, mal vestido, barba emaranhada, tão logo reiterou sua condição de deprimido e portador de distrofia miotônica de Steinert, foi logo anunciando: "Desde a morte de minha mãe eu fico no seu túmulo o dia todo".
Não era uma metáfora. Na impossibilidade de fazer um luto por esta perda, quase como se não compreendesse a função simbólica que a sepultura tem para a espécie humana, ele permanecia o dia todo no cemitério. José parecia não saber que específico do homem é durar sob a forma de significantes, não de moléculas. Não parecia poder experimentar o significante como a presença de uma ausência e, por este motivo, precisava estar fisicamente presente sobre o túmulo da mãe para pensar nela. Era como se, para ele, um homem se resumisse à materialidade de seu corpo.
Não fosse o analista apostar na possibilidade de romper a identificação de José com o seu organismo doente, a primeira entrevista teria fracassado no mais sombrio silêncio. Como José nunca leu o Seminário XX de Lacan, ele desconsiderava que existe uma diferença entre o corpo do animal e o corpo do ser falante, do qual ele goza. Sem além nem aquém, atinha-se ao regime da sobrevivência.
Nos últimos meses, sua vida tinha se resumido a se fazer de lápide, então, ao ser convidado a falar de si, José não tinha o que dizer. Não se interessava por nada e não fazia coisa alguma. Como conversar com uma pessoa assim? Ora, sendo psicanalista, ou, em outras palavras, mantendo o desejo de descobrir como cada ser humano constrói sua resposta específica frente ao real.
Curiosíssimo, o analista fez a conversa render, se informando de todos os pequenos detalhes: E você leva comida? Onde a esquenta? O que faz para passar o tempo? Não se deu por satisfeito com as respostas lacônicas. Agendou uma nova entrevista e solicitou que José trouxesse, por escrito, um diário onde narrasse como passou a semana.
Vejamos como ele descreveu cinco dias de sua vida:
Segunda-feira: Após ter saído do Genoma, fui para casa e fiz almoço. À tarde, tomei café. Por volta das 23h00, fui dormir. Custei a pegar no sono, mesmo tomando medicamentos. OBS: Neste dia, não tomei um segundo banho, só de manhã.
Terça-feira: Levantei-me às 12h00 e só tomei café. Não liguei o computador e nem TV pela manhã, como de costume. À tarde, saí e comprei frios e quatro pães. Comi. À noite, liguei a TV e assisti o jornal. Ao término, tomei Rivotril para dormir e, mesmo assim, demorei. Sem banho.
Quarta-feira: Neste dia, só consegui acordar às 16h30min, com muita tremedeira nas pernas. Após comer bolachas, fui tomar banho e voltei a me deitar. Passei a noite em claro, pensando na morte de minha mãe; e, com muita dor no coração, e muita falta dela, fui ao cemitério.
Quinta-feira: Após ter passado a noite em claro, decidi dar uma volta tomar um sol. Acabei indo cortar o cabelo e a barba. Voltei para casa e fui para casa da minha namorada. Tomei banho.
Sexta-feira: Por estar na casa de minha namorada, fiz todas as refeições no horário certo e tomei todos os medicamentos corretamente. Tomei banho.
Lendo o diário de José, percebe-se que, em sua opinião, o interesse que ele poderia ter para o interlocutor se resumia ao relato de como ele cuidava de suas necessidades orgânicas: comer, dormir, beber, tomar remédios. Identificado ao corpo, não podia viver a dimensão da subjetividade humana propriamente dita. Para ele, o famoso desejo inconsciente estava fora.
O analista não compartilhava de sua posição. Em seu trabalho, levava em conta que:
O sujeito, a partir do momento em que é sujeito do significante, não pode identificar-se com seu corpo, e é precisamente de lá que procede sua afeição pela imagem do seu corpo. O enorme inchaço narcísico, que é característica da espécie, procede desta falta de identificação subjetiva com o corpo (MILLER, 2004, p. 14).
Por este motivo, foi claro. De modo delicado, porém firme, informou a José que, para fazer uma análise, era necessário ter vontade de viver de modo muito diferente do que fazem os animais. Mostrou-lhe, em seguida, o quanto ele havia privilegiado a dimensão de seu organismo em seu relato. Então, perguntou-lhe se este o tipo de vida que vinha levando, na qual não se entrevia qualquer tipo de excesso, lhe convinha. Só então lhe foi oferecida uma psicanálise.
A grande passagem que o caso de José ilustra, portanto, é a possibilidade de deixar de se confundir com um corpo próprio que, no caso, está doente, e, após ter construído outra posição, incluir a possibilidade de gozar (da vida) por meio do uso de seu corpo. De uma vida mortificada, passamos para outra na qual a dimensão do sexual pode estar incluída.
Reintegrar a dimensão do sexual no dia a dia do paciente
[...] desde que o ideal possua uma verdade, esta considerará todas as situações, salvo ela própria, como indignas dele, e não é bom ingressar na moderação imposta com ódio contra aquilo com o que devemos viver; com o desprezo por aquilo que se trata de aperfeiçoar na medida do possível, com a descrença no valor daquilo que, apesar de tudo, a condição humana o permite, dentro de seus limites (JONAS, 1979/2006, p. 309).
Nem o inconsciente nem as doenças degenerativas têm cura. A experiência de mais de três anos de pesquisa na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano mostrou ser relativamente comum a ocorrência de omissão da sua condição de portador de uma doença ou, mesmo, da adoção de versões para lá de inverídicas para explicar suas limitações físicas.
Macário, 45 anos, portador de uma distrofia muscular do tipo fácio-escápulo-umeral não fugiu a essa tendência. Por longo tempo, tinha atribuído suas dificuldades motoras a um tombo de skate, ocorrido na década de 90, durante o tempo em que, em sua avaliação, ele curtia a juventude como qualquer outro jovem normal.
Era um homem vaidoso. Camisa de mangas compridas, calça social, cinto discreto, sapato fechado, um par de meias sem-graça, tudo combinando. O cabelo cortado curto, sem estilo definido. A julgar pela barba bem-feita, devia cheirar à loção de barba.
Ao relatar as consequências de seu acidente, deu menos ênfase à dor do que ao desconforto causado pela aparência pouco típica de suas omoplatas. Frisou o grande alívio que sentiu ao corrigir este problema por meio de várias cirurgias: "Para mim, foi gigante corrigir a parte estética do corpo", ele disse. "Eu fiquei tão preocupado com minha aparência, que perdi o problema em si", completou. Era verdade: o nome de sua doença lhe tinha sido dito em 1991, por ocasião da primeira cirurgia, mas Macário não atinou o real significado. Só compreendeu que era portador de uma doença degenerativa dez anos mais tarde, já no Centro do Genoma Humano - USP.
Quando procurou ajuda da psicanálise, dizia-se deprimido, ansioso e culpado, pois permanecia preso a um pacto de silêncio com seu filho caçula, também portador da doença. Incapaz de contar de sua condição para ninguém, afirmava não ter tido um pingo de felicidade nos últimos seis anos.
As duas entrevistas iniciais deste tratamento foram fundamentais para a alteração deste quadro. Longe de buscar se inteirar a respeito dos motivos que o levaram a optar pelo silêncio, o analista retirou-o da trincheira de segredo 'onde havia se metido', marcando uma segunda entrevista para que Macário pudesse vir lhe contar o que havia se passado após a conversa com a esposa.
Posteriormente, orientou esta analista que assumiu o caso para considerar a necessidade de levar Macário a alterar sua posição: ao encarar 'a bela tragédia', ele havia esquecido de que era o seu personagem principal. Após as quinze semanas de tratamento psicanalítico que lhe foi oferecido, ele esclareceu toda a família com relação à sua condição física e alterou drasticamente o padrão de relação com seus colegas de trabalho: começou a tornar públicas as suas opiniões e passou a se responsabilizar pelo que ele acreditava ser a sua parte.
Em nossa avaliação, entretanto, o resultado de sua análise que mais agradou a este sujeito, se podemos assim nos expressar, foi a possibilidade de reinserção do sexual em sua vida. Lembrando que o sexual só pode ser gozado, não capturado pelas palavras, fica mais claro que não se trata aqui do que o paciente disse ao longo de seu tratamento, mas do que ele fez após quinze semanas de análise. Referimo-nos, especificamente, a um feriado prolongado durante o qual, portando apenas a roupa do corpo, ele e um parente muito próximo resolveram, sem planejamento prévio e sem aviso, evadirem para o litoral, onde tiveram momentos de grande prazer e felicidade. Referindo-se a este passeio como o ponto alto das conquistas que pôde obter por meio de sua análise, Macário descreveu do seguinte modo uma das mudanças que pôde constatar:
Ir à praia mudou muito. Eu achava que gostava de caminhar, mas não de entrar na água. O problema era que, antes, eu não tinha coragem de tirar a camiseta, o que me atrapalhava. Eu não gostava que olhassem para os meus braços de Popeye e para a minha caixa do peito, que não é legal. Hoje, que consigo tirar a camisa, percebi o quanto me dá prazer entrar na água. É disso o que eu gosto mais.
Teríamos conseguido este efeito de satisfação em um tempo tão curto se, ao invés de nos inscrever na segunda clínica, tivéssemos trabalhado sob uma psicanálise de orientação edípica? Acreditamos que não, pois, em especial, mas não exclusivamente, na presença de um traço qualquer que afaste o corpo do sujeito dos padrões considerados ideais, não nos parece um bom negócio referi-los justamente aos ideais sociais. Ao contrário, trata-se aqui de esvaziá-los, encorajando o sujeito a se responsabilizar pela própria singularidade.
Compreendendo, com Lacan, que o inconsciente é o discurso do Outro, e que esse outro é o Outro invocado até mesmo por minha mentira como aval da verdade em que ela subsiste (LACAN, 1957, p. 529), trata-se, portanto, de levar o sujeito a esgotar as esperanças de se garantir no Outro. Sem garantias, ele pode se reinventar.
Considerações finais
A linguagem engole, come o real.
(LACAN, 1975-76/2007. p. 31.)
Por meio da exemplificação com sete pequenos fragmentos clínicos, ao longo do trabalho, procuramos mostrar quais efeitos são obtidos quando o psicanalista é bem sucedido na operação de separar o sujeito do significante ao qual ele estava alienado. Foi possível concluir que os principais efeitos obtidos foram os que se seguem: 1) A alteração da interpretação que o paciente dá para sua doença; 2) a convocação da singularidade de quem recebe uma resposta insólita frente à banalidade do modo como ele encara a própria vida; 3) a construção de uma ética pautada pelo princípio responsabilidade; 4) o estabelecimento de um estatuto ético ao corpo como resultado de um modo singular de interpretar as contingências da vida; e 5) a reinserção da dimensão do sexual, sem padrão, no dia a dia do paciente.
De maneira geral, portanto, podemos afirmar que o tratamento tornou todos os pacientes mais permeáveis aos encontros com as contingências da vida, ou, dizendo de outro modo, possibilitou-lhes passar a viver uma experiência psíquica na qual o real não mais estava tão encoberto com as ficções construídas pela linguagem. Se pudermos sintetizar os resultados obtidos de modo um pouco mais metafórico, diremos que conseguimos que todos se tornassem menos Diana e mais Nilson. Lembremos que, para este último, pouco importava o nome de sua doença, mas, sim, preparar-se para enfrentar seus aspectos concretos. Se, ao menos na esfera dos fenômenos passíveis de comprovação empírica, uma psicanálise não incide sobre a matéria orgânica, é digno de nota que portadores de doenças para as quais não há remédio estejam, mesmo assim, declarando se sentir mais felizes após um curto período de psicanálise.
Para concluir, gostaríamos, ainda, de ressaltar que os resultados obtidos só foram possíveis a partir de um modo do analista trabalhar que se pauta mais na comoção do que na compreensão intelectual. Privilegiando a tentativa de captura de um ponto de gozo, a psicanálise que praticamos se dirige à dimensão ética, fundada numa transcendência que só se constrói por quem não se confunde com o corpo próprio, esteja ele doente ou não. Não podemos deixar de encorajar, entretanto, novas pesquisas que visem a estudar as correlações entre corpo e linguagem.
Referências
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Recebido em 15 de Maio de 2010
Aceito em 01 de Agosto de 2010
Revisado em 22 de Novembro de 2010
1 Uma versão resumida deste artigo foi, originariamente, apresentada com o título Doença sem destino em uma das mesas-redondas do V Congresso Interamericano de Psicologia da Saúde, realizado de 22 e 23 de maio de 2009 no Centro de Estudos em Psicologia da Saúde (CEPSIC) - HC/FMUSP, onde, além da autora, Jorge Forbes e Mayana Zatz apresentaram seus trabalhos.