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Revista Mal Estar e Subjetividade
Print version ISSN 1518-6148
Rev.Mal-Estar Subj vol.13 no.3-4 Fortaleza Dec. 2013
ARTIGOS
A invenção da mulher frente às invenções da tecnociência
The invention of women facing the inventions of techno-science
La invención de la mujer ante los inventos de la tecno-ciencia
L'invention de la femme face aux inventions de la techno-science
Isabela Fonseca CardozaI; Heloisa Fernandes Caldas RibeiroII
IMestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise - PPGPSA/UERJ. E-mail: isacardoza@yahoo.com.br
IIPsicanalista. Professora adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise - EBP e da Associação Mundial de Psicanálise - AMP. E-mail: helocaldas@terra.com.br
RESUMO
Este trabalho pretende refletir sobre os imperativos de gozo contemporâneos, provocados pelo que Lacan chamou de "discurso do capitalista", no que se refere aos semblantes do feminino. Se, por um lado, as atuais conquistas das mulheres referentes à tão sonhada "liberdade" se fazem evidentes, por outro, constata-se que delas decorrem um contraponto não tão promissor. Ocupar lugares de poder fálico faz das mulheres sujeitos, mas será que as aproxima do feminino? Essa é a questão que pretendemos levantar. Apoiadas na demonstração da lógica lacaniana, segundo a qual não se pode universalizar "A mulher", questionamos: as tecnociências visariam fazer da mulher contemporânea A mulher sem falhas?
Palavras-chave: discurso do capitalista; feminino; tecnociências; contemporaneidade
ABSTRACT
This paper intends to discuss the imperatives of contemporary jouissance caused by what Lacan called "the capitalist discourse", in relation to semblance of the feminine. On one side, the current women achievements of a dreamed "freedom" stand out; on the other side, they clearly bring a counter point not so promising. To hold places of phallic power make women subject, but does that approach them to womanliness? That is the question we want to raise. Supported by Lacanian logic demonstration that we cannot universalize "Women," we question the techno-science that aim to make out of the contemporary woman A woman without failure?
Keywords: discourse of the capitalist; womanliness; techno-sciences; contemporaneity.
RESUMEN
Este trabajo se propone discutir los imperativos de goce contemporáneos causados por lo que Lacan llamo "discurso de lo capitalista", en relación a los semblantes del femenino. Por un lado, los logros de las mujeres actuales de un sueño de "libertad" se destacan, por el otro lado, es evidente que traer un punto en contra no tan prometedor. ¿Para mantener lugares de poder fálicos hace de las mujeres sujetos, además las pone más cerca de lo femenino? Esa es la pregunta que deseamos plantear. Con el apoyo de la demostración de la lógica lacaniana que no podemos universalizar "Mujeres", ponemos en duda la tecno-ciencia: ¿tienen como objetivo hacer de la mujer contemporánea Una mujer sin agujeros?
Palabras-clave: discurso del capitalista; femenino; tecno-ciencias; contemporaneidad.
RÉSUMÉ
Cet article se propose de discuter sur les impératifs de jouissance contemporains suscités par ce que Lacan a nommé " le discours capitaliste", en ce qui concerne les sembalnt du féminin. D'une part, les réalisations actuelles des femmes par rapport à la "liberté" dont elles ont tant rêvée sont évidentes ; d'autre part, il est clair qu'elles en apportent un contrepoint pas si prometteur. Occuper des lieux de pouvoir phallique fait des femmes des sujets, mais est-ce que cela les approche du féminin? C'est la question que nous voulons soulever. Appuyées sur la démonstration de la logique lacanienne, selon laquelle nous ne pouvons pas universaliser "LA Femme", nous interrogeons : les techno-scie nces visent-elles à faire de la femme contemporaine, LA femme sans failles?
Mots-clés: le discours capitaliste; féminin; de la techno-science; contemporanéité.
Introdução
Freud não cessou de registrar em sua obra a importância da inscrição do sujeito no laço social, o que nos leva a pensar que a própria psicanálise já nasceria como uma indagação à cultura, pois, desde seu nascimento subversivo, alicerçada sobre uma razão cuja temporalidade é a do inconsciente, a lógica inédita de seu saber ainda nos surpreende. Em especial, porque se trata de um saber que não recusa seus limites. Se o poeta português Pessoa (2003) nos aponta que navegar é preciso, Freud nos anuncia que navegar é impreciso. E dentre as imprecisões pelas quais a psicanálise navega, destaca-se o enigma do feminino.
Este trabalho tem como objetivo abordar a questão do que é uma mulher, além e aquém da anatomia, do gênero e de outras tentativas de um saber universal sobre ela. Imprecisa e indefinida, para a psicanálise, ela só pode ser "uma invenção de mulher", que se vislumbra e se perde, continente negro, nas palavras de Freud (1925/1996a); que não faz conjunto, segundo Lacan (1999b), portanto, só encontrada uma a uma, a cada vez.
Com seus muitos nomes, as mulheres têm habitado a cultura: deusa, feiticeira, santa, maligna, messalina, esposa, mãe, filha. Focamos nossa questão na invenção da mulher no laço social da cena contemporânea, atadas ou não aos ideais da atualidade. Que nomes a contemporaneidade tem apresentado para dar lugar às mulheres? Quais os imperativos que sustentam os semblantes do feminino?
Partimos do axioma lacaniano, demonstrado a partir da lógica matemática, de que "A mulher não existe", ou seja, não encontramos a existência de um significante que a represente para extrair o fato de que tampouco ela faz conjunto, pois não se tem a unidade em torno de um referente que o permita. Diante da impossibilidade de fazer o conjunto "mulher", Lacan (2009, p. 69-70) a situa na dimensão do sonho quando diz que "a existência dela é um sonho de mulher [...]. Se houvesse um homem para quem A mulher existisse, seria uma maravilha, teríamos a certeza de seu desejo". Nessa mesma direção, Miller (1988) nos lança: "A mulher não existe" não significa que o lugar da mulher não exista, mas que ele permanece essencialmente vazio. E o fato de ficar vazio não antepara que algo possa ser localizado ali. E o autor vai além quando propõe: o que encontramos está no terreno dos semblantes.
Uma vez circunscrita a questão sobre a mulher, abordamos o discurso hegemônico de nossa época, a saber, o "discurso do capitalista", apontado por Lacan (1972), para discutir pontuações que destacam o empuxo a um gozo incessante promovido por tal discurso. Gozo nas adições que ignoram a dimensão do humano constituído pela separação com o objeto. Adições que dizem respeito aos objetos de consumo, de um gozo cuja demanda, quase ininterrupta, é sustentada pela lógica do mercado e do capital. Que influência essa modalidade de gozo pode ter nas invenções e semblantes da mulher na atualidade? Em especial, quando pensamos, com Lacan (1999b), que a modalidade de gozo feminino se caracteriza pela falta de limites que empurra o gozo ao "mais, ainda".
Uma primeira reflexão aponta ao que parece ser da ordem do substituível e do efêmero. "Ninguém é substituível", adverte Jorge (2005, p. 12) para abrir a leitura de Por causa do Pior, apontando a impossibilidade da rápida substituição de objetos e pessoas na atualidade. Insistir nisso leva a um "silenciamento do sujeito", que "não mais conta em sua particularidade." Da mesma forma, Zalcberg (Ab'Sáber, 2011, p. 2) também nos chama atenção aos efeitos do consumo capitalista:
A legitimação do gozo sexual e da busca desenfreada por objetos de gozo que prevalece em nossos tempos afeta tanto as mulheres quanto os homens, mas são as mulheres que mais se ressentem do curto-circuito que afeta o laço social com o Outro. Em nossos tempos, tempo de festa permanente, se trata de que nunca chegue o momento de the party is over, porque o sujeito, entregue à festa perpétua, procura obturar todo vazio, toda falta.
Na mesma linha, Caldas (2012, p. 271) comenta a ascensão do gozo ao nos apontar: "a nova ordem simbólica não favorece mais o recalque e a cessão de gozo, ao contrario, resta apenas a vergonha de não se gozar mais e mais". Vivemos, então, em um mundo supostamente aberto às diferenças, mas como sustentá-las? Detectamos um incremento da presença de uma máquina de gozo, empuxo ao supereu, cujo comando empurra a uma liberdade total.
A Invenção da Mulher que não Cessa de Insistir
Historicamente, a religião, a ciência e as artes construíram os alicerces que regeram, e ainda regem, em muitos campos, as condições de representação do humano. Padrões e normas são divulgados pelo coletivo para dar contorno ao que chamamos de "homem" e "mulher". Segundo Poli (2007), Freud partiu do campo de saber médico de sua época e fez um giro, produzindo um furo nesse saber e nas pretensões taxonômicas vigentes na cultura, introduzindo uma questão pontual e inédita: o saber do inconsciente não conhece a diferença entre masculino e feminino. Só há, para a sexualidade, uma única marca, o falo, que produz a oposição entre fálico e não fálico. O falo é, assim, a única chave para o sexo, a baliza utilizada tanto pelo sujeito macho como fêmea para estar na linguagem. Freud começa a usar esse argumento observando os efeitos da imagem do corpo na problemática sexual desde a infância. Em seus termos, isso significa dizer que a ausência do pênis é lida como valor a menos, definindo o sexo feminino. Essa definição não pareceu suficiente nem mesmo ao próprio Freud. Não é por nada que ele, em A Feminilidade - Conferência 33, conclui:
Ainda que, salvo em casos muito raros, apenas um tipo de produto sexual - óvulos ou sêmen - esteja presente em cada pessoa, ficamos intrigados quanto à significação decisiva desses elementos e concluímos que aquilo que define masculinidade ou feminilidade é, afinal, uma característica desconhecida que a anatomia não é capaz de identificar. (Freud, 1933/2012, p. 17)
Brousse (em entrevista a Passelande, 2012, p. 2) pontua: "ele descobre que no inconsciente, o sexo feminino só pode ser concebido enquanto ausência, enquanto corte em relação ao sexo masculino. Embora afirme, até o final de seu ensino, a primazia do falo, a questão da feminilidade permanece em aberto". Para Freud (1926/1996b), o saber sobre as mulheres apresentava uma dimensão inconsistente e inconclusa. Hesitante diante do tema, ele chamou o feminino de "continente negro", situando a questão sobre o feminino em um campo que ultrapassa o anatômico, deixando-a abissal, inacabada, enigmática. Dessa forma, ele orienta: "se desejarem saber mais sobre a feminilidade, consultem suas próprias experiências de vida, dirijam-se aos poetas, ou esperem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e mais coerentes" (Freud, 1933/2012, p. 39).
Se Freud rompe o vínculo com o organicismo e a teoria dos gêneros, Lacan (1999b) nos lança na radicalidade do discurso em sua articulação ao campo do gozo. Com as fórmulas quânticas da sexuação, avança nas formulações sobre o falo simbólico que regula e contorna o impossível de um gozo mítico. Além disso, aponta outra modalidade de gozo, submetida a uma lógica especial, criação dele, a qual chama de não-todo, pelo fato de não existir um significante que permita a universalização. É desse lado que situa a posição feminina.
É preciso fazer a ressalva, então, de que o feminino, para Freud e Lacan, possui distintas significações. Se para Freud significa uma solicitação que a mulher dirige a um homem movida pelo desejo de receber um falo, para Lacan, significa o lugar que pode vir a ser ocupado por qualquer ser humano na partilha dos sexos. Segundo a primeira lógica, temos as questões que remetem a ter ou ser o falo. Se a mulher não possui um significante correspondente, buscará, como todo humano, algo que suture, repare e conceda um suporte para sua falta. Portanto, desejar um filho não indica o feminino, mas um desejo fálico. Para Lacan, a mãe é uma posição masculina.
O feminino lacaniano (Lacan, 1999b) não diz respeito à submissão às leis do significante que valem para "todos", mas a algo que escapa à lei e cai sob essa ordem não-toda. Ultrapassando um lugar discursivo, o não-todo é uma modalidade de gozo. Uma forma muito específica de gozar, êxtima à lógica fálica. Desse lado não-todo, Lacan (1999b) posicionou o feminino no ponto de furo do discurso, quando algo fica de fora, resta, sobra e não entra por completo na linguagem. Situado mais além do recalque, o feminino não diz respeito ao que se escreve na cadeia simbólica, mas àquilo que não cessa de não se escrever - o real impossível.
Elas e os Discursos
Em tempos de preservativo feminino, silicone, inseminação artificial, lipoescultura, operações para mudança de sexo, mais de um século de luta feminista e um mercado de trabalho povoado de mulheres, o que, afinal, poderia a psicanálise dizer de toda essa supermodernização?
Evitando uma visão maniqueísta de que a contemporaneidade pode ser boa ou ruim, caminhar para o bem ou para o mal, desejamos aventar as maneiras como o campo das figuras do feminino são inventadas na atualidade, em especial, diante dessa proliferação constante e crescente de objetos de gozo.
Consideramos que, conforme os escritos de Freud (1930/1996c), somos conduzidos à seguinte prerrogativa: o sujeito está no laço social com tudo o que lhe resta de incivilizável, não tendo como prescindir da cultura de sua época. É pela via dos discursos propostos por Lacan (1999a) que abordaremos a questão do laço social. Lacan propõe que o discurso é o próprio laço social e, portanto, corresponde a um aparelhamento do gozo: "É o que funda e define cada realidade" (Lacan, 1999b, p.45).
Lacan (1999a) propôs quatro discursos: o discurso do mestre, da histérica, do analista e do universitário. Ele inicia sua demonstração com o discurso do mestre, discurso fundador da cultura, que baliza a relação dialética entre o senhor e o escravo - condição apontada por Hegel (1992).
A célebre assertiva do senhor e do escravo, tão difundida no Ocidente, foi concluída por Hegel e utilizada por diversas áreas do pensamento no século XX. Segundo Zizek (1991), Lacan é fundamentalmente hegeliano, mas sem o saber, mais pela via da lógica do que por suas referências explícitas. Lacan faz emergir dos escritos sobre a dialética do senhor e do escravo um Hegel da lógica significante, pois, na Fenomenologia do Espírito, tem-se uma articulação maciça sobre a independência e dependência da consciência de si - dominação e escravidão. No que diz respeito ao escravo, ele é um elo entre o senhor e o objeto do seu desejo, ou seja, é uma coisa, um gozo senhorial. O agir do escravo é desprovido de essência. A consciência sem essência do escravo se afirma como a verdade do seu senhor. Esse texto hegeliano serviu de inspiração a Lacan para uma articulação essencial: a posição do escravo frente ao senhor, fundamento que apresenta um modo de uso da linguagem como logro social, uma vez que o discurso é lançado pela cadeia significante. O poder de comando, que Lacan chamou de discurso do mestre, é dado pelo significante que encadeia (S1), fonte de poder, a (S2), como saber. No discurso do mestre/senhor, (S1) comanda um escravo (S2) para produzir objetos (a) dos quais ele irá gozar. O interesse do discurso do mestre é fazer com que as coisas andem, circulem e funcionem. O laço atado aponta: o que o senhor quer saber é apenas que o outro trabalhe. "Um verdadeiro senhor (...) não deseja saber de absolutamente nada - ele deseja que as coisas andem" (Lacan, 1999a, p. 25).
No discurso da histérica, a dominante é a dúvida que irrompe no laço. A interrogação põe o sujeito em questão, fazendo com que ele seja interrogado e impelido ao questionamento das certezas. Nessa posição de $, surge o analisando. A denominação de discurso da histérica ou do analisando aponta às aparições do inconsciente e à possibilidade do não saber em meio às certezas que são da ordem da pessoa, e não do sujeito, trazendo o enigma implicado na histerização do discurso. No lugar ocupado pelo agente está o sujeito barrado ($).
Esse discurso, portanto, parte do sujeito barrado, da divisão do sujeito como efeito de deslizamento dos significantes. Lacan (1999a, p. 96) afirma a relação importante desse discurso com o saber ao apontar que "ali onde penso não me reconheço, não sou - é o inconsciente. Ali onde sou, é mais do que evidente que me perco". Isso nos lembra que, se há uma verdade sobre a histérica, poderíamos dizer que ela nos diz: a histérica goza de sua própria insatisfação, do vazio, objeto a, causa de desejo (Caldas, 2008).
Assim, podemos dizer também que a inauguração da psicanálise está profundamente enlaçada ao discurso da histérica, e não é por acaso que Lacan nos diz que a partir desse discurso se desenha a escrita do discurso do analista. Freud afastou-se do lugar de mestria e de produção de um saber que pudesse responder à demanda do discurso da histérica - demanda infinita de insatisfação do vazio, destinando a esse gozo um lugar de desejante. "A histérica quer um mestre (...) sobre o qual ela reine e ele não governe" (Lacan, 1999a, p. 63).
No discurso do analista, o objeto a ocupa a posição de agente. Como causa de desejo, o objeto a está em jogo para causar o desejo do Outro e fazer surgir a divisão do sujeito que o marca como desejante. É a produção de significantes atrelados ao desejo que esse discurso visa.
Lacan marca o objeto a como efeito de rechaço: "(...) designa precisamente o que, dos efeitos do discurso, se apresenta como o mais opaco, há muitíssimo tempo desconhecido e, no entanto, essencial. Trata-se do efeito de discurso que é efeito de rechaço" (Lacan, 1999a, p. 40). Completamente avesso ao discurso do mestre, que põe o objeto a como mais de gozar, o discurso do analista nos revela esse objeto como causa de desejo e convoca o sujeito a dizer os significantes de seu desejo. A depuração do significante mestre - o S1 no discurso do analista - é completamente singular, não podendo ser encarnada por ninguém. O analista é um lugar, o qual não se confunde em absoluto com o lugar da mestria.
No discurso do universitário, encontramos também uma forma de dominação: S2 - o saber - está no domínio, propondo-se sem falhas, completo. O saber no discurso do universitário é sem furos, fálico, tentando uma sutura na impossibilidade de tudo saber. Tenta o domínio do mais-de-gozar via "astutato", termo utilizado por Lacan (1999a) para fazer referência à figura do estudante na posição de trabalhador, trabalhador de saber. Produz o silêncio sobre a verdade como enigma, pois a verdade está nos mestres. É a passagem de saber do escravo no discurso do mestre para o saber teórico dos mestres: o conhecimento. Esse discurso dá suporte ao advento das ciências e à ordenação das leis que regem o mundo, como as pesquisas tecnocientíficas. É o próprio imperativo categórico kantiano do tudo saber, conhecer e dominar.
O Discurso do Capitalista
Em 1972, na conferência proferida em Milão, em 12 de maio, Lacan apresenta a formalização de um quinto discurso - o discurso do capitalista. Esse discurso trata a impossibilidade de outra maneira. Em vez de revelar a borda com o real em seu aspecto de impossível, ele visa escamotear o furo e o consequente mal-estar inevitável do humano no laço social. Segundo Fingermann e Dias (2005, p. 78), o discurso do capitalista, de forma muito sagaz, tenta uma "solução do paradoxo" dos outros discursos, na medida em que tenta aniquilar a impossibilidade e a disjunção dos outros quatro.
Para que o discurso do capitalista pudesse advir, foi preciso que certos limites fossem ultrapassados, garante Lacan: "em poucas palavras, isso acontece àquilo cuja mutação tentei apontar-lhes. Espero que se recordem disso, e se não recordam - é bem possível -, vou lembrar-lhes já-já. Falo dessa mutação capital, também ela, que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista" (Lacan, 1999a, p. 159-160).
A mutação ocorrida no discurso do mestre foi prestada a partir da inversão entre os lugares de $ e S1. No lugar de agente, temos um sujeito ($) que nada tem a comandar, a não ser sob os mandamentos de um mestre que legifera sem rosto (S1). O mestre, escondido no lugar de verdade (S1), continua a conduzir o trabalho do escravo (S2), e o sujeito ($) é instigado pela própria mais-valia, mais-de-gozar que ele consome e que o consome. Conforme Lacan (1972), trata-se de algo loucamente astucioso, capaz de consumir e se consumar.
O agente desse discurso nada comanda. É o sujeito, esvaziado de agenciamento, uma espécie de "laranja" do discurso. Quem permanece no comando é um mestre escondido no lugar da verdade. Sem face, o mestre moderno do discurso capitalista é o próprio capital intocável, sem negociação possível. Quando as bolsas caem, nada pode ser feito. Elas despencam e não sabemos ao certo a quem e como recorrer.
Nesse discurso, não há hiato. Seu matema tem apenas flechas contínuas, sem ruptura, "tendo por resultado que não se pode mais designar o termo que comanda, define a ordem" (Soler, 2011, p. 59). Além da poderosa mutação que realiza no discurso do mestre, o discurso do capitalista, ao suspender o hiato presente nos outros quatro discursos, provoca outra operação (a→$).
A essa tentativa de obliteração da fantasia, ao prometer a possibilidade de acesso direto do objeto ao sujeito, designa-se o que perverte o humano (Fingermann & Dias, 2005). Diante do cerceamento da possibilidade do laço com o outro, resta o laço com os objetos, gadgets no discurso corrente do mercado - "latusas", segundo Lacan: "O mundo está cada vez mais povoado de latusas (...). Vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora é a ciência que o governa" (Lacan, 1999a, p. 153).
"Latusas" é um termo nascido de um jogo de palavras criado por Lacan para falar da aletosfera, da esfera das criações humanas, através das palavras aleteia e ousia, nas quais a primeira diria o que vela e desvela e a segunda faz referência ao que está entre o ente e o ser (Lacan, 1999a).
As "latusas" do capitalismo são produzidas para fazer surgir, no lugar do desejo, um objeto de uma demanda forjada, não pelo sujeito, mas pelo brilho do objeto imposto pelo mercado. O objeto torna-se, assim, da ordem do palpável e não enigmático, para que o sujeito creia ser esse objeto mesmo que irá fechar o circuito da pulsão. Um objeto feito sob medida.
O sujeito, no capitalismo, ganha as feições de um indivíduo que consome tudo que é produzido e chega, conforme Lacan (1972), às vias da própria consumação. Logrado pelos objetos que pululam no mercado do consumo, ele consome para gozar. Não há espaço para o vazio que permita um desejo. O imediatismo demanda acesso imediato ao gozo.
A Tentativa de Dizer sobre a Mulher
Farias e Barros (2003, p. 193) articulam: "retomando a articulação do feminino sob a égide desse discurso - considerando que, desde que foi anunciada ao mundo, a vida sexual não se restringe apenas à reprodução", uma torção se deu nesse lugar e "a mulher ocidental não tem mais como ficar omissa a determinadas conjunturas, ou seja, sua participação tornou-se uma exigência" (Farias & Barros, 2003, p. 201). Observamos as invenções fálicas correntes para definir as figuras da mulher na atualidade: profissional bem sucedida, excelentes negociadoras, chefes políticas, saudáveis, consumidoras assíduas. Atrás delas, correm as mulheres, sem alcançar solução para os enigmas de seu ser. Não podemos deixar de constatar que tais invenções são efeitos de um discurso capitalista que, em sua hegemonia e voracidade, pretende tamponar a diferença sexual inventando as figuras das mulheres do século XXI.
Não se trata de mostrar outra coisa que vige, embora não seja fálica, mas de situar as mulheres em pé de igualdade em relação aos homens. Ou seja, abolir a diferença sexual. Completando o que Miller (1988) nos diz, no lugar vazio em que "A mulher não existe", podemos encontrar máscaras e figuras da ordem do semblante, uma vez que o semblante tem a função de velar o nada. O que chamamos de mulheres são esses seres de relação essencial com o nada.
Diante do fato de que, ao buscar uma definição para a mulher, encontramos o nada - o vazio em sua proximidade radical -, o que dizer das figuras do feminino na atualidade? Elas parecem velar o nada para atender ao discurso do capitalista que nada quer saber.
O debate no âmbito sociopolítico acusa a diferença que diminui as mulheres. Por se defenderem tão acirradamente disso, elas acabam por sustentar esse paradigma. Ainda se engatinha no sentido de questionar como lidar com o que há a mais em relação ao falo, campo no qual a invenção navega e permite o novo. Ou seja, tratar o feminino como algo a mais, e não a menos.
Como dissemos a princípio, uma mulher é mesmo fruto de uma invenção. É preciso destacar, no entanto, o caráter hegemônico das invenções que esse discurso produz e apregoa de forma global. Submetidas aos imperativos da época, impedidas de criar, uma a uma, seu semblante, elas são forjadas a adotarem o semblante dA Mulher contemporânea de forma tão autoritária como quando eram obrigadas, no passado, aos afazeres domésticos.
O cerne de nosso questionamento encontra-se exatamente nesse paradoxo: se, por um lado, as conquistas das mulheres pela tão sonhada "liberdade" se destacam atualmente, no outro extremo, evidencia-se um contraponto não tão promissor. Ocupar lugares fálicos faz das mulheres sujeitos, mas não as aproxima do feminino. Ao final, ficamos sem saber se esse ganho das mulheres é em pujança de feminino ou não passa de uma máscara imperativa masculina. Discutir sobre essa questão pela via da psicanálise implica o inverso da dicotomia reduzida através das questões de gênero, pois apresenta a possibilidade de sustentar a mulher e sua impossibilidade radical de ser dita, resolvida ou mapeada. Fora dos modelos dicotômicos que se restringem a assegurar a consistência da mulher apenas como gênero, a psicanálise sustenta a extimidade da mulher, aquém dos manuais de psiquiatria, das formatações da moda e da mídia. Tem por direção vislumbrá-la em sua imprecisão, como um pedaço de real no qual se esvai a significação mais resolutiva e termina por afetar o ser falante.
As mulheres, hoje, trabalham e produzem, mas essa produção incessante - com ideais de completude, corpo-perfeito, sucesso e independência - as faz mais femininas? E a independência financeira que conquistam também pode ser questionada, uma vez que é impossível não depender do Outro. Em questões de amor, nas quais a dependência tem um papel relevante, não parece ter havido muito avanço. As mulheres poderosas não são menos sujeitas à vida solitária nem aos males do amor.
A tecnociência1 tem nisso um relevante papel. Apoiada pelo discurso do capitalista, parece estar a serviço da fabricação de uma variedade de objetos tecnológicos que visam à fabricação dA mulher sem falhas. São as "latusas" que pretendem fazer existir "A Mulher". Trata-se de uma ciência cuja investigação obedece às leis de mercado, visando garantir a eficácia desse gozo ao prometer fórmulas mágicas para panicados, depressivos, surtados, bipolares, ansiosos, nervosos, vivos. Prozac, Viagra e tantos outros apaziguadores visam eliminar o sofrimento. "Há cura para todos os males" é o marketing que comercializa a tecnociência, com seus aparatos que vão das cirurgias plásticas aos medicamentos contra a TPM ou de tarja preta, passando pela busca da eterna juventude, do emagrecimento, da musculação, da conta bancária, do cargo de sucesso etc. Concluímos, portanto: configura-se um verdadeiro mercado de orgasmos múltiplos, cuja pretensão nos parece ser a de querer aplacar o clássico enigma freudiano: mas, afinal, o que quer uma mulher?
Referências
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Recebido em 14 de novembro de 2012
Aceito em 26 de outubro de 2013
Revisado em 12 de novembro de 2013
1 Termo criado pelo filósofo belga Gilbert Hottois no final dos anos 1970 para definir a unicidade da ciência atada à potência das novas tecnologias (Díaz, 1997).