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Revista Psicologia Política
On-line version ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.10 no.19 São Paulo Jan. 2010
DOSSIÊ
Os intratáveis: o exílio do adolescente do laço social pelas noções de periculosidade e irrecuperalidade
The untreatable: the exile of adolescents from social bonds through the notions of dangerousness and irrecoverability
Los intratables: el exilio del adolescente del lazo social por las nociones de peligrosidad y irrecuperabilidad
Miriam Debieux Rosa*, I, II; Maria Cristina Vicentin**, II
I Universidade de São Paulo – Brasil
II Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Brasil
RESUMO
Neste trabalho discutimos os modos hegemônicos de gestão social dos riscos que a juventude pobre coloca à ordem social, ou, mais especialmente, a estratégia da patologização. Vamos analisar a tensão presente entre posições teóricas e políticas e entre os discursos da saúde e do campo jurídico para propor a superação de uma abordagem da violência advinda do discurso da defesa social, em favor de uma prática interdisciplinar eticopolítica que propicie a escuta do jovem e sua possibilidade de fundar seu novo lugar no campo social. Fundamentadas pela psicanálise e pela análise institucional, abordamos os princípios norteadores das noções medicojurídicas contidas nos diagnósticos de distúrbio antissocial, que caracterizam os adolescentes como perigosos, intratáveis, irrecuperáveis, e que promovem seu exílio do laço social e propomos outra perspectiva de análise da adolescência, do ato e da violência.
Palavras-chave: Adolescente em conflito com a lei, Distúrbio antissocial, Psicanálise, Irrecuperabilidade, Análise institucional.
ABSTRACT
This work discusses hegemonic modes of socially managing the risks that poor youth pose to social order, or, more particularly, the strategy of pathologization. It analyzes the current tension between the theoretical and political stances and between the health and the legal discourses. It proposes eliminating the approach to violence arising from the discourse of social defense in favor of an ethical-political interdisciplinary practice that enables listening to young people and founding their new place in the social field. Drawing on psychoanalysis and institutional analysis, we address the guiding principles of the medical-juridical notions contained in the diagnosis of antisocial disturbance that characterize adolescents as dangerous and untreatable, irrecoverable, and which promote their exile from social bonds, and propose another perspective to analyze adolescence, act and violence.
Keywords: Adolescents in conflict with Law, Dangerousness, Irrecoverability, Psychoanalysis, Institutional analysis.
RESUMEN
En este trabajo se discuten las formas hegemónicas de la gestión de los riesgos sociales que los jóvenes pobres representan para el orden social. Vamos a analizar esta tensión entre el discurso teórico y político entre la salud y el ámbito jurídico para proponer un enfoque para superar la violencia generada por el discurso de la defensa social, trabajando en favor de una práctica que fomenta una eticopolítica interdisciplinaria para escuchar a los jóvenes y la oportunidad de encontrar su nuevo lugar en el ámbito social. Con el abordaje teórica del psicoanálisis y del análisis institucional, se discuten los principios rectores de los conceptos contenidos en los diagnósticos de trastorno antisocial medicojurídicas, que tratan los adolescentes como peligrosos, difíciles y sin esperanza. Se pretende reflexionar sobre el vínculo social y proponer otro punto de vista analítico de la adolescencia, y del acto de violencia.
Palabras clave: Adolescentes en conflicto con la ley, Trastorno antisocial, Psicoanálisis, Análisis institucional, Irrecuperabilidad.
Introdução
A adolescência tem sido foco de atenção e preocupações por parte da sociedade. Tal situação intensifica-se particularmente em relação aos adolescentes em conflito com a lei. Observam-se o incremento da tematização sobre a criminalidade juvenil violenta na mídia e a persistência das campanhas pela redução da maioridade penal e/ou por modificações na legislação, no sentido do endurecimento das medidas socioeducativas. Reclama-se dos supostos privilégios dos jovens em relação à justiça, que caracterizariam impunidade e falta de atribuição de responsabilidade frente ao ato infracional.
Nota-se que o debate tem-se instalado com ênfase aos discursos do âmbito judicial aliados a discursos médico-psiquiátricos, que podem criminalizar e/ou patologizar os adolescentes autores de ato infracional, preocupados que estão em responder a uma demanda de ordem e segurança da população. Tais discursos têm focalizado o reaparecimento das figuras da periculosidade e da irrecuperabilidade, implícitas em diagnósticos como o de transtorno de personalidade antissocial, ou no prolongamento da internação e/ou internação em estabelecimentos especializados de saúde, como via de gestão do ato infracional na infância e adolescência.
Vamos debater os fundamentos dessas posições e apresentar a nossa posição éticopolítica, pela via da psicanálise e da análise institucional. Trata-se de analisar a tensão presente entre posições teóricas e políticas nos discursos da saúde e do campo jurídico. Elegemos duas direções. A primeira discute o exílio principalmente da juventude pobre no Brasil, promovido pelas noções médico-jurídicas contidas nos diagnósticos de distúrbio antissocial, que os caracterizam como perigosos e intratáveis ou irrecuperáveis. A segunda problematiza a temática da adolescência, o ato e a violência. Propomos a superação de uma abordagem da violência advinda do discurso da defesa social, para dar lugar a uma prática interdisciplinar que propicie a escuta ao jovem e sua possibilidade de fundar seu novo lugar no campo social.
Um dispositivo de análise utilizado na articulação do sujeito ao laço social é o de destacar o que os enunciados e a enunciação presentes na cena social sobre referentes fundamentais da organização social e psíquica elucidam o imaginário dos grupos sociais. Estes atribuem, em nome do discurso do Outro e do simbólico, lugares específicos ao sujeito, lugares estes que produzem discursos diferenciados, que levam em conta fatores vários como o gênero ou o extrato social. Refletir acerca do imaginário social1 auxilia a compreender a constituição subjetiva, pois as problemáticas do sujeito em relação à lei e da lei em relação ao sujeito resultam do modo como se estruturam os laços sociais, não somente na atualidade, mas também na história (Rosa, 2009).
Demonstramos como a estratégia de convencimento dos discursos do imaginário social e dos campos psi e jurídico toma forma cientificista, apresentando-se com aparente objetividade e dispensando a apreciação do sujeito. Zizek (1991) alerta que, enquanto a ciência não se precaver contra a imbricação de seus enunciados com os discursos midiáticos produzidos em torno desses mesmos enunciados, corre o risco de entrar no rol do que chamou de “fantasia social”. O autor, ao articular ideologia e fantasia, promove uma ampla reconfiguração do conceito de crítica da ideologia e transforma a fantasia em categoria central do político. A fantasia social leva à objetividade fantasmática, à ideologia, definida como “[...] uma fantasia social que estrutura a determinação do valor e da significação da realidade socialmente compartilhada. Fantasia social capaz de produzir uma “objetividade fantasmática” que tem um nome próprio: ideologia”. (Zizek, 1991:188). Nessa afirmação, Zizek aponta a astúcia que transforma uma fantasia na alegada realidade ou em verdade última desvinculada da história da comunidade. Colada à lei formal-universal que regula a troca social, a fantasia perde seu caráter singular e ganha autonomia, expandindo-se com a promessa da possibilidade de gozo. Estende o seu manto sobre a realidade social, atendendo às premissas de um tipo de historiografia que obtura os antagonismos reais, procurando preencher todos os espaços e desmentir a negatividade do sujeito. No presente, a fantasia intensifica a alienação social, quando abarca as promessas do capitalismo concebendo o momento histórico como perene e ideal.
O Exílio do Adolescente do Laço Social pelas Noções de Periculosidade e Irrecuperabilidade: impasses na confluência entre o discurso da saúde mental e o jurídico
São diversos os estudos e pesquisas em nosso país que nos informam que nos corpos dos jovens pobres se inscreve um imaginário vinculado à “delinquência” e à violência, e, ao mesmo tempo, uma realidade de mortes violentas2, sendo paradigmática a posição que assume, nesse contexto, a juventude em conflito com a lei: alvo sistemático da vitimização letal, de tortura e de maus tratos nas instituições de internação. (Anistia Internacional, 2000; Adorno, Lima & Bordini, 1999; Soares, 2000; Diógenes, 1998; Oliveira, 2001; Teixeira & Vicentin, 2001; Bocco, 2009). A imputação sistemática da violência à juventude, não incide apenas sobre os jovens infratores, mas em estigmatizações crescentes sobre os movimentos juvenis populares, condenando-os à invisibilidade ou à proscrição, reduzindo-os à imagem ameaçadora do crime e da delinquência, como é o caso dos bailes funk e do rap. (Arce, 1999; Herschmann, 2000).
Passados vinte anos da vigência do paradigma da Doutrina da Proteção Integral na relação com a infância e a juventude (traduzido na legislação brasileira pelo Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA, de 1990), as demandas sociais pelo “controle” da criminalidade juvenil ainda têm se desdobrado em processos crescentes de criminalização, como nos indica o persistente clamor pela redução da idade penal, e de patologização do adolescente em conflito com a lei, os quais configuram diferentes modos de realizar a gestão dos riscos (Castel, 1987) que a juventude pobre coloca ao campo social. Esses processos produzem práticas de fragmentação e fixação dos adolescentes e jovens a espaços de exclusão e controle na mesma medida da redução das políticas sociais a eles dirigidas.
Na direção da patologização, vimos detectando uma crescente utilização do aparato “psi” na gestão das problematizações e dos conflitos que setores da juventude vêm colocando no campo social, como é o caso, em São Paulo, do encaminhamento de adolescentes cumprindo medida socioeducativa para perícias psiquiátricas que aferem sua periculosidade; da proposta de lei de aplicação de medida de segurança e de internação psiquiátrica para adolescentes com transtornos mentais, que “não disporiam de recursos internos para assimilação de um processo de ressocialização”3·, da internação psiquiátrica de adolescentes por mandado judicial4; da aplicação de simulacros de medidas de segurança a jovens infratores5; enfim, de argumentos a favor da ampliação dos processos de segregação que buscam conectar transtorno mental à criminalidade pela via da periculosidade e dos transtornos de personalidade antissocial (TPAS), estes últimos quase “intratáveis” 6. (Conselho Federal de Psicologia, 2007; Frasseto, 2008; Vicentim, 2005a ; Vicentim & Rosa, 2009).
Um elemento importante para entendermos essa situação, no caso de São Paulo, foi a presença de um contingente de jovens com diagnósticos diversos de transtorno mental e sem o devido tratamento especializado. Isso levou o Ministério Público do Departamento de Execução (das medidas socioeducativas) da Infância e Juventude de São Paulo e o Poder Judiciário desse mesmo Departamento a instaurarem processo (1999) e sindicância (2002) para apurar irregularidades no sistema de atendimento socioeducativo a adolescentes portadores de transtorno mental, convocando diversas Secretarias do Estado e do município para encaminhar providências e formular políticas nesse âmbito (Vicentim, 2005b).
Nesse processo constatou-se7 que, cronologicamente, num primeiro tempo (1999-2001) predominou uma preocupação com questões mais propriamente de assistência à saúde, relativas aos transtornos mentais mais clássicos: drogadependência, quadros de psicoses e deficiências mentais, para dar lugar, num segundo tempo (2002-2004), aos casos de transtornos de personalidade antissocial e às perícias para avaliação da periculosidade. A noção de transtorno de personalidade passará a ter centralidade na decisão judicial, especialmente em relação à desinternação, e será uma das muitas linhas de força que derivarão na construção da Unidade Experimental de Saúde (UES), pela Secretaria Estadual da Saúde, destinada a oferecer atendimento para autores de ato infracional portadores de diagnóstico de transtorno de personalidade /ou de periculosidade, em regime de contenção.
No entanto, tais diagnósticos emergem nas malhas do próprio percurso institucional: dirigem-se aos que não “compreendem, não se beneficiam ou resistem subjetivamente ao plano socioeducativo”, conforme coloca a própria Fundação (Vicentim, 2006). A UES, segundo dirigentes da Febem-SP, abrigará adolescentes de conduta antissocial, que ela mesma define como “internos com tendência a depredar unidades, que não cuidam de suas coisas, são questionadores e não seguem normas, os agitados” (citado por Frasseto, 2008). Conforme assinalado por diversos psicólogos e assistentes sociais da Febem, “a inexistência de um projeto socioeducativo” em algumas unidades, o número de “transferências de unidades” que alguns jovens experimentam (especialmente no período de rebeliões), as “violações de direitos de que são objeto” são situações que colaboram para a construção de jovens ora profundamente desamparados, ora inconformados, estes últimos, muito próximos de um perfil facilmente “convertido” em personalidade antissocial (Sarti, 2000; Vicentim, 2006; Vicentim & Rosa, 2009).
Na maioria dos casos, é o próprio percurso institucional, portanto, que dá forma e nome a um objeto socialmente perigoso. E tudo que não está apto a ser sujeito à tratamento ou à reabilitação, o que se apresenta como ingovernável e intratável, é, por essa razão, perigoso. Não estamos então frente à mesma noção de periculosidade, forjada no século XIX, a do “atributo intrínseco de um sujeito em si mesmo”, mas mais perto do perigo como “incontrolabilidade”, como “o que escapa à gestão institucional” (Leonardis, 1998). Discursividade “renovada”, portanto, quanto à periculosidade, que adquire conotações que facilitam a extensão e difusão do seu uso, cada vez mais subordinado às exigências de “defesa social”.
Vamos apresentar, embora rapidamente, um conjunto de elementos que contribuem para a construção da figura do adolescente perigoso e intratável:
1. Os pressupostos teóricos e ideológicos que fundamentam as definições de adolescência nas políticas de saúde pública são pautados na psicometria, psicologia e pedagogia, ampliados com os aportes da medicina evolutiva e que, “em sua maioria orientam-se a conduzir a criança a uma adaptação a estes modelos construídos pela ciência” (Telles, 2006:155).
2. A transformação de comportamentos - transgressões e/ou crimes - em sinais de patologia da personalidade, que evidencia dois tipos de distorção. No campo da saúde, distorce e dispensa a leitura clínica e psicopatológica, invalidando a intervenção em saúde. No campo jurídico, promove a substituição da punição do ato (direito penal do fato) pela inspeção da conduta moral do autor (direito penal do autor). Em relação ao adolescente em conflito com a lei, nota-se que, recentemente, a noção de transtorno de personalidade ganha centralidade na tematização das questões de saúde mental, configurando um novo campo problemático (Vicentim, 2005a, 2005b, 2006; Vicentim & Rosa, 2009) e coloca o jovem na condição de intratável e irrecuperável. Tais diagnósticos costumam ainda ser aplicados independentemente da história e contexto pessoal ou social do sujeito (Frasseto, 2005; Rauter, 2003)
3. A desconsideração do contexto em que os diagnósticos são realizados, especialmente quando há institucionalização e atravessamentos pelos discursos e instituições jurídicas. Grande parte dos diagnósticos realizados nos jovens em conflito com a lei ocorre em contexto jurídico, de acusação criminal ou em situações de institucionalizações em situação precária. A situação de institucionalização e todos os estudos referentes a ela também têm sido desprezada como elemento constitutivo de um modo de apresentação do jovem diante dos peritos responsáveis pelo diagnóstico.
Quando declaramos importante estar atento ao tipo de clientela e suas condições sociais, seu tipo de demanda, não é porque haveria uma psicologia para cada condição social. Mas há interferências evidentes que dizem respeito à forma de relação que cada classe social tem com os representantes da saúde, a priorização de seus objetivos e a forma de expressar suas demandas de ajuda, para as quais nem sempre o psicólogo está apto à escuta. A questão que se coloca não diz respeito à elaboração de novas teorias, mas à maior necessidade de o psicólogo qualificar-se para detectar as sutis malhas da dominação e não confundir seus efeitos com o próprio do sujeito (Rosa, 2004a:34).
4. A associação do diagnóstico psiquiátrico/psicológico à periculosidade, transforma a periculosidade, uma noção jurídica, em diagnóstico clínico e a transpõe de adultos para adolescentes. A noção de periculosidade, que foi uma das bases da configuração de uma psiquiatria criminológica, passa a ser intensamente problematizada nos últimos trinta anos. A consistência científica do conceito foi questionada: pela ruptura do nexo causal entre enfermidade e periculosidade; pelo questionamento da “certeza diagnóstica” e da competência e capacidade preditiva da psiquiatria no tocante à periculosidade e pela “crise e dissolução do paradigma positivista-organicista”, com o desenvolvimento dos enfoques sociais e interacionistas no tocante ao sofrimento mental (Leonardis, 1998; Pitch, 2003). Com o acúmulo desses elementos críticos, o debate psiquiátrico evidenciou que a periculosidade é uma noção jurídica e não um diagnóstico clínico ou médico.
No entanto, em recente pesquisa em torno das avaliações psicológicas realizadas a pedido do poder judiciário para decisões em torno da execução da medida socioeducativa, Frasseto (2005) conclui que a periculosidade, não obstante tratar-se de conceito em crise na criminologia e absolutamente não operacional do ponto de vista jurídico, é parte significativa dos argumentos constantes nas avaliações sugestivas da necessidade de internação. Essa previsão torna-se mais problemática quando se trata de adolescentes, pois diversos e consistentes estudos sobre adolescência indicam que a patologização desses sinais na adolescência tende a precipitar o comportamento indesejado.
5. A utilização de diagnósticos psiquiátricos em que fica implícita a ineficácia de tratamento clínico ou educacional. A colocação do sujeito como portador de ‘transtorno de personalidade’, traço “quase incurável” dificulta que ele se reconheça com suas determinações inconscientes e sociohistóricas e que demande, que apele ao campo social e que faça laço social, porque está numa posição absolutamente objetificada. Na clínica psicanalítica, entre outras, o ato diagnóstico é necessariamente, de partida, um ato referido à modalidade da relação transferencial, deliberadamente posto em suspenso. O diagnóstico, portanto, não pode ser considerado procedimento conclusivo, destacado e anterior à intervenção.
Em síntese, essa composição do ato infracional com o transtorno mental vem construindo argumentos tanto para modificações no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (referentes ao tempo de aplicação da medida ou na proposição do tipo de medida), quanto para a produção de práticas dirigidas ao autor de ato infracional que são frontalmente contrárias aos paradigmas do ECA e às da Reforma em Saúde Mental.
Tais “demandas” dirigidas ao campo da saúde mental acompanham uma tendência à patologização de setores da juventude pobre, isto é, uma forma de encobrir como doença mental determinados processos sociais que discriminam a pobreza e encobrem o desinvestimento da sociedade em relação a esses jovens. E que indicam também o que é necessário: problematizar as diretrizes terapêuticas sempre que estejam atreladas à lógica individualista ou quando buscam responder às exigências de defesa social e ampliar o olhar e a ação para a complexa e, muitas vezes, restrita trama na qual esses jovens se inserem socialmente. Nesse aspecto, nenhuma instituição isoladamente – mesmo a de saúde mental – é capaz de oferecer alternativas para que os jovens saiam desse “destino”. Somente uma articulação coletiva entre diversos atores sociais e instituições que acompanhem esses jovens poderá criar alternativas a esse circuito (Bentes, 1998; Joia, 2006; Scisleski e col., 2008; Vicentim & Rosa, 2009).
Essa psiquiatrização impede a leitura dos fenômenos sociais de exclusão e de vulnerabilidade social que são também determinantes do ato infracional. Nessa posição de expulso, o sujeito perde sua visibilidade na vida pública, não tem voz, entra no universo da indiferença. Trata-se de uma estratégia de controle social que lança os jovens na posição de vida nua: a vida que pode ser descartada, pois foi empurrada para fora dos limites do contrato social e da humanidade (Agamben, 2002). A psiquiatrização dos adolescentes caminha, assim, em consonância com o paradigma emergente de gestão dos chamados indesejáveis e perigosos, marcado pela radicalização da política punitiva como resposta ao aumento da desigualdade social, da violência e da insegurança (Kolker, 2002). Se a juventude concentra parte significativa da violência física e das dinâmicas criminais hoje vivenciadas pelo conjunto da sociedade, o saldo de tal lógica é previsível e conhecido: cada vez mais os jovens e as jovens do país veem-se associados também – e antes de tudo – à violência e expostos, por isso, à desconfiança pública. O debate público sobre as políticas e iniciativas governamentais e sociais que deveriam beneficiá-los é reduzido aos seus aspectos de segurança.
Para amplos setores da sociedade e da mídia, falar em “políticas públicas de juventude” passa a ser, então, falar simplesmente em estratégias de controle. Tal dinâmica não pode levar a outra coisa que não à recusa por parte da juventude das soluções que lhe são propostas pela sociedade política e adulta. Além disso, amplia o seu distanciamento e dificuldades de inserção e participação social positivas, configurando, assim, o círculo vicioso de que falamos. (Instituto da Cidadania, 2004). Nesse contexto, onde se associam amplamente juventude e violência, consideramos relevante problematizar, com as concepções da psicanálise, essas associações: violência-juventude, patologia-juventude, violência patologia.
Adolescência, Ato e Violência: contribuições da Psicanálise
As concepções acima adotadas amparam a construção social da figura do adolescente perigoso e intratável, coesa ao imaginário social relativo ao adolescente, e fundamentam práticas sociais e políticas em nosso contexto contemporâneo. Vamos problematizar a temática da adolescência e as dimensões do ato, assim como a concepção de violência, para oferecer outros pressupostos, no caso a psicanálise, na contribuição para a construção de políticas públicas para a Juventude.
O Crime e suas Incógnitas
Campo complexo e abordado por inúmeros ângulos – em várias ciências, na filosofia, na psicanálise, na literatura e na política – é a questão do crime, suas motivações, suas possibilidades. O campo jurídico desenvolve-a com estratégias específicas. Essa questão escapa às pretensões deste artigo. Apenas pretendemos assinalar ao leitor que há outras leituras sobre o crime que ultrapassam a polaridade vítima e agressor, sendo este último aquele que tem personalidade antissocial, ou que atribui versão patológica ao crime. Apresentamos a versão psicanalítica, escolhendo como ponto de partida o diálogo entre Einstein e Freud em torno da guerra, travado em 1932, véspera da Segunda Guerra Mundial e da ascensão de Hitler (1933): “Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra?”, pergunta Einstein a Freud (1932/2004). Podemos substituir o termo guerra por violência.
Freud é convocado por Einstein como um especialista “das dimensões obscuras regiões da vontade e do sentimento humano, situados mais ou menos fora dos objetivos da política”. No entanto, os fundamentos teóricos, metodológicos e éticos da psicanálise pretendem ultrapassar a dicotomia indivíduo—sociedade e as hipóteses de influência mútua. A dicotomia indivíduosociedade cria uma falsa ilusão de autonomia. O Sujeito do inconsciente não é intrapsíquico, nem adjetivado por características x ou y, nem é do bem ou do mal. É constituído a partir do desejo do Outro, recriado a cada relação com o outro e depende da modalidade de laço social. Esse laço discursivo pode fazer surgir o melhor ou o pior. E o pior pode estar travestido de boas intenções, de saber o que é o bem do outro. No contraponto razão–lógica, em que o eu que conhece não se interroga e profere verdades, a sexualidade no sentido freudiano comparece para interrogar e dimensionar a existência. Ao retirar o caráter de doença da manifestação histérica, a psicanálise mostra que não há apenas um organismo doente, mas que o sintoma é uma modalidade de expressão do sofrimento na relação com o outro, é mensagem da conflitiva pessoal, familiar e sociopolítica-libidinal – podemos abordar desta forma também a violência. Assim, falar de sujeito é falar de uma concepção ético-política e não de uma faceta do indivíduo recortado em bio/psico/social. O sujeito é produto e produtor da rede simbólica que caracteriza o que chamamos de social. A violência não se resolve com a submissão de uma das partes, mas com a transformação que leve em conta o conflito propiciador dessa manifestação.
Outro aspecto é debatido por Freud a partir das perguntas: “É possível tornar o homem à prova das psicoses do ódio e da destrutividade? Por que é tão fácil inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra?”. As perguntas não se referem aos criminosos, mas ao homem comum chamado para a guerra. Freud responde localizando a importância da agressividade. Há dois tipos de manifestação: aquelas que tendem a preservar e a unir – que ele denomina pulsão de vida – e aquelas que tendem a destruir e matar, as quais agrupa como pulsão agressiva ou destrutiva. Entretanto, alerta:
Não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhuma dessas pulsões é menos essencial do que a outra; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. [...] Assim, por exemplo, o instinto de autopreservação certamente é de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito. E a origem da bem conceituada consciência está no desvio da agressividade para dentro [...] De forma que, quando os seres humanos são incitados à guerra ou violência podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar. [...] Entre eles está certamente o desejo da agressão e destruição facilitada por sua mistura com outros motivos de natureza erótica e idealista — por exemplo, no caso das crueldades da Inquisição — é como se os motivos idealistas tivessem assomado a um primeiro plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço inconsciente. Ambos podem ser verdadeiros (Einstein & Freud, 1932/2004:11).
Conclui que: de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens, que não são negativas em si. Outras, pretensamente referidas a ideais nobres também encobrem aspectos destrutivos. Encerra criticando o pacifismo de Einstein.
Enfim, não é possível eliminar o mal-estar decorrente do processo civilizatório. Muitos desenvolvimentos desse tema estão em Freud, Lacan e outros autores podem ser-nos úteis nesta discussão. Por ora, apenas reforçamos a complexidade do tema e o excesso de simplificação quando se aponta a relação do indivíduo com o crime cometido estritamente relativo à personalidade ou ao caráter com características patológicas.
A Adolescência e as Dimensões do Ato
A adolescência para a psicanálise não é caracterizada por comportamentos ou personalidade, mas refere-se a um intenso trabalho psíquico, subjetivo e relacional. Este é geralmente desencadeado pela entrada na puberdade, trabalho necessário para recolocar a criança para além do espaço familiar, possibilitando uma posição frente aos impasses no encontro com o outro, particularmente com o Outro sexo, e engajamento nos campos social e afetivo-sexual, bem como capacidade de escolha. O processo é trabalhoso e varia muito em intensidade, momento disparador e consequências na interação familiar, amorosa e social. Assim, há várias adolescências – cada adolescente expressa uma adolescência singular – e não uma adolescência, um único perfil que nos faz crer que conhecemos antecipadamente o jovem.
A atenção à adolescência como um período particular da vida que reúne características específicas é relativamente recente na história político-social, iniciada na modernidade. Ruffino (1998) concebe a adolescência como a produção de um processo subjetivo tecido na modernidade para suprir as falhas nas estruturas sociais em atribuir-lhe lugar condizente a sua condição de sujeito desejante. O processo da adolescência tem raiz na ausência de lugares sociais pré-definidos para o jovem e na complexidade crescente da entrada no mundo do trabalho, exigindo qualificação e longa formação escolar, que adiam a entrada do jovem nesse mundo e exigem definições quanto aos valores e regras que adotará, além de saber quem é e o que espera da vida, para poder escolher seu modo de inserção social. Definições difíceis quando a referência ao pai sofre abalos, caído de um pai ideal para um pai mortal, o que deixa o adolescente à mercê não mais da morte simbólica, mas da morte real.
Sendo absolutamente Outro, diferença radical da qual o inverso é a identificação, o pai, pelo golpe de força de uma semelhança que nenhuma identificação transcende, mascara ou reduz, cessa de ser o representante único da ordem simbólica. Quando o filho se mede ao pai, o corpo do pai entra em cena, não mais mítico, mas tomado em uma cadeia na língua, e da qual o nascimento e a morte são as pontuações reais. O pai (destituído) é designado, ao mesmo título que o filho, como elo na cadeia das gerações, garantidor provisório e parcial da permanência do Nome na cadeia dos significantes (Rassial, 1997:5).
Novas operações se processam para fazer valer outro discurso, além do discurso do pai, operações que possibilitam o pertencimento e reconhecimento do jovem como membro do grupo social e que dependem das formas, condições e estratégias oferecidas pelo grupo social. É reatualizada a cena da sedução, que encena o assujeitamento ao desejo do Outro, agora não mais tematizado pelo desejo da mãe ou pela Lei do pai, mas pela organização social, (nova versão do pai), poderosa, pois desencarnada, mas ainda discurso, com seus ditos e não-ditos (Rosa, 2002). Convocado a saber sobre si mesmo, o sujeito “vê-se obrigado a substituir as formações coletivas das que se acha excluído por suas próprias formações sintomáticas” (Freud, 1921:103). A adolescência é “o momento no qual o fantasma vai se constituir em versão de uma tentativa de representação do movimento de alienação/separação do sujeito na relação com o Outro sexo” (Poli, 2003:91). Nessa perspectiva, como operação psíquica, a adolescência é uma tentativa de enlace do real, do imaginário e do simbólico, e o sintoma no tempo da adolescência representaria o quarto elo, aquele que sustentaria –provisoriamente, ou não– uma posição discursiva do sujeito, estabelecendo lugares para o desejo e o gozo, diz a autora.
Poli (2003) nos apresenta a adolescência como uma operação psíquica, um dos tempos lógicos do sujeito, tempo em que ele estaria às voltas com a construção de uma narrativa sobre sua origem, incluindo a alienação e a separação do campo do Outro. A consequência disso é que “uma narrativa das origens não é nem individual, nem social” (2003:84), pois ela se situa no ponto de encontro entre a clínica social e a psicopatologia individual – as narrativas de origem podem ser abordadas do lado da cultura (ou do Outro) ou do lado do sujeito. Assim sendo, consideramos que
Os processos do adolescente não se referem apenas a certa estruturação subjetiva fixada e a priori, mas revisitada a partir da cena social, cujos discursos constituem formas de laços sociais, alguns perversos ou perversores. O adolescente reinscreve-se, superando, conservando e revelando o histórico do sujeito e conferindo-lhe novas significações. As ações ou acidentes, realizações, frustrações, encontros, desencontros, promovem reorganizações estruturais importantes. (Rosa, 2002:229).
Nessa perspectiva, o adolescente assemelha-se a um imigrante que ainda não encontrou seu próprio lugar. Como este, seu dilema situa-se entre a ânsia identitária, uma identidade social pela qual possa ser reconhecido e que o estabilize no laço com o outro, e a ânsia desejante, que lhe abre novas experiências e possibilidades até então moduladas por promessas de adiamento. Esse processo se dá no laço social, laço discursivo que nesse momento de constituição subjetiva pode promover mudanças estruturais e/ou vinculações a laços sociais perversos. Nesse sentido, Aulagnier (1979) afirma que o discurso social projeta sobre o infans a mesma antecipação que é própria do discurso parental; o grupo pré-investirá o lugar que o sujeito ocupará, na esperança de que ele transmita, de forma idêntica, o modelo sociocultural. O sujeito deve encontrar nesse discurso referências que lhe permitam se projetar no futuro para que o afastamento desse primeiro suporte não se traduza em perda de todo suporte identificatório. Consideramos a adolescência como
A operação que expõe a cena social presente na base da cena familiar, até então encarregada de fazer operar as funções maternas e paternas para a constituição subjetiva. Exercer essas funções esteve articulado aos lugares fálicos atribuídos, ou não, aos membros daquela família, daquela classe social, naquele momento cultural. Sua eficácia não é independente desses fatores, pois a família é, ao mesmo tempo, o veículo de transmissão dos sistemas simbólicos dominantes e a expressão, em sua organização, do funcionamento da classe social, do grupo étnico ou religioso, em que está inserida (Rosa, 2002:231).
A adolescência toma características particulares quando as perspectivas sociopolíticas e econômicas dificultam o acesso, de modo diversificado entre os grupos sociais, ao mundo produtivo e à independência econômica. Esse contexto social produz desdobramentos importantes, a começar na família, onde se processa um distanciamento, ou mesmo uma quebra da identificação da geração anterior com a atual, dinâmica relacional que gera ambiguidade dos pais em relação à própria posição em relação aos filhos. O discurso social incide de modo mais intenso nas situações em que as famílias têm suas posições desqualificadas enquanto transmissoras, evidenciando que a diferença de classes e de lugar na estrutura social tem desdobramentos fundamentais no discurso sobre o jovem.
Não é indiferente o fato de o discurso social ser enunciado por pais que, marcados pela divisão entre desejo e lei, têm o gozo no plano da fantasia e estão implicados na relação com o filho, podendo lhes transmitir os significantes de sua filiação e sexualidade. Em relação aos jovens de famílias marginalizadas, constata-se a desvalorização e apagamento do discurso familiar, desautorizado pelo discurso social, intermediado pela voz da mídia, da polícia, do promotor, a emitir enunciados identificatórios carregados de predições desqualificadoras e generalistas como “é um menino da favela, da gang”, etc. Para esses jovens, em oposição aos ditos de família, é oferecido apenas um discurso social sem polissemia, sobre um jovem abstrato, que não lhes diz respeito, que não é “filho”. O discurso, carregado de expectativas culturais, qualifica os seus atos de modo que pequenos delitos –uso de drogas, desobediência e brigas – sejam qualificados como crimes, como sinal de delinquência prevista ou de personalidade antissocial.
A relação do jovem com transgressões à ordem social e à política vigente percorre uma trajetória histórica que fez dele tanto massa de manobra nas guerras, como personagem central em transformações políticas e sociais.8 Deve-se situar a função do ato na adolescência – momento de um sujeito em constituição – e os seus efeitos no campo social em seus aspectos ideológicos e políticos.
Em trabalhos anteriores abordamos a caracterização do ato (Rosa, 1999; 2009), observando que muitas vezes a criança ou o jovem não se reconhece no que faz; demonstramos que fica perturbado pelo estranhamento e/ou sensação de impotência frente à própria ação. Esta se revela seja na alegação de inocência ou acidente, “foi sem querer”, ou na sua simples negação. O estranhamento é ligado à angústia de se saber incapaz de demonstrar a existência por si mesmo, à precariedade da identidade, ao estado de desamparo primordial do sujeito que marca a condição humana de fazer do laço com o outro a sua marca distintiva, condição de existência uma “necessidade” simbólica. Deve-se, também, ao fato de que as ações, em várias circunstâncias, podem ser efeito de repetição, algo que se impõe ao sujeito como um azar do destino, à revelia do ego, pois regulado pela articulação significante que circula entre as gerações e ofusca a divisão eu-outro. Presentifica a repetição, definida aqui como agir algo não elaborado da história (Rosa, 2009).
Porém, a referência ao Outro, ao simbólico, ainda que norteie o sujeito não é suficiente para marcar uma posição a partir de seu desejo e construir uma trajetória singular. É o ato que dá estatuto subjetivo, funda, legitima a subjetividade, lembra Melman (1992). O ato atravessa o plano simbólico e cria uma cena no real, um acontecimento, que marca a sua presença encenando seu desejo e abrindo a possibilidade de ser falado pelo Outro a partir do enigma que lança e busca enlaçar o outro. Trata-se de um apelo de pertencimento ao campo social com uma posição particularizada. O pertencimento pode se mostrar antagônico à aposta sobre os ideais do campo social. A desidealização das referências leva o sujeito a ter que inventar suas próprias soluções, e o que se apresenta é que a possibilidade de encontro com o Outro se dá, paradoxalmente, através da ruptura, através do ato, que pode ser tomado como violento, mas que é o modo pelo qual o sujeito tenta salvar sua singularidade.
O ato parte de uma intenção, mas, uma vez desencadeado, tem efeito imponderável no próprio sujeito, no objeto e no discurso do Outro sobre si. Uma vez iniciado, pode desencadear, em si e no outro, efeitos imprevistos quanto ao grau e intensidade de emoções e agressividade que desperta. Ou, dito de outro modo, o ato, qualquer ato, pela distância do eu e proximidade à pulsão, traz sempre um risco e está sempre ligado à sexualidade, em sua qualidade infantil e perversa. Dessa forma, o sujeito está ausente de seu ato que, por sua vez, cria uma cena no real que encena seu desejo; a implicação do sujeito com o ato se dá a posteriori, ou seja, quando falado pelo Outro pode retornar ao sujeito encadeado, associado a algo de seu desejo.
Importante para esta discussão é que o efeito do ato no discurso social transcende ao ato em si ou sua consequência e diz respeito ao lugar que aquele que age ocupa no desejo daquele que profere o discurso. Assim, dependendo da posição social do jovem, as qualificações serão diversas; o discurso, carregado de expectativas culturais, qualifica diferentemente um ato ou seu autor como criativo, desobediente, delito, como sinal de delinquência. Assim sendo, destacamos incisivamente que o que muitas vezes é definitivo para nomear o ato como delinquente diz respeito menos ao ato em si, à sua gravidade, do que a leituras sociais preestabelecidas sobre o autor (ator) do ato. Essa questão está em jogo na criminalização ou patologização perpétuas no caso de adolescentes autores de ato(s) infracionacionais.
Reflexões sobre a Relação entre os Campos Psi e Jurídico: por outro modelo
A garantia de bem-estar social, quando este é tomado como a eliminação do conflito, é uma ilusão perigosa. Em nome dessa ilusão e da eliminação do mal-estar, pode-se exercer a violência institucional que exige sacrifício de todos – ou, mais exatamente, dos mais sacrificáveis (Agamben, 2002) –, que pagam o preço da civilização. Eleger sacrificáveis desvirtua a condição da civilização de suportar o mal-estar das diferenças, que obriga a estabelecer laços sociais para criar instâncias novas. O evitamento do conflito é operado por estratégias de ilusão, pela ocultação dos processos e pela identificação. Domina-se de formas mais sutis que a guerra, a guerra sem nome que se instala no campo social, com novas figuras de “soldados”. Cria-se uma modalidade de ilusão que visa a uma sociedade perfeita com suposta igualdade, que persegue o bem-estar social. Segundo Guidens (2002), isso resulta em grandes contingentes de segregados da vida social, já que facetas humanas que possibilitam criar um sentido para a vida são excluídas sob o nome de loucura ou criminalidade. Nessa direção, Bauman (1988) analisa o atravessamento do bem-estar social na era do consumo, pela produção de estranhos – definidos como aqueles que não consomem. Diz que “A individualização do crime e a idéia de classes sociais inteiras tomadas como perigosas geram a articulação do bemestar às prisões”. Cabe-nos também criticar o apelo excessivo às leis como recurso para lidar com conflitos sociais. Tomemos Zizek, (1992:63):
De uma maneira mais precisa podemos dizer que uma fantasia ideológica vem tapar o buraco aberto pelo abismo, pelo cunho infundado da lei social. Este buraco é delimitado pela tautologia ‘a lei é a lei’, fórmula que atesta o caráter ilegal e ilegítimo da instauração do reino da lei, de uma violência fora da lei, real, em que se sustenta o próprio reino da lei.
O campo social é um campo de forças e interesses antagônicos, complexo e conflituoso. No entanto, ao lidar com esse contexto observam-se a fragmentação e a oposição entre os discursos que se rivalizam pelo poder sobre a criança, o adolescente, a família; promovem-se, por vezes, relações inconsistentes ou segmentam-se as práticas de intervenção social, seja no campo da saúde, da educação ou no campo jurídico. O conhecimento sobre os indivíduos ignora o contexto de produção e impõe patologias, retirando do sujeito a efetividade do seu discurso e de sua denúncia.
Os discursos e práticas sociais sobre as políticas de saúde devem cuidar para não participar desse processo cientificista. Cuidar do sofrimento deslocado dos impactos do sofrimento social, da exploração social, cria uma série de distorções que possibilitam que políticas gestadas com objetivos progressistas sejam transformadas em práticas opressivas. E os discursos da saúde podem associar-se aos da justiça para calar o phatos do sujeito e garantir aparente bemestar – as práticas e discursos sociais tornam-se violentos, como vimos na criação de imaginários sobre a adolescência.
Trata-se, principalmente, de realizar a problematização do campo psi quando este opera como fator de legitimidade para as tecnologias coercitivas. Ou seja, evitar qualquer utilização das práticas psicológicas a favor de uma criminologia clínica entendida como aquela que se ocupa do diagnóstico e do prognóstico da conduta do jovem, centrada nas “disfunções” sociais ou pessoais, como base para legitimar/justificar a sanção. Dito de outro modo: o sistema de justiça e o sistema de saúde devem ser disjuntos quando se trata de definir as modalidades legais (penais e de atribuição de medida) pelas quais um adolescente deve ser responsabilizado, mas podem estar juntos na direção dos processos de reabilitação psicossocial e de desinstitucionalização. Afinal, a cooperação entre Justiça, Saúde, Segurança Pública e Assistência Social pode possibilitar a construção de trajetórias menos danosas (Vicentim & Rosa, 2009).
Nesse sentido, é fundamental salientar que o processo de implantação das políticas faz parte do problema e deve estar atento ao mal-estar e outras lógicas que a passagem da abstração, que é intrínseca à proposta, para um contexto específico, pode indicar. A implementação isolada gera muitas distorções – sabemos da força da burocratização. A questão que queremos enfatizar é a de que as práticas devem estar inseridas em uma gama de providências, isto é, o diagnóstico individual e o diagnóstico contextual –o registro– não podem ser isolados de encaminhamentos. Devem, sim, ser acompanhados por uma formação mais ampla dos agentes responsáveis que se impliquem nos e se responsabilizem pelos procedimentos, e que sejam ouvidos nos impasses que surgirem.
Neste trabalho propusemos que os enunciados do imaginário social atual e dos discursos cientificistas atuam sobre o adolescente e produzem um modo de evasão da responsabilidade da estrutura social. Ler o discurso sobre a violência no seu avesso significa inverter o enunciado do imaginário social. Nesse caso, a violência funda-se na ruptura dos fundamentos do contrato social, na perda de um discurso de pertinência e de um lugar social que promova gratificação narcísica que, aliada à exclusão dos ideais e valores do grupo, produz o rompimento dos laços sociais e tem efeitos disruptivos no sujeito. Apontamos, também, dimensões para uma prática ético-política que propicie a escuta do jovem e sua possibilidade de fundar seu novo lugar no campo social.
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Endereço para correspondência
Miriam Debieux Rosa
E-mail: debieux@terra.com.br
Maria Cristina Vicentin
E-mail: crisvic1@uol.com.br
Recebido em: 02/09/2009
Revisado em: 06/02/2010
Aceito em: 21/04/2010
* Psicanalista, professora do programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo – Brasil. Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Brasil.
** Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Brasil.
1 O imaginário social é, segundo Castoriadis (1988), o conjunto de significações, normas e lógicas (dinheiro, sexo, homem, mulher, criança, etc) que determinam o lugar concreto que os indivíduos ocupam na sociedade. Esse conceito permite superar o de ideologia, na medida em que este último, ao definir crenças, também atribui um caráter falso às mesmas, enquanto o imaginário social envolve na própria definição sua índole de criação real e, ao mesmo tempo, de lugar de entrecruzamentos de ideais, cuja substância é tanto historicossocial como politicolibidinal. Tais lugares permitem hipotetizar de que forma tais "realidades" ou fantasias dos grupos sociais (Aulagnier, 1979) produzem discursos e atribuem lugares específicos ao jovem no imaginário social e parental. Ressalta-se a idei a de que é a partir de certa concepção de lei, indivíduo, adolescente, sociedade, sexualidade e domínio que alguns são considerados ou excluídos como sujeito humanos, e podem (ou não) ter acesso à escuta, à palavra, ao gozo, à cidadania (Rosa, 2004a).
2 Nas últimas duas décadas, no Brasil, os avanços da violência homicida se devem ao elevado incremento de mortes violentas na juventude, especialmente ao de homicídios: em 1980, 30% dos jovens que morreram foram assassinados; em 2002, a porcentagem pulou para 54,5%. Ainda, entre 1991 e 2000, a taxa de homicídios para a população em geral cresceu 29%, mas entre os jovens chegou a 48% (Waiselfisz, 2002).
3 Cf projeto de lei do deputado Vicente Cascione, de 2003.
4 Verificada nos maiores hospitais psiquiátricos para adolescentes do Rio de Janeiro e de São Paulo, caracterizada: pela compulsoriedade, pela estipulação de prazos para a internação subordinada aos critérios jurídicos, por tempo médio de internação superior aos dos demais internos admitidos por outros procedimentos e pela acentuada presença de quadros relativos a distúrbios de conduta (portanto, não psicóticos) (Bentes, 1999; Joia, 2006).
5 Como é o caso da internação de jovens na Unidade Experimental de Saúde, inaugurada em dezembro de 2006 no estado de São Paulo, num convênio entre as Secretarias da Saúde, Justiça e Administração Penitenciária, destinada a oferecer atendimento para autores de ato infracional portadores de diagnóstico de transtorno de personalidade e/ou de periculosidade, durante o cumprimento de medida socioeducativa de internação em regime de contenção. (Frasseto, 2008).
6 Os TPAS no campo da psicopatologia são considerados anomalias do desenvolvimento psicológico e não doenças. Este tipo de diagnóstico assenta-se junto à criação dos termos Psicopata, Sociopata, Transtornos de Conduta, Delinquência juntamente com conceitos tais como Personalidade Criminosa, Personalidade Psicopática, Propensão ao Delito que estão sendo revistos pela psiquiatria. Os termos partem da concepção de K. Schneider (1923) sobre as personalidades psicopáticas observadas em adultos, particularmente os “frios de ânimo” ou desalmados. A noção sustentava que estas características não são diagnosticáveis como doença psiquiátrica, mas são traços de caráter anormais – fora da norma – constitucionais e inatos, pré-existentes às vivencias, e considerados permanentes do indivíduo. Sendo assim não caberia ao médico, portanto, uma atuação frente a estas pessoas e seus comportamentos. Supõe, como já vinha de Lombroso, 1895, que o homem ‘nasce’ delinquente e está determinado por causas e características morfofisiológicas, sendo intratável e irrecuperável. A figura do sociopata ou do indivíduo acometido de Transtorno Antissocial de Personalidade é indicativa da crença em uma determinada essência não humana. Trata-se de um indivíduo incapaz, segundo os pareceres criminológicos, de culpa e arrependimento; desta forma, estariam como que apartados do restante do humano, com um psiquismo próprio e degenerado. Essa posição desconsidera que as leis são fundamentadas na cultura e comportamentos convencionados na diversidade dos grupos humanos (Hoenish, 2002).
7 Conforme pesquisa: “A interface psi-jurídica: a psiquiatrização do adolescente em conflito com a lei” (X, 2005b), que teve como terreno empírico o município de SP e construiu esses dados junto à Vara da Infância e Juventude/Departamento de Execuções da Infância e da Juventude; à Febem-SP/Diretoria de Saúde; ao Centro de Defesa Técnico-Jurídica do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a prevenção do delito e tratamento do delinquente (Ilanud); ao Hospital Psiquiátrico Pinel; e ao Instituto de Medicina Social e Criminologia (Imesc).
8 Ver a esse respeito Ariès (1981).